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terça-feira, 14 de junho de 2011

Che Guevara Uma lenda do século XX

PIERRE KALFON

CHE
ERNESTO GUEVARA, UMA LENDA DO SÉCULO XX

Uma obra, considerada completa, ou o mais próximo disto, deste ser
que marcou época e ainda hoje mobiliza muitas pessoas em prol da luta,
em busca de seus objetivos.
Obs: Não considerar "luta", como sendo unica e tão somente a luta
armada, e sim, a busca de seus objetivos, preferencialmente voltados
para a justiça social.
Eu mesmo, já pronunciei, muito este nome, e, ele, já me motivou por
várias vezes em busca do que precisava, geralmente em momentos dificeis
de minha vida.

Uma palavra de ordem que me lembro que usávamos:
"- Che, Zumbi, Antonio Conselheiro,
na luta por justiça, nós somos companheiros."


CHE?
CHE (pronunciar tchê) é a interjeição característica da linguagem argentina familiar para interpelar, chamar a atenção do interlocutor. Consoante a entoação, as
circunstâncias, CHE, que é sinal de tratamento por tu, pode significar mil e uma coisas: ó pá, olá, ouve lá, incrível!, etc. Por vezes, raiando o vulgar, CHE distingue
as pessoas do Rio da Prata da maior parte dos outros hispanófonos.
Foi com esta alcunha que os cubanos castristas passaram logo a designar o jovem médico argentino que iria juntar-se à sua causa, "um nome que mais tarde ele tornou
célebre, do qual fez um símbolo". (Fidel Castro em Trois Lettres pour Naviguer en Haute Mer, de René Depestre).
Comecemos por pôr de lado todos os factos, para nos dedicarmos às coisas sérias, às lendas.
Régis Debray
Quem o matou? Poderíamos antes interrogar-nos: quem eliminou o seu ser físico? Porque a vida de homens como ele prolonga-se no povo [...].
Foi o inimigo que o matou [...] e o que o matou também foi o seu carácter. Camilo não media o perigo, utilizava-o como uma diversão, brincava com ele, toureava-o,
atraía-o e manobrava-o; na sua mentalidade de guerrilheiro, nenhum obstáculo podia travar ou alterar a linha que ele traçara. [...] Não vamos fixá-lo para o encerrar
num molde; isso seria matá-lo.

Ernesto Che Guevara

Só os pormenores são importantes.
Thomas Mann

PRÓLOGO

O capitão dos Rangers Gary Prado nem queria acreditar no que ouvia. No fundo daquela ravina perdida no Sul da Bolívia, naquele amontoado de calhaus invadido pelas
silvas, tem à sua frente o guerrilheiro mais procurado do continente, o mais temido, aquele que conseguiu pôr o país em estado de sítio. Dois soldados apontam-lhe
as armas.
O homem está nitidamente extenuado. A sua roupa de caqui está suja, enlameada; um velho blusão azul, de capuz, abre-se sobre uma camisa em farrapos, com um único
botão. Um autêntico aspecto de bandido. Tem ao pescoço um altímetro. Exala um cheiro intenso, uma mistura acre de tabaco e suor. Barba, bigode, guedelhas poeirentas
e desgrenhadas cobrem-lhe parte do rosto. Mas, sob o boné verde, os olhos continuam brilhantes. "O seu olhar era impressionante", observa Gary Prado que, na altura,
finge não dar grande importância à revelação espectacular.
São quase 15 horas, nesse domingo de 8 de Outubro de 1967. De manhã cedo, quando um camponês correu à aldeia de La Higuera para alertar o exército, a madrugada estava
gelada. Agora o sol está quente e, a 1500 metros de altitude, a atmosfera límpida. Ao longe, soam tiros no desfiladeiro. O combate da quebrada do Churo já dura há
quase quatro horas. Renhido.
No tiroteio, três balas atingiram Guevara sem verdadeiramente o derrubar. Uma delas apenas lhe furou o boné, a outra inutilizou o cano da espingarda M-I, à qual
ele se apoia. A terceira atingiu-lhe a perna direita. Já não tem botas. Os pés estão envolvidos em pedaços de couro, toscamente cosidos à mão. Um fio de sangue escorre-lhe
pelo artelho.
"Sou Che Guevara", repete ele num tom firme.
O capitão consulta os retratos dos guerrilheiros que foram fornecidos aos Rangers. Acabou de ter, com os seus homens, cinco meses de treino intensivo. "Boinas Verdes"
americanos, peritos em combate antiguerrilha, veteranos do Vietname, vieram expressamente do campo de Fort Bragg e do Panamá para aperfeiçoar a instrução das tropas
bolivianas. Ele próprio teve direito aos cursos de Intelligence (serviços de informações e espionagem) que a CIA reserva aos oficiais.

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Os retratos, bastante parecidos, foram desenhados por um guerrilheiro ocasional, o pintor argentino Ciro Bustos, que Guevara chamara à Bolívia, para se lhe juntar.
Detido há seis meses, a cento e cinquenta quilómetros daquelas paragens, juntamente com o francês Régis Debray, cujo processo, em Camiri, deu que falar em todo o
mundo, o argentino abriu a boca e não parou de falar. Mais: traçou com precisão os rostos de cada um dos membros da guerrilha.
Prado observa atentamente. As protuberâncias características das sobrancelhas deixam poucas dúvidas. Para confirmar, pede ao prisioneiro que mostre as costas da
mão esquerda. A cicatriz está lá. É mesmo o Che.
Acabou de capturar uma lenda...

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Primeira Parte

"A NOSSA AMÉRICA MAIÚSCULA"

I

UM ASMÁTICO APRESSADO

Durante muito tempo deitou-se cedo. Não por snobismo proustiano, mas devido a uma saúde frágil, desde a nascença: uma pneumonia aos dois meses e, aos dois anos,
primeiros sintomas de uma asma muito forte, que nunca mais o largaria.
Handicap fundamental, essa asma que ele irá combater durante toda a vida, forjando a sua vontade "com um deleite de artista", constitui uma chave essencial para
se compreender tanto as fulgurâncias da existência de um ser excepcional como as atribulações que ela acarretará para toda a família.
Ernesto Guevara de la Serna* nasce a 14 de Junho de 1928 em Rosário de Santa Fé, na Argentina. Um pouco por acaso. Nessa época, Rosário é o grande porto cerealífero
da pampa húmida, ligado ao rio Paraná que, duzentos quilómetros abaixo, forma com o rio Uruguai o imenso estuário do Rio da Prata dominado por Buenos Aires, a capital
da Argentina.

Nota: * Ao apelido do pai vem juntar-se o da mãe, tradição hispânica, mantida na América Latina, que permite distinguir filiações e gerações.

Os seus pais vivem então, desde há dois anos, uma aventura fantástica, daquelas em que só é possível lançar-se quando se é jovem, apaixonado e um tanto louco. O
pai, Ernesto Guevara Lynch, homem atraente, bem-falante, de olhar vivo por detrás dos óculos, de chapéu de feltro e laço ao pescoço, interrompeu os estudos de arquitectura
em Buenos Aires para raptar, como nos romances, uma bela e rica órfã de vinte anos, de rosto oval e cabelos negros, cheia de energia, Célia de la Serna de la Llosa,
a mais nova de uma família de sete filhos. Os pais de Célia - grande burguesia patrícia - morreram quando ela era pequena.
Tinha acabado de sair do respeitável colégio francês do Sacré-Coeur de Buenos Aires. Muito religiosa, a ponto de se martirizar colocando cacos de vidro nos sapatos1,
a menina estava até decidida a ser freira para assumir plenamente as suas convicções quando encontrou o belo Ernesto, rapaz decidido,

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empreendedor e anticonformista. Paixão recíproca à primeira vista e decisão dos jovens de violar a oposição dos irmãos mais velhos de Célia, de se casarem de imediato
e de partirem logo para os confins do mundo. Estamos em 1927.

Nos confins do mundo, os trópicos

Os confins do mundo, neste caso, não é uma figura de estilo. Significa a província subtropical de Misiones, a dois mil quilómetros de Buenos Aires. No extremo nordeste
argentino, um enclave que se estende às imponentes cataratas do Iguaçu, entre o Paraguai e o Brasil, entre o rio Paraná e rio Uruguai. Marcada pelos dois rios fronteiros,
o nome de Misiones recorda-nos ter sido nessa região quente e húmida que, durante século e meio, até à sua expulsão em 1767, os missionários jesuítas tentaram evangelizar
os índios guarani. Antes de Roland Joffé ter feito dela um filme, Mission, foi lá que Voltaire compôs o seu Candide, foi lá que o botânico francês Aimé Bonpland
viveu quase quarenta anos, fascinado com a extraordinária riqueza da vegetação.
Herdeiro de uma pequena parcela de um património paterno partilhado por onze irmãos e irmãs, o jovem recém-casado adquiriu aí duzentos hectares, junto de Puerto
Cuaraguatay, na margem do Paraná. E aí instalará um yerbal, uma plantação dessa erva-mate (congonha) de gosto acre, que os Argentinos adoram e beberricam em infusão,
chupando por um tubo de metal mergulhado numa pequena cabaça, onde macera a yerba, mergulhada em água a ferver.
Desde a época colonial espanhola que, na Argentina, o mate serve para compensar os excessos de uma alimentação essencialmente carnívora. Essa erva (que provém de
um arbusto) podia ser fonte de receita e justificar uma corrida ao "ouro verde" numa época em que a Coca-Cola não tinha ainda invadido o mercado. Mas era necessário
saber gerir esse tipo de empresa. E a capacidade de gestão não era exactamente o forte do Sr. Guevara.
Nessa selva pioneira em que os proprietários ditam a lei, ele, que se gaba das suas ideias socialistas, recusa-se a tratar como meros animais de carga uma mão-de-obra
escravizada ao patrão por dívidas impossíveis de saldar. Em vez de pagar aos peones em espécie, como era regra - géneros alimentares ou materiais calculados a preços
altos - insiste em pagar em metal sonante os salários dos seus empregados - muitas vezes antigos condenados -, sendo apontado como comunista pelos proprietários
da região, e não conseguirá nunca fazer fortuna. Vinte anos depois, a empresa terá de ser vendida, com prejuízo. Há em Guevara Lynch uma ingenuidade generosa e obstinada,
que irá marcar a sua prole, um lado Bouvard et Pécuchet, sempre pronto a experimentar uma nova melhoria: "Para tirar partido da minha plantação, precisava de completar
o processo, instalando um moinho para moer a yerba, empacotá-la e vender o produto final. Não consegui porque era preciso muito dinheiro"2.

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Pouco importa. Quando chega o momento de Célia dar à luz o primeiro filho, o casal regressa pelo rio - uma semana de navegação - a Buenos Aires, onde não faltam
clínicas excelentes. Mesmo assim, decidem fazer uma paragem em Rosário, império dos moinhos de mate. Só que o bebé não espera. Nasce nessa escala, numa tarde de
Junho, às 15.05h., precisa a certidão de nascimento3. Dão-lhe o nome de Ernesto, como o pai, e para não os confundirem, todos lhe chamarão Ernestito, e os mais íntimos
Teté.
A sul do equador onde, como se sabe, as estações do ano são opostas em relação ao hemisfério norte, Junho é já um mês de Inverno. É certo que o frio não é muito
intenso (8 a 10 graus), mas em Rosário, como em todas as regiões quentes ou que assim se consideram, os sistemas de aquecimento são vistos como um luxo inútil; o
recém-nascido apanha uma broncopneumonia. De Buenos Aires, acorrem então em socorro do doente e da mãe os dois anjos tutelares da família paterna, que irão marcar
fortemente, pela sua ternura e solicitude, a infância e a adolescência do rapaz: a tia Beatriz e a avó, Ana Isabel Lynch.
Mais tarde, depois de restabelecido o bebé e devidamente apresentado em Buenos Aires ao resto da família, regressam ao calor viscoso e aos grandes espaços de Misiones.
"Foram anos difíceis mas felizes"4, escreverá o pai, evocando o período que se seguiu ao nascimento de Ernesto naquele território de pioneiros. Empresário da construção,
Guevara Lynch fez ele próprio o projecto e mandou construir uma casa de madeira sobre estacas no alto de uma colina bordejando uma curva do Paraná, nesse ponto já
com uma largura de seiscentos metros. O edifício resistiu a alguns furacões violentos, observará ele com uma ponta de orgulho.
Na obra preciosa mas inevitavelmente hagiográfica que escreveu no fim da vida, Mi Hijo el Che, o pai não esconde as dificuldades da vida numa região infestada de
mosquitos e de insectos de toda a espécie. Conta, por exemplo, que todas as noites, durante uma meia hora, Curtido, simultaneamente capataz, contramestre e mordomo,
vinha delicadamente extirpar das unhas dos pés do bebé carrapatos minúsculos, através do calor de uma beata de cigarro e com uma fina agulha de ouro. Muito chique.
Mas o tom da narrativa, estilo Paul et Virginie, de toda essa primeira época da vida familiar é sobretudo a do deslumbramento perante o carácter poderoso e fascinante
de "uma fauna e uma flora maravilhosas": floresta virgem impenetrável e mágica, de árvores imensas, papagaios atravessando o céu em bandos ensurdecedores, crocodilos,
jaguares, ursos-formigueiros... Ernesto pai levava Ernesto filho a passear de barco nos afluentes do Paraná, cursos de água silenciosos, como que inviolados desde
o início da humanidade; ou então montava-o na sela do cavalo e percorria com ele toda a propriedade... Era
a felicidade.
Por volta do final de 1929, nova gravidez, nova viagem à "civilização", desta vez a bordo de um barco movido a pás, pré-histórico, que terminava no Paraná uma longa
carreira iniciada no Nilo. Quando os Guevara, com Ernestito ao colo de Carmen, a sua ama espanhola, uma robusta galega vinda da Corunha, partem da grande mansão
à beira do rio, ignoram que nunca

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mais voltarão a viver naquele universo, para alguns maldito como um "inferno verde", mas que para eles terá sido idílico.
Por muito curto que seja - apenas um ano e meio na vida de Ernestito -, este episódio "missionário" subtropical não deixará de marcar o seu imaginário, bem como
o dos seus quatro irmãos e irmãs, pois a partir daí os pais não cessarão de o evocar, com todos os encantos e pequenos exageros que se ligam às recordações felizes,
e também porque, durante muito tempo, o yerbal de Misiones, apesar da sua administração deficiente, permanecerá um ponto de referência importante nos recursos financeiros
da família.

O miúdo que tirita

É em San Isidro, bairro elegante de Buenos Aires, na margem do Rio da Prata, que vai produzir-se o acidente cujas consequências na opção de vida dos Guevara, na
altura, ninguém imaginava: a primeira crise de asma de Ernestito.
O pai, co-proprietário ocasional de um estaleiro naval próximo, tinha sido chamado a substituir um sócio falido. Sem deixar de renunciar à plantação de Misiones,
a pequena família vai então instalar-se por uns tempos em San Isidro, numa agradável mansão alugada a um cunhado. Depois dos trilhos da selva do Alto Paraná, abertos
a faca de mato, é agora a relva bem aparada, as áleas geométricas da Neuilly de Buenos Aires, os passeios pelo imenso delta no pequeno iate de doze metros, cinco
beliches, que Guevara Lynch mandara construir para seu uso pessoal; o regresso, de facto, ao estilo de vida desafogado da boa sociedade aristocrática de que o casal
faz parte, seja como for.
Como já vimos, Célia de la Serna, mãe de Ernesto, tinha dado provas de um certo carácter ligando o seu destino ao daquele "aventureiro", Guevara Lynch, seguindo-o
no seu sonho de plantador tropical. Mas o seu espírito independente, a sua profunda rebeldia contra as boas maneiras de um estilo de vida imposto também se manifestavam
no seu comportamento quotidiano.
Carmen Córdova, prima em primeiro grau de Ernestito, recorda os comentários da mãe, Carmen de la Serna, acerca da irmã, a tia Célia: "Foi uma das primeiras mulheres
a cortar o cabelo à rapaz, a fumar em público, a ousar cruzar a perna num salão, a conduzir um automóvel, a andar de avião. Tinha ido a França"5. Dessa modernidade
fazia parte um gosto acentuado pelo desporto, sobretudo a natação, numa época em que não era costume as mulheres serem grandes nadadoras. Treinada pelos irmãos desde
muito nova, "Célia fazia os mil metros com toda a facilidade"6.
Na manhã de 2 de Maio de 1930, foi nadar com o filho, junto do Clube Náutico de San Isidro, muito chique, perto de casa deles7. Era Outono. A aragem anunciava a
sudestada, um vento forte do Sul, dos planaltos gelados da Patagónia. Célia quer lá saber... Essa bela jovem decidida, de 23 anos, quer recuperar a linha após o
nascimento, quatro meses antes, da sua filha Célia,

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a quem chamavam Celita. Pede a Ernestito, que tem dois anos, que fique muito quieto à sua espera, na praia de areia escura. Quando o pai os vem buscar, à hora do
almoço, a mãe ainda está a nadar, mas o filho, transido, ainda em fato-de-banho, treme de frio. Nessa noite, Ernesto Guevara de la Serna tem a primeira crise de
asma. Uma crise terrível. A falta de ar do rapazinho deixa os pais em pânico. Começa então, dirá o pai, "aquilo que para nós passou a ser uma espécie de maldição...
O nosso calvário".
Nada mais complicado do que a asma, que a partir de então não mais largará Ernesto Guevara. Não é exactamente uma doença, mas talvez muito mais do que isso. François-Bernard
Michel, médico de doenças das vias respiratórias, fala de uma "doença" estranha, insistindo tanto nas aspas como na estranheza8. Descreve-a como a impossibilidade,
num determinado momento, de expelir o ar contido nos pulmões. O asmático não consegue sequer apagar uma vela. "A crise vesperal ou nocturna é a sua manifestação
essencial. E uma sensação de sufoco levada ao paroxismo pelo fecho dos pulmões. Essa crise reproduz, de forma dramática e repetitiva, a morte por asfixia"9. O romancista
Raymond Queneau, também ele asmático, põe na boca de um dos seus personagens: "É uma asfixia que parte de baixo, uma asfixia torácica, um aperto da caixa respiratória"10.
Os brônquios, reduzindo o seu calibre, "fazem com que a respiração tenha um som aflautado. A saída do ar parece um assobio... Essa queixa aguda, dolorosa e monótona
passa a ser a única linguagem do asmático, sentado na cama, encharcado em suor, lívido, incapaz de falar"11.
Por muito impressionante que seja, o processo da asma é hoje bastante conhecido. Conhece-se o "como". Permanece a questão essencial, que ultrapassa a simples explicação
fisiológica: por que é que os brônquios, cuja função é abrirem-se à passagem do ar, acabam por fechar-se? "Essa questão persegue-me", confessa o médico. "Dedicar
a minha actividade a estes doentes sem perceber a verdadeira natureza da sua queixa acabou por me parecer insensato e insuportável. No fundo, eles preferem a asma
a quê?"12. Toda a obra do Dr. Michel é dedicada à proposta de elementos de resposta, que se evitará aplicar mecanicamente ao caso de Ernesto Guevara. A asma seria
uma espécie de "choro de angústia inibido". Proust revelou que preferia a asma à perda do afecto materno.13 Poder-se-á daí concluir que para Ernestito, abandonado
pela mãe na praia de San Isidro, a reacção foi do mesmo tipo? Ou que se vingou da atenção dedicada à irmãzinha Célia, que surgiu inopinadamente no seio da família?
A explicação seria talvez um pouco apressada, tão sumária como afirmar simplesmente que se trata de um fenómeno "psicossomático". O que é possível postular, garante
o médico, é que "esse sintoma manifesta um sofrimento que, não podendo ser dito (ou ser entendido), se exprime através da linguagem dolorosa e sonora da obstrução
dos pulmões". Todavia, criando o terror da morte iminente, "a asma é provavelmente o sintoma mais ansiogéneo; essa aflição vai passar a ser a obsessão do asmático,
com a angústia do fim do dia e da noite, um handicap para toda a vida, que

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faz dele um ser diferente"14. Registemos apenas, com certa prudência, que Guevara de la Serna será, durante toda a vida, um "ser diferente".
Quanto aos pais, estão aterrados. "Custava-nos imenso ouvi-lo a arfar e, nunca tendo lidado com um asmático, eu e a minha mulher ficávamos desesperados"15. Porque
a asma assusta. Mas tudo farão para a combater, com os meios conhecidos na época. Consultam todos os médicos, experimentam todos os medicamentos: radiações, análises,
fumigações, xaropes. Nada resulta. "Ernesto crescia com aquela doença terrível que começava a envolver-nos. Célia passava as noites atenta à sua respiração e eu",
diz o pai, "deitava-o sobre o meu peito para que ele pudesse respirar melhor, o que fazia com que eu dormisse muito pouco. Mal tinha aprendido a falar e já dizia:
"papito, pica" quando sentia a crise a aproximar-se, ao contrário das crianças que geralmente têm pavor das seringas. Ver um filho sofrer, mesmo quando o mal não
é grave, deixa os nervos em franja. Nunca consegui habituar-me a ouvi-lo respirar com aquelas miadelas de gato..."16.
Para fugir à humidade de San Isidro, muito próximo do rio, os Guevara alugam um apartamento num dos bairros elegantes de Buenos Aires, na orla do bosque de Palermo.
Multiplicam as estadas no campo, em propriedades opulentas, as estancias, que a avó, a família, os amigos possuem na Pampa, à volta da capital. Em vão. Ernesto brinca,
ri, cresce devagar. Passará longos meses em casa da tia Beatriz e da avó Ana Isabel, rodeado de carinho. Toda uma iconografia nos mostra uma infância de filho de
gente rica: pónei, bicicleta, automóvel de pedais, ama cuidadosa17. Numa época em que era raro ter-se máquina de filmar, o pai filmou a alegria desses dias de férias.
Aí se pode ver cenas clássicas: o pequeno Ernesto a aprender a andar de bicicleta, ou a tentar trepar para cima de um cão enorme, que se recusa a fazer de cavalo.
Mas o miúdo permanece frágil. A asma não o larga, pelo contrário. Os médicos estão de acordo em reconhecer que nunca se tinha visto um caso tão sério. Recomendam
uma mudança de clima radical.
"Um belo dia, decidimo-nos. Cortámos as amarras"18. Destino: Alta Gracia, zona turística perto de Córdova, velha cidade colonial a setecentos quilómetros de Buenos
Aires, no centro propriamente "mediterrânico" do país. Ar puro, clima seco e quente de planalto, serras hospitaleiras não ultrapassando os 2 800 metros de altitude,
algumas unidades hoteleiras propícias a curas de repouso para doenças respiratórias, eis a paisagem em 1933.
Para os Guevara, sair de Buenos Aires é mais do que uma simples mudança de ares. É um verdadeiro sacrifício. Um exílio. Nada que se comparasse com o entusiasmo aventuroso
dos primeiros dias da sua vida de casal, quando foram tentar fazer fortuna plantando mate na região guarani. Desde então, três anos de reencontro com Buenos Aires
voltaram a pôr Ernesto e Célia em contacto com os amigos, com a rede da grande cidade cujos códigos conhecem, como porteños* distintos.

Nota: * Habitante do porto. Na Argentina, "o único porto que conta" é o de Buenos Aires. Ser porteño é uma espécie de privilégio, é demarcar-se imediatamente do
resto do país.

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Uma família patrícia

Tanto um como o outro provêm do mesmo meio social das famílias "tradicionais" da Argentina, uma aristocracia legitimada mais pela História do que pela fortuna. Num
país de imigração recente como a Argentina, o pai, Ernesto Guevara Lynch, pode reivindicar dez gerações instaladas nessas costas, desde o tempo da colónia espanhola.
A mãe, Célia de la Serna de la Llosa, sete gerações igualmente ilustres.
Bastante mais tarde, em 1964, uma certa Maria Rosário de Guevara, instalada em Marrocos, em Casablanca, interrogará o comandante Che Guevara sobre as suas origens,
imaginando um possível parentesco. A resposta, que contém um certo humor e generosidade social, é contudo demasiado vaga, historicamente falando, pois Ernesto está
longe de ser o "primeiro homem" sem passado nem posteridade, no sentido que lhe atribui Albert Camus, evocando a sua infância de filho de gente pobre. Mas ele não
retira daí nenhuma vaidade e tende mesmo a ocultar o lado "aristocrático" das suas origens. "Camarada", responde Ernesto Guevara à sua homónima, "não sei ao certo
de que parte de Espanha vem a minha família. É claro que há muito tempo que os meus antepassados partiram de lá, com uma mão à frente e outra atrás, e se eu não
conservo essa posição é porque ela é incómoda. Não me parece que sejamos parentes próximos, mas se é capaz de se indignar perante a injustiça do mundo, então somos
camaradas, que é o mais importante"19.
Na realidade, nem todos os antepassados de Ernesto Guevara de la Serna vieram de Espanha, e ainda menos rotos e descalços, como o sugere a expressão metafórica do
Rio da Prata, "uma mão à frente e outra atrás". A sua história é, pelo contrário, uma saga cheia de som e fúria, de grandes viagens e de famílias numerosas, que
vale a pena descrever para melhor situar o itinerário do menino-prodígio.
Do lado do pai, a dinastia remonta, tanto quanto se sabe20, ao senhor da Normandia Hugues de Linch que, em 1066, comanda a cavalaria na batalha de Hastings, sob
as ordens de Guilherme, o Conquistador, futuro rei de Inglaterra. Os seus descendentes irão tomar a Irlanda, onde permanecerão alguns séculos e combaterão ao lado
de Ricardo Coração de Leão, na época da terceira cruzada. Em 1493, um cavaleiro, James de Lynch, destaca-se por um sentido de justiça digno de Agamémnon: condena
à morte Walter, o seu próprio filho, o preferido. Após as guerras religiosas da Inglaterra, nas quais os Lynch se colocam decididamente do lado dos católicos ultras
e do Papa, alguns regressam à Normandia, outros vão para Espanha ou para os Estados Unidos. Na Virgínia, Charles Lynch, plantador e magistrado, ficará tristemente
célebre, associando involuntariamente o seu nome ao termo "linchamento", tal como mais tarde Guillotin ficou associado à guilhotina "para abreviar o suplício dos
condenados".
É no início do século XVIII que o capitão Patric Linch de Lydicam, nascido em Galway, na Irlanda, tem a ideia genial de embarcar para o Rio da Prata, trazendo como
equipagem um bom cofre de moedas de ouro. Criará aí a sua

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linhagem. O seu filho Justo será administrador da Alfândega Real, gerindo tão bem os dinheiros da coroa espanhola que, apesar da sua fidelidade declarada ao rei,
será confirmado nas suas funções em 1810 pelos partidários vitoriosos da independência da colónia. Patrício Lynch, filho de Justo, retomando o y do apelido, será
um dos homens mais ricos da América do Sul, dono de extensíssimas propriedades nas Pampas, temporariamente confiscadas pelo ditador Rosas, mais tarde recuperadas.
Viverá quase até aos cem anos e terá nove filhos, sendo Francisco o mais novo.
Este, em vez de se alistar no exército sanguinário do "tirano" Rosas, prefere tentar a sorte na Califórnia. Foge para Montevideu, do outro lado do Rio da Prata,
segue depois para o Chile, passando pelo Cabo Horn, em seguida para o Peru - onde apanha a cólera -, depois o Equador - onde contrai a varíola e chega por fim a
São Francisco, onde faz fortuna. E regressa trinta anos depois à Argentina, com mulher e filhos. Entre eles, Ana Isabel, que será a avó adorada de Ernestito. Personagem
enérgica, declaradamente ateia numa época em que era necessário coragem para o assumir, irá ter doze filhos de um casamento feliz com o geógrafo Roberto Guevara,
ele próprio descendente de uma linhagem de espanhóis vigorosos, instalados nestas paragens desde o século xvi. Nove gerações de autênticos criollos*.

Nota: * Criollos: literalmente, "crioulos, nativos do país". O termo ultrapassou o seu significado mais imediato para se aplicar a tudo o que é tipicamente argentino.

É na sua confortável estancia de Portela, perto de Buenos Aires, que ela irá embalar, com a narrativa fabulosa da sua juventude californiana, a infância do miúdo
enfezado que, mais tarde, sem dúvida sem o saber, retomará aproximadamente o périplo do bisavô antes de a lenda, por seu turno, o fixar na imagem do "guerrilheiro
heróico".
Os ascendentes maternos de Ernestito, que datam do século XVII, não são menos respeitáveis. Encontramos um militar, Martin José de la Serna, que participa numa das
páginas mais ilustres, senão das mais gloriosas da história argentina, "a conquista do deserto", espantosa empresa de "limpeza" dos índios da Pampa. De facto, em
finais do século XIX, a invenção do arame farpado e dos frigoríficos abala a economia nacional. A partir do momento em que foi possível racionalizar a criação, seleccionando
o gado, e exportar a carne, conservando-a, as imensas pastagens das Pampas, "vertigem horizontal" até então sem valor real, adquirem uma nova importância que convém
proteger de todo o tipo de incursão. Daí, em 1879, a liquidação do "problema índio": um exército bem equipado com espingardas Remington e munições recupera, até
às fronteiras da Patagónia, 400 000 km2 de boa pampa, até aí inexplorada. Este novo território, do tamanho da Itália e Grécia juntas, será distribuído aos militares
e aos estancieros (fazendeiros).
Juan Martin de la Serna, filho do militar, será um rico proprietário de terras, dono de várias fazendas. Fundará, a algumas léguas da capital, a cidade

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de Avellaneda, actualmente um enorme subúrbio industrial e popular absorvido pela grande metrópole. A sua mulher Albertina Ugalde, antes de morrer de febre amarela
em 1871, dar-lhe-á um filho, Juan Martin, que será o avô de Ernestito. Homem brilhante, professor de Direito na Universidade de Buenos Aires aos vinte e nove anos,
deputado, embaixador na Alemanha, será um dos militantes do então jovem Partido Radical, que irá lutar contra o domínio do capital inglês na Argentina. Célia, a
última dos seus sete filhos, não chegará a conhecê-lo, pois ele morrerá pouco depois do seu nascimento, mas será ela a reivindicar resolutamente a herança das suas
ideias revolucionárias.

Alta Gracia, o "exílio"

Os Guevara decidem, pois, ir ver se os ares da serra de Córdova, primeiro relevo geográfico no final da Pampa infinda, trarão finalmente algum alívio à asma de Ernestito.
Ao princípio, tudo parece perfeito. A família, que em 1932 conta com um terceiro filho, Roberto, pára primeiro em Córdova, segunda cidade argentina, de origem jesuíta,
tradicionalmente rebelde, que possui uma das mais antigas universidades do continente americano e, há quatro séculos, fornece ao país um honorável contingente de
padres, advogados e estudantes contestatários, de fala cadenciada. O Hotel Plaza, onde a pequena tribo Guevara desembarca com os três filhos e Carmen, a ama fiel,
a partir de então membro adoptivo da família, dá para a inevitável Praça do General San Martin, herói da independência nacional, que, a cavalo, imperturbável, fixado
no bronze, curveteia em todas as praças centrais das cidades argentinas. Um arvoredo magnífico, algumas palmeiras, um céu límpido, de um azul intenso, atravessado
por uma leve brisa, constituem bons augúrios. De facto, Ernestito, que durante a interminável viagem de comboio não parou de sofrer, respira agora a plenos pulmões.
E os pais rejubilam.
Resta descobrir o sítio ideal para se instalarem definitivamente. A aldeia de Arguello, ali ao lado, não serve. As crises de asma do rapaz multiplicam-se. O médico
Fernando Peña, amigo da família, aconselha a pequena povoação de Alta Gracia, antiga reducción* na encosta da montanha, também ela fundada pelos jesuítas no século
XVII, a quarenta quilómetros de Córdova. O ar é tão puro, tão tonificante, que muitos vão lá fazer férias, mesmo sem sofrerem de qualquer doença respiratória. Aliás
foi aí, na sua residência, monumento histórico, que viveu um outro herói argentino da independência, Jacques de Liniers, de origem francesa, que, no tempo das guerras
napoleónicas veio colocar a sua espada ao lado dos criollos contra os ingleses que, por duas vezes, tentaram, sem sucesso, tomar Buenos Aires.

Nota: * A reducción era o lugar onde os missionários reuniam os índios seminómadas para melhor os "reduzir", os evangelizar.

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Na vida de Ernesto Guevara de la Serna, Alta Gracia, Córdova e os arredores dessa região montanhosa e acolhedora vão constituir a base sólida, o alicerce de uma
identidade argentina muito forte que os sobressaltos de uma vida agitada nunca irão apagar. Chegado ali com quatro anos e meio, em 1933, só partirá de lá catorze
anos depois, quase com 19 anos, para entrar na Faculdade, em Buenos Aires, em 1947. Mais tarde alargará a noção de pátria grande a toda a América Latina, que denominará
de "América maiúscula", mas a sua pátria chica, a "sua terra", continuará a ser a serra de Córdova. É nesta paisagem de montanha, seca mas verdejante, semeada de
espinheiros, de silvas e de árvores imponentes ao longo de cursos de água, que ele irá descobrir o gosto pela natureza, a amizade, a solidariedade, o espírito de
equipa, é lá que irá revelar as suas qualidades de dirigente, capaz de todas as audácias e de todas as impertinências, adorado pelos companheiros, respeitado mesmo,
devido a uma aura particular que alguns atribuem à sua inteligência, a uma cultura nitidamente superior, e outros à segurança das suas opiniões e a um aprumo raiando
por vezes a presunção.
Para os pais, o "exílio" cordovês iria ser provisório, apenas o tempo de verificar que a asma de Ernestito iria diminuir e desaparecer. Tal não sucedeu. É certo
que houve tempos de acalmia, mas nunca de remissão total, apesar de o clima de Córdova se revelar benéfico.
Todo esse período será pontuado pela permanente migração dos Guevara de residências elegantes para casas cada vez mais modestas, de zonas residenciais para bairros
populares, à medida que os recursos da família diminuíam, mas sem que a moral e o espírito de humor fossem afectados. À excepção do pai, talvez, que, ardendo numa
febre de acção frustrada, confessa ter por vezes andado à beira da neurastenia.
Ao princípio, a família estabelece-se no muito respeitável Hotel La Gruta, convertido desde então em retiro de freiras carmelitas, a quatro quilómetros do centro
de Alta Gracia. A vista é magnífica e as crianças, ainda muito pequenas, têm direito a passeios quase quotidianos em cima de burros, sob o olhar vigilante da ama.
Mas entre a clientela há demasiados convalescentes de tuberculose, potencialmente contagiosos, na opinião dos pais. Que irão investigar nas redondezas e, sempre
apoiados pelo doutor Peña, decidem alugar uma bela vivenda de dois andares, há oito anos desabitada, que se ergue, isolada, numa colina dos bairros elegantes construídos
pelos ingleses, poderosos proprietários dos caminhos-de-ferro da Argentina.
A módica renda dessa "Villa Chichita" deve-se à sua fama de "casa assombrada", o que de modo algum incomoda esses livre-pensadores que, pelo contrário, se divertem
por ver os aldeãos, ao passar em frente da casa, fazerem um desvio prudente para o passeio em frente.
A casa está aberta de par em par, fresca no Verão, gélida no Inverno, por falta de aquecimento. O pai conta que, para combater o frio durante as refeições em família,
acontecia-lhes disporem apenas do fraco apoio de um pequeno radiador, colocado debaixo da mesa, coberta por uma longa toalha

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até ao chão, velho princípio readaptado da braseira hispano-mourisca. Apesar do frio, a asma de Ernestito melhora um pouco e é nessa casa supostamente assombrada
que irá nascer, em 1934, a quarta filha, Ana Maria.
O que não melhora é a situação económica dos Guevara. "Para nós, os tempos eram críticos", escreve o pai. "Forçados a viver em Alta Gracia, não era fácil para mim
arranjar lá trabalho. A minha mulher possuía um campo* que não rendia muito por causa da seca, e o preço da yerba mate, a minha principal fonte de receita, tinha
baixado devido à crise"21.

Nota: * Campo: propriedade rural, geralmente dedicada, na Pampa, à criação extensiva de bovinos.

A família volta então a mudar-se, para o outro lado da rua, para uma casa mais antiga, mais barata mas maior e mais confortável, pois é flanqueada por um hectare
de mato, terreno ideal de brincadeiras para a garotada. Nos anais da família e na memória de todos os amigos, essa Villa Nydia permanecerá ligada à recordação de
um período, no fundo, bastante agradável. "Vivemos lá vários anos e passámos bons momentos, apesar das dificuldades económicas"22. Além disso, o senhorio, bom tipo,
a quem chamavam o gaúcho Lozada, não levantava grande problema quando a renda não era paga.
Se a asma de Ernestito parece melhorar um pouco, nem por isso lhe permite frequentar regularmente a escola San Martin, onde os seus irmãos e irmãs fazem a instrução
primária. Por isso é Célia, a mãe, que se encarrega da formação do filho mais velho, do seu regime alimentar, das suas horas de deitar, vigiando-lhe o sono. É com
ela que vai aprender a ler e a escrever esse rapazinho de ombros levantados e "peito de frango", devido aos seus esforços permanentes para respirar, com o inalador
sempre à mão.
Do contacto privilegiado com essa mulher de carácter, cheia de dedicação para com um rapazinho frágil, sensível e inteligente, nascerá em Ernestito a afeição profunda
e a estima nunca desmentida para com a mãe, apesar de o seu afecto frequentemente se dissimular sob a capa de ironia, ou na sua forma correspondente, a lítotes,
que diz pouco para dar a entender muito.
Num dia de 1935, a mãe recebe uma circular do Ministério da Educação manifestando surpresa por o jovem Ernesto, com mais de 7 anos, não estar inscrito em nenhum
estabelecimento de ensino. "Respondi de imediato, muito orgulhosa dessa preocupação com a instrução das crianças [...] Na realidade", esclarece ela, "Ernesto só
pôde frequentar com alguma regularidade a escola no segundo e terceiro graus (aos 9 e aos 10 anos). Os últimos anos do ensino primário fê-los como pôde, trabalhando
em casa. Os irmãos e as irmãs copiavam-lhe os deveres"23.
Tem 9 anos quando à asma se vem juntar a tosse convulsa, cujos ataques de tosse agravam o mal. "Quando sentia a crise aproximar-se ficava imóvel na cama, esforçando-se
por aguentar a sensação de asfixia [...] A conselho dos médicos", conta o pai, "tinha sempre à mão um balão de oxigénio que, com uma baforada, podia acalmar um pouco
a criança nos acessos de tosse mais fortes. Mas ele recusava habituar-se a essa panaceia. Aguentava o máximo

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de tempo possível até ao momento extremo quando, já roxo, perto da asfixia, começava a saltar na cama e me fazia sinal com o dedo para lhe pôr um pouco de ar na
boca, o que o acalmava de imediato"24.
Essa asma, em torno da qual gira toda a vida da família Guevara, terá assim como efeito levar Ernestito a adquirir, desde tenra idade, uma vontade e um autodomínio
fora do comum, que ele procurará aperfeiçoar durante toda a vida.
Os pais, desesperando de encontrar a forma de acabar com essa "maldição", continuam a experimentar tudo, o racional e o irracional. As injecções de cálcio, a vaselina
líquida, que o obrigam a engolir, os mais variados medicamentos não produzem resultados visíveis. Avançam por tentativas, à sua maneira, procurando isolar o eventual
"factor desencadeante", anotam cuidadosamente o que o filho come, a roupa que veste, os objectos de que se serve, a humidade, a pressão atmosférica, a temperatura
ambiente... Mandam fazer colchões novos, travesseiros, substituem os lençóis de algodão por lençóis de nylon, produto novo na época. Tiram do quarto todos os tapetes
e cortinas, evitam os contactos com cães, gatos, pássaros... Em vão. E acabam por se voltar para as sugestões mais fantasistas dos curandeiros: decocções de ervas
locais, remédios caseiros e, contrariamente aos seus bons princípios, basta que digam ao pai que a presença de um gato seria benéfica para que ele meta um na cama
de Ernestito. Resultado: o gato morre asfixiado, mas a asma permanece inalterável. Única conclusão mais ou menos fiável: o clima seco de média altitude onde eles
se encontram é ainda o que há de melhor.

Viver a vida

Até que, um belo dia, é a mãe, Célia, que tem a coragem de tomar a decisão que irá mudar tudo. Declara que já chega, que é altura de acabar com o desespero e as
queixas, que prender o rapaz em casa não serviu para nada, que os próprios médicos mostraram que não entendiam patavina e que, por conseguinte, ela é de opinião,
contra todos os outros, que é necessário deixar o miúdo ao ar livre, deixá-lo desenvolver-se o mais livremente possível, permitir-lhe viver a vida dele, oxigenar-se
sozinho mexendo-se, correndo, fazendo ginástica, combatendo ele próprio a asma, com toda a gana...
E a coisa corre mais ou menos bem. Não é a cura milagrosa, é certo. Mas também não é o temido agravamento da doença. Pelo contrário, Ernestito pode finalmente dar
livre curso à ânsia de actividade que o agita. É um rapaz um tanto reservado, talvez um pouco tímido, mas não é introvertido. A partir daí vai fazer trinta por uma
linha, ou quase. Mal chegou aos 10 anos e é já considerado chefe de grupo pelos outros miúdos. Na escola San Martin, quando finalmente a frequenta, Elba Rossi, a
sua antiga professora, é categórica: "No recreio, era um líder; todos o respeitavam. Os Guevara pertenciam à classe média-alta, mas na escola quase só havia rapazes
pobres.

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A mãe dele tinha instaurado o copo de leite grátis, que ela própria oferecia aos alunos. Ernestito era tudo menos estirado (afectado). Era espevitado, claro. Trepava
às árvores que havia junto da escola, onde também passavam vacas e corria um pequeno regato. Os miúdos iam lá apanhar girinos..."25.
Falta muitas vezes (vinte e uma faltas "justificadas" durante o terceiro período de 1938, segundo o seu caderno de notas). Às vezes tem ataques de asma nas aulas,
o que o deixa particularmente nervoso. Uma vez, para se acalmar, bebe a tinta do tinteiro!...26 O seu irmão Roberto acrescenta: "Era um rebelde. Castigavam-no e
acabavam por o pôr na rua. Então a mãe vinha, parlamentava, voltavam a aceitá-lo. A ameaça clássica do meu pai era: "Vou pôr-te num colégio de padres", ameaça gratuita,
evidentemente."27. Ernestito muda de escola e vai para uma classe em que a professora não hesita em dar palmadas no rabo. O que faz com que um dia, prevendo um castigo,
o "diabrete" coloque um tijolo nos fundilhos das calças. "Foi um escândalo!"28. São inúmeros os testemunhos sobre este período da vida do pequeno Ernesto. Todos
estão de acordo em evocar a alegria de uma vida muito livre, para não dizer libertária, da família Guevara. No entanto, a Argentina vive uma situação crítica da
sua história, cujos ecos, embora abafados, não deixam de chegar a Alta Gracia.
Em 1928, quando Ernesto nasceu, o velho presidente Irigoyen iniciava um segundo mandato difícil. Era um caudillo radical, colocado no poder graças às memoráveis
eleições de 1916. Realizadas pela primeira vez por voto secreto e obrigatório, tinham permitido à geração dos filhos de imigrantes chegados no final do século XIX
alcançar uma vitória sobre a grande burguesia tradicional dos latifundiários, que se prontificava a ser a sucursal rural, principescamente paga, de uma Europa industrial.
Quando a crise de 1929 produziu os seus efeitos no Rio da Prata, suprimindo encomendas de carne, de trigo, de couro, bem como os créditos, o radicalismo, ainda recente,
mais estado de espírito do que doutrina, não resistiu. Com as vacas magras vieram os generais "golpistas" e, a partir de 1930, o general Uriburu correu com Irigoyen,
antes de ser, por seu turno, derrubado por um outro general do mesmo gabarito, Agustin P. Justo.
Esses anos 30 foram designados pelos nacionalistas argentinos de esquerda como a "década da infâmia", consistindo esta tanto na ignomínia dos métodos para tomar
o poder - golpe de Estado ou fraude eleitoral manifesta -, como na aceitação bastante cínica do desastre social provocado pela venda ao desbarato dos produtos agrícolas.
O desemprego rural desencadeia um êxodo para os subúrbios miseráveis das cidades, a começar por Buenos Aires, que se rodeia de bairros povoados por cabecitas negras,
mestiços de cabelo negro, resultado do cruzamento entre gaúchos, escorraçados pelos arames farpados que cercam a Pampa, índios domesticados e imigrantes
diversos, provenientes da Sicília, da Calábria ou da Espanha. Será entre esses "descamisados" que um general um pouco mais astuto do que os seus

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congéneres, Juan Domingo Perón, irá recrutar as suas tropas de choque. Nesses bairros populares, amontoados em conventillos, casas comuns propícias a toda a promiscuidade,
formar-se-ão os compadritos, a meio caminho entre vagabundos e caloteiros de bairro. Chapéu de feltro, casacos cintados e lenços brancos, vivendo de esquemas, são
eles que irão começar a dançar, entre homens, na rua, ao som de uma guitarra, de um violino, de uma flauta, as primeiras milongas saltitantes ou tangos raivosos,
com personagens surpreendentes, cujas fintas e passos insinuantes mais não fazem do que transpor o verdadeiro combate que representa a conquista de uma mulher por
um macho argentino.
Se os anos 30 são considerados como a idade de ouro do tango, é porque sobre os acordes sincopados e pungentes dessa música bem ritmada, sobre os lamentos do bandónio,
alguns compositores inspirados - Discépolo, Cadícamo, Manzi e tantos outros - criam letras que reflectem as múltiplas tristezas e as raras alegrias de um período
sinistro da história argentina. Os temas são recorrentes. Evocam a amargura perante um destino injusto, o ressentimento para com a mulher classicamente infiel -
todas putas, menos a mama -, o lamento piegas ou sarcástico do homem traído. Muitos são também os tangos que evocam a miséria social, a repugnância pelo cambalache,
o "desprezo" de uma sociedade na qual triunfam sobretudo os delinquentes e os caloteiros e a atitude do "salve-se quem puder", quando as portas se fecham e a miséria
é tanta que chega a desaparecer a erva-mate que já serviu na véspera, e que foi "deixada a secar ao sol"... Ernesto, um zero absoluto em música, apreciará muito
a sua poesia simples e profunda, cujas letras aprenderá de cor, como todo o argentino bem nascido.
A Europa de entre-as-duas-guerras recebe o tango de braços abertos "tristeza em forma de dança" - do qual apenas capta o tom lascivo. Enquanto em Buenos Aires, a
"gente de bem", rejeita o tango, nascido nos bordéis dos subúrbios, maculado de obscenidades, os salões parisienses, até então habituados às valsas, polcas e ao
fox-trot, ficam obcecados pela sensualidade desse corpo-a-corpo em que o homem cola a si a sua parceira, desde a face ao joelho, fá-la dobrar-se e entreabre-lhe
as pernas, em múltiplos passos perfeitamente inconvenientes. Arquétipo do cantor argentino de voz aveludada, Carlos Gardel (nascido em Toulouse) faz furor em França.
Apresenta-se na Ópera de Paris, em Cannes, nos cabarets em voga. Em 1928, ano em que nasce Ernesto, é consagrado como a "vedeta do ano" pela imprensa musical francesa.
Paris dança o tango. Buenos Aires desfolha a sua melancolia.
Contudo, em Alta Gracia, entre os Guevara não há o menor vestígio dessa tristeza amarga, dessa nostalgia lancinante dos tempos passados.
Embora sofram os efeitos da crise, como toda a gente, os pais continuam a frequentar a fina-flor da pequena cidade que, no Verão, se enche de uma população elegante,
fugindo da humidade de Buenos Aires para apanhar ar puro, jogar o brídege e a canasta. O pai chegou mesmo a arranjar um emprego interessante, que consiste em "construir
um terreno de golfe de quarenta e dois hectares

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para o luxuoso Sierras Hotel, ponto de encontro de certos representantes das "duzentas famílias" argentinas, personalidades da vida política, alguns intelectuais
distintos, amadores endinheirados. Há uma magnífica piscina, onde Ernestito virá treinar-se regularmente. Quanto ao golfe, também tirará partido das suas vantagens,
sobretudo quando uma das inúmeras casas onde irá viver confinará com o percurso e os relvados. Ele e os seus companheiros dos bairros pobres, caddies e apanhadores
de bolas, vigiam de perto os jogadores desastrados e conseguem recolher discretamente as bolas perdidas, para depois as usarem à vontade, quando o terreno está vazio.
Mas em Córdova o ambiente político não é mais calmo do que nos outros lados. Em 1933, um deputado socialista da província, José Guevara (simples homónimo), é assassinado
pelos capangas da Legião Cívica Argentina, criada pelo general Uriburu e decalcada das milícias fascistas italianas. O assassino é condenado apenas a dois meses
de prisão simbólicos.

"Esquerda mate"

Apesar do seu afastamento da capital, os pais de Ernesto não deixam de se interessar pelo que se passa. É certo que, do lado do pai, a tradição é mais conservadora,
ao passo que do lado da mãe a tendência liberal está aberta à modernidade. Mas Guevara Lynch e a esposa Célia de la Serna estão de acordo numa recusa mútua dos valores
da sua classe de origem, sem que por isso a sua cultura, orientada para um certo cosmopolitismo, faça apagar um forte sentimento patriótico. Em vez de uma esquerda
"caviar" - de qualquer forma, nem sequer têm meios para isso -, eles representariam antes uma espécie de "esquerda mate", fortemente nacional sem ser nacionalista,
pronta, pelo contrário, como se verá, a mostrar-se internacionalista. Em suma, tanto um como o outro, embora frequentem a aristocracia local, são já "politicamente
incorrectos". Os filhos também o serão.
Quando, por exemplo, em 1932, estala a absurda guerra do Chaco entre a Bolívia e o Paraguai, numa linha de fronteira mal definida, pela posse de campos de petróleo
cobiçados tanto pela Esso (Standard Oil, Estados Unidos) como pela Shell (Royal Dutch, Inglaterra e Holanda), os Guevara tomam de imediato o partido dos paraguaios,
de quem aprenderam a gostar na época em que estiveram na província limítrofe de Misiones. Além disso, observa o pai nas suas memórias, "o general boliviano Kuntz
era pró-nazi, ao passo que o general paraguaio Estigarribia era um antigo aluno de Saint-Cyr que tinha combatido ao lado dos Franceses durante a guerra de 1914-1918"29.
Com seis ou sete anos, Ernesto brinca já com os companheiros aos polícias e ladrões, sendo polícias e ladrões substituídos por bolivianos e paraguaios. O armistício
só será assinado em 1935, ao cabo de combates tão ferozes quanto absurdos, pois as companhias estrangeiras, que estavam na origem do conflito, declararam um belo
dia, friamente, que os seus peritos se tinham enganado...

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Portanto, já não havia petróleo. Nem casus belli. Taparam com cimento os escassos poços furados e foram procurar noutras paragens esse ouro negro precioso. Cento
e cinquenta mil soldados mortos para nada... Mais tarde, já na pele do "Che", o comandante Guevara referir-se-á a essa guerra como exemplo do cinismo dos monopólios
estrangeiros na América Latina.
A guerra civil espanhola (1936-1939) afectou ainda mais os Guevara e os filhos. Primeiro, porque o cunhado de Célia, o poeta comunista, um pouco "dandy", Cayetano
Córdova Iturburu, tomou corajosamente parte nela durante um ano, como enviado especial do Critica, único jornal antifranquista de Buenos Aires, sendo todos os restantes
partidários de Franco. Depois, porque a mulher, Carmen de la Serna, comunista como ele, decidiu, a pretexto da tosse convulsa do filho, ir juntar-se, com os dois
filhos, à sua irmã mais nova Célia, em Alta Gracia. Finalmente, porque vários filhos de republicanos espanhóis exilados em Córdova e naquela região se tornarão alguns
dos melhores amigos de infância e de adolescência do jovem Ernesto.
É difícil calcular o impacte da guerra de Espanha nessa longínqua província da Argentina. Mas foi grande. "Era tema de violentas discussões", recorda o advogado
cordovês Gustavo Roca, amigo de Ernestito. "Tal como em cada família havia um clerical e um anticlerical, também havia os "republicanos" e os "anti-republicanos""30.
Os Guevara são, evidentemente partidários declarados da jovem república espanhola. Militam nos comités de apoio, recolhendo fundos, organizam o acolhimento dos refugiados...
"Ernesto participava com o mesmo entusiasmo", revela o pai. "Com dez anos apenas, espetava alfinetes de cores num mapa de Espanha, colado na parede do seu quarto,
marcando as posições dos combates." Tão fascinado como os pais, ao escutar da boca do general Jurado, exilado no final da guerra, as peripécias da batalha de Guadalajara
onde, em 1937, os republicanos derrotaram por completo as brigadas italianas enviadas por Mussolini para tentarem conquistar Madrid"31.
Juan Miguez, outro amigo de infância, conta: "Todas as tardes brincávamos à guerra de Espanha; cada campo tinha a sua trincheira e quando nos faltavam os projécteis
e era preciso ir buscar mais munições, era nessa altura que nos atiravam com tudo"32. "Calica" Ferrer, que também fazia parte do grupo, explica: "Mais tarde, durante
a guerra mundial, batíamo-nos do lado dos aliados contra os nazis"33.
Os pais dão apoio especial a uma família numerosa, originária de Múrcia, os González Aguilar, chegados em 1937, seguidos depois pelo pai, médico famoso, e pelo compositor
Manuel de Falla, inconsolável com o assassínio pelos franquistas do poeta Garcia Lorca, seu "filho espiritual". Os filhos das duas famílias têm pouco mais ou menos
a mesma idade e depressa se tornam amigos. Embora mais novo que Ernestito, José manterá o contacto e fará uma descrição desse período rica de recordações.34 Fernando
Barral, filho de comunistas espanhóis, será também um bom amigo de Ernesto, mas mais reservado; confessará que, embora da mesma idade, sentia pelo filho mais velho

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dos Guevara "uma admiração secreta pelo seu espírito decidido, pela sua audácia, pela sua segurança e, sobretudo, pela sua ousadia, que era um dos aspectos mais
marcantes do seu carácter"35.
Ousadia é o que não falta a Ernesto, com efeito. Há inúmeras histórias que o descrevem como um autêntico façanhudo. Liberto pela mãe da reclusão habitual dos asmáticos,
parece querer recuperar o tempo perdido ultrapassando sempre os seus próprios limites, para provar a si e aos outros que não é prisioneiro da sua doença. No futebol,
por exemplo, é guarda-redes. Posição clássica atribuída àqueles que têm problemas respiratórios. (Exemplo: Albert Camus, antigo tuberculoso, como é sabido). Mas
mesmo quando se trata de jogar de qualquer maneira, na rua, à saída da escola, ele é obstinado. "Tinha um destes amores-próprios!", declara Juan Miguez. "Mesmo quando
jogava contra dois ou três, queria ganhar a todo o custo. E, se perdia, a sua raiva era tal que ficava logo com uma crise de asma [...]. Depois íamos a correr nadar
para o rio. Às vezes íamos pescar ou caçar a San Clemente, a sessenta quilómetros dali. Mas cortávamos caminho pela serra, a pé [...]. Caçávamos perdizes. Ao domingo
íamos treinar no Tiro Federal*. Apesar da asma, Ernesto atirava muito bem... íamos também para as pedreiras, que estavam cheias de galerias que conhecíamos bem.
Se chovesse, ficávamos por lá, escondidos na serra"36.

* Sob a orientação do pai, grande amador de tiro à pistola. O Tiro Federal era um lugar de entretenimento público, aberto aos sócios.

O seu irmão Roberto precisa que os desafios de futebol tomavam por vezes um carácter "ideológico": "A nossa formação era anticlerical. Nunca fomos à missa. Na escola,
para não assistirmos às aulas de religião, era necessário fazer um pedido expresso, e nós fazíamo-lo. No Verão, formávamos duas equipas de futebol: os que acreditavam
em Deus e os que não acreditavam, entre os quais nos incluíamos. Se os crentes ganhavam, celebravam o acontecimento como uma vitória contra os infiéis"37. As batalhas
à pedrada ou até com cavilhas de aço também tinham a sua conotação social, senão mesmo política: "Os nossos pais davam-se mais com gente rica e nós com os pobres",
acrescenta Roberto. "[...] A maior parte dos miúdos do nosso grupo era de origem popular. Os filhos dos comerciantes, de um nível económico mais elevado, andavam
a cavalo. Nós andávamos a pé. As batalhas travavam-se então com fundas. Ernesto batia-se como um leão [...]. Lembro-me de uma pedrada (ou cavilha?) que lhe fez um
buraco no pé... O meu pai levou-o a coxear"38.
A audácia do rapaz manifestava-se nas mais inesperadas ocasiões. O seu primo Fernando Córdova, o filho do poeta comunista, conta que um dia, em
1937, tendo Ernesto apenas 9 anos, ao regressarem de um passeio, encontraram pelo caminho um carneiro de grandes cornos retorcidos, conhecido na região pela sua
agressividade. "Roberto e eu fugimos a correr, mas Ernesto decidiu enfrentá-lo. O carneiro derrubou-o e fê-lo rebolar no chão, mas quando o pessoal que chamámos
acorreu, era o carneiro que fugia de Ernestito"39.

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Vingar-se da asma

Esta intrepidez, este lado desafiador da morte, esta ânsia de vencer a todo o custo apesar das crises de asma são já, no rapaz, características de um verdadeiro
gosto pelo perigo, que virá a confirmar-se na idade adulta. Quando vai com os pais, os primos e os amigos tomar banho, no Verão, nas águas frias de uma torrente
da montanha que, mais calmas num determinado ponto, formam um pequeno canal natural, com seis ou sete metros de largura mas apenas com dois metros de profundidade,
é sempre ele que, sob o olhar inquieto de todos, trepa ao rochedo mais musgoso e escorregadio, cinco metros a pique sobre a água e se lança num "salto mortal".
Quando mais tarde, com o seu amigo Alberto Granado, parte em excursão pela serra com outros amigos, é ainda ele que se diverte a assustar toda a rapaziada, fazendo
o pino e avançando assim ao longo do parapeito de uma ponte de caminho-de-ferro, a vinte metros de altura. Há uma fotografia que o mostra também a caminhar calmamente
sobre um tubo atravessado numa ravina de quarenta metros de profundidade.
De facto, tudo parece servir para se vingar da asma, e uma vez que as crises reproduzem a morte por asfixia, aproximemo-nos mais dela quando a asma não está presente,
e treinemo-nos... Na elegante piscina do Sierras Hotel, o pai vigia o banho dos filhos durante a manhã. De facto, a natação, em dose razoável, é recomendada para
alargar a caixa toráxica e regularizar a respiração asmática. O que o pai ignora é que, à tarde, Ernesto volta lá sozinho para fazer os seus cem comprimentos sem
controlo de qualquer espécie, para além daquele que os seus companheiros lhe prestam, contando as idas e as vindas.
Outro caso revelador dessa fúria de vencer. Sempre vencido nos campeonatos de pingue-pongue do Sierras Hotel pelo número um, Rodolfo Ruarte, Ernesto desaparece durante
dois meses, treina-se em casa numa mesa improvisada e depois regressa para desafiar o adversário. Desta vez, é ele o vencedor. "Tinha uma vontade de ferro", conclui
Ruarte, que nunca esqueceu essa partida.40
Os testemunhos da época mostram-no pronto a embarcar nas mais insólitas aventuras, nas lutas mais renhidas. Por vezes, a asma vem cortar esta energia, e o pai recorda
uma tarde em que os companheiros o trouxeram para casa em braços, porque uma crise o paralisara. Mas, geralmente, corre como uma lebre, como o prova um dia passado
a ultrapassar constantemente Zacharias, um rapaz de quinze anos, seis anos mais velho, vendedor ambulante, vencedor de uma maratona local. O pai de Ernesto tinha
mandado esse tal Zacharias buscar o filho, que tinha fugido para escapar a uma reprimenda paterna, pois respondera torto à mãe. Foi o maratonista que regressou esbaforido,
sem ter conseguido apanhá-lo.
Quanto às brigas a soco entre rapazes, parece que foram muitas, e violentas. Uma vez, a disputa travou-se entre os clássicos "polícias" e "ladrões".

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Mas o adversário, sem dúvida "ladrão", tem ainda uma verdadeira algema agarrada ao punho direito, e cada soco que desfere é aumentado pela algema livre, que balança.
Contudo, Ernestito acaba por ganhar, muito orgulhoso mas bastante magoado. Outra vez, é um parceiro, não menos desleal, que, sentindo-se vencido, morde Ernesto com
tal força que é preciso ir chamar o pai para que este liberte a mandíbula inimiga de uma dentada que durante muito tempo deixou marcas na carne do rapaz, cujo aspecto
poderia talvez parecer frágil, mas cuja resistência física era fora do comum.
Encorajado pelos pais, sobretudo pela mãe, Ernesto não cessará de domar o corpo e a vontade. Praticará, por vezes até ao extremo, todos os desportos da época, considerados
como "desportos de luxo" mas cujo acesso não é difícil para os Guevara que, apesar das suas dificuldades económicas, obstinadamente consideradas como passageiras,
mantêm um comportamento de burgueses de vida desafogada. O rapaz poderá assim entregar-se aos prazeres desportivos, cuja lista é impressionante: ténis, equitação,
esgrima, natação - modalidade "mariposa", a mais violenta -, golfe, boxe - o verdadeiro, muito diferente das zaragatas de rua - pelota basca, râguebi, alpinismo,
etc. Tudo isso perfeitamente contra-indicado para quem sofre de asma, a qual se manifesta em intervalos irregulares, mas frequentes. De facto, muitas vezes as crises
obrigam Ernesto a um repouso absoluto e a longas sessões de fumigação. Durante esses períodos, que podem prolongar-se por vários dias, o rapaz lança-se então, como
um bulímico, sobre todos os livros que encontra à mão, da forma mais desoordenada: aventuras, romances, viagens, ensaios filosóficos...
A sua avó americana, Ana Isabel, a ateia, embalara-o em pequenino com a saga familiar, evocando a tirania do ditador Rosas, que expulsara os seus antepassados para
a Califórnia. Sonhou com os ataques dos índios quando seu avô geógrafo, Roberto Guevara Castro, traçava a fronteira entre as províncias argentinas de Chaco e de
Santiago del Estero, no norte do país, ou procedia ao cadastro da província de Mendoza, no sopé da imensa cordilheira de Andes. O exotismo dos trópicos, ainda pouco
explorados, era também moeda corrente e recorrente nas conversas de família, visto que era das plantações de yerba mate de Misiones que, como se sabe, provinha uma
parte dos recursos dos Guevara. Terá o adolescente apanhado algumas frases soltas entre o seu tio Córdova Iturburu e os amigos, "intelectuais de esquerda", próximos
do anarquismo - Roberto Arlt, Ernesto Sábato... -, que vinham à serra, no Verão, prosseguir os debates iniciados no Inverno, nos cafés de Buenos Aires? Sabe-se apenas
que Ernesto Guevara não perderá o contacto com Sábato.
Ao imaginário doméstico, acrescenta o que é alimentado pelos romances de Alexandre Dumas, Jack London, Stevenson, Júlio Verne, Salgari, e tantos outros. "É muito
simples", explica o seu irmão Roberto, "vi-o ler sistematicamente toda a biblioteca que tínhamos em casa. A biblioteca inteira. Havia entre outras, uma História
Contemporânea em 25 volumes. Ele leu-a; uma biblioteca filosófica em 40 grossos fascículos baratos. Também a leu, e posso garantir-vos que compreendeu tudo. Era
um maníaco da leitura".41

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Por seu turno, José Aguilar conta o espanto do seu pai, médico, ao ver Ernestito, com apenas 15 ou 16 anos, mergulhado na obra de Freud42. Cerca de treze anos mais
tarde, a 5 de Dezembro de 1956, três dias depois de ter desembarcado em Cuba com Fidel Castro e os seus guerrilheiros, quando, jovem médico argentino da expedição,
Guevara é ferido no pescoço pelos soldados do ditador Batista e se considera "lixado", é uma recordação de leitura que lhe vem à memória: "Lembrei-me de um velho
conto de Jack London: o herói, apoiado num tronco de árvore, dispõe-se a acabar os dias com dignidade, sabendo-se condenado a morrer de frio nas zonas geladas do
Alasca"43. Admirado por Lenine, aplaudido por Trotski, que classificava O Tacão de Ferro como um romance visionário, J. London marcou, para além de Guevara, várias
gerações da primeira metade do século xx. "Recordo-me da excitação que sentia aos catorze anos ao ouvir pronunciar o nome de Jack London", escreve Henry Miller nos
Livros da Minha Vida. "Para os que têm ânsia de viver, ele era um poderoso farol e era apreciado tanto pela sua firmeza revolucionária como pela vida aventurosa
que levou."
Sede de viver e generosidade social são os sentimentos que, acerca do seu primo, Carmen Córdova, chamada La Negrita*, transmite nas suas memórias, quando completa
o retrato literário do adolescente, sublinhando o quanto ele gostava de poesia, de Pablo Neruda, de Baudelaire e sem dúvida dela própria. Sabia de cor poemas dos
espanhóis vítimas da repressão franquista, García Lorca, Miguel Hernández, Antonio Machado. Do chileno Neruda, que estava ainda longe do Nobel de 1972, tinha lido
quase tudo, tinha-se informado de tudo o que fora publicado sobre ele na Argentina. "Tratando-se, por exemplo, dos Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada,
podia recitá-los do primeiro ao vigésimo, sem esquecer, evidentemente, a canção desesperada"44. O que era, obviamente, uma maneira de fazer a corte a essa prima
encantadora, dois anos mais nova, que o escutava fascinada, e pela qual ele confessará um dia ao seu amigo Barrai ter estado apaixonado. Mais tarde, ele próprio
se aventurará a escrever poemas (que não são grande coisa).

* A alcunha nada tem de pejorativo. Basta ter os cabelos negros e a pele de tom mate para que, na América Latina, se seja baptizado de negro, negrita.

Até ao fim da vida, esse gosto pela poesia nunca o abandonará, e não hesitará em lançar um olhar poético em relação a circunstâncias e pensamentos absolutamente
insólitos. A Maria Rosa Oliver, escritora argentina com quem se avistará em Cuba, chega mesmo a afirmar, sem qualquer outro comentário, que em Marx "sentia perpassar
o mesmo poder de inspiração que em Baudelaire"45. Quanto aos 2316 versos do Martin Fierro, "canção de gesta" da Argentina rural, tecida de reflexões de bom senso
transformadas em provérbios, hino à triste sina do infeliz gaúcho desaparecido, Ernestito conhecia páginas inteiras, como todo o bom cidadão argentino. O seu ecletismo
era tal que devorava também autores norte-americanos "empenhados", como Steinbeck ou Faulkner, rivalizando nessa proeza com o seu amigo Alberto

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Granado, também ele grande leitor. A este último, que põe em dúvida que ele tenha lido Luz de Agosto, de Faulkner, que em 1945 ainda não tinha sido traduzido em
espanhol, ele responde, imperturbável: "Claro, li-o em francês..."46. Porque, além do mais, este rapaz teve o privilégio de aprender, desde tenra idade, a língua
de Descartes, graças à mãe, educada, como é sabido, num colégio de freiras francês.
Em Buenos Aires, onde prosseguirá os estudos, voltará a encontrar La Negrita, a prima predilecta, e voltará a falar-lhe de literatura, dando mostras da mesma memória
prodigiosa. "Sentávamo-nos nos degraus de mármore da escada (ele morava no primeiro andar) e, ali, falávamos horas e horas", conta ela. "Às vezes, ele dizia-me:
lembras-te de um capítulo que começa assim?... e recitava-me de cor um capítulo inteiro do D. Quixote, por exemplo. De Neruda, conhecia toda a Residência na Terra.
Como eu também gostava de Cervantes, apercebi-me de que a prosa de certos capítulos estava escrita em octossílabos. Então ele citava, à escolha, os que eram em octossílabos
ou outros em decassílabos. Era incrível..."47.
Em Alta Gracia, Ernestito terá vivido uma infância feliz numa família boémia, informal, libertária dos quatro costados e liberal em extremo. Todos entram e saem
de casa à vontade. Cada um se desenrasca, desde muito novo, faz a cama, ou não faz. É uma barafunda tal que, em casa dos primos Córdova, ficou célebre a expressão
da velha criada para designar a confusão total: "Parece a casa dos Guevara". Bastante excepcionais, cada um no seu género, os pais têm outras prioridades e deixam
andar, desde que isso não incomode demasiado a comunidade. É certo que não podem fazer totalmente tábua-rasa do meio social de onde provêm. Conhecem os hábitos,
sabem que fazem parte, quer o aceitem ou não, das "boas famílias" argentinas. Mas sem paternalismo, com uma simplicidade sincera, recusam-se a admitir qualquer barreira
social: filhos de miseráveis ou de burgueses são recebidos em sua casa com a mesma bonomia e se, como frequentemente sucede, os filhos trazem amigos à hora do chá,
partilha-se à vontade o que há sobre a mesa. De facto, todos concordam em afirmar que os Guevara constituem uma família alegre, aberta, sem dúvida original, e bastante
simpática.
Quando a ocasião se apresenta, nem o pai nem a mãe desdenham um certo gosto pela provocação, traço de carácter que Ernestito não deixará de manifestar em certas
circunstâncias. O pai conta, por exemplo, como, durante um cocktail muito requintado no Sierras Hotel, Ernesto e o irmão apareceram, rodeados de um bando de maltrapilhos,
sujos, mais ou menos desgrenhados.
Encorajados por uma piscadela de olho cúmplice, lançaram-se descaradamente sobre o bufete sumptuosamente servido. Para grande escândalo das senhoras organizadoras.
Como vimos, o casal Guevara não se preocupava muito com a gestão do seu património. "Viviam gastando sistematicamente aquilo que possuíam", observa, com certa indulgência,
Carmen Córdova48. Carpe diem parece ter sido o seu lema. Aproveitemos cada instante da vida e sem fazer grande

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banzé. O que explica que todos os Verões, a partir de Dezembro ou Janeiro, seja qual for a situação financeira, a pequena tribo empreenda a sua migração anual, primeiro
para a estancia da avó, em Portela, em plena Pampa - vida de campo ao ar livre, cavalo, banhos, passeios de charrette e grandes assados, esses churrascos gigantes
em que os peones assam em brasas um pedaço de carne de vaca, uma delícia - em seguida para Mar del Plata, a estação balnear elegante da Argentina, quatrocentos quilómetros
a sul de Buenos Aires, com belíssimas praias e ar cheio de iodo, mas de águas frias, porque uma corrente fria do pólo atravessa o Atlântico Sul.
Os três dias de viagem - mais de mil quilómetros, geralmente por estradas de terra batida ou de cascalho - são feitos numa velha carripana resistente que tem um
nome, "La Catramina", pois faz também parte da família. É um grande descapotável Chrysler-Maxwell, modelo de 1926, todo amolgado, de cor indefinida ao longo dos
anos, mas que, dotado de uma "suspensão de camião", passa praticamente por todo o lado e marca a sua chegada com sonoros estampidos; a sua panela de escape está
praticamente desfeita. Célia, a mãe, utiliza-o no Inverno para levar as crianças à escola, enchendo-o com todos os miúdos que lá possam caber. É nessa geringonça
a toda a prova que Ernestito cedo aprenderá a guiar. "Sempre que me ausentava", escreve o pai, "Ernesto e os amigos pegavam no carro e iam dar uma volta. Toda Alta
Gracia estava ao corrente, excepto eu"49.
Depois do clima seco da Serra, o vento marítimo do Atlântico tem efeitos benéficos sobre a asma de Ernesto. De forma que, apesar do custo elevado da vilegiatura,
os Guevara procuram fazer aí todos os anos uma estada mais ou menos longa, alugando durante dois meses um andar inteiro de um hotel decente. Os encontros rituais
com o Atlântico explicam que, mais tarde, Ernesto, criado na serra, possa contudo dizer que, para ele, "o mar é um velho amigo".

Uma Argentina pró-nazi

Nas suas memórias um tanto desordenadas sobre si próprio e sobre O Meu Filho, o Che, o pai, Guevara Lynch, insiste na sua acção antinazi e garante que desde os dez
ou doze anos, o filho fez questão de colaborar também. É provável que o miúdo, já sensibilizado pelo combate dos "bons" contra os "maus" através das tomadas de posição
da família, antifranquistas, por ocasião da guerra de Espanha, tenha sido seduzido pelo lado um tanto clandestino de "contra-espionagem de aventura" das operações
efectuadas pelo pai para sondar e descobrir na região de Córdova os pontos de apoio logísticos favoráveis a uma eventual "penetração nazi" na Argentina. Juan Miguez,
seu companheiro de brincadeiras, recorda-se dos soldados de chumbo contra os quais se entretinham a disparar. "Ernesto declarava que um era o Hitler e o outro Mussolini.
E tentávamos derrubá-los com uma espingarda de pressão de ar"50.

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De facto, muito antes do desencadear da Segunda Guerra Mundial, as autoridades argentinas não escondiam a sua simpatia pelas doutrinas de Hitler e de Mussolini.
E mesmo que, por puro oportunismo político, a Argentina, sem temer o grotesco, tenha declarado guerra à Alemanha in extremis, apenas alguns dias antes da capitulação
de 8 de Maio de 1945 e da vitória dos Aliados, os nazis sabiam que dispunham, nesse país dos antípodas, de uma zona de operações bastante segura e, em caso disso,
de uma base de apoio acolhedora. Trata-se de um aspecto ainda bastante obscuro da história da Argentina. Foi necessário aguardar 1992 para que, aceitando abrir os
seus arquivos, as autoridades argentinas permitissem que fosse possível ter uma ideia da amplitude do apoio concedido aos nazis e aos seus aliados, antes, durante
e sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial.
Em 1939 dá-se um episódio revelador dessa benevolência particular em relação ao Reich. Perseguido por três cruzadores da Royal Navy britânica, o couraçado alemão
Graf-Spee refugia-se no Rio da Prata. O seu comandante manda evacuar os 1039 membros da tripulação para as costas da Argentina antes de fazer explodir o navio ao
largo de Montevideu e de disparar uma bala na têmpora. Os marinheiros dispersar-se-ão, entre outros pontos, pela serra de Córdova, no belo vale de Calamuchita, onde
muitos dos seus descendentes se fixaram a partir de então.
Guevara Lynch, que fundou em Alta Gracia uma filial da Acción Argentina, organização nacionalista antinazi, leva o pequeno Ernesto a vigiar discretamente com ele
os movimentos dos militares alemães que, embora desarmados, continuam a treinar-se sob o comando dos seus oficiais. Detecta uma bandeira com a cruz gamada que flutua
por uns dias no alto de uma colina, descobre que à entrada de cada ponte se encontra uma casa ocupada por um alemão possuidor de dinamite e que, a partir de um hotel
da aldeia de La Falda, bastante próxima, funciona um potente emissor que comunica com Berlim...
As denúncias da Acción Argentina conduzirão mais tarde, em 1943, ao relatório à Câmara dos Deputados de uma comissão de inquérito sobre as actividades antiargentinas,
dando conta de múltiplas acções de espionagem efectuadas pelo Reich na Argentina, sob a capa dos clássicos gabinetes de Turismo e dos Caminhos-de-Ferro da Alemanha,
com a cooperação dos não menos clássicos adidos de embaixada alemães colocados em Buenos Aires. Mas a repercussão desse relatório, em breve abafado, foi mínima e
provocou, quando muito, a partida de alguns diplomatas nazis, demasiado queimados. A complacência do governo militar da época para com nazis e fascistas não foi
de modo nenhum afectada, tanto mais que, a partir de 1942, Goebbels, apercebendo-se do papel geopolítico da Argentina como base estratégica no continente americano,
não hesitou em transferir para Buenos Aires reservas importantes. Após a derrota alemã, os magnatas nazis Freude e Mandl, amigos de Perón, irão gerir esse tesouro
de guerra - ouro, diamantes, divisas, centenas de milhões de dólares - que submarinos alemães teriam escoltado até às costas argentinas. Freude, nessa época conselheiro
do Banco Central da

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Argentina (cujos arquivos ainda não tinham sido abertos em 1996), foi um dos agentes que, a partir de 1946, criaram sociedades destinadas a branquear esses capitais
e, de passagem, a financiar parcialmente a campanha eleitoral de Perón, candidato a um primeiro mandato presidencial.
De facto, quando o corajoso Guevara Lynch leva consigo Ernestito para detectar, da forma mais artesanal, os nazis instalados na província de Córdova, mais não faz
do que entrever um pequeno fragmento do que virá a ser uma das grandes questões do pós-guerra: o acolhimento e a protecção, não declarada mas real, de mais de 40
000 nazis em trânsito para Buenos Aires, graças ao apoio da Cruz Vermelha Internacional e do Vaticano, entre os quais mais de cento e cinquenta criminosos de guerra,
que conseguiram escapar ao processo de Nuremberga: Eichman, Mengele e outros, Erich Priebke51...

Córdova, a revolucionária

No início do ano escolar de Março de 1942, Ernesto, que vai fazer 14 anos, volta a mudar de escola. Desta vez é para entrar no secundário. Terá então de ir todos
os dias sozinho, como uma pessoa crescida, a Córdova, capital de província, a 40 quilómetros de Alta Gracia - três quartos de hora de comboio ou de autocarro, através
de uma estreita estrada de montanha. A escolha limita-se a dois colégios. Um, elegante, o Monserrat, é normalmente reservado aos filhos-família. Logicamente, o lugar
de um Guevara de la Serna é aí. O outro, o colégio estatal Dean Funes, é muito mais popular, "laico e republicano", claramente de esquerda e considerado pela "gente
bem" como um "viveiro de revolucionários". É aí que Ernesto irá fazer os cinco anos de estudos que o levarão ao bachillerato (grau académico equivalente ao ensino
secundário completo). É também aí que contrairá novas amizades, algumas das quais muito fortes.
Vários dos seus condiscípulos conservaram uma recordação nítida desse novo aluno, que não se parece com os outros, e cuja desenvoltura e independência de espírito
são surpreendentes. Aos 14 anos, ainda não é muito alto. De facto, usará calções até aos 16 anos. "Os Guevara só começam a crescer a partir dos 15 anos"52, diz a
mãe. Aos dezassete anos, numa noite de Verão, veste-se para parecer mais velho e entrar no casino de Mar de la Plata. Tempo perdido. Tem ainda um ar tão jovem que
os porteiros lhe barram a passagem. Apesar da sua fragilidade aparente, impressiona toda a gente pelo seu olhar decidido, por vezes malicioso, pela sua inteligência
fulgurante, pela originalidade do seu comportamento. Nessa pequena sociedade de província, em que os jovens assumem ainda os valores paternos e as normas que distinguem
"o que deve fazer-se" do "que não se deve fazer", o aluno Guevara arvora um desprezo soberano por aquilo que poderão dizer.
Um dos seus companheiros de turma, Domingo Rigatusso, de ascendência italiana, não esquece como Ernesto se distinguia dos demais. Em plena

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Segunda Guerra Mundial, apesar do afastamento geográfico e da neutralidade oficial da Argentina, cada um era sumariamente catalogado e classificado quer no campo
dos Aliados quer no campo dos seus adversários. "Eu era mais a favor do país dos meus pais. Ernesto chamava-me tano* fascista. Era um tipo de uma inteligência e
de uma memória excepcionais. Um dia, o professor de Matemática, um engenheiro-geómetra, apresentou-nos um teorema, dando apenas a hipótese. Perguntou se alguém era
capaz de desenvolver a tese. Guevara levanta-se, vai ao quadro e, exceptuando uma pequena correcção, desenvolve a tese de uma ponta a outra como se a conhecesse,
quando nem sequer a tinha lido [...]. Chamavam-lhe el Pelao (tosquiado) porque, ao contrário de todos nós, que usávamos o cabelo comprido e às vezes um pequeno rabo
de cavalo, que estava na moda, ele usou sempre o cabelo muito curto, apenas com uma madeixa à frente"53.

Nota: * Tano é a abreviatura pejorativa de italiano. Os franceses diriam "rital". Juntamente com os espanhóis, os italianos constituem na Argentina o mais importante
contingente da imigração europeia chegada ao Rio da Prata a partir do final do século XIX.

As viagens quotidianas a Córdova não melhoram a asma do rapaz, mas agora ele sabe lidar com essa desvantagem. Passou o tempo em que, em caso de brigas com os primos
ou os amigos do grupo, a arma secreta da rapaziada era despejar-lhe um balde de água na cabeça. "Tinha um espasmo fortíssimo e a batalha estava ganha. Mas com que
crueldade!..."54. Agora ele dispõe dos seus apetrechos. "Sentava-se muitas vezes ao meu lado", prossegue Rigatusso, "e tinha sempre o nebulizador à mão. Mas às vezes
a crise era tão forte que tinha de dar uma injecção a si próprio. Sem sair da aula, à minha frente, agarrava na coxa e espetava-lhe a agulha [...]. E depois não
hesitava em fumar durante as aulas os cigarros antiasmáticos do Dr. Andreu. Tinham um cheiro penetrante que invadia a sala. Mas não podiam dizer-lhe nada devido
ao seu problema..."55. A indulgência dos professores explica-se talvez pelo facto de se tratar de uma pessoa extraordinariamente dotada. "Geralmente, os professores
gostavam muito dele, apesar de ele ser contestatário. Discutia os seus pontos de vista quando não estava de acordo, mas sem nunca lhes faltar ao respeito", recorda
Tomás Granado, que virá a ser um dos seus melhores amigos.56 Outro condiscípulo observa: "Aprendia com toda a facilidade. Às vezes chegava à turma sem saber qual
era o tema da aula. Pedia um ou dois esclarecimentos breves e, se era interrogado, saía-se brilhantemente, como um verdadeiro erudito"57. Contudo, Ernesto estava
longe de ser um aluno-modelo. Muitas outras coisas o absorviam: o desporto, a literatura, o xadrez, a grafologia, o desenho, os grandes passeios na montanha, a pé
ou de bicicleta, e até a política, sem ser ainda uma grande paixão, mas como qualquer coisa de natural numa família politizada como a sua.
Ao fim de um ano, em 1943, após algumas atribulações infrutíferas para se aproximar de Córdova sem no entanto lá entrar, a pequena tribo decide mudar de vez - enésima
migração - e instala-se em plena cidade. Primeiro porque as idas e vindas quotidianas de Alta Gracia fatigam Ernesto, depois

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porque a mãe espera um quinto filho e porque o pai conseguiu voltar a trabalhar, associando-se a um arquitecto da capital da província. A casa de Córdova, na rua
Chile, 288, onde viverão cinco anos, será quase tão célebre no folclore familiar como a famosa Villa Nydia, tão incómoda mas tão acolhedora. De construção recente,
a nova residência é vasta - grande pátio (sem jardim), grandes janelões - e sobretudo fica perto do jardim zoológico, em torno do qual gravitam vários clubes desportivos,
garantia de prazeres ao ar livre para os Guevara que, há onze anos, adquiriram o hábito de viver praticamente no campo. Na Argentina, os clubes desportivos têm,
evidentemente, a vocação de permitir a prática de toda a espécie de actividades desportivas, mas também de receber as famílias que lá passam o dia, organizando frequentemente
o asado dominical (churrascos tradicionais da "melhor carne do mundo") e participam nas clássicas manifestações sociais, jantares, encontros, cerimónias desportivas
ou patrióticas, etc.
Apesar das suas qualificações de empreiteiro, o pai não se apercebe de um defeito de construção fundamental: o edifício não tem alicerces sólidos e assenta num terreno
movediço, próximo de uma ravina. O que explica o aparecimento progressivo de enormes fissuras nas paredes e nos tectos. "Recordo-me que, da minha cama, podia ver
a noite estrelada através de uma fenda no tecto", escreve com toda a serenidade Guevara Lynch que, todavia, tem o cuidado elementar de afastar das paredes as camas
dos filhos "em caso de desmoronamento"58. Carmen Córdova, a prima, conta, ainda achando piada, que um dia, quando almoçavam no rés-do-chão, começou a cair uma "pequena
chuva" do primeiro andar, cujo sobrado estava bastante desconjuntado. Era Negrina, a cadela de estimação de Ernesto, que satisfazia uma necessidade natural. Espanto
divertido dos convivas, sem mais nenhum incidente de maior... "Uma autêntica família de boémios"59.
A casa apresenta uma outra curiosidade: estar situada num bairro residencial, a vinte cuadras* do centro da cidade, mas também próxima de uma zona de construção
difícil, devido à fragilidade d
os solos. Instalam-se então aí barracas ocasionais, onde se refugiam os mais pobres dos sem-abrigo. Ernesto e os irmãos e irmãs estabelecem naturalmente amizade
com os miúdos desse bairro da lata. O que nem por isso os impede de estarem inscritos no Lawn Tennis Club, mais próximo, mas altamente selecto, por vezes anti-semita,
nem de continuarem a praticar um desporto como o golfe, sinal clássico de pertença a uma elite.

Nota: * A cuadra é a distância (100 metros) atribuída pelos espanhóis aos lados de cada grupo de casas na quadrícula dos planos urbanísticos coloniais.

"Tinha comprado, perto do Golf Club, uma casa de campo em Villa Allende, uma pequena vila onde os habitantes de Córdova gostavam de vir descansar", escreve o pai.
"Ernesto adorava o golfe e jogava bastante bem"60. A ambivalência social e económica da família Guevara está talvez simbolicamente resumida nesta geografia, sem
dúvida ao acaso mas que a situa

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precisamente na fronteira entre dois tipos de sociedade, alta burguesia de um lado, proletariado semi-urbano do outro. As crianças não dão qualquer importância a
essas diferenças. Comovem-se antes com o nascimento, em 1943, do último irmão, Juan Martin, quinto rebento que durante muito tempo será conhecido pela alcunha de
Patatín e pelo qual Ernesto, quinze anos mais velho, sentirá sempre uma ternura especial.

Louco pelo râguebi

Tendo-se tornado amigo de Tomás Granado, Ernesto (14 anos) conhece o irmão mais velho deste último, Alberto (20 anos), que formou um grupo de râguebi, Estudiantes,
e recruta voluntários. Até aí, o jovem Guevara entusiasmara-se sobretudo pelo futebol e, para se distinguir dos clássicos adeptos de Boca Juniors ou do River Plate,
as duas equipas eternamente rivais de Buenos Aires, declarou que a sua equipa favorita seria a de Rosário Central, cujos membros eram qualificados de canallas, o
que não deixava de lhe agradar. Afinal de contas, foi em Rosário que nasceu, apesar de não ter vivido lá.
Importado para a Argentina no fim do século XIX pelos britânicos, donos dos bancos e dos caminhos-de-ferro, o râguebi era ainda pouco praticado na província, nos
anos quarenta. Os clubes elegantes ainda não tinham descoberto o seu aspecto "aristocrático". Alberto Granado faz ao jovem Ernesto o teste habitual que concebeu
para avaliar a capacidade de aparar os golpes quando surgem candidatos a esse "desporto de marialvas jogado por cavalheiros". Manda-o saltar, de cabeça para a frente,
por cima de um cabo de vassoura colocado entre duas cadeiras e avançar a rebolar sobre o cimento do pátio. "Ernesto não estava ainda suficientemente desenvolvido,
era um pouco magricela e não muito alto para a sua idade. A asma quase o impedia de falar. [...] No entanto, não foi uma, mas catorze vezes que se lançou a rebolar
pelo cimento [...]. Vi que era um rapaz decidido, um tipo tenaz, capaz de aguentar"61, afirma Alberto Granado.
Na equipa Estudiantes de Córdoba, Ernesto irá ocupar o posto de três-quartos ala, número 11 no râguebi de 15. Ao contrário dos "transportadores de pianos" das poderosas
linhas de avançados, ele faz parte dos artistas, "tocadores de piano" das linhas médias, corredores rápidos, peritos em passes hábeis, encarregados de evitar as
placagens para marcar os ensaios. Apaixona-se por este desporto viril e solidário, mesmo se por vezes a asma o obriga a ir a correr aspirar umas baforadas do nebulizador.
Alguns anos mais tarde, estudante em Buenos Aires, publicará, com o seu irmão Roberto e alguns amigos, uma pequena revista, Tackle, onde evocará as suas primeiras
experiências como jogador de râguebi: "Éramos uma dezena de voluntários e procurávamos detectar, entre os curiosos que andavam por lá, alguns tipos audaciosos capazes
de se juntarem a nós. Entrávamos em campo sempre de olho na nossa roupa, com medo que a

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roubassem..."62. Do râguebi, Ernesto conservará pelo menos o cognome inventado por Granado, para o avisar quando a bola vai sair da formação: "Fuser!", contracção
de fu (furibundo) e ser, de Serna, seu segundo apelido por parte da mãe.63
Como sempre, a asma leva-o a alternar períodos de actividade física intensa, no limite do que pode ser exigido a uma caixa torácica caprichosa, e períodos de repouso
mais ou menos longos, que ele aproveita para fazer mil e uma coisas: ler, ler, ler, mas também exercitar-se na grafologia, seguir um curso de desenho por correspondência
ou jogar xadrez, chupando mates. Tal como o pai, amador esclarecido, Ernesto interessou-se bastante pela grafologia, sem o dizer a ninguém. Foi encontrado um caderno
de juventude - jardim secreto - onde, de ano para ano, reproduziu a mesma frase de forma a avaliar as suas mudanças de letra. Numa série de folhas volantes, a passagem
repetida, cuja escolha ganha, com o recuo no tempo, um significado particular, evoca a virtude do sacrifício individual quando a causa é nobre. O texto, retirado
manifestamente de um livro de história da Revolução Francesa, exalta a coragem perante a morte de um herói não identificado, mas no qual seria possível reconhecê-lo:
"Creio ter a força necessária - estou agora convencido disso - para subir ao cadafalso de cabeça erguida. Não sou uma vítima. Sou uma parte do sangue que fertiliza
a terra de França. Morro porque devo morrer para que o povo viva..."64.
Quando era ainda criança em Alta Gracia, Ernesto aprendera com o pai os rudimentos do jogo de xadrez. À medida que vai crescendo, o seu fascínio pelas subtilezas
dessa estratégia sábia irá aumentar e o aluno em breve ultrapassará o mestre. Em Córdova dedica-lhe muitas horas e acaba por ser um campeão. Um Verão, de férias
em Mar de la Plata, participa mesmo numa partida que o campeão da Argentina, Miguel Najdorf, disputa contra quinze adversários em simultâneo. Cerca de dez anos depois,
em Cuba, Guevara irá organizar uma partida onde, com mais nove jogadores, entre os quais se encontravam destacados membros do governo, defrontará o mesmo Najdorf.
Este, de regresso à Argentina, confessará: "Bati-o por pouco, e propus-lhe um empate. Ele respondeu-me: "Maestro, já me venceu em Mar del Plata, quando eu era estudante
de Medicina. Desta vez, prefiro voltar a perder ou então tirar a desforra". [...] Era bastante bom", conclui o campeão argentino, que garante ter visto em casa de
Guevara uma biblioteca de quinhentos livros sobre xadrez. "Preferia o jogo ofensivo e não hesitava em sacrificar peões, mas sabendo o que estava a fazer. Podia ser
classificado na primeira categoria"65.
Em Córdova, Ernestito encontra Gustavo Roca, filho do famoso advogado Deodoro Roca, que foi o mestre "em rebeldia" de toda uma geração de estudantes, proclamando,
cinquenta anos antes dos seus descendentes europeus de Maio de 1968, que era "proibido proibir". São eles que obtêm em 1918 uma reforma universitária, única no género,
que fará história na América Latina. Pela primeira vez, era formalmente estabelecida não só a

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autonomia da universidade em relação ao poder político mas também o princípio da participação democrática e colegial dos estudantes, professores e pessoal administrativo
nas decisões da universidade.

"Já te apareceu?..."

Do que o filho de Roca se recorda é da personalidade singular do jovem Guevara, mais novo que ele. "Era original em tudo. Era um anticonformista..."66. Ernesto ia
pesquisar na biblioteca do seu pai e não se contentava em ler sistematicamente todos os livros ali encontrados; "Às vezes, levava-os para casa, o que era trágico
para os livros. Devorou assim a colecção das Mil e Uma Noites na sua versão não edulcorada, verdadeiramente escrabosa e erótica. Devia ter dezasseis anos"67.
Precisamente aos dezasseis anos, Ernesto vive o despertar da sexualidade da forma mais livre e natural. La Negrita reconhece que andava já namoro no ar, na época
em que a família das duas irmãs Célia e Carmen de la Serna, sempre muito cúmplices, viviam juntas em Alta Gracia e que um fiacre levava à escola todo o rancho de
primos e primas. "Eu e o Ernesto, dois anos mais velho do que eu, fomos sempre muito amigos. Gostei sempre e ainda gosto, de certas audácias, certos divertimentos.
E devíamos estar os dois um bocado apaixonados um pelo outro. Mas éramos apenas pré-adolescentes, ainda impúberes. Lembro-me de, num dia de Verão, num jogo das escondidas
em minha casa, nos termos escondido no fundo de um grande armário. E ali, à queima-roupa, fez-me uma pergunta que me deixou estupefacta: "Já te apareceu? Já veio?".
Eu percebi bem que aquilo que devia vir não era propriamente o Espírito Santo. Era a menstruação... Ele queria saber se eu já era mulher"68.
Os amores com Carmen serão sempre platónicos, apesar de existir uma grande afinidade intelectual. "Era tal e qual como no filme de Saura, A Minha Prima Angélica.
As nossas relações eram um misto de ternura, de descoberta de ideias, de literatura, de revolta contra a injustiça. Tudo isso nos ligava bastante"69. Mas tratando-se
de trabalhos práticos, o caso é diferente. Para a sua iniciação sexual, Ernesto não é muito diferente da maior parte dos meninos-família na Argentina dos anos quarenta:
clássico, recorre à criada. O seu irmão Roberto confessará mais tarde ao primo Fernando Córdova que Ernesto tinha obtido os favores de todas as criadas que passaram
por casa deles.70 Geralmente, nas boas famílias, explica La Negrita, era sempre a criada, normalmente uma rapariga de Santiago del Estero* que desempenhava o papel
de Madame de Warens com Rousseau.71

Nota: * província bastante pobre no Norte da Argentina, que fornecia o maior contingente de pessoal doméstico do país.

Apesar do seu lado um pouco selvagem, Ernesto, que parece apreciar a coisa - "Tinha como que uma obsessão", declara Carmen Córdova -, participa

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nos bailes. "Nós tínhamos treze, catorze anos, ele tinha quinze ou dezasseis...". Com Ernesto, o divertimento consistia em fazer troça da sua total falta de ouvido
musical. "Tratando-se de música, ele era um verdadeiro "surdo". Perguntava-nos: "E esta música, o que é?" Respondíamos-lhe uma coisa ao acaso: "É um fox-trot. 1-2,
1-2". Ele obedecia a esse ritmo, 1-2, 1-2, quando tanto poderia tratar-se de um tango como de uma polca. Mas ele não perdia o sentido de humor, era divertido. Dizia
que se se tratasse do hino nacional, aí não podíamos enganá-lo porque, pelo menos, reconheceria a letra [...]. O que era simpático da parte dele é que, quando íamos
dançar, ele convidava sempre as mais feias, para que não se sentissem mal..."72.
Há, no entanto, um pequeno problema para um adolescente preocupado em agradar às raparigas: o cuidado no vestir e a higiene corporal. Serão as suas duas extravagâncias,
pela vida fora. Ernesto nunca se preocupará muito em lavar-se e em cuidar da aparência. Já em miúdo era assim e parece que os pais não se preocuparam muito com isso.
É ainda a Negrita que conta a sua vida com os Guevara, na serra de Córdova, em 1937, enquanto o pai "cobre" a guerra de Espanha: "Em Alta Gracia, estivemos sobretudo
nas casas que davam para o campo de golfe, onde apanhávamos as bolas perdidas [...]. Quando chegávamos à escola primária, verificava-se se os alunos estavam limpos.
E, nesse ponto, as coisas não eram fáceis para Ernesto, pois ele parecia de relações cortadas com a higiene. Na verdade, lavava-se pouco, com receio do frio"73.
O pretexto do frio e das constipações não pega. Acontece simplesmente que o rapaz não gosta do sabão, sem dúvida porque tem mais que fazer, a menos que fosse uma
forma de afirmar o seu anticonformismo um tanto provocante em relação a uma norma estabelecida. "Gabava-se de se lavar pouco", reconhece o seu grande amigo Alberto
Granado. "Dávamos-lhe várias alcunhas - chamávamos-lhe el Loco, e também el Chancho (porco). Ele gostava de se exibir: "Há 25 semanas que não lavo o meu equipamento
de râguebi""74.
Um dia, o seu outro condiscípulo, "el tano" Rigatusso Domingo, que ganha uns cobres a vender caramelos à entrada do cinema Ópera de Córdova, vê-o chegar com uma
rapariga, numa farpela indescritível, enfiado num sobretudo dois números acima do seu tamanho, calçado com sapatos desemparelhados, que nunca viram uma ponta de
graxa. "Diz-me ele: "Che, estou com uma miúda". E eu: "Já viste bem a tua figura?"... Estava cá com um destes aspectos! Um autêntico desastre. Num dos bolsos do
sobretudo tinha um termo (de água quente, para preparar um mate), no outro biscoitos e côdeas de pão. Enfiava as mãos nos bolsos deformados e comia. E, nessa figura,
entrou no cinema com a rapariga"75. Ninguém se leva a sério aos dezassete anos.
Esses cinco anos passados em Córdova serviram-lhe, sem dúvida, para assimilar o programa escolar, mas sobretudo para tentar ultrapassar cada vez mais os limites
das suas capacidades físicas contra a desvantagem da doença e para adquirir uma cultura geral impressionante, que confundirá todos os seus interlocutores. Sempre
alerta, ávido de todos os conhecimentos, lê, escreve

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(poemas, diários, cartas a tias, à avó, aos pais), recorda-se de tudo, dos caminhos, dos passeios, das plantas e das árvores da serra, dos amigos da sua idade,
aos quais dedicará uma fidelidade exigente e irrepreensível. "Não era fácil ser amigo dele", dirá Alberto Granado, "porque a sua amizade era sempre crítica. Mas
possuía o sentido da amizade caracteristicamente argentino, uma coisa fundamental na vida"76. Calica Ferrer, outro amigo, cujo pai, médico fisiologista, "seguirá"
a asma de Ernesto, explica que, "sem o saber, foi em Alta Gracia e na serra de Córdova que ele se treinou naquilo que teria de enfrentar mais tarde: escalar montanhas,
montar a cavalo, nadar, aguentar o frio, o calor, aprender a desenrascar-se, a sobreviver. Tudo isso lhe foi muito útil. A partir dos 10 anos, íamos a cavalo, levávamos
uma tenda ou mesmo nada, instalávamos uma rede, dormíamos ao ar livre..."77.

Um fascismo à argentina

Os anos quarenta não foram nada calmos nessa Argentina longínqua, protegida da guerra pelo seu afastamento geográfico mas sem deixar de se interessar pelo desenrolar
das operações na Europa, de onde provinha o essencial da sua população imigrada. Quando em 1939 estala o conflito mundial, a Argentina é denunciada pelos nacionalistas
como "a melhor colónia do Império Britânico". Transportes, frigoríficos, centrais eléctricas, telefones, portos e silos estão ligados aos capitais de Londres, da
Europa e, em parte, dos Estados Unidos, que desejariam penetrar melhor no mercado. É por isso que a Inglaterra prefere uma neutralidade argentina, ainda que tingida
de simpatia pela Alemanha, em vez da sua entrada na guerra, que significaria a abertura do país à concorrência do perigoso rival norte-americano. Por seu turno,
os generais, quase todos formados segundo o modelo dos seus colegas da Wehrmacht, são mais sensíveis à fraseologia nacional-socialista alemã do que aos ideais de
defesa democrática, os quais, no fundo, mobilizam apenas uma frente antifascista heteróclita, onde alinham lado a lado os partidos de esquerda tradicionais implantados
na pequena-burguesia e os sectores que representam a grande propriedade rural e o capital inglês.
Assim, quando Ramón Castillo, presidente em exercício, tem o mau gosto de propor como seu sucessor um candidato disposto a declarar a guerra à Alemanha, é no meio
da indiferença geral que, em Junho de 1943, se dá um novo golpe. Na origem desse golpe de Estado sem brilho está uma célula militar, de inspiração fascista, até
então na sombra, o GOU (Grupo de Oficiais Unidos). O novo regime militar apressa-se logo a garantir a Hitler a sua neutralidade, tanto mais benevolente porquanto
a guerra na Europa se torna para a Argentina um bom negócio económico que irá apagar os efeitos da crise de 1929. Buenos Aires coloca em posição de vantagem os seus
produtos agrícolas, dita os seus preços, enche os seus cofres. As suas reservas de ouro e de divisas sobem em flecha.

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Nestas condições excepcionalmente favoráveis, surge o coronel Perón (46 anos), que toma conta da Secretaria de Estado do Trabalho e da Segurança Social, pouco cobiçada.
Fará desse cargo o seu melhor trampolim. Membro do GOU, formado nos métodos fascistas da Itália mussoliniana, onde fez umlongo estágio, próximo da Embaixada da Alemanha
que o apoiará financeiramente, é um homem astucioso que sabe dominar um temperamento um pouco ordinário para se mostrar afável e bem comportado, se for caso disso.
Cuidadosamente penteado, vestindo uma impecável farda branca, de sorriso hollywoodesco nos lábios, tem o mérito de ter compreendido antes dos outros que há, na Argentina,
uma massa politicamente disponível de trabalhadores rurais e semiurbanos tratados com igual desprezo por cabecitas negras pela gente fina ou por lumpen-proletariado
pelos partidos de esquerda. Utilizando habitualmente uma perfeita demagogia, Perón entusiasma essa massa majoritária decretando algumas medidas concretas de justiça
social, espectaculares, que irão abalar a paisagem social argentina: aumentos de salários, redução do horário de trabalho, décimo terceiro mês, indemnização por
doença, construção de habitações, organização em todo o país de sindicatos sob a direcção de oficiais inferiores, etc. Ao mesmo tempo, obtém a bênção da Igreja e
empenha-se em tranquilizar os possidentes. A 25 de Agosto de 1944, enquanto a burguesia de Buenos Aires chora de alegria perante o anúncio da libertação de Paris
e canta nas barbas dos militares uma Marseillaise ainda subversiva, ele declara com um cinismo desconcertante na Câmara do Comércio: "Senhores capitalistas, não
temam o meu sindicalismo; o capitalismo nunca estará tão seguro como agora [...]. As massas operárias que não estão organizadas são perigosas [...]. Se proporcionarmos
algumas melhorias aos trabalhadores, teremos uma massa fácil de manobrar [...]78. Promovido a ministro da Guerra e em seguida à vice-presidência do país, a sua popularidade
é tal que inquieta o aparelho militar, tanto mais que uma "coligação democrática", encorajada pela vitória dos Aliados, levanta a cabeça e organiza uma enorme marcha
da Liberdade. Perón é preso e demitido. Demasiado tarde. O movimento sindical que desencadeou ganha força. Exortados pela sua conselheira Eva Duarte, starlette inflamada
transformada em locutora de rádio na Radio Belgrano, os operários invadem num imenso caudal as ruas da capital e exigem a liberdade do "coronel do povo", seu amante.
É o histórico 17 de Outubro de 1945 dos descamisados, que passará a ser festa nacional do peronismo. Libertado, reintegrado, Perón força as leis e apresenta-se como
candidato "macho" proveniente da Argentina profunda, como o campeão de um sentimento nacional ultrajado contra um candidato radical, apoiado muito desajeitadamente
por Spruille Braden, embaixador dos Estados Unidos. Sem precisar de recorrer às clássicas fraudes eleitorais, Perón é conduzido à direcção do país em 1946. A partir
de então a Argentina ficará cortada ao meio: quem não for peronista é considerado inimigo, votado ao opróbrio. Instala-se uma espécie de maccartismo populista, que
controla tanto o ensino a todos os níveis como os meios de comunicação social.

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Enquanto vão surgindo nacionalizações à força (e a preço de ouro), enquanto a função pública é ocupada por todos os peronistas amigos, parentes ou aliados, são escorraçados
como "indesejáveis" dois terços dos professores universitários, sessenta jornais são suspensos, as rádios são vigiadas, os deputados da oposição são expulsos...
Os Guevara situam-se evidentemente num antiperonismo decidido. Em nome desse internacionalismo democrático que os levou a apoiar os republicanos espanhóis contra
Franco, fazem campanha contra Perón, cuja palavra de ordem "Sapatilhas sim! Livros não!" só pode escandalizar qualquer espírito bem formado. Célia, a mãe, é a mais
combativa. Faz parte de uma comissão franco-argentina de apoio à Resistência, exibe em sua casa uma fotografia do general de Gaulle, e não hesita, numa situação
extrema, em cantar em francês... a Internacional. Um dia, na praça San Martin em Córdova, não consegue conter-se ao ver desfilar milhares de peronistas e desata
a gritar: "Viva a liberdade! Abaixo Perón!" É logo presa. Enquanto, na esquadra, trata os polícias como agentes da Gestapo, o oficial faz-lhe notar com toda a calma,
que talvez, pelo contrário, lhe tenham salvado a vida. "Se não tivéssemos intervido, a esta hora já teria sido certamente linchada"79.
Juntamente com o marido, ela faz parte de um grupo antiperonista, de resistência civil, Monteagudo, que, inspirando-se nos maquisards franceses, fabrica explosivos
e edita panfletos. "Um dia", conta o pai, "Ernesto percebeu o que estávamos a fazer. Disse-me então: "Mete-me no grupo, porque senão participo sozinho...". Aceitei,
para evitar que ele se pusesse a fazer coisas à toa. Fui eu que lhe incuti o antiperonismo"80.
Ernesto acompanha o movimento, mais por espírito de contestação contra a ordem imposta do que para alinhar ao lado dos pais. Tomás Granado, o seu melhor amigo do
liceu, conta o episódio que põe em confronto o rapaz de 15 anos com a professora de História, senhora Beruato, que após o golpe de Estado de 1943 afirma que os militares
vão finalmente levar a cultura ao povo e aos pobres. Interpelado sobre os motivos do seu sorriso céptico, Ernesto responde sem pestanejar que duvida muito disso,
pois se o povo fosse culto não quereria militares. Pânico horrorizado da professora, que põe de imediato o aluno Guevara fora da aula. "Admirámo-lo muito, pois dizer
uma coisa destas em plena ditadura militar era muito arriscado"81. Em 1949, uma lei chegará mesmo a punir com pena de prisão qualquer "falta de respeito" (desacato),
crítica ou piada em relação a Perón ou ao seu governo.
Nessa época, Ernesto é aquilo a que se pode chamar um "reformista", isto é, ao contrário do que se entende hoje por isso, um discípulo da famosa Reforma Universitária
de Córdova. "Isso engloba o conjunto da esquerda, incluindo o Partido Comunista...", explica Gustavo Roca. "Após a libertação de Paris, discursei numa manifestação
e a polícia caiu sobre nós. Recordo-me que Ernesto estava ao meu lado e tiraram-nos uma fotografia"82.
Em Córdova, para lutar contra os grupos de choque de extrema-direita da Aliança Libertadora Nacionalista, que retoma o lema peronista "Matar um

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estudante é uma obra patriótica", a Federação Universitária e as Juventudes Comunistas formam os seus próprios grupos. Muitas vezes, os confrontos são sangrentos.
Em 1945, por ocasião de uma greve na Universidade de Córdova, Alberto Granado, estudante e jogador de râguebi, é preso. O seu irmão mais novo, Tomás, vai levar-lhe
comida à prisão, acompanhado de Ernesto. Quando Alberto os encoraja a mobilizar os alunos do secundário para que se manifestem, Ernesto responde-lhe friamente: "Nem
pensar. Eu só vou para a rua se me derem uma arma"83. Na realidade, ele irá sair à rua e até juntar-se a manifestantes peronistas, seus companheiros do bairro de
lata vizinho, para irem partir os vidros do jornal radical de Córdova La Voz del Interior. "Mas porquê a Voz?" pergunta-lhe Pepe Aguilar, a quem ele conta a história.
"Porque são tão reaccionários como os conservadores, mas mais hipócritas"84, responde Guevara.
Com o passar do tempo, tenderá a mitigar o seu antiperonismo e acabará por reter dele apenas a dimensão "anti-imperialista". Em 1955, escreve à mãe: "Confesso-te
sinceramente que a queda de Perón me provocou uma profunda amargura, não por causa dele, mas por o que isso significa para a América"85. Mais tarde, chegará mesmo
a enviar a Perón (confortavelmente exilado em Madrid) um exemplar da sua Guerra de Guerrilha com uma dedicatória "afectuosa" de "um antigo opositor que evoluiu".
Mas já, na Argentina, toda a caça ao homem o repugna, venha ela de onde vier. O dirigente peronista de esquerda John William Cooke evocou, antes de desaparecer,
numa noite de Verão de 1946, quando, tendo sido identificado numa praia elegante de Mar del Plata, um grupo de jovens burgueses quis expulsá-lo. O único que ousou
interpor-se foi aquele jovem corajoso de dezoito anos, que viria a encontrar em Cuba, como "comandante da Revolução"86.
Se, apesar de tudo, os Guevara se esforçam por manter, mesmo por pouco tempo, o seu encontro estival com as praias do Atlântico, a sua situação económica não é brilhante.
A erva-mate da sua plantação de Misiones não é o género de artigo que se exporte para a Europa. Antes mesmo de acabar o bachillerato, Ernesto é forçado a ganhar
uns cobres para começar a fazer face às suas necessidades. Graças a uma recomendação do pai, arranja um trabalho de ocasião, com o inseparável Tomás Granado, nas
pontes e calçadas da província. A sua tarefa consiste em analisar os materiais de revestimento da estrada, perto de Villa Maria, a cento e cinquenta quilómetros
de Córdova, para verificar se o caderno de encargos foi cumprido. O pai cita uma carta pitoresca do filho que explica, numa linguagem metafórica, como recusou deixar-se
"comprar". É, no fundo, o primeiro verdadeiro contacto do rapaz com o mundo do trabalho, se exceptuarmos uma campanha de alguns dias, quando tinha doze anos, com
o seu irmão Roberto, para fazer as vindimas a um peso por dia. Indigestão de uvas, asma, a aventura a ter de ser interrompida e, para grande indignação de ambos,
o patrão a recusar-se a pagar-lhes.

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Buenos Aires: estudante de Medicina

Março de 1947 é um momento importante para toda a família, pois marca o regresso dos Guevara a Buenos Aires, a grande capital, após catorze anos de ausência e, por
outro lado, o início lento de uma separação amigável entre os pais. Aos quarenta e sete anos, idade clássica, o pai apaixona-se por uma miúda, Ana Maria Erra, encantadora
professora primária entusiasta de belas-artes, com quem casará bastante mais tarde.87 Monta um escritório perto do apartamento amavelmente emprestado no início pela
avó, no elegante Barrio Norte, rua Arenales 2208, onde também mora a simpática tia Beatriz, antes de a tribo se mudar "no ano seguinte" para perto das magnólias
do parque de Palermo, "Bosque de Bolonha" de Buenos Aires, rua Araoz 2180, para uma casa modesta. E a típica construção argentina antiga, chamada chouriço, de fachada
estreita e toda em comprimento, como ditavam as regras do urbanismo colonial, tendo, sobre a garagem para a rua, um único andar de tecto alto. Sobe-se por uma escada
direita, onde se demorarão em conversas intermináveis todos os amigos dos filhos, antes de se despedirem. Até ao fim dos estudos, em 1953, Ernesto partilha com o
irmão Roberto um pequeno quarto com duas camas sobrepostas. Ele dorme na de cima "para acordar melhor deixando-se cair, de manhã, e lançar-se sobre o seu mate amargo*88.

Nota: * O mate amargo é aquele que bebem os "verdadeiros" argentinos, os machos. O mate açucarado é considerado "feminino".

Para surpresa de todos aqueles que esperavam ver este ás em matemática escolher uma carreira de engenheiro, como o seu amigo Tomás, ele bifurca à última hora para
a medicina. É provável que, na sua decisão, tenha pesado o impacte provocado pela congestão cerebral e a morte recente da avó Ana Isabel, essa famosa descrente que
ele adorava e que ele fez questão de vigiar pessoalmente, sem interrupção, largando precipitadamente o seu emprego de Villa Maria, esquecendo tudo, durante dezassete
dias, até à morte dela.
Recompensa justa, pois os mimos e as meiguices foram precisamente a sua tia Beatriz e a sua avó admirável que lhos dispensaram. Não que os pais não tenham sido ternos
com ele. Nem por sombras. Já vimos com que cuidados ambos o protegeram o melhor possível contra as calamidades da sua doença. Embora a mãe pareça ter tido alguma
predilecção por esse filho mais velho, no qual se reconhecia, os beijos e abraços nunca foram muito o estilo da casa. Em contrapartida, todos sabiam que junto dos
Guevara se respirava um ar tónico de liberdade. Liberdade de comportamento e de pensamento. Liberdade de escolher o seu curso.
Ernesto inscreve-se, portanto, em Medicina, em Buenos Aires, no início de Março de 1947. É o Outono. Vai fazer 19 anos e, apesar de uma espécie de deformação da
caixa torácica que um quiroprático asiático conseguirá reduzir em poucos meses89, a sua figura é mais a de um jovem desempoeirado. Cabelos curtos, olhar penetrante,
é uma pessoa segura, mesmo que não

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conheça praticamente ninguém na Faculdade. Pela sua pronúncia cantada de Córdova vê-se logo que é da província. O que ele assume sem problema. Não tem a cadência
italianizante do falar portenho, nem o comportamento um pouco arrogante dos habitantes de Buenos Aires. Mais uma vez, é "atípico", segundo a expressão de um condiscípulo
comunista, Ricardo Campos, que tenta aproximá-lo do Partido e lhe dá a ler material de propaganda. "A sua reacção era um tanto encrespada [...]. Tinha as suas convicções,
ideias gerais sobre a justiça, a injustiça, e expunha-as. Um dia veio a uma reunião de célula, na Federação; saiu a meio. Não frequentava os cafés de estudantes
onde nos encontrávamos [...]. Passava facilmente doze a catorze horas a trabalhar sozinho, na biblioteca. Às vezes nem o víamos. Era um fantasma"90. Desde o primeiro
dia seduz, sem segundas intenções e sem se dar bem conta disso, uma jovem da província, membro das Juventudes Comunistas, Tita Infante, que fará todo o curso de
Medicina com ele, absolutamente apaixonada. Vinte anos depois, recorda-se ainda da sua fascinação dos primeiros tempos: "Estávamos no princípio de 1947. No anfiteatro
de anatomia, quando era necessário coragem para assistir a sessões que abalavam mesmo os mais insensíveis dos futuros médicos, eu ouvia sobretudo a voz quente e
grave, e todavia irónica, de um belo rapaz desempoeirado [...]. Um misto de timidez e de orgulho, de audácia, talvez, dissimulava uma inteligência profunda, uma
sede de compreensão insaciável [...]. Tinha um fogo a brilhar-lhe nos olhos"91.
O "belo rapaz desempoeirado" vai fazer os estudos a toque-de-caixa, sem procurar de forma nenhuma brilhar, indo ao prático, ao essencial. Além disso, ganha um ano
escapando ao serviço militar, graças à sua asma. "Pela primeira vez, estes malditos pulmões serviram-me para alguma coisa".
Procurando ganhar uns cobres porque, como dirá o pai, "eu ajudava-o muito pouco; ele não queria que eu lhe desse um centavo. Desenrascava-se como podia [...]. Estava
sempre apressado, sempre a correr"92. De facto, durante os seus anos portenhos, Ernesto aperfeiçoará a sua arte de fazer mil e uma coisas graças a uma organização
rigorosa, que parece tornar o seu tempo elástico. Para além dos estudos e de uma série de pequenos trabalhos, consegue também praticar desporto, fazer fotografia
- uma paixão para toda a vida - sem nunca perder também qualquer ocasião para se entregar à sua outra paixão, o xadrez, ou para jogar brídege. E no entanto, diz
ainda Tita Infante, "era sempre pontual, nunca esquecia um encontro nem um telefonema. Estranha boémia a sua [...]. Muitas vezes, vi-o preocupado, grave, pensativo.
Nunca verdadeiramente triste nem amargo. Não me lembro de nenhum encontro em que não estivesse presente um sorriso e essa ternura calorosa que aqueles que o conheciam
sabiam apreciar [...].
Tirava partido de cada minuto, até nos transportes; geralmente aparecia com um livro na mão. Às vezes era Freud ("Quero estudar um caso clínico, há uma história
que me interessa"), por vezes um livro do curso, ou então um clássico. Ele sabia estudar"93.
Buenos Aires é uma cidade complexa, encruzilhada de todas as contradições argentinas. No fim dos anos quarenta, com mais de quatro milhões

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de habitantes, é já uma megacidade. Reúne cerca de um terço da população do país, ignorando olimpicamente os outros dois terços e, por maioria de razão, o resto
da América Latina, da qual não está certa de fazer parte, voltada como está para a Europa. Durante a guerra vieram, aliás, ali procurar refúgio inúmeros intelectuais
europeus, Roger Caillois, Denis de Rougemont, Paul Bénichou, acolhidos com generosidade por Victoria Ocampo, directora de uma importante revista literária, Sur.
Rodeada por Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Gloria Alcorta, fina-flor de uma intelectualidade distinta, desprezada por Perón, ela é simultaneamente amiga
e protectora de Drieu de la Rochelle, Malraux, Valéry. "Buenos Aires Cosmopolis", já dizia o poeta Rubén Darío, no início do século...
Embora os tropismos pessoais do jovem Guevara o atraiam para a Serra de Córdova da sua infância - é o género de universo que, sempre, o apaixonará ele não está verdadeiramente
deslocado nesse mundo à parte que constitui a grande cidade. Primeiro porque ele próprio é filho de portenhos puros e, como a rede familiar dos Guevara é grande,
são pontos de apoio em caso de necessidade; depois, porque já conhece, por ter lá estado de passagem, essa capital fervilhante de energia em que os crepúsculos destilam,
todavia, uma melancolia análoga à que se transmite dos tangos "metafísicos" que ele tanto aprecia, apesar de não perceber nada de música. Consegue rapidamente dominar
os ritmos da cidade, os seus ritos sociais, o seu código de linguagem entremeado de calão, criador de estilos metafóricos que adoptará sem problema, pois adaptam-se
perfeitamente ao lado sarcástico do seu humor, pronto a captar o aspecto irrisório das coisas.
Camponês de Buenos Aires, vai rapidamente situar os campos magnéticos da sua geografia pessoal da cidade enquanto lá aportam, desta vez, a coberto dos favores peronistas,
todos os trânsfugas do nazismo e do fascismo da velha Europa, bem como um contingente substancial de colaboracionistas franceses. Os argentinos não prestam nenhuma
atenção a isso e o estudante de medicina tem outras coisas com que se preocupar. Estuda. Tem pressa. Um dos seus pólos de atracção no labirinto citadino será o apartamento
da tia Beatriz, na rua Arenales. Solteirona romântica com um coração de ouro, adoradora incondicional do sobrinho, nunca deixou de o mimar desde pequeno, embalando-o
nos braços para o adormecer, acariciando-lhe os cabelos, contando-lhe histórias. Quando a asma levou esse sobrinho favorito para as montanhas de Córdova, nunca se
esqueceu de lhe enviar, regularmente, todas as semanas, postais, cartas, revistas. Fica encantada por voltar a ver o seu menino. Em sua casa, passará calmamente
dias e noites a estudar, enquanto ela lhe prepara amorosamente mates amargos, a ferver.
Sobre esses anos de estudo, todos os testemunhos confirmam o carácter decidido do rapaz, que não receia enfrentar situações difíceis, por vezes originais. Adalberto
Larumbe, outro condiscípulo, contou ao pai de Guevara uma recordação pitoresca das suas iniciações na cirurgia. Para fazer tranquilamente os seus trabalhos práticos
de dissecação, conseguiu que o deixassem

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levar para casa uma parte do corpo humano exposto na sala de anatomia, uma perna inteira. Mas ele não se atreve a andar na rua com esse objecto insólito. Porém,
não se atrapalha. Enrola a perna nalgumas folhas de papel de jornal e não acha nada de melhor do que apanhar o metropolitano, com o embrulho debaixo do braço. "Os
dedos dos pés estavam a aparecer", acrescenta Larumbe, que se apercebe do espanto no olhar dos viajantes. "Quando chegámos a minha casa, Ernesto não parava de rir..."94.

Expedientes

Para ganhar a vida, o estudante vai exercer as mais diversas profissões, lançando-se em aventuras bastante picarescas. Graças a uma cunha de um amigo do pai, arranja
um lugar de escriturário no Serviço de Fornecimentos e Aprovisionamento da Câmara de Buenos Aires. É o emprego ideal, que permite aparecer apenas no fim do mês para
sacar o ordenado. Todavia, Ernesto é de uma pontualidade admirável. Mas é para trabalhar no seu curso de medicina, ou para enriquecer o Dicionário Filosófico que
estabelece para seu uso pessoal, no prolongamento de um caderno alfabético de leituras gerais onde, a partir de 1945, regista os seus apontamentos de leitura. Nesses
textos (que permanecem inéditos), Marx e Engels surgem ao lado de Platão e de Sócrates. Um dia, ao fim da tarde, o chefe de secção, aparecendo de surpresa, encontra-o
apenas a ele, sentado à sua mesa, e felicita-o, prometendo-lhe uma promoção. Porque terá ele deixado este emprego de sonho? Provavelmente por se ter recusado a aderir,
segundo a regra, ao partido peronista, único distribuidor deste género de prebendas.
Afastado de um lado, arranja contudo maneira de entrar, por outro lado, numa dependência da Câmara, os dispensários. Fazendo valer a sua qualidade de futuro médico,
vai entrando em contacto com o público, procedendo à vacinação. Todavia, esses empregos ocasionais não bastam. A partir de então, tal como nos romances de Roberto
Arlt - cronista que descreve maravilhosamente o génio inventivo dos portenhos para ganhar alguns mangas* Guevara júnior vai também utilizar todos os expedientes
para ganhar uns cobres.

Nota: * O mesmo que uns cobres.

Encontrou na capital um grande amigo, conhecido em Córdova, Carlos Figueroa, estudante de Direito, também sempre pronto para arranjar umas "massas". Um dia, descobrem
que vai haver um leilão de sapatos num bairro suburbano. Juntam as suas economias. Mas tudo é demasiado caro para a sua bolsa, à excepção de um lote desirmanado,
que ninguém quer. "A casa da rua Araoz transformou-se num armazém", conta o pai. "Primeiro, tentaram juntar os pares mais ou menos aceitáveis. Depois, chegou a vez
dos sapatos que só tinham o pé direito, ou só o pé esquerdo. Mas até esses conseguiram vender,

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barato, evidentemente, percorrendo as ruas à procura de pernetas!..."95. Quanto a Ernesto, durante meses ou anos, não teve nenhum problema em passear-se com um sapato
de cada qualidade, e de cor diferente, nos pés.
Os dois rapazes, que se tornam inseparáveis, partilham o mesmo amor por Córdova, onde procuram ir quando surge a ocasião, sempre à boleia, evidentemente. Uma vez,
é um camião de reboque que os leva, na condição de, no momento de passarem sob uma ponte demasiado baixa, desmontarem e voltarem a montar as xalmas. Outra vez, estão
nos arredores de Rosário, a quatrocentos quilómetros de Córdova, completamente nas lonas, quando passa um providencial vendedor de ananases, na sua carripana. Fazem
um acordo com o homem, comprometendo-se a vender todo o carregamento em troca de uma percentagem honesta. E eis os nossos dois estudantes que, fazendo altifalante
com as mãos, anunciam a todo o bairro que há ali ananases à venda por uma pechincha. Vendem todo o carregamento e retomam caminho, com os ganhos da sua comissão.
A história mais reveladora do carácter empreendedor de Ernesto é a do fabrico de insecticida, na qual ele e os seus acólitos se lançam sem se aperceberem do perigo.
Ernesto tinha descoberto que um insecticida criado pelo Ministério da Agricultura contra os gafanhotos tinha também a capacidade de exterminar uma série de outros
insectos domésticos, baratas, formigas, etc. Acrescentando-lhe uma boa dose de talco, isso podia dar um pó de perlim pim pim utilizável na vida corrente. Converte
então a garagem do rés-do-chão em oficina e põe-se a acondicionar em pequenas caixas o pó milagroso que todas as donas-de-casa do bairro lhe vêm comprar, por se
revelar eficaz. Mas não contou com os efeitos tóxicos do insecticida sobre o próprio homem. O seu sócio Figueroa abandona o negócio. Não podendo registar a sua receita
mortal sob o nome de Al Capone ou Átila - nem um nem outro "deixando nada vivo à sua passagem" -, Ernesto decide-se por Vendaval. A marca fica registada... assim
como o balanço da empresa, que tem de fechar, para não intoxicar a casa inteira.
Este género de aventura é pouco propício a melhorar a asma de Ernesto, que, pelo contrário, se acentua com a humidade do Rio da Prata. O jovem vai então consultar
o melhor especialista de Buenos Aires, o Dr. Pisani, especialista em alergologia. Este presta ao doente uma atenção especial, não só por se tratar de um caso interessante
- ele apercebe-se da dimensão alérgica dessa asma - mas também porque o carácter, a curiosidade e a inteligência do rapaz o comovem. A ponto de, ao fim de um certo
tempo, o professor contratar o estudante como assistente de laboratório. O que fascina Ernesto que, por seu turno, planeia especializar-se em doenças alérgicas.
Mesmo que, segundo a sua irmã Ana Maria, "nenhum dos negócios em que se lançou tenha dado certo"96, ele mantém-se perseverante e tenta por vezes juntar o útil ao
agradável. É o caso do râguebi. :
Como vimos, era um desporto a que Ernesto estava muito ligado desde Córdova, quando tinha apenas quinze anos. Chegado a Buenos Aires, tratou

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logo de se inscrever na equipa do San Isidro Club, que joga na 1.ª divisão, clube muito fino, dirigido por um dos seus tios maternos. Mas o pai, a quem os médicos
garantem que o râguebi é fatal para um asmático, combina com o cunhado a forma de não lhe permitirem correr assim para a morte. Furioso, Ernesto ameaça então: "Gosto
de râguebi e, mesmo que morra, continuarei a jogar"97. Entra na equipa da 2.ª divisão do Club Atalaya, sempre no elegante concelho de San Isidro, à beira do rio,
onde lhe dão o posto de retaguarda. Figueroa recorda: "Era o único full-back do mundo a jogar com protectores de orelhas. Era muito cómico..."98. Foi então que lhe
surgiu a ideia de fundar a revista Tackle, para vender no pequeno meio dos amadores portenhos. A partir de 1950, com o seu irmão Roberto, Carlos Figueroa e meia
dúzia de amigos, conseguem redigir, editar e vender onze números dessa publicação absolutamente artesanal, fabricada quase sempre no escritório do pai, que não tem
outro remédio senão aceitar. Ernesto assina aí as suas críticas com o pseudónimo de Chancho (porco), por ser essa a sua alcunha, mas dando-lhe um toque chinês: Chang-Chow.
Desportivos ou científicos, os improvisos do estudante Guevara são bastante pitorescos e audaciosos. Quando, por exemplo, são anunciadas as Olimpíadas universitárias
que decorrerão em Tucuman, no noroeste do país, Ernesto decide participar nelas à viva força. Escolhe então a única modalidade à qual mais nenhum candidato concorrera,
o salto à vara. Convocam-no. "Onde está a sua vara? - Pensava que vocês a forneciam". Arranjam-lhe uma. Pega nela, não faz a menor ideia de como a utilizar e, evidentemente,
é eliminado. Outra vez, sabe que um estudante peruano tenta bater o recorde de resistência em natação na piscina da Faculdade de Direito. "Coitado, não vou permitir
que ele nade sozinho". Mergulha para lhe fazer companhia e é logo repelido pelo peruano, que se sente incomodado com a companhia, que lhe corta o ritmo e lhe faz
ondulação99.
Nada o consegue verdadeiramente deter na sua impetuosidade juvenil. Está sempre pronto a tudo, não se importa muito com protocolos nem com elegâncias de vestimentas,
tal como o pai e sobretudo o tio, Jorge Guevara Lynch, homem do campo com físico de atleta, muito inteligente mas desconfiado, que terá grande influência sobre ele.
"Era um tipo muito anticonformista", explica Fernando Córdova, primo de Ernesto. "Também ele estava separado da mulher. Não via os filhos, mas ocupava-se muito dos
sobrinhos, sobretudo de Ernesto, por quem se afeiçoara bastante. Foi ele provavelmente que ofereceu a Tito (outro diminutivo de Ernestito usado pela família) Sandino,
General dos Homens Livres, a biografia que o socialista Gregorio Selser acabara de escrever sobre esse homem intrépido da Nicarágua, que se ergueu contra o domínio
dos Estados Unidos na América central. É natural que a leitura tenha produzido algum efeito..."100. Em todo o caso, é com o tio Jorge que Ernesto se inicia no voo
planado, em Morón, nos arredores de Buenos Aires, e toma gosto por esse desporto de luxo que mais tarde praticará em Cuba, mas desta vez pilotando um Cessna a motor.

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Voo planado, brídege, golfe, râguebi, xadrez, fotografia, as actividades desportivas ou lúdicas de Ernesto são sempre pouco plebeias. Mas é no bairro popular de
Pompeia que o fotógrafo amador vai tirar as suas fotografias, seguindo passo a passo o itinerário descrito em Sur, um excelente tango de Homero Manzi. Entretanto,
a situação económica da família continua periclitante. Acresce um alerta dramático quando a mãe, Célia, é operada a um cancro no seio, em 1948. O pai está muitas
vezes presente na rua Araoz, em Palermo, mas é ela que "mantém" a casa, secundada pela boa vontade, pela solidariedade dos filhos, que aprenderam a desenrascar-se
sozinhos, como vimos. Entre Ernesto e a mãe existiu sempre uma ligação especial feita de cumplicidade, de humor partilhado, de alusões. Ele é o mais velho, e leva
o seu papel a sério, ajuda as irmãs, com uma preferência por Ana Maria, em vez de Célia. Superprotege sobretudo o irmão mais novo, Juan Martin, que adora e a quem
chama carinhosamente pelotudito. Por isso, quando, antes da operação, percebe que o diagnóstico dos médicos é reservado, entra em desespero. "Até aí, tinha conseguido
controlar-se", escreve o pai. "Nesse momento, perdeu a serenidade"101. Felizmente, a operação corre bem e a mãe Célia disporá de uma remissão de dezassete anos,
até 1965.

De bicicleta, na Argentina profunda

Em Janeiro e Fevereiro de 1950, durante as férias grandes de Verão, não sendo já viável a transumância tribal para Mar de la Plata, Ernesto lança-se, sozinho, numa
aventura inédita, que requer, mais do que ele imagina, resistência, coragem e determinação: uma grande viagem circular de mais de quatro mil quilómetros através
de doze províncias do norte da Argentina. Isso irá marcá-lo.
Após três anos de vida urbana intensa no universo de asfalto de Buenos Aires, apesar das escapadelas fugazes à sua amada Córdova, esse "homem do campo" tem uma necessidade
intensa de respirar outro ar e também sede de descobrir o outro rosto do seu país, aquele que os portenhos ignoram com uma arrogância tranquila.
É certo que ele é de ascendência burguesa e que se move num meio privilegiado, tirando daí todas as vantagens, mas a descontracção libertária dos pais colocou a
família à beira da precaridade. O mundo da pobreza não está longe, aquele que, apesar da sua demagogia, o peronismo fez aflorar, o mundo, mantido na penumbra, dos
humildes que, pela primeira vez, ousam endireitar a espinha. Este fenómeno é uma revelação, se não um escândalo, para a burguesia, para as classes médias. Ernesto
é declaradamente antiperonista porque a ordem estabelecida é peronista e os estudantes, considerados a priori como subversivos, são maltratados. Mas ele sente uma
certa simpatia por este movimento social, quanto mais não seja porque assusta os privilegiados. Apesar disso, não pretende dar um sentido político à sua viagem.
O que é

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certo, é que "não vai para o meio do povo". Com vinte e um anos feitos, chegado quase a meio do curso, uma curiosidade empurra-o para um além que não cessará de
se alargar. Às fronteiras da Argentina, da América Latina, do mundo...
À partida, há um apelo do antigo capitão de râguebi, o seu amigo Alberto Granado, o mais velho dos três irmãos, que o convida a visitá-lo na leprosaria de San Francisco
del Chanar, a norte de Córdova. Pratica agora aí os seus talentos de biólogo, e dirige uma farmácia. Ernesto lança a si próprio o desafio de subir o mais possível
até ao norte antes de regressar a Buenos Aires, fazendo um longo círculo ao longo das praias da costa atlântica. Fabricou uma engenhoca inacreditável, montando uma
bicicleta tradicional um pequeno motor italiano, segundo o princípio da Solex francesa, com o qual é possível chegar aos 25 quilómetros hora, de vento em popa.
E ei-lo que se lança à estrada, "na noite do primeiro de Janeiro de 1950", em plenas férias de Verão do hemisfério sul, bem decidido a ultrapassar pelo menos duas
pequenas cidades próximas de Buenos Aires, que a sua família, sempre trocista, apostou que ele nunca alcançaria. Ganha essa primeira aposta aos cépticos e encontra-se,
de madrugada, em San Antonio de Areco, paradeiro simbólico da Pampa argentina onde o romancista Ricardo Güiraldes situou a acção de Don Segundo Sombra, história
de um gaúcho fabuloso, pequena jóia da literatura argentina. Nessa mesma tarde chega a Rosário, a sua cidade natal, agarrado a um camião de combustível. "O corpo
pede insistentemente um colchão, mas a vontade opõe-se, e prossigo caminho. Às duas da manhã rebenta uma tempestade que dura perto de uma hora, mas graças à capa
que a minha mãe, previdente, me pôs no saco, rio-me da chuva e recito aos berros um poema de Sabato..."102. Sequência wagneriana, que revela a sua enorme energia.
Graças a antigos cadernos de viagem inéditos que o pai encontrou, rabiscados, no fundo de uma gaveta, temos o argumento desse road-movie ao retardador.
Na manhã do terceiro dia, Ernesto passa por Villa Maria, por essa mesma estrada onde, quatro anos antes, ele analisava as estruturas para as pontes e calçadas da
Câmara. "Faltam-me ainda cento e quarenta e quatro quilómetros. Um carro ultrapassa-me e, vendo-me pedalar, propõe-me um pouco de gasolina. Recuso, mas aceito que
ele me reboque a sessenta quilómetros à hora. Mal fiz 10 quilómetros, o pneu traseiro rebenta e espalho-me ao comprido." Não há pneu sobresselente. "Permito-me então
uma ou duas horas de descanso e embarco em seguida num camião que deixo em Córdova [...]. Finalmente atinjo a meta (a casa de Granado), ao fim de 41 horas e 17 minutos...".
Este périplo de dois meses vai constituir, mesmo que a fórmula esteja gasta, uma verdadeira viagem iniciática para este rapaz que não duvida de nada, cujo impulso
vital é irreprimível. Sem qualquer mediação, vai ter, de facto, uma verdadeira iniciação a essa Argentina profunda, que só se dá a quem a sabe merecer. Guevara descobre
uma humanidade nova, impregna-se de paisagens desconhecidas, cuja beleza o comove, apercebe-se de que, mesmo sem

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vintém (pois ele nunca será um verdadeiro pobre), a sua situação continua ainda a ser a de um privilegiado quando a compara com a de todo o tipo de gente com quem
se cruza. O interesse dos seus cadernos é o de mostrar a que ponto ele está à vontade para conviver seja com quem for, sem qualquer preconceito.
Um dia, debaixo de uma ponte, encontra um vagabundo do campo, que, admirando-se por ver um estudante como ele "fazer-se à estrada", e naquele preparo, o convida
a partilhar um mate "tão açucarado como para uma solteirona". O vagabundo afirma ter sido antigo ajudante de cabeleireiro; achando que a trunfa do ciclista precisa
de ser aparada, propõe-lhe um corte gratuito. Desgraça! "Nunca pensei que uma tesoura pudesse ser tão perigosa", observa, maliciosamente, o nosso viajante, ao constatar
o desastre. "Tinha nos cabelos uma tal quantidade de "escadas" que nada fora poupado".
Acompanhado dos irmãos de Granado, vai admirar as cataratas de Los Chorillos, de cinquenta metros de altura, "entre as mais belas da serra". Mais uma vez, característica
do temperamento de Ernesto, só pelo facto de existir, o obstáculo é um desafio ao qual não consegue resistir. Só "pelo prazer", ("para sacarme el gusto"), decide
descer um muro quase a pique, muito próximo da catarata, cheio de humidade e semeado de fetos. Escorrega logo dez metros, arrastando na queda uma pequena avalanche.
Impossível continuar. "Aprendi assim a primeira lei do alpinismo: é mais fácil subir que descer."
Toda a viagem é assim semeada de incidentes por vezes divertidos, ornamentada de observações diversas sobre o clima, os encontros, as paisagens, os estados de espírito,
preciosos testemunhos sobre a personalidade do jovem.
O amigo Alberto apresentou-lhe o cacique local, senador da província, "verdadeiro pirata dos tempos modernos", que os convida para uma milonga, uma festa onde eles
dão brado. Guevara aprendeu depressa o método infalível dos caminhantes da estrada: obter uma recomendação para a etapa seguinte. E a coisa pega. No dia seguinte
será o irmão do "pirata" que lhe dará guarida. Avisam-no que tenha cuidado com a travessia das grandes salinas de Santiago del Estero, vestígios da época em que
o mar banhava o que agora é apenas uma província pobre, o "Sara argentino". Ernesto não faz caso. "A mistura bem batida de sangue irlandês e espanhol nas minhas
veias determina-me a partir sem levar mais que meio litro de água".
Perto de Tucuman, "jardim da República", encontra um desses jornaleiros agrícolas que vendem os seus serviços de colheita em colheita; o homem vem da apanha do algodão
do Chaco e vai para San Juan fazer as vindimas. Quando compreende que a viagem do rapaz é de ordem meramente desportiva, deita as mãos à cabeça: "E gasta tanta energia
para nada?".
"Como um raio que corre a trinta à hora", atravessa os campos de cana de açúcar. Admira à vontade a riqueza da selva de tipo amazónico, "como num filme", e faz solilóquios
sobre a sua ignorância em botânica, quando o "rugido" do motor de um camião a aproximar-se o arranca aos devaneios de passeante solitário. Escreve: "Apercebo-me
de que a agitação da cidade

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despertou há muito em mim o ódio contra a civilização. A imagem estúpida de homens que correm como loucos ao ritmo desse barulho infernal parece-me ser a antítese
detestável da melodiosa música de fundo que constitui o sussurro silencioso das folhas".
Uma manhã, descansa por instantes no posto fronteiriço entre duas províncias quando um motociclista, montando uma Harley-Davidson nova em folha, lhe propõe amavelmente
rebocá-lo. "A que velocidade?", pergunta Ernesto. "Devagar, a 80 ou 90". A resposta é: não, obrigado. "Tinha aprendido, à custa do próprio corpo, o que significa
ultrapassar os 40 à hora com uma carga instável e por maus caminhos". Quando chega à cidadezinha seguinte, apercebe-se que estão a retirar a mota de um camião, diante
do posto de polícia. "E o condutor?", pergunta ele. "Morreu". Guevara observa então: "O facto de um homem procurar o perigo sem mesmo esse vago aspecto heróico que
uma proeza pública implica, de morrer assim, sem testemunhas, numa curva da estrada, dá a esse aventureiro desconhecido um vago "fervor suicidário"".
Volta a partir, avançando sempre para norte, até Salta, velha cidade colonial cujos gaúchos, de poncho vermelho, são célebres em todo o país. Avança já nos contrafortes
da imensa cordilheira dos Andes que atravessa o continente, da Patagónia ao México. Apesar do desconforto dos solavancos da estrada, como "chapa de ferro ondulada",
sente-se tocado pela beleza da paisagem, "uma das mais belas da viagem". No fundo do vale, o rio Juramento - "as pedras da margem são de todas as cores e as águas
cinzentas do rio correm por entre uma vegetação maravilhosa. Mergulho na contemplação da água que corre tumultuosamente [...]. Há como que um convite a lançarmo-nos
nessa espuma, para sermos brutalmente embalados pela corrente". O rapaz sente uma grande força vital a invadi-lo. "Dá-me vontade de gritar como um louco sem pensar
no que estou a dizer [...]. Subo a encosta com uma doce melancolia e o grito das águas parece reprovar a minha indiferença amorosa. Vejo-me como um celibatário empedernido...".
Mas em breve o humor apaga estes tons à Lamartine: "uma cabra troça da minha barba à Jack London".
Chegado a Jujuy, povoação já bastante índia, povoada por essa "raça de bronze" conquistada pelos Incas em tempos pré-colombianos, Ernesto atinge o ponto extremo
da sua expedição, nesse noroeste semeado de cactos em forma de candelabro, que os argentinos geralmente só conhecem pelo seu folclore com sonoridades andinas. Daí
para a frente, o caminho está cortado: inundações e um "vulcão" de lama impedem-no de chegar à fronteira boliviana, etapa última e simbólica. Mas, escreve ele no
seu estilo muito pessoal, sente-se "empanturrado de beleza, como numa indigestão de chocolate". No hospital onde, segundo a sua técnica, consegue alojar-se, a realidade
vem trazê-lo às suas contingências. Arma-se em enfermeiro e limpa o crânio de um menino de dois anos, um negrito (mestiço de índios), de uma invasão de lêndeas.

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"Conta-nos o que viste", pedem-lhe os seus novos amigos no hospital. Ele considera a pergunta absurda e responde no seu caderno: "Não é visitando a catedral, o altar
da pátria, o museu ou uma determinada virgem milagrosa que se conhece um povo. Tudo isso não passa de um verniz superficial. A sua verdadeira alma encontra-se entre
os doentes do hospital, os tipos na prisão ou no vagabundo angustiado com quem travamos amizade".
O diário de viagem desse Verão de 1950 interrompe-se bruscamente neste ponto, quando Ernesto conta os seus serões filosóficos com camponeses que lhe afirmam teimosamente
que há "espíritos" a rondar pela zona, com a lua a brilhar, as rãs a coaxar e o mate amargo a passar de mão em mão...
Não temos mais nenhuma informação sobre o regresso à capital, sempre em bicicleta motorizada.
O pai, que só encontrou estes documentos, precisa, contudo, que quando chegou a Mendoza, maravilhoso oásis vitícola no sopé da cordilheira, Ernesto estava tão sujo
que a tia, que vivia lá, quase não o reconheceu.103
No universo mental do rapaz, a importância dessa descoberta da Argentina terá sido grande, pois referir-se-á frequentemente a ela. E, apesar de todos os internacionalismos
proclamados posteriormente, em Cuba e noutras paragens, não há dúvida que Guevara terá sempre presente a ideia de "libertar" um dia, por seu turno, o seu próprio
país da miséria que ele voluntariamente testemunhou.
Para já, juntamente com o negro Figueroa, seu companheiro predilecto, que procurou de imediato em Buenos Aires, dedica-se a consertar o motor italiano que se comportou
com bravura ao longo de todo o périplo, mas que dá sinais de fadiga. "O engenheiro que nos recebeu não queria acreditar no que ouvia", conta Figueroa, "garantindo
que um tal motor não seria capaz de uma proeza daquelas. Foi preciso Ernesto descrever-lhe os quatro mil quilómetros do seu itinerário, mostrar-lhe fotografias.
O engenheiro propôs-lhe então reparar o motor de graça, se, em contrapartida, o autorizassem a servir-se da história para fazer publicidade"104. Foi assim que no
jornal desportivo de Buenos Aires El Grafico surgiu uma carta explicativa bastante engraçada do nosso veraneante, datada de 28 de Fevereiro de 1950, acompanhada
de uma fotografia do herói, de óculos escuros, debruçado sobre a sua bicicleta motorizada, tudo isso em honra do motor Micron.

Chichina

Ernesto retoma as aulas na Faculdade, readapta-se à cidade, ao seu ritmo, aos seus ruídos. Mais do que nunca, aproveita o menor pretexto para fugir para as bandas
de Córdova, que é a sua "terra". A sua vitalidade é maior do que nunca. Apesar da asma, apesar das mil e uma ocupações, arranja tempo para dedicar a muitos amores.
É jovem, bonito, elegante. Apesar do seu ar desalinhado, transmite um certo magnetismo, do qual não se priva de tirar partido.

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Alberto Granado conta que, já em Córdova, "ele exercia uma grande atracção junto das mulheres. Elas diziam-me sempre: "Che, apresenta-mo; diz-lhe que penteie o cabelo;
diz-lhe que ponha uma gravata..." porque era um meio um pouco pequeno-burguês"105. E acrescenta: "Tinha as suas namoradas, raparigas que estavam apaixonadas por
ele, mas era discreto e não falava dessas coisas"106. Carlos Ferrer, outro amigo íntimo, confessa: "Tinha também uma amante fixa, uma mulher de outro meio, dez anos
mais velha do que ele"107. O seu irmão Roberto explica: "Tinha sempre uma miúda de "serviço". Era um rapaz vigoroso como todos nós, mas talvez tenha vivido com mais
ardor as suas aventuras amorosas"108. Quanto ao seu primo, Fernando Córdova de la Serna, irmão de Carmen, La Negrita, é categórico: "A partir dos dezasseis anos
era um engatatão, um terrível engatatão, aparentemente insaciável, como em tudo. Era muito ousado e muito admirado. Queria conquistar o mundo..."109. Contudo, será
ele que, em breve, será conquistado.
Em Outubro de 1950, toda a família Guevara se desloca a Córdova para visitar grandes amigos, os González Aguilar, cuja filha Carmen vai casar. Durante os festejos,
Ernesto conhece uma rapariga morena, de olhos verdes, bela, inteligente, ousada, Maria del Carmen Ferreyra, a quem chamavam "Chichina". Paixão recíproca à primeira
vista. Ela tem dezasseis anos. Ele vinte e dois. Os Guevara não são umas pessoas quaisquer. Os Ferreyra também não. São ricos, estimados. Horacio Ferreyra, o pai
de Chichina, antes de se tornar uma espécie de notável, levou uma vida aventurosa: expedições na Amazónia, corridas de automóvel (numa época em que os motores defrontavam
estradas más), pilotou aviões, percorreu o mundo. E foi acrescentando a sua fortuna explorando as pedreiras de calcário das serras de Córdova. A família é culta,
conhece os costumes, fala-se de pintura e de música. A mansão dos Ferreyra é uma das mais imponentes de Córdova. A sua estancia de Malagueño, não muito longe, é
um paraíso hollywoodesco, com campos de pólo, piscina, ténis, e ao domingo, na igreja da aldeia, está-lhes reservado um sector à parte para comungar em privado.
Num meio deste género, Ernesto destoa ainda mais do que Julien Sorel em casa de Mathilde de la Mole. A sumptuosidade dos Ferreyra não o impressiona. Pelo contrário.
Ele teria tendência a redobrar a provocação apresentando-se sempre mal vestido, sem a menor preocupação pelas aparências. É o que seduz a adolescente. "O seu ar
obstinado, o seu carácter antiformal [...]. A sua desenvoltura no vestir fazia-nos rir e envergonhava-nos simultaneamente. Nunca largava uma eterna camisa de nylon
cujo branco já estava acinzentado. Tinha comprado os sapatos num leilão, de forma que os dois pés nunca eram iguais. Para nós, que éramos tão sofisticados, ele representava
um verdadeiro escândalo. Mas aceitava as nossas zombarias sem se perturbar"110.
De início, o acolhimento dos Ferreyra não é hostil. Ouvem atentamente aquele jovem sagaz falar de literatura, de história, de filosofia ou contar peripécias de viagem.
Oferece a Chichina a obra de Gandhi A Descoberta da

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Índia, com uma dedicatória, e interessa-se pelos métodos não violentos do Mahatma para lutar contra a ocupação inglesa. As coisas complicam-se quando os dois jovens
se declaram noivos e Ernesto propõe um casamento imediato, com uma grande expedição em "caravana" através do continente americano, como viagem de núpcias.
A própria Chichina não está certa de estar convencida, e os pais não vêem com bons olhos este género de projecto. A questão dá para o torto quando as discussões
ganham um tom político. José Aguilar, que namorisca uma amiga de Chichina, seguiu de perto toda a história. Conta que uma noite, num jantar na estancia de Malagueño,
Ernesto ataca Churchill e o seu carácter conservador, a propósito de eleições em Inglaterra. O pai de Chichina, convicto partidário dos Aliados, com um irmão morto
no mar pelos alemães quando ia juntar-se a De Gaulle em Londres, contém-se com dificuldade. Quando ouve chamar a Churchill "político de pacotilha", exclama: "É demais",
e abandona a mesa, furioso. "Olhei para Ernesto", prossegue José Aguilar, "pensando que nós é que devíamos retirar-nos. Mas ele contentou-se em sorrir com um ar
travesso e começou a mordiscar um limão, sinal que a crise de asma andava por perto"111. Rotulado de comunista e de Pithecanthropus erectus pelos Ferreyra e pelos
seus amigos, que reparam no adesivo com que ele arranjou um rasgão nas calças, Ernesto não se deixa impressionar.
Em Buenos Aires, continua a manter a mesma disciplina que fixou no início do curso; o seu trabalho de laboratório em casa do professor Pisani estimula-o, dá-lhe
o gosto pela investigação. Em 1950, consegue sem dificuldade, tal como no ano anterior, fazer três exames, dois deles com menção honrosa. Mas ainda lhe faltam 21
cadeiras para o doutoramento.
Verão de 1951. Desta vez, para conhecer o mundo com viagem paga e tudo, Ernesto arranjou melhor do que a motorizada: um navio petroleiro. Graças a uma recomendação
do pai de Figueroa, consegue um lugar de enfermeiro na marinha mercante argentina. Até ao Outono (Maio de 1951), embarca em três navios, que o levam às Caraíbas
- Curaçau, Trindade, Tobago -, ao Brasil ou às águas frias do sul, rumo às zonas petrolíferas de Comodoro Rivadavia. Este género de viagem não parece tê-lo entusiasmado.
- "Quinze dias de travessia para quatro horas de escala num porto imundo e em seguida nova partida" -, mas aproveita para preparar os exames que irá apresentar,
como candidato independente, logo que regresse a Buenos Aires: seis exames de uma assentada, em avanço em relação ao curso normal, só no ano de 1951. O dobro do
ritmo oficial previsto. Sente já que é necessário apressar-se, o que não o impede de ir visitar sempre que possível a sua rica noiva Chichina ou, pelo menos, de
trocar com ela uma correspondência abundante. "Logo que chegava ao porto", recorda a sua irmã Célia, "telefonava-me para saber se tinha recebido correio de Chichina.
E eu corria a levar-lhe as cartas. Um dia, cheguei demasiado tarde. Mas ele chegou a ver-me, saudando-o no cais, com uma carta na mão"112.

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Durante 1951, os projectos de viagem tornam-se mais precisos; mas à medida que a partida com Chichina se revela mais difícil, surge a ideia de uma nova expedição,
muito mais ambiciosa, entre homens. Uma grande volta pela América Latina.

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Notas:
1 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, Havana, Arte y Literatura, 1988, p. 126.
2 Franco Pierini, "Mio figlio Guevara", in L'Europeo, nº 1147, Milão, 2 de Novembro de 1967. -1 Em 1992, a casa natal, prédio burguês da rua Entre Rios, nº 480,
foi declarado "lugar turístico" pela cidade de Rosário.
4 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 147.
5 Carmen Córdova de la Serna, entrevista com o autor, Buenos Aires, 28 de Outubro de 1967.
6 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 147.
7 Ernesto Guevara, in Gente y la Actualidad, n.º 18, Buenos Aires, p. 7.
8 François-Bernard Michel, Le Souffle Coupé, Gallimard, Paris, 1984, p. 7.
9 Ibid.
10 Raymond Queneau, Loin de Rueil, Gallimard, Paris, 1944, col. "Folio", p. 20.
11 François-Bernard Michel, Le Souffle Coupé, op. cit., p. 8.
12 Ibid. p. 13.
13 Marcel Proust, Correspondence, 1887-1905, Plon, Paris, 1953, p. 14.
14 François-Bernard Michel, Le Souffle Coupé, op. cit., p. 9.
15 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 175.
16 Ibid. p. 176.
17 Adys Cupull e Froilán González, Ernestito Vivo y Presente, Política, Havana, 1989.
18 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 179.
19 Ernesto Che Guevara, Obras, 1957-1967, Casa de las Américas, Havana, 1977, p. 685.
20 Alejandro Saez-Germain, "Los Lynch, Casi Mil Años de Historia", in Noticias (semanário), Buenos Aires, 20 de Março de 1994.
21 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 200.
22 Ibid.
23 Gente y la Actualidad, Buenos Aires, 26 de Outubro de 1967, in Hugo Gambini, El Che Guevara, Buenos Aires, Paidos, 1973, p. 27.
24 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 200.
25 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, Ed. Dialectica, Buenos Aires, 1988, pp. 33-34.
26 Ibid. p. 34.
27 Ibid. p. 36.
28 José Aguilar, "La Niñez, del Che", in Granma (resumo semanal), n.º 43, Havana, 29 de Outubro de 1967.
29 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., pp. 237-238.
30 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., p. 37.
31 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 238
32 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., p. 38.
33 Ibid.

60

34 José Aguilar, "La Niñez del Che", in Granma, op. cit.
35 Fernando Barral, "El Che estudiante", in Granma, op. cit., n.º 43, 29 de Outubro de 1967.
36 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., pp. 30-31.
37 Adys Cupull e Froilán González, Ernestito Vivo y Presente, op. cit., p. 72.
38 Claudia Korol, El Che y los argentinos, op. cit., p. 32.
39 Adys Cupull e Froilán González, Ernestito Vivo y Presente, op. cit., p. 72.
40 Ibid. p. 83.
41 Roberto Guevara de la Serna, entrevista com o autor, Buenos Aires, 1994.
42 José Aguilar, "La Niñez del Che", in Granma, op. cit.
43 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Revolutionnaire, prefácio de Robert Merle, Paris. François Maspero, 1967, p. 36.
44 Carmen Córdova de la Serna, entrevista com o autor, Buenos Aires, 1994.
45 Maria Rosa Oliver, "El humanismo del Che", in Cuadernos 2 de Cristianismo y revolución, Buenos Aires, 1968.
46 Alberto Granado, entrevista com o autor, Havana, 1992.
47 Carmen Córdova, entrevista com o autor, Buenos Aires, 1994.
48 Ibid.
49 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 211
50 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., p. 37.
51 Jorge Camarasa, Los Nazis en la Argentina, Legasa, Buenos Aires, 1992 e Odessa Al Sur, Planeta, Buenos Aires, 1995. Esta última obra fornece dados precisos interessantes
sobre o papel dos franceses, colaboradores e amigos dos nazis, refugiados na Argentina após a derrota peronista, acolhidos pelos "comités de apoio peronistas".
52 Hilda Gadea, Anos Decisivos, Aguilar, México, 1972, p. 195.
53 Claudia Korol, El Che y los argentinos, op. cit., p. 49.
54 Carmen Córdova de la Serna, entrevista com o autor, Buenos Aires, 1994.
55 Claudia Korol. El Che y los Argentinos, op. cit., p. 49.
56 Adys Cupull e Froilán González, Ernestito vivo y presente, op. cit., p. 95.
57 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., p. 53.
58 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 274.
59 Carmen Córdova de la Serna, entrevista com o autor, Buenos Aires, 1994.
60 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che. op. cit., p. 278.
61 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., pp. 51-52.
62 In Jean Cormier, Troisième mi-temps, Lincoln, Paris, 1991.
63 Alberto Granado, entrevista com o autor, Havana, 1992.
64 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 283. O texto da citação, retraduzido
do espanhol, não é provavelmente o do original.
65 Ibid.. p. 283-284.
66 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., p. 48.
67 Adys Cupull e Froilán González, Ernestito Vivo y Presente, op. cit., p. 98.
68 Carmen Córdova de la Serna, entrevista com o autor, Buenos Aires, 1994.
69 Ibid.
70 Fernando Córdova de la Serna, entrevista com o autor, Buenos Aires, 1994.
71 Carmen Córdova de la Serna, entrevista com o autor, Buenos Aires, 1994.
72 Ibid.

61

73 Ibid.
74 Alberto Granado, entrevista com o autor, Havana, 1992.
75 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., p. 51.
76 Alberto Granado, entrevista com o autor, Havana, 1994.
77 Carlos Ferrer, entrevista com o autor, Buenos Aires, 1992. •
78 Citado in "Le péronisme", estudo do Centro Frantz-Fanon, tradução do italiano publicada na Partisans, n.º 26-27, Paris, François Maspero, 1966, p. 63.
79 Hugo Gambini, El Che Guevara, op. cit., p. 61.
80 Gente, Buenos Aires, 26 de Outubro de 1967.
81 Adys Cupull e Froilán González, Ernestito Vivo y Presente, op. cit., p. 95.
82 Ibid., p. 99.
83 Punto Final, n.º 41, Santiago do Chile, 7 de Novembro de 1967.
84 José Aguilar, texto inédito, Centro de Produção Documental, Madrid - Barcelona, p. 9.
85 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un soldado de America, Sudamericana Planeta, Buenos Aires, 1987, p. 110.
86 Gérard Guillerm, Le Péronisme. Histoire de l'exil et du retour. Publicações da Sorbone, 1989, p. 35.
87 Em 1965, após a morte da sua esposa Célia, Ernesto Guevara Lynch casa com Ana Maria Erra, de quem terá três filhos - meios-irmãos e irmãs de Ernesto - e, até
à sua morte, em
1987, viverá com eles em Cuba.
88 Fernando Córdova de la Serna, entrevista com o autor, Buenos Aires, 1994.
89 Ibid.
90 Adys Cupull e Froilán González, Ernestito Vivo y Presente, op. cit., p. 119.
91 Id., ...Aquí va un soldado de America, op. cit., p. 166.
92 Id., Mi Hijo el Che, op. cit., p. 288.
93 Id., ...Aquí va un soldado de America, op. cit., p. 167.
94 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 300.
95 Ibid., p. 302.
96 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., p. 75.
97 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 309.
98 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., p. 75.
99 Ibid., pp. 75-76.
100 Fernando Córdova de la Serna, correspondência com o autor, 2 de Maio de 1994.
101 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 314.
102 Ibid., p. 321 e seguintes.
103 ibid., p. 342.
104 Carlos Figueroa, in Gente y la Actualidad, Buenos Aires, 12 de Outubro de 1967.
105 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., p. 77.
106 Adys Cupull e Froilán González, Ernestito Vivo y Presente, op. cit., p. 136.
107 Carlos Ferrer, entrevista com o autor, Buenos Aires, 1994.
108 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., p. 136.
109 Fernando Córdova de la Serna, entrevista com o autor, Buenos Aires, 1994.
110 Chichina Ferreyra, in Primera Plana, Buenos Aires, Outubro de 1967.
111 José Aguilar, "La niñez del Che" in Granma, op. cit.
112 Adys Cupull e Froilán González, Ernestito Vivo y Presente, op. cit., p. 136.

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II
O HOMEM DAS SOLAS DE VENTO

Ernesto e Alberto partem de moto

Há dez anos que Alberto Granado, o farmacêutico da leprosaria, aquele que iniciou Ernesto no râguebi, ruminava um grande projecto de viagem, sempre adiado e sempre
retomado. Sem Ernesto, sem a sua impulsividade um tanto louca, neste caso fecunda, certamente nada de concreto seria realizado.
Na Primavera de 1951, aproveitando o feriado de "San Perón", a 17 de Outubro - aniversário da reposição do coronel transformado em general-presidente -, Ernesto
dá uma escapadela a Córdova, onde o espera a sua querida Chichina. Mas quando o amigo Granado lhe diz que o velho sonho pode tornar-se realidade se aceitar participar
nele, ele lança gritos de alegria e põe-se a dançar como um selvagem, mandando para o diabo o seu futuro como médico encartado e a expedição em caravana que os pais
de Chichina, aliás, não aprovam.
É que a viagem faz parte da própria natureza de Guevara, nómada por excelência, nascido no acaso de uma escala, transferido do Rio da Prata para os trópicos, desde
então em permanente migração através dos vários poisos familiares, hotéis transitórios ou casas rachadas da montanha de Córdova. Para ele, Buenos Aires não é um
ponto fixo. Não terá nunca um poiso certo, uma morada definitiva. Nem um assento estável numa poltrona. Ficará sempre colocado de esguelha num canto de mesa, pronto
a meter o saco ao ombro para uma partida iminente. Em Janeiro de 1952, em San Martin de los Andes, nos confins da Patagónia, escreverá: "Sei agora que o meu destino
é viajar e aceito-o como uma espécie de fatalismo"1. O seu fascínio por D. Quixote não advém só dos combates heróicos do Cavaleiro de Triste Figura, mas também do
seu carácter de eterno nómada. Ele não pretende "fugir para longe". Nenhum "barco bêbado" o aguarda. Contudo, a partir de agora, não parará de correr mundo. Também
ele, como Rimbaud, pode anunciar: "E irei para longe, muito longe, como um boémio". Ainda não o sabe,

63

mas também ele quererá "mudar a vida". É já um "homem de solas de vento".
Os dois meses que antecedem a partida, marcada para 29 de Dezembro de 1951, são um "turbilhão louco de cartas, de peças mecânicas de reserva, de escolha e abandono
de uma dúzia de estradas..."*. A primeira ideia é chegar aos Estados Unidos. Mas o objectivo final não é menos ambicioso: atravessar a América do Sul avançando ao
longo da sua espinha dorsal, atingir a Venezuela através da cordilheira dos Andes, que se estende por cinco países do itinerário previsto: Argentina, Chile, Peru,
Colômbia e, por fim, a cidade de Caracas, onde Granado tem alguns contactos.

Nota: * Ernesto Che Guevara e Alberto Granado, Latinoamericana, Journal de voyage, Austral, Paris, 1994. Sob este título genérico, o editor francês reuniu dois cadernos
de viagem diferentes: as Notas de viaje de Guevara (Abril-Sodepar, Havana-Madrid, 1992) e o testemunho de Granado. Com el Che por Sudamerica (Letras Cubanas, Havana,
1986). Salvo indicação contrária, todas citações que se seguem são extraídas desses dois diários de viagem reunidos num volume. Certas passagens foram por nós abreviadas
a partir do original..

Este último tem uma moto potente, para a época, uma velha Norton inglesa de 500 cm' de cilindrada, baptizada de Poderosa II, em princípio capaz de os transportar
a ambos. Alberto, que tem horror a transformar-se num senhor Homais, abandona sem problemas a sua farmácia e as suas provetas. Quanto a Ernesto, sabe que, quando
voltar, terá de fazer todos os exames em atraso como aluno voluntário. A sua mãe, em vez de se juntar ao coro dos cépticos e dos preocupados, recomenda simplesmente
a Alberto: "tu, que és mais velho, trata de fazer com que Ernesto regresse para tirar o diploma de médico. Um curso nunca fez mal a ninguém".
Seis anos separam Alberto (29 anos) de Ernesto (23 anos), mas une-os uma grande cumplicidade, feita de amizade recíproca, desafios de râguebi disputados juntos,
leituras partilhadas, longas discussões filosóficas e políticas. Ambos estão animados por uma curiosidade igual por esse "algures" ainda indistinto, que os atrai,
sem imaginarem a mudança que ele irá operar neles. Ambos ignoram que, na mesma época, nos Estados Unidos, no outro extremo do continente, alguns "vagabundos celestes"
- Jack Kerouac, Neal Cassady, Allen Guinsberg, figuras emblemáticas da beat generation - vão, também eles, lançar-se à estrada, ou the road, à procura de uma felicidade
menos falsificada do que a que lhes oferece a sociedade de consumo do pós-guerra.
A atitude dos argentinos é diferente. Vão tanto à descoberta dos outros como dessa "América maiúscula" que, nos textos de Ernesto, ganha uma dimensão um pouco mítica.
Ambos mantêm um diário de viagem, testemunhos que levarão um tempo considerável a vir à luz. O pai, Guevara Lynch, deu a conhecer alguns excertos do de Ernesto na
obra que começa a escrever em
1972, cinco anos após a morte do "Che". Será necessário em seguida aguardar vinte anos para que, em 1992, o essencial desse diário - mas não a totalidade - seja
publicado numa versão sensivelmente retocada, amputada de

64

muita da sua autenticidade inicial e da sua espontaneidade. Numa advertência ao leitor, Guevara assinala a atitude stendhaliana do espelho passeando ao longo de
um caminho. "A minha boca conta o que os meus olhos lhe disseram [..]. Isto não é o relato de façanhas impressionantes [...]. É um naco de duas vidas durante um
determinado percurso". Quanto aos cadernos de Granado, retomados pelo autor em 1978, só serão publicados em Havana em 1986.
Impõe-se uma leitura cruzada destes dois documentos, que irá revelar-nos as diferenças de perspectiva de cada um e apresentar-nos um Guevara muito menos politizado
que o amigo, em todo o caso mais céptico, quase cínico, atento, como ele escreve, "a não criar musgo em parte nenhuma, nem a perder tempo a estudar o substrato das
coisas: a peripécia basta". Enquanto para Granado essa viagem constitui o limite da acção, para Guevara não passa do início de uma exploração geral do vasto mundo,
uma etapa lógica que, após o reconhecimento prévio do seu país, o levará a outras errâncias.
Esses cadernos não são de forma nenhuma documentos filosóficos ou políticos. Se a sua leitura é divertida, por vezes jubilar, é porque nos mostra um lado inédito
dos seus autores, verdadeiros anarcas quando calha, sempre feitos um com o outro para conseguirem pelo menor preço (ou mesmo de borla) o tecto de abrigo, a comida,
o transporte e, como por vezes se adivinha, os favores das raparigas.
Mais pândegos do que sérios, extravasando uma vitalidade juvenil, esses diários, por vezes escritos à pressa, remetem-nos para as melhores narrativas picarescas
espanholas quando o pícaro, transformado em vivo pelos argentinos, lança mão de todos os estratagemas para garantir a sobrevivência, tirar partido da mínima pechincha,
utilizar genialmente a sua própria precaridade como pretexto de risota e fonte de simpatia.
Ao longo dessa peregrinação americana cada um mantém a sua alcunha habitual. Granado é Mial, apócope da expressão "Mi Alberto", utilizada pelo avô, e também petiso,
porque é baixo e gordo. Guevara é sobretudo Fuser, alcunha de râguebi de "furibundo Serna", mas muitos só o conhecem por el Pelao, por usar sempre o cabelo muito
curto.
Logo nos primeiros minutos, à partida de Córdova, o tom fica dado. Está um belo dia de sol. Toda a família Granado está presente, ansiosa. Alberto toma o comando.
Oscilante, carregada "como um enorme animal pré-histórico" de sacos, tendas, camas de campanha, grelhador de carne e outros acessórios, a moto arranca bruscamente.
Ernesto, que se volta para um último adeus, faz o veículo dar uma guinada. Quase chocam com um eléctrico na esquina da rua. Mial dá então uma aceleradela brusca,
enquanto Fuser lhe bate nas costas como um louco. Ao fim de dois quilómetros, primeira paragem. "Parvalhão, tive de me agarrar como um polvo para não cair", barafusta
Ernesto. "Tínhamos de acabar com aquilo, senão nunca mais partíamos", responde Granado. Os dois rapazes entreolham-se. Crise de gargalhadas. Desta vez, é a sério.
Ernesto e Alberto partem de moto.

65

"Foi sempre tudo mel"

Em Rosário, rápida escala. Alberto, aliás Mial, nota como as suas sobrinhas, devoradoras de livros cor-de-rosa, ficam impressionadas com a presença de Ernesto, aliás
Fuser. Em Buenos Aires, segunda despedida, desta vez em casa dos Guevara. Nova partida para os lagos do Sul, mas passando pelas praias atlânticas onde os espera
a namoradinha de Pelao. Uma terceira personagem faz provisoriamente parte da expedição, um cachorro pastor alemão comprado à saída de Buenos Aires. Ernesto, que
sempre adorou cães, quer oferecer a Chichina o animal, que baptizou de Come Back, promessa de regresso que ninguém sabe se será cumprida.
Após várias peripécias sem gravidade - algumas quedas que não ajudam a moto, tornada instável com um carregamento louco -, os viajantes chegam a Miramar. Para Granado,
até aí habituado às estradas de montanha, é uma estreia absoluta: nunca viu o mar, "velho confidente", ao contrário do seu amigo, habituado a Mar del Plata.
Pequena estação balnear discreta, muito selecta, a 500 quilómetros da capital, Miramar é um entreacto importante na história dos amores de Ernesto. Com Chichina,
escreve ele, "foi sempre tudo mel, com esse pequeno travo amargo [devido] à iminência da separação que, adiada de dia para dia, acabou por ocorrer só após uma semana.
Ela agrada-me cada vez mais, cada vez gosto mais dela, a minha pequena cara-metade"2.
Esta passagem explícita, mas nada escandalosa, reproduzida pelo pai, Guevara Lynch, foi pudicamente expurgada da edição cubana do diário que, pelo contrário, precisa:
"Não faz parte dos objectivos destas notas contar o episódio de Miramar"3. Todavia, é dito o suficiente para se compreender que, apesar dos seus compromissos com
Granado, Ernesto poderia ainda ter mudado de opinião se Chichina tivesse insistido. Durante esses oito dias de Verão, à beira-mar, ao lado de Chichina, "a viagem
ficou em suspenso", escreve ele, "por decidir, inteiramente subordinada ao "sim" que poderia reter-me. Alberto via o perigo e já se antevia sozinho ao longo das
estradas da América, mas não dizia nada. A parada era entre mim e ela...".
Enquanto o rapaz, de cabeça pousada no colo da sua Dulcineia, "no interior do enorme Buick", imagina o que poderia ser "o meu universo inserido num meio burguês",
é o mar que, segundo ele diz, se recusa a escutar o "homem apaixonado" (e sobre esta mesma expressão ele ironiza de imediato, acrescentando: "Alberto utiliza um
adjectivo mais picante e menos literário"). De facto, Granado não está apenas preocupado por ver o seu amigo "na caça", está também furioso por ter de conviver de
perto com "esses seres [que] julgam que por direito divino [...] merecem viver sem outra preocupação que não seja a de cuidarem do seu estatuto social [...] Isso
faz-me ter orgulho na minha origem de classe [...] Ernesto nasceu e cresceu no mesmo meio social, mas a sua sensibilidade não foi contaminada pelos preconceitos
da sua classe".

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O enorme bom-senso do nosso Sancho Pança marxista vem recordar ao apaixonado que, para viajantes de longo curso como eles, todos os meios se justificam. Em Miramar,
Granado submete Ernesto a uma prova de elegância duvidosa. Chichina traz no pulso uma linda pulseira de ouro, que deve valer bastante. "A pulseira dela, ou então
já nem te reconheço", é a intimação que faz ao amigo. O qual regista a maldade no seu diário. "As mãos dela perdiam-se dentro das minhas. "Chichina, essa pulseira...
E se ela me acompanhasse durante toda a viagem, como recordação e guia?" Coitada! Eu sei que ela não pesou o ouro, digam lá o que disserem. Os seus dedos tentavam
apalpar e avaliar o amor que me levara a pedir esses quilates...". E Alberto, implacável, troçando da "densidade 29 quilates" do referido amor. No melhor estilo
do tango melodramático, Ernesto cita então um poema do venezuelano Otero Silva adaptado às circunstâncias: "Não sei como arranjei força para me libertar dos seus
olhos, / Fugi dos seus braços. / Ela ficou cobrindo de lágrimas a sua dor / ... Mas incapaz de me dizer: espera! Vou contigo!".
Em Miramar, apesar do "mel", qualquer coisa no entanto deve ter-se rompido na relação amorosa do jovem casal. Terá Chichina sentido que o esforço que Ernesto exigia
dela estava acima das suas forças de burguesa jovem e bonita, filha de uma família rica? O facto é que, depois da sua partida, ela lhe escreve uma carta, provavelmente
de ruptura, que ele só recebe um mês depois, a 12 de Fevereiro de 1952, na véspera de atravessar a fronteira chilena. É um balde de água fria. "Eu lia e relia aquela
carta inacreditável. Assim, de uma assentada, todos os sonhos de regresso ancorados nos olhos que me tinham visto partir de Miramar caíam por terra [...]. Um enorme
cansaço invadia-me". Mas enquanto os outros conversam, indiferentes, à sua volta, ele vai sentindo pouco a pouco um mal-estar profundo, sem dúvida porque apesar
da dor que deveria sentir - mas que não sente - eram as forças da vida que o arrebatavam. Sente-se, especifica ele lucidamente, "alheio ao que devia ser o meu drama
naquela altura". E é ele o primeiro a admirar-se: "Já nem era capaz de sentir a coisa [...]. Comecei uma carta piegas, mas era impossível, era inútil insistir [...].
Antes de se manifestar a minha indiferença, pensei que a amava. Tinha de a reconquistar através do pensamento, tinha de lutar por ela, ela era minha, ela era m...
E adormeci!". Esta sonolência irreprimível no momento em que um amor se desfaz, é de uma trivialidade tal que se torna cómica.

O ar leve da aventura

Durante o mês decorrido depois de, qual Ulisses, Ernesto ter escapado à sedução da sua sereia nas margens atlânticas, os dois viajantes fizeram a aprendizagem da
estrada, das suas partidas traiçoeiras e dos problemas mecânicos da moto. Puderam avaliar a simpatia provocada geralmente pela odisseia transamericana insólita na
qual se empenharam. Convencem-se que, em comparação com os ideais bastante básicos das gentes que vão descobrindo,

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são eles que estão no bom caminho, portadores de uma liberdade incomensurável. Para o alojamento, foi adoptada uma estratégia eficaz: quando não têm um ponto de
apoio garantido, dirigem-se primeiro ao hospital, quando ele existe, ou então ao dispensário. Quando isto falha, vão ao posto de polícia onde, apesar do seu aspecto
miserável, tiram descaradamente partido da sua qualidade de (quase) médico e bioquímico, passaporte capaz ainda, naquela época, de impressionar funcionários com
pouco mais do que a escolaridade mínima.
A etapa de Necochea, outra estação balnear, perto de Miramar, tem apenas interesse pelas reflexões que suscita em ambos quanto ao destino de pequeno-burgueses a
que estão decididos a escapar. Chegam lá, cobertos de poeira, mesmo a tempo de serem convidados para almoçar em casa de um antigo colega de Alberto, actualmente
casado e bem instalado na vida, o qual, apesar de um pouco atordoado, os recebe cordialmente. Granado escreve: "Mas que mudança [...]. Actualmente não passa de um
fóssil, com a senhora esposa que só se preocupa em que não haja um grãozinho de pó". Ernesto observa que, à despedida, "se sentiram francamente mais livres".
Na baía Branca (a 700 quilómetros de Buenos Aires), desta vez em casa de amigos de Ernesto, põem em prática um outro princípio sagrado do viajante prevenido: nunca
deixar passar uma ocasião de recuperar forças. Ernesto escreve: "O pão tinha um sabor a aviso. "Dentro em breve terás de pagar para me comer, meu caro". E logo o
comíamos com sofreguidão. Tal como os camelos, fazíamos provisão para a caminhada". Sobretudo quando o desastre financeiro se aproximava.
Granado que, como é evidente, se encarregava da contabilidade, informa-nos que ao partirem da baía Branca, dispõem apenas, os dois juntos, do equivalente a trezentos
e cinquenta dólares. Todavia, conseguirão com esses únicos recursos aguentar sete meses e percorrer mais de dez mil quilómetros. Percebe-se que para conseguirem
semelhante proeza, nem sempre tenham olhado a meios.
Na fronteira da Patagónia, a estrada que liga o Atlântico à cordilheira dos Andes e ao Chile estende-se por grandes espaços de Pampa, como que em cinemascope, extensões
infinitas varridas pelo vento sob céus magníficos que invadem a paisagem. Os nossos viajantes retomam o itinerário daquilo que, durante três séculos constituiu a
"fronteira", linha divisória, mais ou menos alterada, entre povoações índias e crioulos argentinos. Os nomes das pequenas vilas e aldeias que atravessam são os dos
fortins instalados, de longe a longe, no século passado, ou então os das tribos da região. Por vezes, como nos melhores westerns, os índios lançavam-se a cavalo
sobre as terras crioulas numa incursão devastadora, um malón, matando homens, queimando casas, capturando mulheres. E então os crioulos ripostavam com os seus gaúchos,
pagando-lhes na mesma moeda, ou ainda pior. Até ao momento em que, em 1879, a questão foi resolvida pelo método clássico: o massacre. Um bisavô materno de Ernesto
participou, como se sabe, nessa "conquista do deserto". Ficaram

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algumas obras-primas literárias: A Expedição contra os índios Ranqueles, do coronel Mansilla, distinto diplomata que, em Paris, frequentará os salões proustianos,
ou então A guerra ao malón, do comandante Prado, que descreve a louca construção de uma gigantesca "trincheira de Alsina", muralha da China oca, que deveria rodear
a Pampa. Os índios tiveram a astúcia de empurrar para lá rebanhos de carneiros, amontoados uns sobre os outros, antes de se lançarem a galope sobre esse aterro de
lã e balidos.
Toda esta história, verdadeiro southern argentino, certamente tão rica como o western das pradarias dos Estados Unidos, ainda hoje é pouco conhecida. Mas os dois
rapazes leram os clássicos. Granado faz referência a Mansilla e Ernesto ao inevitável breviário criollo de Martin Fierro. Beberricando o seu mate de manhã cedo,
ele observa os peones que se afadigam à volta do fogón, fogão a lenha de uma estancia onde se albergaram. "Estes membros da raça vencida dos Araucanos são pouco
comunicativos e mantêm a desconfiança em relação ao branco que, depois de lhes ter infligido tantas desgraças, ainda hoje os explora".
Sob a acção do vento, a estrada de terra batida e de areia franze-se como uma chapa ondulada: é o serrucho, pesadelo dos participantes em rallyes. Por não terem
partido de madrugada, quando a areia das dunas (os medanos), molhada pelo orvalho, é ainda praticável, os motociclistas enfrentam a passagem difícil na hora de maior
calor. E estampam-se por doze vezes! Uma vez, é o pé de Ernesto que fica entalado debaixo do cilindro. "A queimadura deixou-me uma má recordação por muito tempo".
Mas os dois aventureiros não se atrapalham com nada. Apesar de uma violenta tempestade que os deixa encharcados até aos ossos, Ernesto observa, divertido: "Encarávamos
o futuro com uma alegria impaciente [...]. Dir-se-ia que respirávamos um ar mais leve que vinha daquelas bandas, da aventura". Como D. Quixote, herói familiar, ele
sonha: "Países distantes, actos heróicos, mulheres bonitas desfilavam na nossa imaginação desenfreada. E diante dos meus olhos fatigados mas que recusavam o sono,
dois pontos verdes, síntese de um mundo morto, troçavam da minha pretensa libertação, associando o rosto a que pertenciam ao meu voo fabuloso por sobre mares e terras
do mundo".
Por seu turno, Granado está deslumbrado com "a vida cheia de surpresas" que passou a viver. Sonha com uma ida à Europa, andar pelo Danúbio, conhecer a URSS, ouvir
os sinos do Kremlin, e exclama: "E pensar que, se não nos tivéssemos revoltado, o futuro que nos aguardava era, quanto a mim, ser um farmacêutico de província, e
ele um médico de ricaços cheios de alergias!". Poeira da estrada ou dureza do meio de transporte? A asma de Ernesto manifesta-se com frequência, às vezes com violência.
Em Choele-Choel, crise terrível: náuseas, vómitos, 40 graus de febre. O médico da terra administra ao doente "uma droga pouco conhecida", a penicilina... "Alberto
fotografou-me com as vestes do hospital, magro, descarnado, com uns olhos enormes...". A viagem prossegue, enquanto a moto vai dando sinais de fraqueza: rebentamentos
de pneu (dramáticos quando se trata da roda traseira

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e é necessário desmontar a traquitana toda), o motor que também se torna asmático, ou então é o quadro que se parte e que Granado vai remendando com o seu eterno
arame, acessório mágico...

"É sempre cara ou coroa"

E de novo a estrada, a estrada que se enche de poeira, o horizonte que vacila e se afasta... Sempre que surge uma oportunidade eles aplicam, prevendo os tempos de
escassez, "a política do camelo": empanturrarem-se de cerejas, ameixas, de carne grelhada, seja lá o que for que encha a barriga, sobretudo se for de graça.
Cada etapa traz-lhes uma aventura nova, um episódio que lhes confere o seu tom particular. Uma vez, para passarem a noite abrigados do pampero, um vento agreste
que sopra do Sul, não encontram nada melhor do que a fossa de betume do mecânico que lhes arranja a moto. No dia seguinte é um proprietário alemão que lhes dá a
conhecer as alegrias da pesca da truta. Em San Martin dos Andes, abordam a cordilheira quando ela se transforma numa Escandinávia de beleza deslumbrante, multiplicando-se
em lagos bordejados de florestas densas, de aromas raros. Um guarda-florestal do Parque Nacional oferece-lhes dormida num hangar, propondo-lhes, além disso, que
trabalhem com ele na preparação de um assado de carneiro para uma equipa de corredores de automóveis. Eles aceitam com todo o prazer, tanto mais que é a ocasião
sonhada para comerem e beberem à tripa-forra. Ernesto, fingindo-se bêbado durante a ágape, tenta surripiar discretamente cinco garrafas de vinho. Mas para pícaro,
pícaro e meio; decerto não foi suficientemente discreto porque, no momento de ir buscar o fruto do seu rapinanço, vê que o seu esconderijo foi, por seu turno, descoberto
por alguém mais hábil do que ele. Pela primeira vez na vida, descobrem um verdadeiro glaciar. Tão audaciosos como inexperientes, lançam-se na subida, com a inconsciência
dos neófitos. A narrativa de Ernesto, retocada na edição cubana mas conservada na sua autenticidade pelo pai, Guevara Lynch, é digna de ser reproduzida: "Ao meio
dia e um quarto iniciámos a escalada; à uma e meia ríamos; às duas horas transpirávamos; às cinco horas atingíamos a parte rochosa. Foi aí que fiquei bloqueado,
sem poder subir nem descer: a rocha em que me apoiava cedera. Vendo os trinta metros de vazio abaixo de mim, apanhei um cagaço terrível. Durante uma boa meia-hora
fiquei ali aferrado, tentando ganhar coragem; por fim, sem olhar para baixo, comecei a subir muito lentamente, até alcançar uma parte firme. Alberto aguardava-me,
quase sem fôlego...". Finalmente, chegam ao cume, já ao cair do dia e têm de fazer a descida de noite; a sorte está com eles, porque, depois de quase se matarem
por dez vezes, acabam por chegar ao vale à uma da manhã, não sem antes terem contemplado, surgindo da escuridão, "a silhueta gigantesca de um alce iluminado pelo
luar"4.

70

Outra vez, Ernesto revela a sua presença de espírito e a sua pontaria a disparar. Estão acampados à beira de um lago magnífico, o Espejo Grande, à sombra de um arrayán,
uma árvore muito estranha, de tronco frio e amarelo, característica da região. Um vagabundo chileno parece demasiado interessado nas suas bagagens e Ernesto, sem
dizer uma única palavra, puxa da sua Smith & Wesson, pistola sólida, e "quase sem apontar abate um pato no lago". Desaparecimento imediato do visitante inoportuno.
Mesma rapidez de gatilho uns dias depois, numa estancia próxima. Quando os alojaram na granja, avisaram-nos que andava por ali a rondar um puma perigoso. Por isso
quando, de noite, surgem dois olhos fosforescentes acompanhados de uma rosnadela, o nosso Lucky Luke não hesita. Dispara, ouve um gemido e volta a adormecer. Era
o cão da quinteira que, ao descobrir a proeza de manhã cedo, os criva de injúrias e os escorraça aos berros.
Em Bariloche, estação de esqui ainda incipiente mas já zona turística do Sul argentino (e refúgio de muitos nazis), são albergados por pouco tempo no posto da polícia,
o que faz com que partilhem as suas magras refeições com uma galeria de seres humanos que Granado, de adjectivo fácil, classifica de "dantesca": uma pobre louca
que resmunga obscenidades, um bêbado titubeante, um delinquente crónico, um marinheiro desertor... tudo isso "reflexo fiel da destruição do ser humano provocada
pelo sistema vil e corrupto que nos governa, quando as pessoas a ele não se opõem". No seu diário, mais rico que o de Guevara em pormenores interessantes, Granado
raramente perde uma ocasião de se erguer, com uma subtileza que em nada ultrapassa a dos comunistas argentinos, conhecidos pela sua cegueira dogmática, contra os
exploradores do povo, a oligarquia, os bancos estrangeiros, o poder corrupto, etc. "Estava influenciado sobretudo pelas minhas leituras", dirá ele, "do Zola, do
Steinbeck das Vinhas da Ira"5.
À indignação do amigo, Guevara opõe uma visão placidamente maniqueísta do mundo, que de modo algum implica resignação: "Petiso, é sempre assim. É sempre cara ou
coroa. Riqueza natural de um lado, pobreza dos que trabalham do outro; generosidade dos pobres do lado da coroa, ganância dos proprietários do lado da cara". É a
vez de Granado ficar pensativo.

Peritos em leprologia

A 13 de Fevereiro de 1952, um mês e meio depois de terem deixado Córdova, iniciam finalmente a parte "internacional" da sua viagem. Para entrarem no Chile, "nosso
irmão filiforme dos Andes", tiveram de atravessar muitos lagos, sobretudo o magnífico Nahuel Huapi, recortado como uma renda, de um estranho verde leitoso, transbordando
sempre a moto estafada, já pouco digna do nome: "Poderosa".
Esta passagem da fronteira, "na terra dos Araucanos" está minuciosamente descrita nos apontamentos dos dois rapazes. Primeiro, porque tomam

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um banho (com sabão) nas águas mornas (e já não glaciais) do lago chileno Esmeralda, acontecimento suficientemente excepcional para ser mencionado. ("Até o Pelao
se lavou", observa Granado). Depois porque, conversando com médicos em vilegiatura, descobrem uma região do planeta que vai fazê-los sonhar, a Ilha de Páscoa e a
sua leprosaria. "O número de leprosos é ínfimo, mas a ilha é magnífica; e o nosso eu "científico" lançou-se de imediato em elocubrações sobre essa famosa ilha".
Surge aí também uma aventura amorosa com duas turistas brasileiras negras, em relação à qual Guevara é mais discreto que o amigo, que conta, com certo humor: "Levei
a colega à beira do lago. Depois de falarmos de bioquímica, passámos, de comum acordo, à anatomia topográfica... Espero não ter chegado à embriologia".
Para pagarem as suas passagens e a da moto, tiveram de se sujeitar a despejar "a lama oleosa da sentina" do barco. Agora, para poupar a moto estafada, Ernesto aceita
conduzir uma camioneta até Osorno, cento e cinquenta quilómetros a Norte. Não conhece a estrada que circunda um vulcão sempre coberto de neve, nem a caixa de velocidades
do veículo, mas pouco se importa. A sua única vítima é um porco suicida que corre "à frente do carro, enquanto eu não estava ainda familiarizado com o travão e a
embraiagem".
Em Valdívia, à beira do Oceano Pacífico, passeiam ao longo do porto quando, por mero acaso, resolvem fazer uma visita ao jornal local. No dia seguinte, o Correo
de Valdivia dedicará três colunas "aos bravos viajantes argentinos", que exageram descaradamente os seus conhecimentos sobre leprologia. Um pouco mais a Norte, em
Temuco, capital dos índios Mapuche, célebres pela sua destemida resistência aos invasores, fazem o mesmo junto do Diario Austral, que publica a sua fotografia na
edição de 19 de Fevereiro. E como não é fácil desmenti-los, embora ambos riam disso nos seus apontamentos, são suficientemente convincentes para que o cronista titule:
os "especialistas em leprologia", cuja experiência internacional incide em três mil casos, e que aliás projectam estudar a situação na Ilha de Páscoa.
Esta lenta subida do Chile dá-lhes imenso gozo. Guevara não se cansa de louvar a hospitalidade chilena, o campo chileno, o vinho chileno, a mulher chilena. "Feia
ou bonita, ela tem qualquer coisa de espontâneo, uma frescura, que cativa de imediato". A sua liberdade de costumes encanta-os, habituados que estão ao ar um pouco
presumido das argentinas. O artigo do jornal faculta-lhes uma pequena glória local. São reconhecidos, são convidados e deixam-se apaparicar sem qualquer escrúpulo.
Em Lautaro, sempre na região mapuche, novas complicações mecânicas com a moto, que se avaria e os obriga a vários dias de reparação. Uma noite, aceitam fazer uma
farra com amigos de ocasião. "Apesar da sua jardineira cheia de nódoas e de uma barba de vários dias, Pelao era uma presa cobiçada", observa Granado. "O vinho chileno
é excelente", conta, por sua vez, o Pelao. "Não parava de beber, o que me levou, no baile popular, a sentir-me capaz das maiores proezas [...]. Um dos mecânicos
da oficina pediu-me que dançasse com a mulher dele [...]. Era uma mulher ardente. E tinha bebido.

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Peguei-lhe na mão, para a levar até lá fora. Ela seguiu-me docilmente, mas percebeu que o marido a observava". Quer ficar por ali. Insistência de Ernesto. Gritos.
Confusão geral. Granado acrescenta: "O marido pega numa garrafa e avança para o Fuser para o atacar pelas costas. Eu precipito-me, seguro o tipo, que cai, mais pelo
efeito do vinho do que pelo meu ataque". Os dois argentinos decidem retirar-se sem se despedir e raspam-se prudentemente. Fuser tem a última palavra: "Daqui para
a frente, temos de prometer formalmente um ao outro que não voltamos a engatar em bailes populares".
Santa decisão! Mal acabaram de partir - depois de um almoço de despedida na companhia de raparigas encantadoras -, desta vez são os travões que falham em plena descida,
com uma manada de vacas mesmo à frente. "Mais uma vez", afirma Granado, "pude apreciar a calma e o sangue-frio de Ernesto". Num estilo "cinematográfico", que infelizmente
não se encontra na versão "reescrita" da edição cubana do diário, Guevara conta o incidente: "Vi passar-me ao lado, como um fantasma, a cabeça de uma vaca, depois
o lombo e por fim senti, na roda da moto, o impacto seco da pata traseira da última vaca"6.
Pedem auxílio numa pequena quinta. Inicialmente oferecem-lhes apenas o clássico palheiro, mas como a rapariga da casa os reconheceu como os "especialistas" do jornal
de Temuco, passam então a ser tratados como príncipes: cedem-lhes o quarto de hóspedes. "Quando partimos, ficámos convencidos que, em regime burguês, a imprensa
é realmente o quarto poder", sublinha Granado.
Mas as motos também se abatem, quando deixam de ser poderosas. Em Malleco, uma ponte metálica liga as duas vertentes de um desfiladeiro profundo, obra magnífica
desenhada por Gustavo Eiffel, (o que fez a Torre Eiffel), "a mais alta ponte de caminho-de-ferro da América do Sul", garante Granado. "Foi aí que a moto falhou",
especifica Ernesto. "Na primeira encosta complicada, a Poderosa ficou pregada ao chão, definitivamente".
Um camião caridoso recolhe-os até à localidade mais próxima, Los Angeles. Segundo Granado, irão viver aí "uma das mais inimagináveis e interessantes aventuras da
viagem", a do sapador-bombeiro. O Chile, país com uma "geografia louca", é uma faixa longilínea de território, coberta de florestas no Sul, de vinhas e pomares no
centro e de desertos no Norte. Sempre com um parapeito de cordilheira sobre o Pacífico. A madeira, abundante, é a matéria com que são construídas todas as casas
do Sul. Daí a frequência dos incêndios. E batalhões de bombeiros voluntários que disputam entre si a honra de servirem a comunidade.
Graças a umas raparigas que conhecem assim que chegaram a Los Angeles, os dois motociclistas sem moto conseguem ser alojados no quartel dos bombeiros. E, se for
necessário, participar nas operações. Logo na primeira noite, alerta geral. Dão-lhes um capacete e uma capa. E ei-los agarrados ao carro dos bombeiros que, de sirene
a apitar, avança para uma casa de madeira e taipa que arde num fogo bem ateado. Alberto empunha a agulheta, enquanto Ernesto retira os primeiros escombros. E, nos
seus diários,

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cada um atribui generosamente ao outro o mérito de ter saltado para as chamas para resgatar, sob os aplausos do público, um gatinho que miava. "Mas tudo tem um fim",
conclui Ernesto, "o pequeno Che e o grande Che (Alberto e eu) davam os últimos apertos de mão enquanto o camião rumava a Santiago, carregando o cadáver da Poderosa".
O transportador de móveis que lhes levou os últimos pesos para carregar a moto contratou-os também como descarregadores. A capital chilena, onde chegam a 1 de Março
de 1952, não os impressiona. É certo que está longe de poder ser comparada com Buenos Aires. Ernesto acha que "Santiago se parece mais ou menos com Córdova", apesar
de as "montanhas serem mais próximas e mais altas", acrescenta Alberto. Aliás demoram-se lá apenas o tempo de depositar a desgraçada moto (que Tomás Granado virá
mais tarde recuperar) e de obter os vistos para o Peru. Cumprindo o prometido, fizeram a mudança, como estava combinado. Granado conta, a propósito, um episódio
que revela a força de vontade de Ernesto, capaz de se transformar num robusto moço de fretes se lhe ferem o amor-próprio.
Quando o ajudante de camionista se dispõe a ajudá-los a transportar um grande armário muito pesado através de um corredor estreito, o patrão detém-no bruscamente:
"Deixa lá esses porteños carregá-lo sozinhos". O Pelao voltou-se, olhou para o patrão e respondeu: "Veja bem o que eu sou capaz de fazer, se quiser". E, dirigindo-se
a mim: "Mial, deixa lá que eu faço isto sozinho". Agarrou então o armário pelo meio do corpo, levantou-o dez centímetros, avançou com ele ao longo do corredor e
foi depositá-lo no meio da sala. Veio então ter connosco, todos três estupefactos com aquela proeza. "E pronto, já está!" Epílogo de Granado: "Não sei como é que
ele arranjou forças e fôlego para fazer aquilo".

Passageiros clandestinos

É ao partirem de Santiago para Valparaíso, privados da sua máquina, transformados em vulgares pedestres viajando à boleia, sujeitos à boa-vontade dos condutores,
que tomam consciência do seu novo "estatuto social". Guevara: "Estávamos habituados a despertar a atenção dos basbaques com o nosso aspecto original e a silhueta
prosaica da Poderosa II, cujo ronco asmático condoía os nossos hospedeiros, mas, de certo modo, éramos cavaleiros da estrada. Pertencíamos à velha aristrocracia
"errante" e exibíamos, como um cartão de visita, os nossos diplomas, que causavam grande impressão. Agora tudo isso acabara. Não passávamos de dois vagabundos, com
o saco às costas e toda a poeira da estrada colada às nossas roupas..."
Escala obrigatória de todo o navegante da costa do Pacífico antes de passar o Canal do Panamá, Valparaíso, porto mítico do álcool e das mulheres, povoou durante
muito tempo o imaginário dos marinheiros do Cabo Horne. O sítio é prodigioso. Quando se chega de Santiago, como os nossos dois

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"vagabundos", domina-se uma grinalda de colinas que descem desordenadamente até à baía gigantesca. Guevara faz uma boa descrição: "A sua estranha arquitectura de
zinco, escalonada em degraus ligados entre si por escadas tortuosas ou por funiculares, faz realçar a sua beleza caótica pelo contraste das diferentes cores das
casas, que se misturam com o azul plúmbeo da baía".
O objectivo é, antes de mais, a ilha de Páscoa, revestida de todas as virtudes do Graal, condensado das iluminações de Rimbaud e dos sonhos de Gauguin. Alucinação
em estado puro para Guevara, que esquece os leprosos e transcreve o seu delírio: "Ali, ter um namorado branco é uma honra para a mulher [...]. Ali, trabalhar é impossível,
as mulheres fazem tudo; os homens comem, dormem e dão-lhes prazer [...]. Lugar maravilhoso, onde o clima é ideal, as mulheres ideais, a comida ideal, o trabalho
ideal (na sua beatífica inexistência). Que importa ficar lá um ano, que importam os estudos, o salário, a família, etc.".
Mas "as notícias eram desencorajantes. Só dali a seis meses partiria um navio naquela direcção". Ernesto regressa então à realidade, "auscultando, com Granado, a
escória da cidade, os miasmas que nos atraem [...]. Com uma paciência de detective, fomos sondar todos os recantos, pátios e escadinhas, falámos com os mendigos
[...]. As nossas narinas dilatadas captavam a miséria com um zelo sádico". Tal como Georges Brassens descobriu o seu Auvergnat, eles descobriram um comerciante de
peixe providencial, de coração de ouro, que os alimentou de graça de manhã e à noite, segundo o generoso princípio: "Hoje para ti, amanhã para mim". A sua loja tem
como insígnia uma Gioconda cujo sorriso parece ter iluminado a estadia dos dois viajantes em Valparaíso.
Chamado para fazer uma consulta a uma velhota asmática, cliente da Gioconda, o não menos asmático Dr. Guevara revela nos seus apontamentos um grito de indignação
à maneira de Zola, demasiado insólito para passar desapercebido. Mas não denotando ainda nenhuma determinação política: "A desgraçada metia dó. No seu quarto respirava-se
aquele cheiro acre de suor concentrado e chulé, misturado com a poeira dos sofás [...]. Além da asma, sofria de uma grave descompensação cardíaca. É neste tipo de
casos que um médico, consciente da sua inferioridade absoluta face ao meio, deseja uma mudança, qualquer coisa que ponha termo à injustiça. Porque era evidente que
a desgraçada devia ter trabalhado até ao fim do mês anterior para ganhar a vida [...]. Nos últimos momentos desta gente cujo horizonte mais longínquo sempre esteve
limitado ao dia seguinte, compreende-se a profunda tragédia que é a vida do proletariado de todo o mundo. Não está ao meu alcance responder até quando durará esta
ordem de coisas baseada num absurdo espírito de casta".
Todavia, não está longe o tempo - apenas alguns anos - em que esse mesmo Guevara, vestido com a farda verde dos combatentes revolucionários, procurará dar algumas
respostas mais concretas às suas interrogações de juventude.
Por enquanto, Tintim e Milú vão tentar evitar uma parte do deserto chileno, dirigindo-se por mar a Antofagasta, dois mil quilómetros a norte.

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Vão como passageiros clandestinos. Será um dos episódios mais pitorescos da sua travessia latino-americana. Falaram com o capitão de um cargueiro, o San Antonio,
que estava disposto a deixá-los embarcar, desde que trabalhassem para pagarem a viagem, se conseguissem autorização da capitania. Autorização recusada. Mas eles
decidem dispensá-la e conseguem introduzir-se no navio, escondendo-se nas casas de banho dos oficiais. "A partir daí, a nossa tarefa consistiu em declarar numa voz
nasalada: "ocupado!" sempre que alguém tentava entrar. Mas, acrescenta Ernesto, as latrinas entupidas deitavam um cheiro insuportável. Alberto vomitou tudo o que
comera..." "O tempo passava tão lentamente como dois namorados que regressam do cinema" (Granado). Chegados ao mar alto, apresentam-se ao capitão que, numa cena
chaplinesca, lhes lança uma piscadela de olho cúmplice, desancando-os impiedosamente diante da tripulação, e impõe-lhes duas tarefas clássicas: descascar batatas
(para Granado, que aproveita para se empanturrar) e limpar as latrinas (para Ernesto, que barafusta, porque "é absolutamente injusto! Alberto acrescentou uma boa
dose de porcaria àquela que já se tinha acumulado, e sou eu que tenho de limpar".
Mas os três dias de travessia compensam todos os dissabores e até os enfadonhos jogos de canasta, para os quais o capitão os convida. Apoiados na amurada, vão filosofando,
ao mesmo tempo que admiram os peixes-voadores, os cachalotes, os golfinhos. "Percebemos que a nossa vocação é sulcar infinitamente todos os mares e estradas do mundo.
Permanecendo sempre curiosos [...] metendo o nariz em todos os cantos, mas sempre em bicos de pés, sem criar raízes em parte nenhuma, nem perder tempo a estudar
a substância das coisas; a superfície basta-nos", escreve Guevara.

A manta partilhada em Acatama

"Sair do Chile sem conhecer as minas de nitrato e de cobre seria como tirar o picante da aventura", escreve Granado. Lançam-se, portanto, a pé, como caminheiros
extravagantes, na estrada desolada de Antofagasta a Chuquicamata. Este deserto de Acatama, conquistado à Bolívia e ao Peru há mais de um século, é um dos mais áridos
do planeta, escaldante de dia, gelado de noite, de uma beleza sublime. Um universo puramente mineral, devolvido às suas origens. Rochas vermelhas, negras, verdes,
consoante a natureza do metal, cuja cor vai mudando ao longo do dia. Um sol branco e forte num azul intenso, quase violeta. Os dois caminheiros refugiam-se cada
um "à sombra escassa de um poste de electricidade", à espera de um improvável veículo. A riqueza geológica da região permitiu, a partir do século XIX, uma exploração
mineira sistemática, sobretudo nitratos e cobre, exigindo uma mão-de-obra abundante que acabou por criar as primeiras organizações sindicais do continente, acarretando,
como corolário, o habitual cortejo de repressões.

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Na humilde aldeia de Baquedano - umas barracas perdidas de chapa de zinco - um encontro, narrado com precisão, comove Guevara: o de um mineiro comunista, escorraçado
de todo o lado por ter manifestado "o desejo natural de melhorar a sua condição".
Relato: "Na sua linguagem simples e expressiva, descreveu a sua prisão, a sua mulher, faminta, que o seguira com uma lealdade exemplar, os filhos entregues a um
vizinho compadecido, a sua errância infrutífera em busca de trabalho e os seus companheiros misteriosamente desaparecidos, constando que teriam sido lançados ao
mar. Esse casal enregelado e encolhido na noite do deserto, era o retrato vivo do proletariado de qualquer parte do mundo. Não tinham nada para se cobrir e nós demos-lhes
uma das nossas mantas, agasalhando-nos como podíamos, eu e Alberto, naquela que nos restava. Foi uma das vezes em que mais sofri com o frio, mas também aquela em
que me senti mais solidário para com a humanidade...".
O interesse do diário de Guevara reside na acumulação destes "pequenos factos verídicos" que, apesar dos retoques posteriores, nos permitem seguir a evolução de
uma tomada de consciência, social e política, do sofrimento humano que ainda se opõe ao seu desejo de não se ligar a nada para seguir o seu caminho em plena liberdade.
Essa manta partilhada na noite gelada do deserto de Acatama parece ter marcado o rapaz, talvez tanto quanto o domínio ianque sobre a mina gigante que irão visitar
no dia seguinte.
Chuquicamata é a "montanha mágica" do Chile, pejada de cobre ao longo de quilómetros, fornecedora do "ouro vermelho" de onde o país retira a maior parte das suas
divisas, a maior mina do mundo a céu aberto. O sítio é impressionante. Um gigantesco funil de vários quilómetros de diâmetro com degraus de vinte metros de altura
entalhados na rocha e serpenteando ao longo das paredes. Camiões gigantescos transportam até às fundições as toneladas de minério que os dinamitadores fazem explodir,
enquanto chaminés com uma altura de cem metros largam os seus vapores sulfúricos no céu límpido.
Os dois rapazes ficam fascinados. Guevara descreve pormenorizadamente o processo de refinação do cobre, mas não deixa de transcrever o comentário do guia sobre os
"louros e eficazes administradores" ianques: "Estupores de gringos, perdem milhares de pesos por dia numa greve porque se recusam a dar mais uns cêntimos a operários
pobres"7.
Na sua lenta subida chilena até Arica, cidade na fronteira com o Peru, os viajantes à boleia, para não estorricarem ao sol, utilizam a técnica do "carrinho de bebé":
aceitar fazer apenas pequenas distâncias, em saltos de pulga. Uma vez, são três grevistas perdidos de bêbados que os embarcam alegremente, ziguezagueando pela estrada
deserta. Outra vez, participam num desafio de futebol com operários de uma mina de nitratos, o que lhes dá dormida, comida e transporte garantido no dia seguinte.
Por vezes, a estrada parece-lhes interminável. De saco às costas, vão caminhando. O calor deixa-os prostrados. Esta experiência pessoal faz com que Guevara tenha
uma consciência concreta da "epopeia" que constituiu a

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Mapa intitulado:
AS TRÊS VIAGENS DO COMANDANTE: DA ARGENTINA A CUBA

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conquista do Chile, "um dos maiores feitos da colonização espanhola". Avaliando a coragem dos conquistadores, ele anota: "Nestas pampas de uma aridez absoluta, fica-se
impressionado ao pensar que Valdivia passou por ali, com o seu punhado de homens". No alto da falésia que domina Iquique, grande momento de exaltação lírica. Empoleirado
num carregamento de luzerna transportado num camião, Ernesto declama textos de Neruda a plenos pulmões: "A nossa chegada com o sol a nascer atrás de nós, reflectindo-se
num mar de um azul muito puro, parecia um episódio das Mil e Uma Noites". Em Arica, "pequeno porto simpático", reencontra os sabores tropicais, os cheiros conhecidos
das Caraíbas, quando fazia de enfermeiro em petroleiros argentinos. As águas do oceano, sempre geladas ao longo das costas chilenas, são aqui um pouco mais temperadas.
Com Granado, repete o mesmo gesto com que enfrentaram o Chile, mergulhando no lago Esmeralda, trinta e oito dias antes: "Despedimo-nos do Pacífico com um último
banho (com sabão e tudo)". Coisa provavelmente pouco habitual em Ernesto, que reage logo com uma crise de asma.

Um Peru de livro ilustrado

É no Peru que, durante três meses, os nossos viajantes vão descobrir a América exótica dos livros ilustrados - sem comparação com o seu universo habitual -, a América
dos grandes planaltos andinos do Altiplano, onde se instalaram e por vezes refugiaram os índios Aimarás, terra de agricultores robustos, famosos pelo seu espírito
marcial. Os homens têm os olhos fendidos, o rosto achatado, o cabelo como baquetas de tambor, tão negro que parece azul, e usam pequenos ponchos curtos; as mulheres
têm tranças compridas sob pequenos quicos de feltro e cinco saias apertadas na cintura.
Num "vale lendário, parado há séculos na sua evolução", Ernesto e Alberto, "felizes mortais até aí saturados de civilização do século XX [...] devoram tudo com o
seu olhar ávido", chegam a Tarata, "velha aldeia pacata onde a vida segue o mesmo curso desde há séculos [...]. Mas aqueles que contemplamos não pertencem à raça
orgulhosa que não parou de se revoltar contra o domínio inca, é uma raça vencida. O seu olhar é doce, quase receoso, e completamente indiferente ao mundo exterior".
Depois das fornalhas do deserto chileno, os viajantes enfrentam o rigor do trio do alto Peru, quando o camião que os conduz a Puno sobe até cinco mil metros de altitude.
Mas aguentam. "Devemos ter feito três quilómetros a pé no meio da neve." Mas lá está a recompensa: em breve irão chegar às margens fundadoras da civilização milenária
de Tiwanaku, à beira do Titicaca, o lago navegável mais alto do mundo (3 827 metros), na fronteira entre o Peru e a Bolívia. "À nossa frente estendia-se o famoso
lago, imenso, silencioso, sereno", escreve Granado. Os dois rapazes, impregnados das suas leituras, tinham sonhado com este momento. Vivem um ponto alto da sua viagem.

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"Para o Pelao e para mim, era um marco importante. Apertámos a mão em silêncio." Chegam mesmo a dar uma volta no lago mítico, cujos barcos são feitos de juncos,
mas Ernesto fica sobretudo impressionado com um barco feito na Inglaterra, içado até ali, insólito, "cujo luxo contrasta com a pobreza da região".
Espera-os outro lugar não menos mítico, para o qual se dirigem de imediato: a cidade histórica de Cuzco, "umbigo do mundo", em língua quíchua, a poucas léguas da
velha "montanha" de Machu Picchu, exaltada por Neruda, que faz dela o altar emblemático da americanidade profunda do continente. Desconhecido pelos espanhóis, protegido
dos olhares estranhos durante séculos pela vegetação que o invadira, este sítio arqueológico só foi redescoberto em 1911 por um havaiano naturalizado americano,
Hiram Bingham, que vê nele "a cidade perdida dos Incas". Tudo isso encanta os nossos exploradores, não só pelos mistérios das origens dos homens americanos como
também, porque embora sejam ambos descendentes de europeus, sentem que há, nessa cultura preservada, um elemento de identidade comum aos habitantes do continente.
Troçando do "turista norte-americano para quem o espectáculo de uma tribo degenerada faz parte das atracções da viagem", Guevara coloca-se do lado dos vencidos:
"São subtilezas que só o espírito semi-indígena de um sul-americano pode apreciar".
Com Granado, faz uma visita pormenorizada à fortaleza inexpugnável, situada a dois mil metros de altitude, sobre um promontório rochoso. Percorre em todos os sentidos
os degraus, os terraços, o Templo do Sol. Admira o inacreditável ajustamento dos enormes blocos de pedra granítica, que encaixam na perfeição. Desenha, toma notas,
faz consultas apaixonadas sobre o assunto na biblioteca de Cuzco. Aqui, o estilo dos diários, geralmente livre e metafórico, torna-se pomposo, anfigúrico, quando
o seu autor toma o cuidado de "escrever bem", sem dúvida embaraçado perante uma ciência ainda recente. Quinze longas páginas contam, no entanto, o deslumbramento
do jovem perante o Machu Picchu e a cidade de Cuzco, alcandorada a 3 600 metros, outrora "brilhante capital inca", eleita pelo deus Viracocha, hoje "réplica do passado,
com os seus telhados de telha vermelha, as suas ruas estreitas e a sua cor de quadro folclórico". Passará dez dias tentando ver tudo, compreender tudo: as igrejas
barrocas instaladas em antigas fortificações indígenas, decoradas sumptuosamente para impressionar o índio, o sincretismo religioso entre cristianismo e antigos
cultos, os museus, tristes depositários do que não foi pilhado pelos espanhóis da colónia ou pelos turistas do século XX. Fica sobretudo impressionado com as ruínas
dos templos-fortaleza nos vales escarpados vizinhos, ricos em vestígios incas, admirando particularmente as de Sacsahuamán, de nome áspero.
Mesmo não querendo fazer qualquer concessão ao espírito do "turista desiludido", como os norte-americanos que vêm e partem de avião, sem nada verem do contexto,
os argentinos ficam impressionados com as novidades que os desorientam: as manifestações sempre vivazes do culto de Pacha-Mama,

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a Terra-Mãe fertilizadora, divindade omnipresente, mal assimilada pela igreja católica, as comidas picantes e aromatizadas que as Índias lhes apresentam em trajes
típicos, ou então o ritual da coca, planta sagrada, supostamente possuidora de virtudes místicas que só o Inca e os seus amigos mastigavam, transformada a partir
de então em remédio tradicional contra a fome e a moléstia das montanhas, mas que em Ernesto e Granado provoca cólicas e vómitos.
À medida que avançam em território quíchua, a estrada, estreita e perigosa, passa das geadas secas do planalto ao vapor quente dos vales baixos e as crises de asma
de Ernesto intensificam-se, para desespero de Granado, que vai dando ao amigo injecções de adrenalina, cálcio ou coramina. Em camiões sacolejantes, evitando o precipício
num milagre permanente, partilham uma obsessão comum: matar a fome que parece nunca os largar, apesar da sua ementa de emergência: pão e mate. "A nossa fome era
uma coisa estranha", escreve Ernesto. "Estava simultaneamente em todo o nosso corpo e em parte nenhuma."
O sésamo deles, ao longo de toda a viagem, foi a leprologia, pretexto honroso justificando atribulações um pouco estranhas. Em Cuzco, Granado encontrou um colega
amável, que conhecera na Argentina, e que os ajudou bastante. Falou-lhes de um grande especialista de Lima, o doutor Pesce, para o qual lhes obteve uma recomendação.
Esse médico irá ser como um anjo da guarda durante os vinte dias da estada na capital peruana. Militante comunista e, por esse motivo, exilado durante muito tempo
na província, finalmente reintegrado na sua cátedra de medicina tropical, o professor irá albergar os dois rapazes no hospital dos leprosos de Lima, apresentar-lhes
colegas, dar-lhes regularmente de jantar e até arranjar-lhes roupas "civilizadas". Ernesto, que tem com ele longas conversas, chama-lhe "el Maestro", o Mestre.
Mais tarde confessará, numa dedicatória do seu manual de guerrilha que oferecerá ao Maestro, que "sem o saber [ele] provocou uma grande mudança na (sua) atitude
em relação à vida e à sociedade". Mas isso não o impede de faltar às boas regras da linguagem diplomática quando se trata de dar a sua opinião sobre uma obra na
qual o Dr. Pesce evoca a sua experiência no Altiplano. Instado a responder, Guevara acaba por declarar: "Doutor, o seu livro é bastante fraco. É inacreditável que
um marxista como o senhor descreva apenas o aspecto negativo da psicologia do índio. Custa a crer que tenha sido escrito por um investigador e por um comunista".
E o Mestre concorda: "Tem razão". Esta intransigência de pensamento, este lado de inteireza, por vezes brutal quando se trata de defender princípios, esta franqueza
nos antípodas da ambiguidade nunca abandonará Guevara. O que lhe valerá, mais tarde, algumas inimizades sólidas.
Ernesto e Alberto não se interessam apenas pela leprosaria de Lima, onde os doentes ficam impressionados com a sua gentileza, a sua atitude desprovida de qualquer
receio de contaminação. Os dois "Che", como os leprosos geralmente lhes chamam, vão completando conscienciosamente os seus conhecimentos arqueológicos do Peru, admiram
as colecções de cerâmica erótica antiga do Museu de Antropologia, descobrem sem grande entusiasmo

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o divertimento tauromáquico da garraiada, que não existe na Argentina. Na Biblioteca Nacional, uma exposição de reproduções de quadros fornece uma ocasião ao plebeu
Granado de avaliar um aspecto insuspeitável da cultura geral do seu distinto companheiro. "Não entendo nada destas modernices", declara ele. Pedagogo indulgente,
Pelao insiste então com Mial para observar atentamente os quadros antes de estabelecer o seu próprio critério. "Estás a ver, Petiso, não és assim tão estúpido. Escolheste
quatro Picassos e um Pissarro, grande impressionista - a não confundir com Pizarro, o conquistador do Peru."

"Como eu descesse rios tranquilos"

O excelente doutor Pesce forneceu-lhes os contactos para se dirigirem a San Pablo, uma leprosaria distante, nas margens do Amazonas, 1500 quilómetros a nordeste,
perto da encruzilhada das fronteiras do Brasil e da Colômbia. Por seu turno, um doente de Lima, leproso e maçónico, consegue que um amigo camionista os conduza até
ao pequeno porto fluvial de Pucallpa, onde embarcarão num vapor de dois andares. Mais uma vez, ao deixarem o deserto costeiro, têm de atravessar a cordilheira através
de gargantas que ultrapassam os 4500 metros; mais uma vez, a asma de Ernesto se manifesta. Um eixo parte-se durante a viagem. Quase se despenham num precipício,
conseguem repará-lo, voltam a partir, entusiasmados. Não tardaram a fazer amizade com os dois alegres folgazões que se revezam a guiar o camião. Em coro, vão massacrando
a plenos pulmões tangos argentinos e valsas peruanas. Sentem-se felizes "como canibais a devorar um missionário", diz Granado. Tudo os espanta: plantações de café
ou de chá, frutos tropicais desconhecidos, goiabas, papaias, florestas de jacarandá e de acaju.
Ao passarem por Junín surge-lhes uma recordação dos tempos de escola, que eles situam na actualidade americana da época. Foi ali que o General Sucre, lugar-tenente
de Bolívar, se distinguiu numa batalha contra a coroa espanhola, durante as guerras de independência. Contra o inimigo comum, os soldados do continente inteiro tinham-se
unido, "belo exemplo para o futuro!...".
No vapor, que demorará uma semana a chegar à Amazónia, Ernesto não está em grande forma. "A asma e os mosquitos não me largavam." Convivem com uma rapariga de má
fama, que embarcou também em Pucallpa. "Uma carícia hesitante da jovem prostituta condoída com o meu estado de saúde" fá-lo regressar aos tempos a que ele chama
já a sua vida "pré-aventureira". Pequena crise de saudade. "À noite, penso em Chichina, romance antigo cuja recordação deixa mais mel do que fel".
O abatimento será provocado pela asma? Enquanto Mial engata uma beleza tropical de olhar assassino ou se extasia com o espectáculo da "gigantesca variedade vegetal"
que desfila diante deles, Fuser regista, lacónico,

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quando desembocam no rio dos rios, o maior do mundo: "São apenas duas massas de água lamacentas que se unem".
Em Iquitos, outrora importante centro de produção de borracha vegetal, a alergia ao cheiro do peixe do pequeno porto desencadeia novas crises de asma. Será necessário
quase outra semana até encontrarem, para descer o Amazonas, um pequeno barco a motor, previsto para quatro passageiros. Amontoam-se lá dezasseis, prefiguração de
um amontoamento de outro tipo que Ernesto irá conhecer, quatro anos depois, num certo iate, que ficará na história: o Granma.
Os doze dias passados na leprosaria de San Pablo marcam outro momento intenso da viagem. A chegada dos dois "cientistas argentinos" fora anunciada. Apesar da precaridade
das condições, são recebidos com aquela cordialidade simples que sempre foi uma constante durante a sua estada no Peru. Mais uma vez, não hesitam em confraternizar
com os doentes, em associarem-se sem reservas à sua vida quotidiana, o que lhes vale, por parte deles, um elevado reconhecimento. Eles sabem que o bacilo da lepra
é dez vezes menos contagioso do que o da tuberculose, por exemplo. Não há necessidade de impor aos pacientes matracas ou outras formas de aviso, como na Idade Média.
Depois da sua co-habitação com os leprosos de Lima, Ernesto escrevia ao pai: "O facto de ir vê-los sem avental e sem luvas, de lhes apertar a mão, de falar de mil
e uma coisas, de jogar futebol com eles, de os tratar como seres normais, tem uma influência psicológica considerável, e o risco que se corre é mínimo"8. Comportam-se
do mesmo modo em San Pablo, embora lhes imponham avental e luvas. Instalada à beira do rio em cabanas de madeira sobre estacas, a colónia é composta por seiscentos
doentes, vivendo cada um na sua casa com a família e comunicando entre si por caminhos de pranchas suspensas, ou então por canoas. Muitos deles estão mutilados.
Os Argentinos ficam fascinados com este mundo da floresta amazónica, que não se assemelha a nada que eles conheçam, onde tudo é extremo, o vigor espantoso do elemento
vegetal, a força diluviana das tempestades. Ensinam-lhes a pescar peixes que nunca tinham visto em parte alguma e que comem crus, marinados, em ceviche, à maneira
peruana. O director da colónia organiza-lhes mesmo uma caçada aos macacos, durante a qual se embrenham na escuridão da selva, seguindo silenciosamente índios semi-nus,
armados de zarabatanas de dois metros e de flechas com veneno vegetal. Descobrem o gosto adocicado da carne de macaco grelhada e o do álcool de mandioca, a chicha,
fabricado a partir de mastigações cuspidas pelos índios. Estão noutro planeta.
O futebol continua a ser uma referência familiar. Para se encontrar um terreno em terra firme, no meio das árvores, é preciso percorrer primeiro um quilómetro de
canoa. Depois do desafio, Granado lança-se à água e sai logo de seguida, aos berros. Agarrada ao seu joelho, agita-se uma piranha, temível peixe carnívoro, do qual
Ernesto o liberta, "rindo à gargalhada". Diante deles, a presença poderosa da Amazónia constitui, aliás, um desafio para Fuser, que

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se recompôs das crises de asma. Não perdeu o treino desde os tempos da luxuosa piscina de Alta Gracia. Apesar dos avisos contra o perigo dos crocodilos e das piranhas,
lança-se na travessia a nado do rio-rei, naquele ponto com mil e duzentos metros de largura. Proeza alcançada sob a vigilância de Granado, que o segue de canoa e
o vai buscar à outra margem, quatro quilómetros mais abaixo, "estafado mas feliz".
"No sábado, 14 de Junho de 1952, eu, um pobre-diabo qualquer, festejei os meus vinte e quatro anos, nas vésperas do transcendental quarto de século, em bodas de
prata com a vida que, ao fim e ao cabo, não me tratou muito mal." O aniversário do valoroso argentino constitui um acontecimento na comunidade de San Pablo. Aos
brindes que inauguram a festa em sua honra, Guevara responde com um pequeno discurso muito pan-americano, que faria sorrir os etnólogos: "Nós formamos uma única
raça mestiça que, do México ao Estreito de Magalhães, apresenta semelhanças etnográficas consideráveis". Posto isto, Granado faz o relato, bastante curioso, do baile,
copiosamente regado com pisco, no qual várias raparigas rivalizam para dançar com ele, "embora já houvesse uma que ele tivesse reservado para si". Tendo em conta
a sua absoluta falta de ouvido musical, Ernesto pediu a Mial que lhe fizesse um sinal com o pé, debaixo da mesa, sempre que surgisse um tango, única dança que ele
conhecia mais ou menos. E a coisa ia dando resultado. Até ao momento em que a orquestra ataca um choro brasileiro, dança rápida, de ritmo seco e vivo. Alberto, que
reconhece Delicado, "uma das músicas preferidas de Chichina", dá logo um pontapé ao companheiro, que se lança então "como um bólide para convidar a moreninha que
o devorava com o olhar". Imperturbável, Ernesto concentra-se no ritmo do tango "1-2-3-4 e meia-volta" enquanto à sua volta os pares se agitam e saracoteiam e Granado
tem um ataque de riso tão forte que não consegue explicar-lhe o engano.
Entretanto chegou uma grande plataforma carregada de gado e eles vão utilizá-la para construir um meio de transporte original para se dirigirem pelos seus próprios
meios a Letícia, cidade na fronteira da Colômbia, durante muito tempo reivindicada pelo Peru. Ajudados por dois índios da colónia, fabricam, com uma dúzia de troncos
de bolsa (madeira excelente para flutuar) uma pequena jangada que os convence que se transformaram em autênticos aventureiros dos trópicos. Os seus amigos baptizam
a embarcação de Mambo-Tango, símbolo musical de solidariedade inter-americana. Depois da moto, dos mais diversos camiões, da caminhada a pé debaixo do sol, de um
cargueiro de alto-mar e de barcos fluviais de diferentes tamanhos, ei-los agora lançados num batel de três metros por sete, frágil, nas imponentes águas do Amazonas.
Rebocaram-nos até ao meio do rio, com mais de um quilómetro de largura, iniciaram-nos vagamente na prática da ginga e... coragem, amigos! Terá Ernesto lido Rimbaud?
Não o refere mas, no que lhe toca, está a viver o mesmo sonho exaltante do autor do Barco Bêbado: "Como eu descesse rios tranquilos, / não mais fui guiado pelos
meus sirgadores...".

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Antes da partida, rodeados de múltiplas manifestações de amizade, tiveram direito a uma despedida, em que o grotesco rivaliza com o sublime. Numa carta dirigida
à mãe, Fuser descreve com talento essa tenda dos milagres como um cenário de um filme de Buñuel: "À noite, um grupo de doentes passou de canoa e, no cais, fizeram-nos
uma serenata [...]. O acordeonista não tinha dedos na mão direita e substituíra-os por pedaços de madeira ligados ao punho, o cantor era cego, quase todos tinham
um aspecto monstruoso [...] juntando-se a tudo isso os reflexos das velas e das lanternas no rio. Espectáculo cruel".
Para não ficarem encalhados na outra margem, como aconteceu na primeira manhã, enquanto dormitam revezam-se para ficar de guarda. Tanto mais que é preciso evitar
também as enormes ramadas transportadas pelo rio, capazes de desfazer uma jangada. É durante uma dessas vigílias que se dá um incidente em que Guevara, audacioso
mas nem sempre temerário, confessa à mãe uma fraqueza bastante humana: "Um frango que trouxéramos para comer caiu à água, a corrente levou-o, e eu que, em San Pablo,
tinha atravessado o rio, fraquejei por completo no momento de o ir buscar, em parte por causa dos crocodilos que surgem de vez em quando, e também porque nunca consegui
vencer totalmente o medo que tenho da água, à noite"9.
Apesar da vigilância, passam ao largo de Letícia e sem querer vão parar ao Brasil, o que os obriga a trocar a jangada por uma piroga de um habitante da ribeira;
seis horas a remar de pangaia para subir o rio.
Em Letícia, os dois parceiros tiram o máximo partido da fama internacional do futebol argentino. Propõem-lhes que treinem a equipa local, o que eles fazem de forma
tão eficaz que conseguem dinheiro para pagar os seus bilhetes de meia tarifa para Bogotá num grande hidroavião-cargueiro anfíbio do exército.
Se o Peru os seduziu - ficaram lá três meses - o clima repressivo da Colômbia desanimou-os. "A polícia patrulha as ruas, de espingarda a tiracolo, e procede ao controlo
dos passaportes a todo o momento, mesmo quando às vezes o lêem de pernas para o ar". Bogotá ainda não se recompôs da extraordinária explosão de cólera popular de
9 de Abril de 1948, o Bogotazo, desencadeada pelo assassínio de um dirigente de esquerda, Jorge Eliécer Gaitán (o acaso fez com que um leader estudantil cubano,
de 22 anos, assistisse à revolta e à sua repressão, um certo Fidel Castro, que não irá esquecer o acontecimento). Desde então, o país vive uma guerra civil larvada
sob o regime autoritário de um presidente-ditador, Laureano Gomez. Focos de guerrilha camponesa acenderam-se um pouco por toda a parte. A violência - geral na América
Latina - tornou-se, sobretudo na Colômbia, uma característica nacional.
Os Argentinos encontram uma certa solidariedade entre os estudantes da cidade universitária, que chegam a cotizar-se para os ajudar. Mas bastaram algumas reservas
expressas sobre a legislação antilepra colombiana para que lhes fosse vedado todo o acesso ao sistema nacional das leprosarias. A isto vem juntar-se uma história
sombria de facon, faca de gaúcho com cabo de prata, que um polícia decide confiscar a Guevara de uma forma arbitrária.

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Ao cabo de inúmeras diligências, a faca acaba por ser recuperada, mas os seus amigos estudantes aconselham-nos a partir de imediato, sabendo que as represálias contra
eles não tardarão. "O 14 de Julho não será para mim apenas o aniversário da tomada da Bastilha, mas também o da minha saída da Colômbia", escreve Granado, aliviado.
A aventura venezuelana será ainda mais breve. Encafuados num pequeno camião desconfortável e arcaico, avançando de rebentamento em rebentamento de pneu, demoram
três dias para chegar a Caracas e apercebem-se que os Andes continuam a ser bastante altos. Atravessando uma garganta da cordilheira, a mais de 4 800 metros de altitude,
ficam transidos de frio; "dir-se-ia que não estamos nos trópicos". Entretanto, para se aquecerem enquanto esperam que o pneu seja trocado, beberricam o eterno mate
na berma da estrada e o seu olhar cruza o olhar, curioso, de uma família de camponeses negros. A surpresa leva-os a tomarem consciência de que não estão longe da
costa das Caraíbas. Traçam planos para o futuro. Ir até ao México? Ficar em Caracas, no caso de Alberto? Regressar a Buenos Aires, no caso de Ernesto? Este último,
em jeito de chalaça, auto-descreve-se, a si e a Alberto como "uma parelha de vagabundos à deriva, sem passado nem futuro". Ao pai, escreve: "Tenho realmente um espírito
de globe-trotter e é muito provável que, depois desta viagem, vá dar uma volta pela Índia e pela Europa"10.
No imediato, as circunstâncias vão fornecer as respostas às suas interrogações. Em Caracas, "capital da eterna Primavera", preservada do calor tropical da costa
atlântica pela sua situação a mil metros de altitude, a vida é cara devido à expansão petrolífera recente, mas há trabalho. Logo à chegada, oferecem a Alberto um
cargo muito aceitável (e que ele aceita) numa leprosaria a 30 quilómetros da cidade, à beira-mar. Quanto a Ernesto, graças a uma recomendação de um tio de Buenos
Aires junto de um negociante de Caracas, consegue regressar de borla à Argentina num avião de carga que antes irá entregar cavalos de corrida argentinos a... Miami!
"O grito bestial do proletariado triunfante"
Guevara interrompe aqui o seu diário, não deixando contudo de lhe acrescentar, in fine, algumas páginas cujo interesse reside apenas em nos dar a conhecer os limites,
as hesitações e os entusiasmos das suas reflexões sociais e políticas, ainda um pouco incoerentes, nessa época.
Como anteriormente em Valparaíso, vai flanar, desta vez sem o seu bravo acólito, pelos bairros de lata miseráveis das colinas de Caracas. Tal como os turistas que
ele censurava em Cuzco ou em Machu Picchu, procura fotografar alguns cenários típicos. "Aproximo-me de uma barraca [...], a mãe, de cabelos crespos e seios caídos,
cozinha, ajudada por uma negrinha de quinze anos, que está vestida [...]. Peço-lhes que posem para uma fotografia mas recusam categoricamente, a menos que eu lhes
entregue a dita fotografia: "nem pensar

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em deixar que nos roubem a alma"". Ernesto insiste - nova recusa -, sem dúvida demasiado seguro da sua boa consciência para se dar conta de que é visto como um estranho,
um branco, membro da mesma corja dos malditos portugueses, emigrantes pobres que foram lá parar, que escorraçam os negros cada vez para mais longe. O fotógrafo vira
então a máquina para um garoto de bicicleta que se assusta perante a objectiva e cai, desatando num berreiro. Catástrofe. "Todos saem a correr para me insultar..."
Chamam-lhe, suprema injúria, português!
À laia de clichés, os únicos que acompanham este incidente surgem, deformados, sob a pena do nosso repórter frustrado: "Os negros, esses magníficos exemplares da
raça africana que conservaram a pureza graças à sua aversão pelo banho, viram o seu território invadido por um novo tipo de escravos: os portugueses...". Ou então
esta pérola: "O negro, indolente e sonhador, gasta dinheiro em frivolidades ou na bebida; o europeu é herdeiro de uma tradição de trabalho e de economia que o persegue
até estas paragens da América e o leva a progredir..." Lugares-comuns bastante lamentáveis na pena de um jovem cujo olhar crítico é geralmente mais penetrante. Podemos
avaliar o caminho percorrido quando, dez anos depois, o mesmo Guevara mas já não é o mesmo - pretenderá editar em Cuba Frantz Fanon, apóstolo radical da negritude
revolucionária, antes de ir, ele próprio, combater na África negra.
Menos caricaturais mas ainda mais surpreendentes, as últimas páginas desses Apontamentos de Viagem revelam um acontecimento estranho, ao qual parece não ter sido
atribuída a importância que merece: a "revelação" ao viajante do destino que o aguarda. Sem dúvida escritas noutro tempo e lugar, colocadas deliberadamente como
epílogo, essas "notas à margem" pretendem, evidentemente, dar um sentido a essa travessia americana.
Uma noite, numa aldeia dos Andes, quando "o silêncio e o frio tornavam a escuridão imaterial", Guevara encontra um desconhecido, sobre o qual não fornece nenhum
esclarecimento a não ser o de que ele fugiu muito novo de um país da Europa "para escapar à faca do dogmatismo" e que é um interlocutor interessante. "Não sei se
foi a aura que se desprendia desse indivíduo ou a sua personalidade que me prepararam para receber a revelação." A revelação em causa, é que "o futuro pertence ao
povo [...] que irá conquistar o poder no mundo inteiro". É certo que haverá vítimas. "A revolução ceifar-lhes-á a vida e servir-se-á da sua memória como exemplo
[...]. Eu morrerei sabendo que o meu sacrifício se deve à cegueira de uma civilização podre, que se decompõe [...]. E vocês, prossegue o profeta desconhecido, irão
morrer de punho erguido e de dentes cerrados, ilustração perfeita do ódio e da luta".
Vindo dessa "boca obscura", estamos perante o "anúncio feito a Ernesto", sem que ele tenha nada de claudeliano. Seja como for, o jovem fica impressionado. Ao ponto
de entoar então um canto de vitória absolutamente barroco, desenfreado, em honra do combatente que, como ele, se colocará "ao lado do povo": "Sei que eu, dissecador
eclético de doutrinas e psicanalista de

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dogmas, gritando como um possesso, tomarei de assalto as barricadas ou as trincheiras, tingirei a minha arma de sangue e, como um louco, degolarei todos os vencidos
que caírem nas minhas mãos. Vejo-me imolado na verdadeira revolução [...]. Já sinto as narinas dilatadas, saboreando o cheiro acre da pólvora e do sangue da morte
do inimigo [...]. Preparo o meu ser para que nele ressoe [...] o grito bestial do proletariado triunfante". Texto louco, delirante, imprecação digna de Lautréamont,
autêntica "iluminação", mas já texto-charneira, premonitório de uma imolação anunciada.
A 26 de Julho de 1952, enquanto na Argentina todas as rádios interrompem a programação para chorar a morte de Eva Perón, Fuser e Mial despedem-se num abrazo comovido
no aeroporto de Caracas. Há sete meses que os dois amigos não se separam. "Já passámos por tudo", diz Ernesto. "Estuda a valer. Fico à tua espera", recomenda Alberto.
"Nunca mais encontrei um companheiro de viagem como ele", confidenciará Ernesto três anos depois, numa carta à sua amiga Tita Infante.
Como um Tintim sem Milú, Pelao voa para Miami, mera escala, em princípio (só o tempo de entregar os cavalos), antes de chegar a Buenos Aires. Mas um motor do avião
Douglas precisa de ser reparado. A simples escala irá durar um mês. E Ernesto tem apenas um único dólar! Mas a "operação sobrevivência" funciona graças ao apoio
oportuno de um primo de Chichina, Jimmy Roca, que estuda arquitectura na cidade dos palácios e das residências para milionários. Em Miami Beach, em Agosto, a estação
balnear está no auge. Ernesto, que só se desloca a pé e se alimenta de cachorros-quentes, observa tudo com curiosidade: as festas, o luxo, os letreiros luminosos
dos espectáculos. Arranha um mau inglês, convive um pouco com as classes populares dos latinos, essencialmente portorriquenhos. Consta que um dia foi interpelado
por um agente do FBI, que percebeu que ele não gostava nada do sistema ianque."
Os Estados Unidos vivem nessa época obcecados pelo perigo comunista, perseguindo tudo o que lhes parece "antiamericano". A caça às bruxas preconizada pelo senador
McCarthy está no seu ponto máximo. Essas escassas semanas na terra do Tio Sam dão ao jovem Guevara uma percepção das "entranhas do monstro", segundo a expressão
exaltada do cubano José Marti. Considerá-las-á como algumas das mais amargas da sua vida, dirá ele, no regresso, a Tita Infante.
No início de Setembro de 1952, após oito meses de ausência, e sob uma chuva miudinha de Inverno, reencontra finalmente em Buenos Aires toda a tribo Guevara, que
veio esperá-lo ao aeroporto, e os seus caros estudos, que está morto por concluir para poder voltar a partir. Continua a ter um rosto juvenil, o olhar trocista e
o ar desengonçado de um adolescente tardio. Mas é já outro homem. "Esta errância sem objectivo modificou-me mais do que eu supunha".

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"Aqui vai um soldado da América!"

Retoma rapidamente as aulas da Faculdade e faz num relâmpago a catadupa de exames nos quais, em Caracas, se inscreveu em regime especial; e até arranja tempo para
prosseguir as suas investigações sobre alergias junto do professor Pisani. Este último gostaria de o ter como colaborador. Nunca teve um aluno tão estudioso, tão
inteligente, tão interessado. Ele, que selecciona tão rigorosamente os médicos que disputam o privilégio de trabalhar sob a sua direcção, oferece ao futuro Dr. Guevara
um verdadeiro salário de colaborador a tempo inteiro. Mas Ernesto recusa, com a mesma determinação que o levou, no início do ano, a pôr de lado a ideia de se instalar
numa vida burguesa casando com Chichina.
Mais do que nunca, assalta-o o desejo de correr mundo. A terra é vasta e tudo está ainda por descobrir, na curiosidade impaciente deste nómada insaciável que gostaria
de partir por dez anos. Aliás, ele mais não fez do que entrever uma parte dessa América da dor que anseia conhecer melhor, antes de ir mais longe.
Faz então um grande esforço e tira o máximo partido da capacidade espantosa que tem para ir direito ao essencial sem se deter nos detalhes. Não perdeu nada da sua
ironia e auto-confiança. Num dos últimos exames, um examinador, chocado por o ver descascar uma laranja, sentado calmamente, balançando as pernas, numa mesa de mármore
do anfiteatro, admoesta-o. "Parece que o senhor está com muita fome". "É verdade", responde Guevara. "Estamos à espera desde as 7 da manhã. É meio-dia e ainda não
almocei". "Muito bem. Vamos já tratar de si". Guevara está numa posição crítica. Espalha-se rapidamente por toda a Faculdade a notícia desta troca de palavras. Os
colegas acorrem ao exame. As perguntas do júri multiplicam-se. Ele vai respondendo com toda a pertinência. Intensificam-se as perguntas. Ele aguenta a parada. Já
não é um exame, mas sim um duelo. Finalmente, o examinador levanta-se, estende-lhe a mão e esboça um sorriso: "Doutor", e basta esta palavra para se ver que ele
estava aprovado, "não posso deixar de lhe atribuir uma menção honrosa".
Em cinco meses apenas, entre Dezembro de 1952 e Abril de 1953, Ernesto - que ainda não fez 25 anos - consegue assim a proeza de fazer, de uma assentada, quinze dos
trinta exames necessários para obter o grau de médico. Coisa nunca vista. Um dos motivos suplementares de toda esta pressa foi a preocupação de evitar ter de fazer
um exame especial de "educação justicialista" imposto pelo regime peronista para tentar controlar melhor os espíritos. A atitude de Guevara em relação ao peronismo
continua marcada pelo espírito libertário em que foi educado. Mas a sua viagem latino-americana deu-lhe um novo esclarecimento do peronismo. Vistas do estrangeiro,
as disputas internas na Argentina não têm sentido. Do peronismo só é captada uma atitude corajosa de independência e de hostilidade em relação aos Estados Unidos.
Com a imagem subsidiária de uma fada-boa-dos-pobres, ligada a Eva Perón. A posição de Ernesto em relação a Perón não é fixa. Pode ser hoje a

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favor e contra amanhã, consoante considerar justa ou injusta determinada medida do regime. Neste caso, aquilo a que ele recusava submeter-se é a essa espécie de
juramento de obediência disfarçado de exame universitário.
Ei-lo, pois, a 1 de Junho de 1953, consagrado oficialmente como médico. Como o serviço militar argentino recusou este asmático, está a partir de agora livre como
o vento. Livre para voltar a partir. Ainda não sabe bem para onde - primeiro Caracas, onde o espera Granado - nem com quem. Com aquela miúda, Liria Bocciolesi, que
conheceu no laboratório do Dr. Pisani? Ela está muito apaixonada por ele, completamente seduzida. "Larga tudo e vem comigo", propõe-lhe ele.12 Ela tem 19 anos e
assusta-se. Com Domingo Granata? Esse colega da faculdade não entende o projecto e pergunta: Como? Quanto? No fundo, antes mesmo de se lançar na primeira grande
viagem com Granado, ele já "selecionou" aquele que, se voltar a partir, será o seu próximo companheiro de aventura: Carlos Ferrer, a quem todos chamam Calica, velho
amigo de infância, mais novo do que ele um ano, com quem fez mil e uma tropelias em Alta Gracia e em Córdova e que reencontrou em Buenos Aires, também a estudar
medicina. "A próxima viagem faço-a contigo", prometera-lhe ele.13
Em vez de voltar ao Chile, mais vale atalhar caminho pela Bolívia, onde as coisas estão a mexer. Em Buenos Aires, na rua Araoz, Ernesto foi o "mais-que-tudo" de
uma criada boliviana, Sabina, uma aimará analfabeta que lhe preparava frigideiras de batatas fritas, contando-lhe as dificuldades da sua vida na Bolívia. Ele sente-se
atraído por esse país, o mais índio e o mais pobre dos países andinos, empoleirado no tecto da América, o único do continente que não tem acesso ao mar. Desta vez
já não há moto potente; vão de comboio, económico e directo. Com Calica, só conseguiram juntar setecentos dólares. Mas, como se sabe, Guevara é perito em fazer esticar
um dólar.
A 7 de Julho de 1953, na estação do Retiro de Buenos Aires, numa tarde fria e cinzenta de Inverno, o jovem doutor Guevara e o companheiro instalam-se no banco de
madeira de um compartimento de 2.ª classe do comboio que vai levar três dias para os conduzir a La Paz, a mais alta capital do mundo. Têm catorze sacos, presentes
de última hora dos amigos, numerosos, que vieram juntar-se às famílias para a despedida. Na véspera, Célia, a "Mãe Coragem" de Ernesto, teve um pressentimento: "Desta
vez perco-o para sempre. Não voltarei a vê-lo"14. No cais, não consegue ainda resignar-se. Corre, como nos filmes, atrás do comboio que ganha velocidade, enquanto
que, agarrado à portinhola, o filho proclama, com uma ênfase teatral: "Aqui vai um soldado da América!".

"Uma revolução muito tímida"

Nem ele sonha como é verdade. De facto, esta segunda viagem vai desembocar em Cuba, num verdadeiro compromisso de soldado numa luta armada que abalará o continente.
Para já, Ernesto não faz nenhuma ideia do

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que a História lhe reserva, apesar do "anúncio" do profeta dos Andes. Note-se contudo, que é um viajante menos ingénuo do que parece, mesmo que o seu gosto pela
aventura e a sua paixão pela arqueologia permaneçam intactos. Aprendeu a ver; o seu olhar é mais atento às condições sociais e à vida política dos países que atravessa.
A Bolívia oferece-lhe um terreno de observação privilegiado, pois ele sente-se ainda apenas como um "observador neutro". O que lá se passa parece-se bastante com
uma revolução. Após dez dias em La Paz, escreve ao pai: "Vimos desfilar multidões incríveis de gente armada de mausers e metralhadoras ligeiras que disparavam por
dá cá aquela palha [...]. Aqui a vida humana tem pouco valor e é concedida ou retirada sem grandes escrúpulos. O que faz com que, para um observador neutro, a situação
seja extremamente interessante. Isso não impede que, ao mínimo pretexto, aqueles que podem se ponham ao fresco, e nós também"15. Na verdade, apesar deste discurso
destinado a tranquilizar a família, Ernesto permanecerá dois meses na Bolívia, fascinado por um país ignorado do resto do planeta e, todavia, um dos mais apaixonantes.
Bolívar, que deu o nome a este "Alto Peru" libertando-o, em 1824, do jugo espanhol, concedera imediatamente aos índios aimarás e quíchuas a propriedade individual
das terras, onde viviam em comunidade. Quarenta anos depois, um ditador confisca-lhas em proveito do Estado, isto é, das haciendas dos seus correligionários. Será
necessário aguardar até 1953 para que se produza essa (tímida) redistribuição de terras e sobretudo a abolição da servidão camponesa três dias de trabalho gratuito
em troca do direito a cultivar uma modesta parcela. "A 2 de Agosto vai ser proclamada a reforma agrária; prevêem-se agitações e distúrbios em todo o país"16, afirma
Ernesto. E acrescenta, sempre numa posição de observador, curioso de assistir a uma contra-revolução: "Esperava-se uma revolta de um momento para o outro e estávamos
determinados a vê-la de perto. Com grande pena nossa, ela não chegou a acontecer e apenas assistimos às manifestações de força do governo que, digam o que disserem,
me parece estável"17. Com Tita Infante, cujas opiniões comunistas conhece, é mais explícito: "O panorama político é extremamente interessante. A Bolívia é um país
que deu realmente um importante exemplo na América [...]. Os combates prosseguem ainda e, todas as noites, por toda a parte, há gente baleada, mas o governo é apoiado
pelo povo em armas..."18. Dez anos depois, em Cuba, será mais severo: "A Bolívia fez uma tímida revolução burguesa [...] e uma reforma agrária que não retirou os
bens ao clero"19.
Sem o terem premeditado, Guevara e o seu companheiro de viagem chegaram num momento em que a Bolívia atravessa uma das épocas mais interessantes da sua agitada história.
Em 1941, um jovem universitário, Victor Paz Estenssoro, revoltado com a derrota da Bolívia após a absurda guerra do Chaco por um petróleo inexistente, fundara o
Movimento Nacional Revolucionário, que iria ficar na história. Inicialmente muito nacionalista,

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influenciado pela ideologia nacional-socialista, o MNR adopta um tom mais socializante após a sua aliança com o Partido Operário Revolucionário, de tendência trotskista,
dominado pelos mineiros. Ora, situada nos Andes, a uma altitude média de 4 200 metros, a Bolívia é um paraíso geológico fabuloso, rico em minério estanho, prata,
antimónio - explorado pela Rosca, um pequeno número de famílias abastadas - Patiño, Aramayo, Hoschild tradicionalmente apoiadas pela igreja e pelo exército. Proletariado
esquecido mas bem organizado, os mineiros do Altiplano constituem, também, uma força poderosa. Sabem manejar a dinamite. Em Abril de 1952, enquanto os camponeses
índios ocupam as terras do patronato, os sindicatos surgem na cena política. Milícias operárias, mal armadas mas combativas e determinadas, fazem fogo contra o exército
(mil e quinhentos mortos) e impõem o regresso ao poder de Paz Estenssoro que, legitimamente eleito em 1951, fora apesar disso afastado e forçado ao exílio por uma
junta militar.
Desde então, essa revolução, pois trata-se de uma revolução (a segunda na América Latina depois da do México), dá início a uma profunda alteração das estruturas
sociais e económicas do país: nacionalização das minas - os senhores do estanho fogem para o estrangeiro; reforma agrária - a terra a quem a trabalha; e, mais insólito
ainda, dissolução do exército! que se reconstituirá. O objectivo é integrar na vida nacional tanto a massa índia, largamente majoritária mas até aí marginalizada,
como os trabalhadores das minas, a partir de agora unidos numa grande Central Operária dirigida por uma figura carismática e controversa, de ascendência sírio-libanesa,
Juan Lechín "el Turco". Guevara vai lançando sobre toda esta agitação um olhar simultaneamente interessado e céptico. Com o radicalismo que caracteriza as suas opiniões
incisivas, considera que o presidente Paz Estenssoro, "escorregadio e ambíguo [...], está provavelmente tão à direita como o seu vice-presidente" e que Lechín, "figura
visível de um forte movimento reivindicativo apoiado pelos mineiros armados, [...J é um arrivista, um femeeiro"20. Mas, apesar de mero observador, gostaria mesmo
assim de se ligar mais à vida da população. Propõem-lhe um emprego de três meses como médico numa mina. Ele aceita, na condição de ficar apenas por um mês, com o
seu companheiro Calica como enfermeiro. Mas obrigam-nos a esperar três semanas para confirmar o contrato. É demasiado tempo para os seus recursos. Alugaram por uma
ninharia um quarto miserável numa casa quase em ruínas, num bairro popular. A roupa está pendurada em pregos, nas paredes. Ernesto pouco se importa com estes pormenores
prosaicos. Passa o tempo a percorrer as ruas dessa cidade fascinante que é La Paz, estendida em escada por um quilómetro de desnivelamento. Em torno do centro histórico,
construído a 3 600 metros de altitude, a capital boliviana está protegida dos ventos gelados do Altiplano pela sua situação, surpreendente, no interior de uma ravina
rodeada de montanhas. No horizonte, no ar seco e tonificante, os picos nevados do Illimani, a 6 400 metros de altitude, servem de ponto de referência, magníficos,
sob o sol. Os pobres habitam El Alto, na serra, a quatro mil metros de altitude;

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os mais ricos moram em baixo, onde a temperatura é menos rigorosa e as árvores mais abundantes.
Para Ernesto, o espectáculo reside nas ruas, que fervilham de índios, de pele tisnada pelo vento e pelo sol, e de cholas (mestiços), cuja indumentária é bastante
semelhante à que ele encontrou, há um ano, no Peru: fatos coloridos, gorros de lã com orelheiras contra o frio, bebés atados às costas com tecidos multicolores.
Apesar das espingardas a tiracolo e alguns petardos gratuitos, a atmosfera é pacífica. Mineiros, camponeses, gente da classe média estão convencidos de terem ganho.
Puseram em xeque o exército e os proprietários, readquiriram algum prestígio. Na Praça Murillo, lugar histórico dos pronunciamientos, onde outrora um presidente
foi enforcado, os ajuntamentos têm um ar festivo. Muitas vezes há uma fanfarra. Dança-se um carnavalito, revolteando ao som dos tambores. Num canto do passeio, índias
de chapéu, acocoradas nas suas saias rodadas, vendem fritos e chicha.
Guevara mete o nariz em tudo. Não lhe falta o fôlego para subir e descer as ruelas mal pavimentadas, às vezes verdadeiros escorregadouros. Nem se lembra da asma.
A altitude não parece afectá-lo. "A saúde está excelente, apesar de não seguir nenhum regime alimentar", escreve ele.21 E Calica particulariza: "Jogámos futebol
a 3 700 metros de altitude. Ele corria mais depressa de que eu"22. Sempre mal pronto, sem se preocupar com a indumentária, não hesita em sentar-se no terraço do
elegante Sucre Palace Hotel.
Uma tarde, Calica, que já não aguentava não se lavar há vários dias, pede-lhe dinheiro para tomar banho. Ernesto, que desta vez gere a bolsa comum, recusa. É uma
despesa inútil, explica ele. Mais vale comer do que tomar banho. Calica insiste, consegue a sua parte. Quando regressa, uma hora depois, muito asseado, encontra
o nosso herói instalado diante de um substancial café com leite acompanhado de torradas. "O duche quente dera-me uma fome dos diabos. Olhei para ele. Sabia que não
tinha direito a comer, pois tinha feito uma despesa extra. Mas ele teve pena de mim e convidou-me a partilhar a sua pitança."23
Entre as classes populares de La Paz, os dois argentinos descobriram rapidamente um amável compatriota que tem mesa franca para toda a gente: Isaias Nouguès, chefe
de um pequeno partido de oposição antiperonista da província de Tucumán. Num bairro residencial de La Paz, ele vive um exílio dourado graças aos rendimentos da sua
plantação de açúcar argentina e não pára de recriminar Perón e os seus excessos. Guevara não tem qualquer escrúpulo em regalar-se comendo locros, guisado de milho
e carne. Pratica, como sempre, a "estratégia do camelo", capaz de absorver enormes quantidades de comida, como que para constituir "reservas", prevendo dias de penúria.
Mas quando entende que o seu hospedeiro exagera nas suas queixas contra a sua triste situação de exilado, não hesita em comentar, impertinente: "Ora, ora! Porque
é que não falas antes das tuas plantações de açúcar?"24
É em casa de Nouguès, onde pontifica a colónia argentina, que conhece um jovem advogado de Buenos Aires, Ricardo Rojo, de vinte e nove anos.

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Membro do Partido Radical hostil a Perón, Rojo teve problemas com a polícia peronista. Detido, interrogado, conseguiu fugir, refugiou-se na embaixada da Guatemala
e tenta actualmente regressar ao seu país de acolhimento. A Guatemala tornou-se no mais "sensível" dos países da América Central desde que um jovem coronel de esquerda,
Jacobo Arbenz, conduzido à presidência, teve a ousadia de atacar os privilégios da United Fruit Company.
O encontro com Rojo tem o seu interesse pelo facto de este último ter feito com Guevara uma parte da viagem, de mais tarde ter tido ocasião de o reencontrar por
diversas vezes e ter escrito posteriormente uma obra rica em recordações, Che Guevara, Vie et Mort d'un Ami, bastante bem documentada, mas que em certos pontos deve
ser lida com prudência por ser muitas vezes demasiado aproximativa. Os cadernos de viagem de Guevara relativos a esta segunda viagem infelizmente estão ainda inéditos,
ciosamente guardados em Cuba pela sua viúva, Aleida March. Mas a partir da sua correspondência abundante e dos relatos de Calica Ferrer e de Rojo, é possível reconstituir
o itinerário e o estado de espírito do nosso herói. É Rojo que conta, por exemplo, o sarcasmo de Guevara quando ambos aguardavam no vestíbulo para serem recebidos
por Ñuflo Chavez, recém-nomeado ministro dos Assuntos Camponeses, e assistem ao lançamento de insecticida sobre os índios que aguardam pacientemente o momento de
poderem expor os seus problemas relativos à posse das terras: "O MNR faz a revolução do DDT".25
É graças à habilidade desse mesmo Rojo, perito em contactos úteis, que Ernesto obtém os salvo-condutos necessários para visitar os dois centros mais importantes
de extracção de estanho da Bolívia, as minas Siglo XX e Catavi, na região de Oruro, palco de batalhas sangrentas entre as metralhadoras do exército e os paus de
dinamite dos mineiros. Mas é provável que a expedição tenha permanecido em fase de projecto. Ela não é mencionada nem por Guevara, nem por Calica nem por Rojo.
Em contrapartida, sabe-se que passou dois ou três dias a visitar com Calica uma mina de antimónio. "Vimos a bestialidade das companhias americanas, que tinham colocado
metralhadoras para disparar sobre os operários"26, escreve Calica. Ernesto nota sobretudo que "a mina está situada num lugar maravilhoso"27.

A reconquista do passado

Mais do que as peripécias da história imediata, são os mistérios do passado indígena que parecem excitar Guevara. Com um fotógrafo alemão que dispõe de um jipe,
vai à ilha do Sol, no lago Titicaca, não muito longe de La Paz, lugar onde, segundo a lenda, o deus Viracocha criou os homens. Há uma fotografia que o mostra sob
a imponente Porta do Sol, descoberta pelo francês Alcide d'Orbigny, no ponto que indica a posição do astro no momento do solstício de Inverno. Pouco se sabe ainda
sobre essa civilização Tiwanaku, que

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surgiu a quatro mil metros de altitude e que, todavia, conseguiu tornar habitável um ambiente difícil e hostil em planaltos frios, batidos pelos ventos.
"Continuamos a tentar descobrir com que meios um povo que vivia num ambiente tão agreste conseguiu mover blocos de granito ou de basalto pesando cem toneladas",
escreve o etnólogo Alfred Métraux. "Ficamos pasmados perante a audácia e a determinação desses homens."28 Guevara sente a mesma perplexidade. E também a alegria
de descobrir um minúsculo vestígio que escapou à pilhagem. "Num cemitério indígena, encontrei uma estatueta feminina, do tamanho do meu dedo mindinho, mas apesar
de tudo um ídolo..."29.
Depois de ter ido aquecer-se nos vales tropicais dos Yungas, onde a cultura da coca alimenta um consumo que por enquanto é apenas tradicional, Ernesto vai prosseguir
no Peru uma investigação arqueológica iniciada um ano antes, mas que o deixou insatisfeito. A 11 de Setembro de 1953, com Ferrer e Rojo, que afirma ter-se juntado
a eles, toma um camião, não propriamente em classe de "luxo", isto é, na cabine do condutor, mas amontoado na traseira, com os índios de rosto hermético e hálito
mal-cheiroso, provocado pelas folhas de coca longamente mastigadas. Já experimentou isso no ano anterior e não achou grande piada, ao contrário dos seus companheiros,
para os quais a experiência parece verdadeiramente deliciosa.
A propósito disso, há um pequeno incidente narrado por Ferrer, revelando que nem todos os índios possuem uma impassibilidade ancestral e que o próprio Guevara está
ainda longe de viver mergulhado num espírito de sisudez que mais tarde lhe será criticado. Para atravessarem a pé os dois quilómetros que separam os postos fronteiriços
entre a Bolívia e o Peru, os argentinos contrataram dois índios para transportarem as bagagens. Há, entre outras coisas, uma velha mala carregada de livros. A mala
é pesada e o índio franzino. Cambaleando sob o peso, está sempre a deixar cair a carga. A coisa repete-se a ponto de se tornar burlesca. "Ernesto tinha o riso mais
contagioso que eu jamais ouvi". Em breve o grupo desata às gargalhadas e o próprio índio se lança ao chão com a mala, contagiado pela hilaridade geral. "Foi a primeira
vez que vi um índio rir daquela maneira".30
Chegado à região de Cuzco, enquanto Rojo prossegue até Lima, Ernesto decide fazer uma paragem diante das ruínas ciclópicas da fortaleza inca de Sacsahuamán, que
mal teve tempo de ver na viagem anterior. Quer "verificar uma hipótese", apenas delineada na sua primeira passagem. O que dará um artigo bem documentado "Machu Picchu,
enigma de pedra na América", no qual Guevara não fala de América Latina mas de "Indo-América" e cuja mensagem é a seguinte: "Partam à reconquista do passado"31.
No seu diário, anota: "Não sei quantas vezes ainda poderei admirar [o Machu Picchu], mas é um dos espectáculos mais deslumbrantes que se possa imaginar"32.
O essencial das duas breves semanas dessa segunda travessia do Peru será, assim, consagrada ao "umbigo do mundo", que continua a fasciná-lo. Em Lima volta a encontrar
o doutor Pesce, que já o ajudara tão generosamente. Com Calica, são alojados em casa de uma enfermeira, Zoraida B...,

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também conhecida no ano anterior, no hospital dos leprosos. Calica confessa que ela cede facilmente ao encanto do belo Ernesto.33 Uma noite, durante uma festa em
casa dela, há uma algazarra por uma questão de saias. Os argentinos nada têm a ver com o caso, mas Ernesto acha que têm a obrigação de tomar o partido dos hospedeiros.
"Durante dez minutos andámos todos aos murros", conta Calica. "Os peruanos davam cabeçadas. Seja como for, ganhámos e expulsámos os convidados"34. É em casa dessa
simpática figura que Ernesto conhece alguns dirigentes da APRA, um partido ilegalizado por Odría, o general-ditador que nessa época governa o Peru. Um desses militantes
dá-lhe uma carta de recomendação para uma camarada peruana que poderá ajudá-lo na Guatemala, se por acaso ele for à América central, uma tal Hilda Gadea.
A APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana) foi criada em 1924 por dois homens, na época influenciados pelas teorias marxistas: Haya de la Torre e Mariátegui.
Este último fundará em 1928 o Partido Comunista Peruano, ao passo que Haya de la Torre se afastará do comunismo, imprimindo ao seu partido um tom nitidamente populista
e nacionalista. Bastante abrangente, defendendo tanto o "indigenismo" como o anti-imperialismo, a APRA irá congregar camponeses e mineiros, pequenos funcionários
e burguesia intelectual. Para escapar às malhas do poder, Haya de la Torre teve de se refugiar na embaixada da Colômbia. Como se vê, na América latina o asilo diplomático
desempenha o papel de saída de emergência para as personalidades em dificuldades. Rojo, que encontraram por acaso em Lima, conta que, ao ver a concentração de forças
militares diante da embaixada, Guevara comenta, trocista: "Porque terão tanto medo dele? Afinal é como os outros..."35.

"Aniquilar esses polvos capitalistas"

Rumo ao Equador, Ernesto e Calica sobem o deserto costeiro do Peru, até chegarem a um minúsculo porto-fronteira, Aguas Verdes. Embarcam então num pequeno navio de
cabotagem: seis horas de travessia antes de chegarem a Guayaquil, num estuário de águas acastanhadas, o rio Guayas.
O país deve o seu nome aos sábios franceses La Condamine e Jussieu que, no século XVIII, foram encarregados de medir, no equador, a extensão de um arco de meridiano.
No século XIX, a francofilia das elites é ainda tão forte que um presidente, García Moreno, solicitou (em vão) a Napoleão III o protectorado do Segundo Império.
No século XX, um outro presidente, Velasco Ibarra, proclamou o 14 de Julho como festa nacional equatoriana. Os argentinos ignoram estas curiosidades históricas.
O que mais os impressiona, em Guayaquil, é o carácter violento dos trópicos. O calor pesado e húmido, o céu cinzento, os mosquitos, as iguanas passeando-se nos lugares
públicos, o bolor que ataca as cabanas sobre estacas, os odores intensos do porto, de onde partem carregamentos de camarões, bananas e cacau.

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Aí os dois jovens vão encontrar Rojo, a quem chamam "el Gordo" (o Gordo), que os precedeu, e encontram, por feliz acaso, três compatriotas da idade deles, estudantes
de direito, Oscar Valdovinos, Andrew Herrero e Eduardo García, aliás "Gualo", cujo irmão é amigo de Calica, e que é militante "reformista", ou seja, de esquerda,
presidente da Federação Universitária de Córdova.
Chegados há pouco, também eles a caminho da Guatemala, estão encurralados em Guayaquil, por falta de dinheiro. Os seis rapazes decidem então fazer todos os gastos
em comum, para tentarem escapar o mais rapidamente possível àquele pântano insalubre. "Criámos uma espécie de colónia estudantil", escreve Guevara. "Vivíamos na
mesma pensão e bebíamos litros de mate durante o dia"36. Para juntar algum dinheiro, enviam Valdovinos a Quito, a capital, para lá vender toda a roupa de Inverno.
A 2 800 metros de altitude, terá mais hipóteses de arranjar comprador do que no braseiro do porto. "Guevara guardou o estritamente necessário: umas calças deformadas,
à força de tanto uso, uma camisa que já tinha sido branca e um casaco desportivo, com os bolsos esticados pelos diversos objectos que ele costumava lá meter, desde
o inalador para a asma às enormes bananas que muitas vezes constituíam a sua refeição"37. Sobre isto, Rojo conta mais uma peripécia confirmando o desleixo do rapaz:
"Afirmou que as calças que vestia - as únicas que lhe restavam desde há dois meses - estavam tão impregnadas da poeira da estrada que se seguravam de pé sozinhas".
Ninguém queria acreditar. "Ele despiu-as e tivemos que nos render à evidência: ganhara a aposta. As calças aguentavam-se em pé e o seu proprietário prometeu, no
meio da risota geral, que acabaria por conseguir fazê-las marcar passo"38.
Hilda Gadea relata: "No Equador, Ernesto conheceu vários dirigentes da juventude comunista e muitos intelectuais, entre os quais Jorge Icaza, com o qual debateu
bastante o problema dos camponeses e que lhe dedicou o seu Huasipungo, livro que depois Guevara me ofereceu"39. O huasipungo é uma forma de servidão que vigorava
ainda na Bolívia antes da reforma agrária: metade da semana de trabalho ao serviço do patrão em troca do direito a cultivar uma parcela de mau terreno.
Foi em Guayaquil que Guevara tomou a decisão fundamental de alterar o rumo da sua viagem. Adia o encontro com Granado na Venezuela e opta por se dirigir, com os
novos amigos, para a Guatemala, onde toda a gente lhe garante que "é aí que estão a acontecer as coisas". Explica à mãe: "Garcia convidou-nos a acompanhá-los à Guatemala
e eu estava com vontade de aceitar"40. O amigo Ferrer continua disposto a ir a Caracas. Separação amistosa.
Na Colômbia, ao sair do Equador, a estrada pan-americana que vai do Chile ao México interrompe-se. Impossível chegar ao Panamá, a não ser de avião - demasiado caro
- ou de barco - difícil. Mas não impossível. Rojo, que se considera bastante desenrascado, tira da manga uma recomendação oportuna que o parlamentar chileno Salvador
Allende, candidato à presidência da República, lhe deu, por solidariedade antiperonista, para um advogado socialista de Guayaquil. Este último põe-se em campo e
consegue viagem

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grátis para os argentinos, em grupos de dois, nada menos que na Flota Blanca da famosa United Fruit Company, empresa gigante da indústria bananeira mundial.
Os dois primeiros a partir são Rojo e Valdovinos. Como o quinto argentino, Herrero, decide regressar a Buenos Aires, farto de aventura, só restam Guevara e Garcia
que, a 25 de Outubro de 1953, embarcam por seu turno para uma travessia da América central que demorará cerca de dois meses. Do Panamá, prosseguem o seu trajecto
passando pela Costa Rica, Nicarágua, El Salvador e, por fim, a Guatemala.
No Panamá, Guevara publica na Siete (uma revista de grande tiragem) o seu artigo, abundantemente ilustrado com fotografias sobre o Machu Picchu. Apesar de pago em
dólares, este biscate não basta para sanear as finanças, que estão muito por baixo. Ele contará mais tarde como, para poder partir para San José da Costa Rica, deixou
como penhor todos os livros de medicina que tão afanosamente transportara até aí.41
A sua estada na Costa Rica é breve mas rica em contactos do mais variado tipo. Pequeno oásis democrático entre vizinhos turbulentos, esta "Suíça da América Central"
é o único país a não dispor de forças armadas. Desde 1952, um presidente social-democrata de gema, José Figueres, que se mantém equidistante em relação aos comunistas
e aos conservadores de direita, conseguiu a pouco e pouco fazer com que a United Fruit entregasse ao Estado mais de 40% dos seus lucros. Faz parte do grupo de fundadores
de uma original Legião das Caraíbas, aberta a todos os democratas da região, que o ajudou, em 1949, a fazer respeitar a vitória eleitoral de um candidato liberal.
Desde então, essa Legião transformou-se numa espécie de protectora dos refugiados políticos da região, expulsos pelos coronéis. Guevara, que no fundo é um tímido,
torna-se audacioso. Não hesita em pedir uma entrevista a dois eminentes refugiados dessa Legião, Juan Bosch, escritor de Santo Domingo, e Rómulo Betancourt, chefe
do Partido de Acção Democrática da Venezuela, que vivem na mesma casa. As circunstâncias em breve conduzirão um e outro à chefia dos seus países.
Juan Bosch parece-lhe "muitíssimo interessante". No seu diário, Ernesto observa: "É um homem de letras com ideias claras, que pensa à esquerda. Não falámos de literatura;
apenas de política"42.
Em contrapartida, Betancourt parece-lhe capaz de "se inclinar" para aquilo que melhor lhe convier. "Deu-me a impressão de ser um político com algumas convicções
sociais firmes, mas o resto é sinuoso..."43. Coloca-lhe a questão-chave: "Em caso de guerra entre os Estados Unidos e a URSS, de que lado se colocava?" E Betancourt
responde sem hesitar: "Do lado dos Estados Unidos, evidentemente"44. Esta resposta, dirá ele a Hilda Gadea, classificou-o como um traidor aos interesses do seu povo.
Quanto ao líder do Partido Comunista da Costa Rica, Manuel Mora, que também chega a conhecer, recebe dele "uma boa explicação sobre a política do país [...] uma
lição de história"45.

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Se, por um lado, Guevara continua a considerar-se um globe-trotter aventureiro, batendo as estradas à descoberta da "grande pátria" latino-americana, por outro lado
mostra-se cada vez mais atento à dimensão política dessa realidade e a sua simpatia, ainda intuitiva, em relação às posições comunistas torna-se evidente. Numa carta
de 10 de Dezembro de 1953, dirigida de San José à sua tia Beatriz, na qual finge querer assustar a solteirona que o adora, percebe-se, por trás da caricatura, a
evolução que se desenha. "Querida tia: Tive ocasião de passar diante das propriedades da United Fruit [...]. Fiz um juramento, perante uma imagem do velho camarada
Estaline, que não descansaria enquanto não fossem aniquilados esses polvos capitalistas. Vou aperfeiçoar-me na Guatemala e hei-de conseguir o que me falta para ser
um verdadeiro revolucionário"46. O que lhe falta é justamente assistir ao esmagamento exemplar de uma tentativa democrática pelos Estados Unidos e pela CIA.
Note-se que antes de partir, é na Costa Rica que Guevara ouve falar, pela primeira vez, contado pelos próprios protagonistas, do ataque ao quartel Moncada, em Santiago
de Cuba.
A operação, insensata, fora levado a cabo quatro meses antes, a 26 de Julho de 1953. por um jovem advogado cubano de vinte e sete anos, chamado Fidel Castro. A ideia
era fazer estalar uma revolta numa parte da ilha para desencadear uma greve geral e mobilizar o povo contra a ditadura de Batista, apoiada por Washington. A operação
correu mal. De entre os mil e trezentos assaltantes, sessenta e um são mortos ou assassinados nos dias seguintes. Muitos ficaram feridos. O dirigente, Castro, é
preso. Escapando ao massacre, alguns conseguiram chegar à Costa Rica. Entre eles, Calixto García, um negro, futuro "comandante da revolução", e Severino Roseli,
que conta: "Havia um café que era o ponto de encontro de muitos estrangeiros da capital [...]. Chamávamos-lhe "a Internacional", pois havia sempre gente de diversos
países, que falavam de conspiração [...]. Nesse café, fomos os primeiros Moncadistas a conhecer o Che. Travámos amizade com ele. Ele andava por lá, com uma espécie
de mochila..."47.
Os relatos dos cubanos são de tal forma impressionantes, tão cheios de som, de sangue, de suspense, que Guevara parece ter alguma dificuldade em levá-los a sério.
Segundo Rojo, cujo testemunho, neste ponto, é pouco fiável, ele terá dito: "Rapazes, contem-nos antes um filme de cowboys"48.
Vinte quilómetros após terem transposto a fronteira entre a Costa Rica e a Nicarágua, Guevara e Garcia têm um encontro inesperado. Caminham debaixo de uma chuva
intensa, um aguaceiro tropical. Guevara anda com dificuldade. Pediram boleia à saída de San José, mas um dos camiões que os recolheu virou-se. Ernesto, empoleirado
sobre a carga, foi projectado no chão, e ficou ferido. Tem dores no calcanhar. A estrada está cheia de lama. "Por estas bandas, a estrada pan-americana é uma desilusão",
resmunga ele.49 De repente, surge-lhes à frente um Ford com três homens a bordo, carro trava. Pasmo geral. Por entre a cortina de chuva reconhecem "o grande bigode
de Rojo, el Gordo". Abraços sob uma carga de água. Explicações.

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Rojo apresenta os outros dois passageiros. São argentinos, os irmãos Beveraggi que, após uma estadia nos Estados Unidos, na sequência de desaguisados com o regime
peronista regressam a Buenos Aires, trazendo como única riqueza o carro americano, um modelo de 1946, com matrícula de Boston, Massachusetts. Rojo conheceu-os na
Guatemala, onde chegou em meados de Novembro. Aproveitou a ocasião para descer com eles até ao sul para saber (segundo o que ele diz) o que acontecera aos dois "retardatários".
Este encontro volta a alterar os planos. Os irmãos Beveraggi decidem voltar para trás e ir à Guatemala para lá venderem o carro pelo melhor preço.
E lá vão os cinco no grande Ford. Rumo ao país de Quetzal. Aqui chega um soldado da América!

Notas:
1 Ernesto Che Guevara, Alberto Granado, Latinoamericana, Journal de Voyage, Austral. Paris, 1994, p. 35.
2 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 353.
3 Ernesto "Che" Guevara, Notas de Viaje (Tomado de su archivo personal), Abril-Sodepaz, Havana-Madrid, 1992, p. 21. De notar que a "redacção" desta obra foi certificada,
para a edição cubano-espanhola traduzida para francês, pela viúva do Che, Aleida March, que possui ainda uma parte significativa dos manuscritos inéditos do marido.
4 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 358.
5 Alberto Granado, entrevista com o autor, Havana, 1992.
6 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 367.
7 Só em 1972 o governo de Unidade Popular de Salvador Allende nacionaliza o cobre do Chile. Após o golpe de estado de 1973, o general Pinochet irá destinar 10% das
receitas obtidas com o cobre para financiar o orçamento das forças armadas.
8 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 342.
9 Ibid., p. 412.
10 Ibid., p. 407.
11 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 32.
12 Adys Cupull e Froilán González, Ernestito Vivo y Presente, op. cit., p. 165.
13 Carlos Ferrer, entrevista com o autor, Buenos Aires, 1994.
14 Adys Cupull e Froilán González, Ernestito Vivo y Presente, op. cit., p. 172.
15 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 15.
16 Ibid.
17 Ibbid., p. 19.
18 Ibid., pp. 21-22.
19 Ernesto Che Guevara, Obras, 1957-1967, op. cit., t. 2, pp. 474-475.
20 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 22.
21 Ibid., p. 20.
22 Calica Ferrer, entrevista com o autor, Buenos Aires, 1994.
23 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 23.

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24 Ricardo Rojo, Che Guevara. Vie et Mort d'un Ami, op. cit., Seuil, Paris, 1968, p. 23.
25 Ibid., p. 22.
26 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., p. 90.
27 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 21.
28 Alfred Métraux, Les Incas, Seuil, Paris, 1961, p. 25.
29 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 21.
30 Ibid., P- 23.
31 O artigo sobre o Machu Picchu, publicado inicialmente na revista Siete (Panamá), em Dezembro de 1953, foi reproduzido no jornal Granma, Havana, 5 de Outubro de
1987.
32 Maria del Carmen Ariet, Che, Pensamiento Político, Política, Havana, 1988, p. 41. Esta historiadora cubana, situando-se na linha da hagiografia oficial, é, tanto
quanto sabemos, a única a ter tido acesso ao texto inédito do diário que Guevara escreveu na sua segunda viagem. Esse privilégio foi-lhe concedido por ter sido colaboradora
da viúva de Ernesto Guevara, Aleida March. Esta última, depositária ciosa do essencial dos arquivos pessoais do seu ilustre marido, ainda não autorizava a consulta
na altura em que redigimos estas linhas.
33 Calica Ferrer, entrevista com o autor, Buenos Aires, 1994.
34 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., p. 94.
35 Ricardo Rojo, Che Guevara. Vie et Mort d'un Ami, op. cit., p. 30.
36 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 25.
37 Ricardo Rojo, Che Guevara. Vie et Mort d'un Ami, op. cit., p. 33.
38 Ibid.,p. 35.
39 Hilda Gadea, Años Decisivos, op. cit., p. 33.
40 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 27.
41 Hilda Gadea, Años Decisivos, op. cit., p. 33.
42 Maria del Carmen Ariet, Che, Pensamiento Político, op. cit., p. 43.
43 Ibid., p. 44.
44 Hilda Gadea, Años Decisivos, op. cit., p. 22.
45 Maria del Carmen Ariet, Che, Pensamiento Político, op. cit., p. 43.
46 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 29.
47 Revue de la Bibliothèque Nationale José Marti, Havana, 1988; citado por Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., p. 97. Ver também Mário Mencia, "Los
primeros Cubanos que conocieron al Che", in Bohemia n.º 40, 7 de Outubro de 1977.
48 Ricardo Rojo, Che Guevara. Vie et Mort d'un Ami, op. cit., p. 48. O testemunho de Rojo é bastante duvidoso, pois parece pouco provável que ele tenha estado na
Costa Rica ao mesmo tempo que Guevara.
49 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 30.

101

III
A MUDANÇA RADICAL

Respirar Democracia

"O único país da América central que vale a pena é este [...]. Reina aqui um autêntico clima de democracia e de colaboração com todos os estrangeiros que cá chegam
[...]. Acho que vou ficar aqui dois anos, se tudo correr bem, ou pelo menos seis meses"1.
Desde a sua chegada à Guatemala, Guevara está seduzido. Não só está bem colocado para observar como procede, para trocar as voltas ao tio Sam, um governo que, sem
ser comunista, os aceita como aliados, como ainda por cima esse país magnífico, carregado de vulcões, tem matéria suficiente para fazer sonhar o arqueólogo amador
em que ele se tornou, partidário declarado da "indo-americanidade" do continente. Ele cresceu numa Argentina que se considera como "o único país branco ao sul do
Canadá", mas num poema redigido na Guatemala, proclama: "Sou mestiço [...]. Volto-me para as fronteiras da América hispânica para saborear um passado que engloba
o continente". Na Guatemala, os ladinos são os brancos misturados com os mestiços, minoritários aos olhos de 60% da população, composta ainda de índios "puros",
não cruzados, descendentes da brilhante e milenária civilização Maia que se estende desde o México às Honduras. Os Maias conheciam a cerâmica, a tecelagem, a ourivesaria,
os segredos dos astros e da arquitectura. Os vestígios arqueológicos são abundantes - pirâmides, estelas com hieróglifos, túmulos, estátuas -, sobretudo nas florestas
ainda pouco exploradas do Petén, ao norte, precisamente onde se aninha o Quetzal, pássaro símbolo da liberdade morre se ficar preso que deu o nome à unidade monetária
do país.
A chegada de Ernesto à Cidade de Guatemala, a 20 de Dezembro de 1953, coincide mais ou menos com a de John E. Peurifoy, novo embaixador "de choque", que faz parte
daqueles diplomatas sem escrúpulos que os Estados Unidos destacam para as zonas quentes do planeta quando entendem que os seus interesses estão em perigo. Para o
Departamento de Estado, é justamente

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o caso da Guatemala, que Washington pretende fazer regressar ao bom caminho, se necessário pela força. Porque o novo governo esboça uma prudente tentativa de reestruturação
de um sistema agrário ainda feudal que mantém na posse de vinte e duas famílias patrícias metade das terras cultiváveis.
Eleito em 1951, o coronel Jacobo Arbenz tornara-se, aos 37 anos, no mais jovem chefe de Estado do continente. Filho de um farmacêutico de origem suíça de Quetzaltenango,
faz parte de uma geração de oficiais nacionalistas fartos das ditaduras e das prebendas concedidas ao big brother americano. A sua doutrina fica por aí, pois não
tem formação política, apesar de estar cheio de boa vontade. Ele queria para a Guatemala, limitada à cultura de bananas e café, um movimento sindical forte e a criação
de uma nova classe de pequenos proprietários de terras. Põe então em prática uma lei do trabalho e um projecto de reforma agrária legados pelo seu antecessor, Juan
José Arévalo, presidente "democrático", do qual foi ministro.
A reforma agrária, promulgada em 1952, não pretende uma subversão total, mas a sua lógica económica é, só por si, de uma audácia sacrílega. Estipula que, nas propriedades
com mais de 90 hectares, as terras que não forem cultivadas ou que forem deixadas em pousio, serão expropriadas, mediante indemnização adequada, para serem distribuídas
aos campesinos. A United Fruit pressente logo o perigo. Possui duzentos e trinta e quatro mil hectares, mas só explora 15% dessa área.
"La Frutera", como lhe chamam na região, é um verdadeiro Estado dentro do Estado da Guatemala. Em 1936, celebrou um acordo extremamente vantajoso com o ditador Ubico,
protótipo do tirano, imortalizado em 1946 pelo guatemalteco Miguel Angel Asturias - que receberá o prémio Nobel da literatura em 1967 -, na sua obra El Señor Presidente.
Dispõe das melhores terras do país, onde prosperam imensas e florescentes plantações de bananeiras. Emprega mais de dez mil camponeses e controla um tráfico ferroviário
que beneficia directamente a sua White Float, uma "Frota Branca", composta de trinta e oito navios de grande tonelagem, que Guevara conhece por ter embarcado num
deles para Guayaquil. A United Fruit é o arquétipo da multinacional americana, já presente no Equador e também em cada um dos seis países da América central, no
México, em toda a parte das Caraíbas onde for possível obter lucro com a cultura e o comércio dos frutos tropicais. Asturias chama-lhe o "polvo verde". Dita a sua
lei na indústria bananeira mundial e faz parte dos gigantes do big business americano. Os grupos Morgan e Rockefeller são membros do seu directório. Acontece, por
outro lado, que um advogado, John Foster Dulles, está ligado a essa empresa tentacular. Participou na redacção dos contratos leoninos de 1936, e ei-lo hoje à frente
da diplomacia americana, sob a tutela do presidente Eisenhower. Além disso, é o seu próprio irmão, Allen W. Dulles, que dirige uma outra sociedade não menos temível,
a CIA. O quadro está, pois, completo quando surgir o sinal de alarme.
Desde o início, o que mais impressiona Guevara no plano político é a total liberdade de imprensa. Deixou uma Argentina onde o peronismo controlou

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rádios e jornais e onde, como vimos, a própria ironia constitui um delito punido por lei. Na maior parte dos países sob ditadura militar que ele atravessou, a sorte
da imprensa não é melhor. Na Guatemala, pelo contrário, quinze dias depois de lá chegar, garante: "Eis um país onde é possível encher os pulmões e respirar democracia.
Há alguns jornais, apoiados pela United Fruit, que eu fecharia imediatamente, se fosse Arbenz, porque são uma vergonha. E contudo eles dizem o que lhes apetece e
contribuem para criar o clima que os Estados Unidos desejam, dando a impressão de que isto aqui é um covil de ladrões, comunistas, traidores, etc."2. Mais alguns
dias de observação e acrescenta: "A Bolívia era um país interessante, mas a Guatemala é-o muito mais, pois ergueu-se contra os seus adversários sem ter independência
económica, tendo que aguentar ataques armados de toda a espécie e sem nunca atentar contra a liberdade de expressão"3.
Tudo isso deixa o nosso homem muito excitado. Mas não basta respirar o ar tonificante da democracia para subsistir. "Para mim, o dinheiro não significa nada"4, proclama
ele. Mas há que resolver alguns pormenores tão prosaicos como a comida e a dormida, sobretudo quando se está tão desfalcado como Ernesto, ao fim de seis meses de
viagem. Ao contrário de Rojo, que é albergado às custas do governo, na sua qualidade de refugiado político, Ernesto e o seu amigo Gualo García têm que se desenrascar
sozinhos. Rojo apresentou-os a uma jovem economista peruana, Hilda Gadea. Também ela refugiada política, mas trabalhando num organismo de Estado, tem um salário
regular e pode assim servir de fiadora junto da senhoria. Ela aceita, não sem uma certa reserva: "Como muitos latino-americanos, sentia alguma desconfiança em relação
aos argentinos, primeiro por causa da sua presunção de serem oriundos de um país mais desenvolvido do que os nossos, e depois pela sua fama de arrogância, espalhada
por todo o continente"5.
Os dois argentinos instalam-se numa pequena pensão a três cuadras da casa dela, perto do Palácio Nacional, sede da Presidência. Dois ou três dias depois desta primeira
apresentação, Ernesto, sempre acompanhado por Gualo, vai visitar o seu contacto peruano. Lembrou-se que tem uma carta de apresentação da APRA. No seu livro dedicado
aos "anos decisivos" vividos com Guevara, Hilda Gadea traça o retrato dos dois rapazes, começando pelo de Ernesto. "Era alto e magro - 1,76 metros* - em relação
à estatura média nos nossos países, tinha uma pele muito clara, pálida, cabelos castanhos, olhos pretos, grandes e expressivos, nariz curto, feições regulares e
um aspecto agradável. Tinham ambos um ar descontraído e sorridente. A voz de Guevara era um pouco rouca, muito masculina, o que era surpreendente, tendo em conta
a sua aparente fragilidade; os seus movimentos eram ágeis e rápidos, mas davam a impressão de serem sempre muito controlados. Reparei no seu olhar inteligente e
observador e nos seus comentários incisivos. Segundo afirmaram, um era médico e o outro advogado, o que custava a acreditar porque tinham ar de estudantes, mas falando
com eles percebia-se que eram cultos"6.

Nota: * Hilda Gadea embeleza um pouco a memória de Guevara. Ele media 1 metro e 73.

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Quanto a Hilda Gadea, está longe de ser uma beleza. É uma bolinha morena, de pernas curtas, mestiça de ascendência índia e chinesa, cabelo muito negro, olhos amendoados.
É três anos mais velha que ele. Para Ernesto, o seu encanto é quase puramente abstracto. Vê nela um temperamento determinado, como ele aprecia, pois é uma anti-imperialista
dos quatro costados, militante assumida da ala mais esquerdista da APRA, o partido do tal Haya de la Torre que, no entanto, ele considera "igual aos outros". Durante
semanas, Ernesto e Hilda terão longas conversas de carácter político que, pouco a pouco, ganharão um tom mais pessoal.
"À primeira vista", reconhece ela, "Guevara não me causou boa impressão. Pensei, decerto apressadamente, que ele era demasiado bonito para ser inteligente. Pareceu-me
vaidoso, muito cheio de si"7. Na realidade, o "belo rapaz" explicar-lhe-á mais tarde que estava no início de uma crise de asma e que estava sobretudo cheio de ar
que o seu peito arqueado não conseguia expulsar.
Seja como for, ela interessa-se suficientemente por ele a ponto de o introduzir no seu círculo de relações e de lhe apresentar o pequeno grupo dos seus amigos pessoais.
Refugiados políticos como ela ou nativos do país, a maior parte ou são membros do Partido Comunista ou se movimentam em torno do Partido Guatemalteco do Trabalho
(comunista). O PGT é o mais pequeno mas o mais bem organizado dos seis partidos "revolucionários" que apoiam o regime de Arbenz, o único que não está demasiado afectado
por lutas internas, e também o mais escutado pelo poder. E Ernesto parece sentir-se absolutamente à vontade neste meio, embora decida manter toda a sua liberdade.
A propósito disso, Rojo conta (e a história é confirmada por Hilda Gadea) que o Ministério da Saúde, antes de confiar a Guevara um posto médico ardentemente desejado
no Petén, na região norte, no meio dos mais belos vestígios da civilização maia, exige-lhe a inscrição no PGT ou que lhe entregue uma parte do salário. Ao que ele
responde: "No dia em que eu decidir aderir a um partido, fá-lo-ei por convicção e não por obrigação".
Contudo, deixa-se guiar sem grandes reticências por essa camarada peruana decidida, que começa por o introduzir em casa dos seus melhores amigos, os Torres, uma
família de comunistas nicaraguenses. A filha, Myrna, é uma colega de trabalho no Instituto de Planeamento Económico, onde ambas trabalham; o pai, professor, é uma
figura respeitada no meio dos exilados, dirigente de um partido perseguido pelo ditador Somoza; o filho, secretário-geral da Juventude Democrática (comunista), acaba
de regressar da China popular. É com estes dois últimos que Guevara gosta de conversar. Edelberto Torres, o velho comunista, fica impressionado com o rapaz: "Tão
novo e já tão cheio de talento, de maturidade!"8
Hilda apresenta-lhe também uma exilada hondurenha, Elena Leiva, de boa formação marxista, que esteve na URSS e na China e que é dirigente da Aliança das Mulheres,
outra organização comunista. "Guevara revelava uma grande simpatia pelas realizações da União Soviética"9, afirma ela. Uma

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noite, ao sair de casa de Elena, assiste a uma discussão acalorada entre Ernesto e Rojo. O primeiro afirma que, para mudar as coisas, não há outro processo senão
uma revolução violenta, pois todas as meias-medidas preconizadas pela APRA peruana, pela Acção Democrática Venezuelana, pelo MNR boliviano, etc., não passam de "puras
traições". Rojo, pelo contrário, defende o princípio do combate eleitoral. A opção, fundamental, entre a estratégia da espingarda e a do boletim de voto não é ainda
a "pedra de toque" do debate revolucionário. Perante a argumentação e a exaltação crescente de cada um deles, Hilda intervém, tenta acalmá-los e Ernesto então explode:
"Não quero que me acalmem!". O que deixa imediatamente gelada a menina-árbitro, a quem Guevara depois pede desculpa: "O Gordo às vezes põe-me fora de mim"10. Guevara
já está longe daquela "observação neutra" que preconizava ainda seis meses antes, quando via desfilar os mineiros bolivianos na esplanada de um café de La Paz, frustrado
por não assistir a uma contra-revolução anunciada.

Os dois "eus" do doutor Guevara

Na Cidade de Guatemala, como sucedera em San José de Costa Rica, encontra também um pequeno contingente de cubanos que escaparam ao ataque frustrado ao quartel Moncada,
e que lhe confirmam a ideia de que é necessário combater "de arma na mão", mesmo que nem sempre o sucesso seja garantido.
É uma semana após a sua chegada, a 27 de Dezembro de 1953, que, em casa de Myrna, Hilda lhe apresenta os cubanos. São seis, entre os quais Mario Dalmau e Antonio
López, denominado "Nico". O primeiro guiava a viatura atribuída a Raul Castro, irmão de Fidel, no dia do assalto mas, infelizmente, deu uma volta errada para ir
tomar o Palácio da Justiça e chegaram atrasados. O segundo é um tipo esgalgado e simpático tem mais de 1 metro e 90 de altura, um operário que se tornou amigo de
Fidel Castro quando este último preparava a sua campanha eleitoral, para vir a ser deputado aos 24 anos, antes do golpe de Estado de Batista deitar por terra todas
as ilusões eleitoralistas. Nico tinha um policopiador, no qual imprimiu os quinhentos exemplares da proclamação de Castro afirmando que, uma vez que o ditador tinha
tomado o poder pela força, era pela força que ele deveria ser derrubado. Aqueles cubanos são pessoas simples, sem grande instrução, como a maior parte dos combatentes
de Moncada, mas com um ardor combativo que conseguem transmitir. "Quando ouvia os cubanos fazerem afirmações grandiloquentes com uma sinceridade absoluta, sentia-me
muito insignificante", observa Ernesto no seu diário. "Eu posso fazer um discurso dez vezes mais objectivo e sem lugares-comuns, posso ler ainda melhor e convencer
o meu auditório, mas não me convenço a mim próprio. Os cubanos sim. Nico punha toda a sua alma no microfone e por isso Conseguia entusiasmar até um céptico como
eu"11.

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Nesse primeiro semestre de 1954, o clima político na Guatemala torna-se cada vez mais tenso. A imprensa é maioritariamente hostil a Arbenz. Financiados pela publicidade
e por subsídios da United Fruit, os jornais da oposição transmitem, dia após dia, as inquietações dos grandes latifundiários, da Igreja ultra-conservadora e os comentários
azedos dos enviados especiais dos Estados Unidos, que proferem a acusação capital, em período de guerra fria: "Vendido ao comunismo". Em 1948, os Estados Unidos
criaram, à escala do "seu" hemisfério, a OEA (Organização dos Estados Americanos), com sede em Washington, visando impedir que o bloco soviético se infiltre no continente.
As manobras contra a Guatemala são tão evidentes que Guevara escreve, a 15 de Janeiro de 1954: "O "cozinhado" principal parece ir ser digerido nas conferências de
Caracas, onde os ianques vão armar as suas redes para tentar impor sanções à Guatemala"12. De facto, reunidos em Março na Venezuela, onde impera a ditadura de Perez
Jiménez, os Estados membros da OEA afirmam que "toda a actividade comunista na América Latina constitui uma ingerência nos assuntos internos americanos", uma maneira
de confirmar a doutrina de Monroe, que reinvidica para os Estados Unidos uma soberania implícita sobre a região e que serve de álibi legal a toda a política intervencionista.
No final de Janeiro, o presidente Arbenz denuncia publicamente os preparativos de uma invasão armada, apoiada por um "governo do Norte", o que coloca a Guatemala
à beira de uma ruptura diplomática com o dito vizinho.
Numa tal situação, o céptico Guevara não hesita em escolher o seu campo. As suas longas conversas com Hilda não são de molde a refrear a sua impaciência. Incitam-no,
pelo contrário, a firmar as suas pulsões de combate por uma verdadeira justiça social numa base teórica sólida, assumidamente marxista. "Nós dois já tínhamos lido
os romances precursores da Revolução Russa: Tolstoi, Gorki, Dostoievski, as Memórias de um Revolucionário de Kropotkine", escreve Hilda Gadea. "Agora os nossos temas
habituais de discussão incidiam em Que fazer? e O Imperialismo, Estádio Supremo do Capitalismo, de Lenine, o Anti-Dühring, o Manifesto Comunista, A Origem da Família,
da Propriedade Privada e do Estado e outras obras de Marx e Engels e também Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico de Engels, bem como O Capital de Marx,
com o qual eu estava mais familiarizada, em função dos meus estudos económicos"13.
O facto de as conversas de Ernesto terem "incidido" nesta bibliografia não significa que ele tenha lido todas essas obras, apesar de ser um leitor voraz e rápido.
Mas o ambiente político geral, uma certa disponibilidade de tempo, frequentemente imposta pelas crises de asma - "este clima não é bom para mim" -, e a solicitude
da camarada Gadea permitem afirmar que é na Guatemala que ele "entra no marxismo". Produz-se uma "mudança qualitativa" decisiva na evolução mental e na reflexão
social e política de Ernesto Guevara. É certo que ele faz ainda diligências para se governar, sonha em ir descobrir o México, Cuba, os Estados Unidos. Acalenta mesmo
o projecto de levar a mãe à velha

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Europa "onde permanecerei até queimar o meu último cartucho monetário". Mas. numa carta à adorada tia Beatriz, cuja pusilanimidade se diverte a beliscar revela finalmente
a verdade, fazendo-lhe notar, sempre provocador, que ela não poderá queixar-se por o seu "sobrinho proletário" não ter sido franco com ela: "A minha posição não
é, de modo nenhum, a de um pensador diletante. Tomei deliberadamente posição a favor do governo da Guatemala e, nesse âmbito, dentro do grupo do PGT, que é comunista.
Estou também ligado a intelectuais dessa tendência que editam aqui uma revista, e trabalho como médico nos sindicatos"14. É a primeira vez que Guevara define com
tanta clareza a sua posição, alinhada ao lado dos comunistas guatemaltecos, e convém que se retenha a data: 12 de Fevereiro de 1954.
Os acontecimentos que irão seguir-se não farão mais do que reforçar essa orientação. Apenas a última observação sobre a sua actividade como médico nos sindicatos
deve ser corrigida, pois releva ainda da pura intenção, destinada sem dúvida a tranquilizar a boa senhora que, sempre preocupada, lhe enviou alguns dólares. Se houve
colaboração com os sindicatos, ela terá sido meramente episódica e sempre gratuita. A verdade é que, durante a sua permanência na Guatemala, Guevara nunca conseguirá
ter um emprego estável, devidamente remunerado. "É a primeira vez que preciso de emprego, e não arranjo nada"15, confessará ele. Uma tentativa para ser admitido
na leprosaria local não deu resultado; tal como a de ir trabalhar no Petén, no Norte do país. "É claro que eu poderia enriquecer aqui, desde que recorresse ao vil
procedimento de revalidar a minha carteira profissional, montar um consultório e especializar-me em alergias. Fazer isso seria a mais profunda traição para com os
dois "eus" em luta dentro de mim: o socialudo e o aventureiro da estrada"16. Note-se que o "eu" viajante de Ernesto luta ainda em pé de igualdade com o "eu" socialudo
de Guevara.
Como, de qualquer forma, o regulamento da Ordem dos Médicos, "absolutamente reaccionário", levanta enormes obstáculos à participação de um estrangeiro "na partilha
das prerrogativas de um grupo de oligarcas que não querem, por nada deste mundo, perder o seu filão"17, ele terá que se contentar, mais uma vez, com os biscates
e os expedientes.
Alguns não deixam de ter um certo lado pitoresco. "Neste momento", escreve ele três semanas após a sua chegada, "vendo nas ruas uma magnífica imagem do Senhor de
Esquipulas*, um Cristo negro que faz milagres incríveis. Aquele que eu vendo é luminoso. Tenho já um extenso repertório de milagres deste Cristo, que vou sempre
aumentando e, como quem não quer a coisa, exagero um pouco, quando vejo que há hipótese [...]. As comissões permitem-me viver o dia-a-dia, o moral é excelente"18.
Por outro lado, Hilda Gadea apresentou-lhe um gringo, Harold White, que se tornará seu amigo, um antigo professor de História na Universidade de Utah (EUA), retintamente

Nota: * Esquipulas: pequena vila da Guatemala, perto das Honduras. Local de peregrinação, célebre pela sua estátua de um Cristo Negro, de um metro e meio de altura.

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marxista. "Partilhamos as nossas ignorâncias. Ele não fala uma palavra de castelhano, mas entendemo-nos às mil maravilhas". O gringo pede-lhe que lhe dê umas aulas
de espanhol. "Um peso por lição, mais trinta pesos mensais para ajudar um economista que prepara um livro de geografia. Total: 50 pesos. Tendo em conta que a pensão
custa 45, que não vou ao cinema e que não preciso de comprar medicamentos, é um super-salário. O único problema é que já devo dois meses [...]. Mas tenho uma proposta
concreta de trabalho como pintor numa oficina de tabuletas, o que pode significar que em vez de um Rockefeller (em ponto pequeno), eu me transforme em Hitler"19.
Mesmo apresentada com humor, a "proposta concreta" desvanece-se no clássico mañana, eterno amanhã de promessas não cumpridas, e Ernesto, acompanhado de Gualo, vai
pedir ajuda a Hilda, que lhes empresta algumas jóias para acalmar a senhoria.
Ele sabe pouco de inglês, mas aceita, novamente com o apoio de Hilda, lançar-se na tradução para espanhol de um livro do gringo White sobre o marxismo. Com Nico
e alguns cubanos audaciosos, vão à província vender artesanato, bugigangas, de tudo um pouco. Percorrem as verdes montanhas dos Quichés, confraternizam com os índios,
"homens de milho" de pernas nuas, por vezes curvados sob enormes feixes de lenha presos com um arnês frontal, admiram as tecelãs que, nas praças da aldeia, trabalham
em simples teares os huipils, vestimentas magníficas e multicolores que distinguem, consoante os motivos, as mulheres de cada etnia. Mas Nico e os cubanos saem da
Guatemala em Abril e vão para o México, e a venda ambulante cessará, por falta de vendedores. Por fim, o único emprego mais ou menos regular que Ernesto consegue,
mas só no fim de Abril, é o de médico-interno num centro de formação de professores.
Para o governo Arbenz, está a aproximar-se o seu fim. Sensibilizados mais do que outros para os perigos de uma repressão anunciada se a reacção vencer, muitos exilados
políticos e estrangeiros tentam encontrar terras de acolhimento mais sossegadas. Grande parte vai para o México. Em fins de Fevereiro, Rojo parte para os Estados
Unidos e Gualo García regressa para casar com uma noiva que o espera em Buenos Aires. Ernesto vê-se um pouco abandonado, sem saber bem para onde ir, embora não lhe
faltem projectos nem coragem. "As minhas actividades futuras são um mistério," mesmo para Deus. Para já, gostaria de ter um pouco de tranquilidade, pois estou a
seleccionar material para o projecto de um livro [...] mas a luta quotidiana pela subsistência não me deixa muito tempo livre [...]. Se não encontrar uma solução,
então, parto por aí fora (mas só daqui a quatro meses, até regularizar as minhas dívidas), à descoberta das ruínas maias e deste país, a preceito"20. Por não ter
um contrato de trabalho que lhe dê uma garantia de permanência, tem de abandonar o território para regressar munido de um novo visto de entrada na Guatemala. Pega
então de novo na mochila e vai uma semana ao vizinho Salvador, "em parte a pé, em parte à boleia, e em parte (que vergonha!) pagando"21. Num poema redigido nessa
época, regista:

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"Persiste em mim o aroma dos passos vagabundos"22. Em Salvador obtém o visto e aproveita para ir admirar algumas maravilhas arqueológicas cuja arquitectura "nada
tem a ver com a dos Maias nem dos Incas"23. Tenta entrar nas Honduras, onde 25% dos trabalhadores estão em greve, "número elevadíssimo num país onde não existe o
direito à greve e os sindicatos são clandestinos", mas basta a referência à Guatemala no seu passaporte para provocar uma recusa inabalável por parte dos hondurenhos.
Consola-se passando dois dias de praia no Pacífico, encontra aí alguns jovens vagabundos que "carburam a álcool", faz-lhes uma grande propaganda sobre a Guatemala
e... acabam todos numa esquadra da polícia, de onde são corridos rapidamente. Está sem cheta, mas consegue regressar à Guatemala fazendo vários rodeios, visitando
as estelas com hieróglifos de Quirigua, algumas das quais com dez metros de altura. Em Puerto Barrios, o porto bananeiro da United Fruit na costa atlântica, é contratado
como estivador para descarregar, no meio dos mosquitos, barris de alcatrão, "pesados como nunca vi [...], tinha as mãos num estado lastimável e as costas ainda piores.
Trabalhava das seis da tarde às seis da manhã 2.63 pesos por doze horas de trabalho - e ia dormir numa casa abandonada, à beira-mar"24.

O dia em que me amarás (tango)

Hilda Gadea, que pensava nunca mais voltar a ver Guevara, fica feliz por o rever. Ele bate-lhe à porta, assim que regressa. Tornara-se uma amiga privilegiada.
À excepção de Tita Infante, camarada comunista da Faculdade, em Buenos Aires, meiga e angustiada, ele nunca tinha encontrado uma verdadeira militante como Hilda,
preocupada em filtrar tudo através de uma interpretação marxista do mundo. E isso sedu-lo. Com ela, pelo menos, é possível haver debate, troca de ideias, confrontar
pontos de vista, falar de Sartre, por exemplo, ou de Freud. Vai ver com ela La Putain Respectueuse. "Ernesto era um admirador entusiasta de Sartre, que conhecia
melhor do que eu", escreve ela. "Eu só tinha lido O Existencialismo é um Humanismo e A Idade da Razão [...]. Ele falava-me também de O Ser e o Nada, A Náusea, As
Mãos Sujas [...] A propósito de As Mãos Sujas, ele disse-me uma vez: "é verdade que Sartre atacou o Partido Comunista". Eu respondi-lhe que o que ele atacara fora
uma deformação do marxismo e do comunismo e que nesse aspecto, eu estava de acordo"25.
No entanto, como todos os comunistas da época, Hilda censura sumariamente Sartre por ver apenas os problemas individuais sem os inserir no contexto social. "Ernesto
era partidário de Freud e da sua interpretação da vida baseada nos problemas sexuais", acrescenta ela. "Tinha lido mais que eu Adler e Jung"26 Neste aspecto, a reacção
de Hilda é de um marxismo bastante primário. Ela afirma que os conceitos de Freud precisam de ser completados: "Como é possível explicar então que existam combatentes
políticos cujas razões de viver

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não estão ligadas a nenhum problema sexual, pois são seres inteiros e normais?"27. Se esta visão incongruente da "normalidade" foi exposta a Ernesto pela sua amiga
desta maneira clara como ela escreve, ele não parece ter ficado chocado. Continua atraído pelo lado puro e duro desta pasionária que lhe dá a honra de se ocupar
dele, o põe em contacto com novas figuras políticas de esquerda, o convida a passear no campo, ao domingo.
Por vezes, Harold White acompanha-os; Ernesto prepara o asado, a carne grelhada à argentina. A conversa incide sobre a situação do país, evidentemente, que sofre
uma pressão intensa dos Estados Unidos; mas falam também da União Soviética, dos trabalhos de Mitchurine, o agrónomo da moda em Moscovo, dos reflexos condicionados
de Pavlov e da política internacional - os Estados Unidos acabam de fazer explodir a primeira bomba H em Bikini e o Vietname derrota o exército francês em Dien Bien
Phu...
Num desses domingos, Hilda tem uma reacção tipicamente pequeno-burguesa, mas Ernesto não presta atenção. Uma procissão imprevista na pequena aldeia onde passaram
o dia complica o regresso à capital. White propõe que se passe a noite num hotel e que se regresse na manhã seguinte. "O que irão pensar de mim na pensão onde eu
moro?", murmura ela. Ernesto lança-lhe um olhar divertido e faz o possível para que possam regressar, custe o que custar, nessa mesma noite, de modo a que a virtude
e sobretudo a reputação da menina fiquem preservadas.
O próprio Guevara tem uma maneira curiosa de fazer a corte. A 3 de Janeiro de 1954, os dois jovens conhecem-se há menos de quinze dias quando se encontram em casa
dos Torres, que organizaram um grande passeio de campo, nos arredores da capital. Está toda a gente lá, os argentinos, o grupo ruidoso dos cubanos, hondurenhos,
o professor White, amigas encantadoras de Myrna, membros das juventudes comunistas. Ambiente excelente. Monta-se a cavalo (Ernesto dá provas da sua habilidade).
Piquenique campestre. Valsas de Viena ao som do acordeão. Ernesto chama então Hilda de parte e pergunta-lhe, à queima-roupa, se ela é "completamente sã" e se a sua
família também o é. Surpresa divertida da peruana, embaraçada, que lhe responde: "Porquê? Queres saber a minha história clínica para me pedires em casamento?" E
Guevara, sorrindo: "Talvez não fosse má ideia..."28.
A mesma impulsividade de Ernesto, depois de ela lhe ter emprestado A Nova China de Mao Tsé Tung, de quem ele ainda não lera nada. "Poucos dias depois, propunha-me
que fosse com ele à China"29. Ela hesita, evidentemente. Ele promete não a importunar fazendo-lhe a corte. As coisas ficarão por aí. Mas Ernesto irá apresentar-se
como candidato junto do professor Torres, encarregado de seleccionar aqueles que irão assistir, em Pequim, à próxima conferência sobre a Paz na região do Pacífico.
"Demasiado tarde", explica-lhe Torres, e ele não insiste.
Finalmente, em meados de Março, Ernesto faz uma verdadeira declaração de amor a Hilda sob a forma de um curto poema, que a jovem perdeu. Ele esclarece que está pronto
a casar de imediato. Mais uma vez, ela hesita.

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"Disse-lhe que, pessoalmente, pensava que não era no casamento que a mulher se realizava..."30. Ela levará um ano a decidir-se e só casarão em Agosto de 1955. Mais
tarde, em 1959, ela lamentará a sua indecisão. "Que pena que a minha indecisão me tenha feito perder um ano de vida com ele"31.
Em todo o caso, a partida dos argentinos, seguida da dos cubanos, aproxima-os. Vêem-se todos os dias. Em Abril, pela primeira vez, ele fala dela à mãe: "Bebo mate
quando há, e tenho conversas intermináveis com a camarada Hilda Gadea [...]. Ela tem um coração de platina, no mínimo. O seu apoio faz-se sentir nas mais pequenas
circunstâncias da minha vida quotidiana"32. Hilda oferece-lhe os poemas do peruano Cesar Vallejo e do espanhol León Felipe, refugiado no México. Ernesto descobriu,
na Guatemala, Asturias e o Popol Vuh, o "Grande Livro do Conselho" dos antepassados, que exprime a essência do universo maia. Declama a Hilda trechos de Neruda ou
de Martin Fierro, fala-lhe de escritores argentinos contemporâneos, Borges, Marechal, Alfonsina Storni. Aprecia sobretudo uma poetisa uruguaia, Sara de Ibañez, e
sabe de cor vários poemas dela, carregados de símbolos, de sonhos, de transposições líricas, de dores intensas e etéreas.
Guevara possui um certo dom para a escrita. As suas descrições, rabiscadas ao correr da pena, a sua correspondência, os seus diários de viagem escritos fluentemente,
sem emendas, são transbordantes de vida, de humor, de realismo. Contudo, quando se trata de poesia, o seu bom-gosto transvia-se: nunca foi brilhante nas suas produções
poéticas, muitas vezes embrulhadas em figuras rebuscadas. (Numa dedicatória a León Felipe reconhecerá que é um "poeta falhado"). Neste aspecto, foi decerto influenciado
pela mãe, sensível aos voos líricos dos poetas "modernistas" latino-americanos, eles próprios fascinados pelos parnasianos franceses.
Hilda e ele recitam em conjunto o clássico Se de Kipling, exaltação da coragem perante a adversidade. Estão também de acordo quanto à importância de Ariel, o grande
ensaio do uruguaio Rodo. Esse texto abstracto marcou várias gerações de intelectuais latino-americanos. "Ariel era um dos livros essenciais da formação de Ernesto"33,
escreve ela. A partir de A Tempestade de Shakespeare, Rodo elaborou uma espécie de ética, na qual o mal consiste na "abdicação da vontade". Em relação a Próspero,
mestre temível (que em breve será identificado com o colonizador), Ariel, génio do ar, significa o idealismo, o desapego, o heroísmo em acção; é, no fundo, o intelectual
comprometido com uma causa, ao passo que Caliban (anagrama, em inglês, de canibal) acabará por representar o escravo colonizado, prisioneiro da sua sensualidade.
Qual é o valor supremo? É o próprio homem, que deve realizar-se integralmente. Esta temática, muito simples mas forte, ajudou Guevara a balizar a sua posição ética;
veremos que ela irá ressurgir, dez anos depois, em Cuba, quando todos os esforços visarão a criação de um "homem novo".
Para já, ele, que continua a não entender nada de música, que pisa os pés •de Hilda quando a convida para dançar, vai-lhe sussurrando (uma vez que não lhos pode
cantar) os requebros de um dos mais românticos tangos de

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Carlos Gardel, El dia em que me quieras. Ela reage convidando-o para... uma cerimónia de homenagem a Sandino, esse nicaraguense heróico que ergueu um exército contra
os ianques que ocupavam o seu país, antes de ser assassinado. Ernesto sabe de quem se trata; leu, em Buenos Aires, a biografia dessa personagem, que o seu tio Jorge
lhe ofereceu logo que foi editada. Na noite da concentração ela quase não o reconhece. Ele vestira um belo fato de flanela cinzenta: "Herdei-o do Gualo", explica
ele, chocarreiro.
Irá o aventureiro assentar, transformar-se numa pessoa "normal", com uma profissão, uma esposa, um futuro mais ou menos traçado? Pressente-se, nas suas respostas
às cartas que recebe de Buenos Aires, que a família, por muito boémia e libertária que seja, está um pouco preocupada por o sentir à deriva, e num país tão exposto.
A tia Beatriz recomendara-lhe que fosse procurar, em El Salvador, amigos que poderiam proporcionar-lhe uma "situação". "Nem sequer encarei a hipótese de lá ficar",
responde ele. A mãe pensa que ele poderia especializar-se em arqueologia, já que as velhas pedras pré-colombianas lhe agradam tanto. "Seria um tanto paradoxal que
eu consagrasse a minha vida a fazer investigações sobre aquilo que está definitivamente morto", escreve-lhe ele. "Há duas coisas de que estou certo: a primeira é
que, se atingir a fase verdadeiramente criadora por volta dos trinta e cinco anos, a minha ocupação, exclusiva ou essencial, será a física nuclear ou a genética
[...]; a segunda é que a América será o palco das minhas aventuras, num sentido muito mais importante do que eu poderia imaginar. [...] Sinto-me muito mais americano
do que tudo o mais no mundo"34.

A chaga aberta da Guatemala

Os acontecimentos, que se precipitam, vão dar-lhe ocasião de exprimir esse apego à América. Os Estados Unidos não digeriram a expropriação de 84 mil hectares da
United Fruit. Os relatórios enviados a Washington, cada vez mais alarmantes, do embaixador Peurifoy, exigem que se passe à acção. A CIA de Allen W. Dulles põe então
em prática os seus velhos métodos. Sob a direcção de um coronel fantoche, Castillo Armas, reúne nas Honduras um pequeno exército "guatemalteco" constituído por mercenários
vindos das Honduras, da Nicarágua, da Colômbia, de Cuba, etc. Uma verdadeira caricatura da intervenção mal disfarçada dos Estados Unidos numa república das bananas.
As proclamações anticomunistas da OEA, a campanha da imprensa nos Estados Unidos, retomada pelos meios de comunicação social da região, os repetidos avisos de Foster
Dulles levam o nacionalista Arbenz a apoiar-se cada vez mais nos comunistas do PGT, que assume deliberadamente um papel secundário, José Manuel Fortuny, o seu secretário-geral,
chega mesmo a demitir-se, para não atrapalhar o governo, que lhe pede conselho.
Num breve artigo sem data, escrito sem dúvida entre Abril e Maio de
1954 e nunca publicado, sobre o dilema da Guatemala, Guevara toma assumidamente

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o partido de Arbenz. "O Departamento de Estado e a United Fruit, confundindo-se um com o outro neste país, em franca aliança com a maioria dos grandes agrários e
com a burguesia medrosa, traçam toda a espécie de planos para reduzir ao silêncio o adversário altivo que surgiu como um furúnculo nas Caraíbas". A partir de agora
a situação está tão clarificada, os dois campos tão nítidos, que se nota desta vez em Guevara, face a um adversário bem definido, o radicalismo total da luta sem
tréguas, recentemente gritado na cordilheira dos Andes: "Os patriotas sabem agora que a vitória será conquistada a ferro e fogo e que não pode haver perdão para
os traidores; que só a liquidação total dos grupos reaccionários poderá permitir que reine a justiça na América. [...] É altura de responder às cacetadas com cacetadas
e, se for preciso morrer, que seja como Sandino!"35.
A Guatemala, com poucos recursos, teve de comprar armas ao exterior. A chegada a Puerto Barrios de um carregamento de material militar desencandeia o último ajuste
de contas. A 17 de Junho de 1954, armadas e equipadas pelos Estados Unidos, as tropas de Castillo Armas, arvorando como insígnia um crucifixo atravessado por uma
espada, atravessam a fronteira entre as Honduras e a Guatemala. Alguns dias antes, aviões pilotados por norte-americanos semearam o terror entre a população civil.
Nos campos ainda não eram conhecidos esses instrumentos apocalípticos. O jornalista Marcel Niedergang, que "cobriu" o acontecimento no local, escreve: "Os aviões
de Castillo Armas tiveram o mesmo efeito sobre os índios pacíficos da Guatemala que os cavalos de Cortez e de Alvarado no século XVI sobre os seus antepassados maias"36.
Aldeias inteiras fugiram para as montanhas.
Guevara assiste aos bombardeamentos de meados de Junho num céu desesperadamente vazio de qualquer contra-ataque das forças regulares, por falta de aparelhos em condições,
de pilotos treinados, de combustível e de bombas. Está desesperado, mas regozija-se: "Tenho a sensação de ser inviolável", observa ele ao descrever com talento o
"espectáculo" a que assiste numa carta para a mãe. "Vi um avião mergulhar contra um objectivo, bastante perto do local onde me encontrava. Via-se o aparelho a crescer
cada vez mais, enquanto as asas cuspiam intermitentemente pequenas línguas de fogo, crepitando como metralhadoras ligeiras. E, de repente, ficava um momento como
que suspenso no ar, horizontal, lançando-se em seguida num voo picado, ultra-rápido. Sentia-se a terra a tremer sob o efeito da bomba. Mas, devo confessar-te, um
pouco envergonhado, que me diverti à brava durante todos estes dias. Esta sensação mágica de invulnerabilidade dava-me um enorme prazer, quando via as pessoas a
fugirem como coelhos assim que os aviões chegavam, ou, de noite, quando na escuridão a cidade se enchia de clarões de tiros"37. Impossível não comparar este texto
com uma outra carta, escrita seis meses antes, a 31 de Dezembro de 1953, pelo advogado Fidel Castro, encerrado na prisão, após o fracasso do ataque contra o quartel
Moncada. Apesar da hecatombe dos seus companheiros, Castro sentiu a mesma alegria durante o combate. "O momento mais feliz do ano e de toda a minha vida foi aquele
em que estive envolvido na batalha"38.

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A 20 de Junho de 1954, Ernesto anota: "O coronel Arbenz é, sem sombra de dúvida, um tipo corajoso, disposto a morrer no seu posto, se for necessário"39. Mas a 4
de Julho tudo está consumado e ele rectifica: "A dura verdade é que Arbenz não soube estar à altura das circunstâncias"40. O "coronel corajoso" não o foi muito.
Torna-se, para Ernesto, no verdadeiro anti-exemplo. Na realidade, Arbenz lutou como pôde. Protestou contra as Honduras, tentou levar a questão perante a opinião
internacional e as Nações Unidas. Tempo perdido. O jovem médico inscreveu-se para trabalhar nas equipas de socorro médico de urgência e pede às Juventudes Comunistas,
com as quais fez equipa para a extinção dos fogos durante os alertas aéreos, que o inclua entre os voluntários para receber instrução militar. Está convencido de
que as milícias operárias e camponesas, armadas pelo governo, poderiam lutar contra os mercenários vindos das Honduras. Vai procurar dirigentes políticos, membros
do PGT ou próximo dele, como Marco António Villamar, para os convencer a organizarem-se nesse sentido. Villamar explica-lhe que, quando foi ao arsenal com um grupo
de operários, os militares em vez de lhe agradecerem, quase dispararam contra eles.
A 25 de Junho, Arbenz afirma ainda, num vibrante apelo radiofónico: "Não recuaremos um passo". Mas o embaixador americano Peurifoy apresenta-lhe o seu ultimato;
as forças armadas, na sua maioria, abandonam-no. Há oficiais que exigem que ele se afaste dos seus aliados comunistas. Ele recusa. Mas recusa também confiar naqueles
que o apoiam... "Não pensou que um povo em armas é invencível, apesar do exemplo da Coreia, apesar do exemplo da Indochina. Podia ter dado armas ao povo. Não quis.
Eis o resultado!"41, diz Guevara. Na realidade, foi o exército que proibiu mesmo que se sonhasse com uma coisa dessas. "Contudo, a Guatemala é uma terra destinada
à guerrilha", observa Niedergang. "Algumas dezenas de homens decididos e bem armados teriam podido deter durante vários dias uma tropa tão pouco mecanizada e tão
díspar como a de Castillo Armas [...]. Mas essa ordem não foi dada"42. Seis anos mais tarde, em Julho de 1960, em Cuba, o jovem argentino, agora comandante Guevara,
saudará, numa homenagem ambígua, a presença de Jacobo Arbenz no Congresso das Juventudes Comunistas latino-americanas e agradecer-lhe-á por "nos ter permitido determinar
com exactidão as fraquezas que o seu governo não conseguiu ultrapassar". A 27 de Junho de 1954, Arbenz refugia-se na Embaixada do México e a 3 de Julho, acompanhado
pelo núncio apostólico e pelo embaixador Peurifoy, Castillo Armas, desembarcando de um avião militar norte-americano na Cidade de Guatemala, proclama, sob ovações:
"Primero Dios!".
A repressão é feroz: nove mil mortos e presos durante os primeiros meses da contra-revolução. É elaborada uma nova legislação do trabalho. A lei da reforma agrária
é revogada e a United Fruit recupera não só as terras expropriadas que não cultivava mas também algumas centenas de milhares de hectares suplementares que tinham
sido distribuídos aos camponeses. O que lhe permite ter um gesto muito mediático: restitui generosamente parte delas

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ao governo. Por parte dos partidos de esquerda, e até do centro, dá-se a clássica corrida às embaixadas para obter asilo. Guevara, o "invulnerável", não entra em
pânico. Quando muito, a conselho dos amigos, muda de residência. No microcosmo dos meios políticos da Guatemala, o argentino acaba por ser descoberto e catalogado
de agitador. "As embaixadas estão a abarrotar de refugiados", escreve ele. "A nossa e a do México, sobretudo"43. Por seu turno, Hilda encontrou amigas generosas,
muito católicas, que a albergam. Ele vai visitá-la todos os dias e ainda arranjam tempo para ler Einstein em inglês e, ele, para traduzir Pavlov do francês para
o espanhol.
No auge dos acontecimentos, dita a Hilda um artigo de dez páginas, que também irá perder-se no meio da confusão, mas que alguns, que o leram, como o cubano Mario
Dalmau, recordam. Sob o título "Eu vi cair Jacobo Arbenz", denuncia as condições em que a Guatemala foi obrigada a submeter-se aos interesses ianques44. O tom mudou.
Já não é um céptico afável que fala. É um homem empenhado num combate feroz contra o imperialismo dos Estados Unidos no mundo inteiro. A Guatemala terá servido como
revelador para transformar o franco-atirador divertido num combatente determinado. Acaba de assistir à primeira insurreição da história. A mudança é radical.
Foi provavelmente durante este período que ele compôs alguns poemas de circunstância evocando essa "Guatemala que me deixaste / uma chaga aberta no peito"45. Mas
o "tempo das cerejas" voltará. A amarga experiência da Guatemala não o impede de ouvir os amanhãs que cantam. Ele pressente, segundo escreve, "... o impacto difuso
/ do hino, o de Marx e de Engels / cantado por Lenine e entoado pelos povos"46.
Ernesto comunica a Hilda a sua decisão de partir para o México e depois para a China. Propõe-lhe de novo que o acompanhe, que se casem no México. Acaba de fazer
26 anos. A excitação desses dias plenos de emoção, a iminência da partida, levam-no sem dúvida a desejar ir mais longe nas suas relações com a amiga. Ela furta-se
de novo, explica que prefere regressar ao Peru. Ele escreve então num poema: "Há dias em que sinto despertar o sexo / e vou mendigar um beijo à mulher / Sei então
que nunca beijarei a alma / daquela que não consegue chamar-me camarada"47.
A 22 de Julho, Hilda é presa. Apenas uns dias de prisão. A polícia quer que a peruana revele a morada do seu amigo argentino. Assim que é informado, Ernesto quer
ir entregar-se. O cônsul da Argentina, Sánchez Torrenzo, consegue dissuadi-lo. Sabe que esse jovem Guevara não é uma pessoa qualquer. Recebeu, para lhe entregar,
encomendas e dinheiro que a família enviava ao cuidado de um capitão da força aérea argentina. Propõe-lhe a protecção da embaixada. Ernesto aceita, com a condição
de ser considerado como um "hóspede", com toda a liberdade de movimentos, e não como um "refugiado". A embaixada pede a cada um que declare se é comunista. Treze
respondem pela afirmativa. Ernesto colocou-se decididamente entre eles. Mas recusa, evidentemente, regressar à Argentina. Perón, jogando como de costume com Deus
e com o Diabo, não condenou Arbenz. É certo que enviou aviões

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militares para trazer os refugiados. Mas, à chegada a Buenos Aires, os comunistas são presos, interrogados e por fim libertados. Vários, a pedido de Ernesto, são
apoiados pela família Guevara.
Quando Hilda é posta em liberdade, Ernesto não hesita em ir procurá-la no restaurante habitual, sob o olhar assombrado dos clientes, que não compreendem como é que
ele tem a audácia de circular livremente. Aproveitando a margem de manobra de que dispõe para entrar e sair à vontade da embaixada e a sua relativa protecção diplomática,
Guevara não se contenta em jogar xadrez e beber mate; empenha-se em ajudar aqueles que precisam de escapar à repressão. Consegue que certos dirigentes políticos
encontrem uma embaixada que os acolha, arranja um abrigo para outros, chega a transportar armas, garante Hilda.
Um dia, diz à amiga que, enquanto espera o visto para o México, vai dar uma volta até ao Lago Atitlán, que ainda não conhece. A menos de cem quilómetros da capital,
é o passeio turístico clássico: paisagem alpina nos trópicos. Terá realmente ido lá? Armand Gatti, que percorre nessa época a Guatemala como cronista judiciário
para o Parisien Libéré, garante que foi noutra zona, para as bandas de Escuintla, que se cruzou com Guevara. Depois de entrevistar Peurifoy, que lhe contou com uma
arrogância bastante obscena "como fiz cair Arbenz", Gatti teria ido buscar, num carro da embaixada de França, o dirigente comunista Fortuny, para o levar para a
embaixada do México. Ter-lhe-iam também apresentado "um tipo fixe que também lá está", médico no Ministério da Saúde. "Guevara tinha o aspecto de um esquerdista
desengonçado, com a sua mochila, capaz de dormir em qualquer canto, e o ar de um intelectual. Usava o cabelo curto e era magro"48, declara Gatti.
No fim de Setembro de 1954, assim que obtém o visto mexicano, Ernesto envia os seus livros para Buenos Aires e compra um bilhete de comboio para o México. "O meu
lema é: pouca bagagem, pernas fortes e um estômago de faquir"49. Por seu turno, Hilda tem de regressar ao Peru. Os seus destinos irão separar-se aí? Ernesto pede
à amiga que faça com ele uma parte da viagem de comboio. Ela aceita acompanhá-lo durante 20 quilómetros, até à primeira paragem. Na carruagem que corre para a fronteira,
eles vão de mãos dadas, como namorados bem comportados. Ele recita-lhe textos de Vallejo e insiste com ela para que vá depressa ter com ele. A Hilda, a coisa parece-lhe
pouco provável. Separam-se sem saberem se voltarão a ver-se. Ernesto vê-se compelido para sempre a correr mundo. Retoma essa imagem num poema sem título: "Vou por
caminhos mais longos do que a memória / trazendo em mim a hermética solidão do peregrino / [...] triste por dentro, sorridente por fora/"50, e em Auto-Retrato Obscuro,
acrescenta: "Devorei quilómetros de ritos transumantes, com o meu fardo asmático que carrego como uma cruz"51.
Depois destes oito meses decisivos na Guatemala, como será o amanhã no México? Pouco se importa, confiante na sua boa estrela. Aconteça o que acontecer, ele tem
as coordenadas de um velho amigo do pai, Ulises Petit de Murat, o argentino que melhor conseguiu introduzir-se no meio cinematográfico

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mexicano. Imagina que, ao fim e ao cabo, com o seu físico de galã, poderia começar por fazer figuração e em seguida conseguir um grande papel, quem sabe?52 As coisas
não acontecem exactamente como ele imagina, mas, de facto, é no México que lhe vai ser proposto um grande papel.
"
No fundo, sou um vagabundo..."

No parque de Chapultepec, no México, dois jovens parecem andar a passear. Um é alto, de pele clara, olhar penetrante e um certo ar de adolescente tardio. O outro
caminha apressadamente ao lado dele, nas suas pernas curtas e ar doentio; tem, como os nativos, a pele acobreada e o olhar impassível. Não estão a passear, mas sim
a trabalhar. Estão à procura de clientes. Ernesto Guevara acrescentou à panóplia dos seus múltiplos empregos, o de fotógrafo ambulante. De máquina pendurada ao pescoço,
propõe às famílias tirar-lhes o retrato, em grupo ou em separado. O seu sócio irá entregar o negativo e receber a módica quantia de um peso por fotografia.
O sócio em questão é um guatemalteco de vinte e poucos anos, que encontrou no comboio, a caminho do México. Chama-se Julio Cáceres, mas, segundo diz, costumam chamar-lhe
"El Patojo", por ser baixo. Durante a viagem tiveram tempo de contar um ao outro as suas vidas. Ernesto comoveu-se com a história das desgraças deste jovem comunista
sem vintém que dissimulava, atrás da sua reserva, uma grande sensibilidade e inteligência. Ficaram amigos, e quando, a 21 de Setembro de 1954, chegam ao México,
Ernesto propõe ao companheiro que fique com ele no pequeno quarto subalugado a uma senhora de idade e arrasta-o no seu esquema de fotógrafo ambulante, ilegal no
México, onde nada é mais difícil, para um estrangeiro, do que obter autorização para exercer a mínima actividade remunerada.
A Cidade do México, situada num lago seco, não é, em 1954, a metrópole desmesurada e poluída em que hoje se tornou. Subsistem ainda, irradiando em torno da grande
praça central do Zocalo, bairros que conservam os encantos do período colonial: ruas com calçadas antigas, casas baixas com telhados de telhas vermelhas e paredes
de taipa caiada, tendo nas janelas grades de ferro forjado. Mas é já uma grande cidade com mais de quatro milhões de habitantes. Como em toda a parte na América
Latina, há um grande contraste entre os muito pobres e os muito ricos. Os primeiros vêm dos bairros de lata para exercer, nas esquinas das ruas, pequenos ofícios
populares, cauteleiros, engraxadores, etc. Os segundos moram nos bairros finos das lomas (colinas), em vivendas de luxo, protegidas do exterior por grandes portões
de madeira trabalhada e por guardas armados. No meio da multidão, um homem pára, surpreendido, ao reconhecer o argentino que, outrora, na Cidade de Guatemala, veio
interrogá-lo sobre a situação política. Advogado de esquerda, antigo director do Banco Agrícola, Alfonso Bauer é dirigente de um dos pequenos partidos "revolucionários"
que apoiavam Arbenz. Exilado político como os

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outros, fica chocado por ver o brilhante Guevara, um médico, reduzido à condição de ter de ganhar a vida a fotografar pessoas nos jardins públicos. Convida-o, juntamente
com El Patojo, para um copioso almoço no restaurante do qual, agora, é gerente e insiste para que Ernesto vá procurar, da parte dele, um compatriota, o doutor Pietrasanta,
que o apresentará ao director do Hospital Geral. A recomendação funciona e, três semanas após a sua chegada ao México, Ernesto é médico assistente no Serviço de
Alergologia, com um salário simbólico, é certo, mas que ele aceita sem vacilar, pois para ele é uma ocasião de praticar. Aliás, apercebe-se de que, com o que aprendeu
sobre alergias com o Dr. Pisani, em Buenos Aires, sabe mais do que os seus colegas mexicanos, mesmo que se tenham especializado nos Estados Unidos.
Ao deixar a Guatemala, cheio de raiva contra os Estados Unidos, cujo verdadeiro rosto imperialista, cínico e arrogante, viu com os próprios olhos, Ernesto manifesta
alguma hesitação quanto às suas actividades futuras. Para ele, o México não passa de uma etapa, bastante provisória, de um percurso cujo itinerário preciso ignora,
como sempre. Continua a ser consumido pelo desejo de viajar. Sonha com uma bolsa de estudo em Paris. Não é só o continente americano que ele quer conhecer, mas também
a Europa, a Ásia, a China, o planeta inteiro. "O meu próximo objectivo será a Europa e depois a Ásia. Como? Isso é já outra história"53.
Oito dias depois de ter chegado ao México, conta as primeiras impressões numa série de cartas que envia para toda a parte aos seus correspondentes de Buenos Aires.
É espantoso verificar a constância com que ele mantém o contacto com os membros da sua tribo argentina. Com a mãe, interlocutora privilegiada, com o pai, a quem
escreve à parte, visto que os pais estão separados (sem o estarem, estando), com a tia Beatriz, com a inteligente Tita Infante, a sua amiga comunista, às vezes deprimida...
Nos primeiros contactos, o México não parece ter despertado nele grande simpatia, reacção clássica entre os Argentinos. Com Tita Infante, aborda com mais à-vontade
a análise política. O México, explica-lhe ele, ao recusar apoiar a Guatemala de Arbenz, "desempenhou, nesta comédia, o mesmo triste papel que a França desempenhou
em relação à República espanhola". É certo que "também aqui, como na Guatemala, se pode falar à vontade, mas desde que se pague de uma maneira ou de outra; é a democracia
do dólar"54, acrescenta. Ele, que cultiva um desprezo sincero, profundo e permanente pelo dinheiro, pelo lucro, pelos estratagemas financeiros, vê-se na necessidade
constante de se precaver contra a exigência sistemática de um pagamento para todas as coisas. "Cheguei ao país da mordida"55, diz ele à sua tia Beatriz.
A mordida (literalmente "dentada") é essa espécie de dízimo - avatar mexicano do hakchich oriental - que é recebido por quem quer que entreveja a possibilidade de
"dar uma dentada" num eventual lucro, de se fazer pagar por um serviço, por um favor, pela isenção de uma multa. A política mexicana é conhecida pelo seu recurso
sistemático e intempestivo à mordida sempre que se deseja que ela faça vista grossa. Este método de pequena chantagem,

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que é aplicado a todos os níveis e a várias escalas, poderia envenenar as relações sociais. Mas cada um, adoptando o princípio de que "se dá a quem dá", acaba por
se adaptar mais ou menos a este modo de corrupção, transformado por alguns em estilo de vida.
Este tipo de sistema não agrada a Guevara. "Já circulei o suficiente pelo México para me aperceber que as coisas não serão fáceis"56, escreve ele ao pai, aproveitando
para o informar que o seu amigo Petit Murat foi impecável, que andou com ele pela cidade, que o convidou frequentemente para ir a sua casa; já não fala de carreira
cinematográfica. Mas "preferi manter uma certa independência, pelo menos enquanto durarem os pesos que vocês me enviaram". E vai anunciando: "Daqui a algum tempo,
vou tentar obter um visto para os Estados Unidos, só para ver se pega..."57. À mãe, dirá mais concretamente: "Não perdi um milímetro da minha raiva contra os Estados
Unidos [...]. Sairei de lá tão antianque como entrei"58. Com ela, abre-se mais. Após a derrota de Arbenz, ela notou uma certa amargura nas cartas do filho. Ele justifica-se,
sublinhando que se trata mais de cepticismo, mas confirma que mantém o seu radicalismo. "Estou absolutamente convencido que os meios-termos só podem conduzir à traição.
O pior é que, ao mesmo tempo, não consigo decidir-me a adoptar a atitude determinada que deveria ter tomado há muito, porque no fundo (e à superfície) sou um vagabundo
impenitente [...]. Já nem sei se serei um actor ou um espectador atento à acção"59.
Actor ou espectador? Olhar ou participar? Os seus dois "eus" socialudo e aventureiro puxam-no ainda cada um para seu lado. Aguardando o momento bendito em que irá
intervir a figura excepcional graças à qual ele conseguirá conciliar, sem má consciência, a aventura e a revolução.
O final de Outubro de 1954 marca um encontro feliz. Na consulta que ele tem agora, todas as manhãs, no Hospital Geral, apresenta-se o matulão Nico López, aquele
cubano tão entusiasta que tanto o entusiasmara na Guatemala, por "pôr toda a sua alma no microfone" ao evocar os projectos de Castro para libertar Cuba da ditadura
de Batista. Saudações clássicas: Qué tal, Che? Qué tal, hermano? O contacto com os cubanos renova-se. E nunca mais será interrompido.
Outra surpresa, igualmente agradável, no início de Novembro: a chegada inopinada de Hilda Gadea, de quem não mais tivera notícias e que ele imaginava no Peru. Quando,
no comboio, as suas mãos se separaram, ela teve, desde o seu regresso à Cidade de Guatemala, amargos dissabores. Prisão, seguida de ordem de expulsão para o México.
Mas retiveram-na na fronteira. Um oficial mais ou menos embriagado propôs-lhe, de metralhadora na mão, que fosse dar "uma volta" com ele. Ela teve depois que atravessar
um rio a nado para entrar no México, pagar, evidentemente, aos passadores, esperar ainda, dias a fio, o seu estatuto de exilada política. Em suma uma odisseia. Mas,
enfim, ali estava ela, como ele desejara, e não em Lima, como ela decidira. Ernesto faz-lhe de novo a proposta: "Vamos casar". E ela, afectada, faz-se cara, declara
que ainda não se decidiu, pede-lhe que espere um pouco.

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Ele então zanga-se, sem contudo fazer alarido, e declara que, nesse caso, serão apenas amigos, que compreende a situação, etc. Numa carta que ele lhe enviara mas
que ela ainda não tinha recebido, ele dizia-lhe: "Despacha-te a vir, porque entre os bifes do Petit de Murat e os encantos da filha dele, pode haver algumas mudanças"60.
Pela primeira vez desde que partiu de Buenos Aires já há um ano e meio instala-se num tipo de vida mais ou menos organizado. "Tenho imenso trabalho; todas as manhãs
no hospital, as tardes e o domingo dedicados à fotografia e à noite estudo um pouco. Tenho um bom apartamento, onde cozinho as minhas refeições, e, além disso, lavo-me
todos os dias porque há água quente à vontade. Como vês, observa ele à mãe, neste aspecto estou mudado. Quanto ao resto, está tudo na mesma, porque a roupa, lavo-a
pouco e mal, ainda não ganho o suficiente para pagar a uma lavadeira"61.
No fim de Novembro de 1954 convida a arisca Hilda para ir ao cinema. Está a ser exibido o filme soviético Romeu e Julieta. Influência benéfica do velho Shakespeare?
Virtudes românticas da história? Os dois jovens reconciliam-se. O plano em que se entendem melhor é o da luta política. Uma das primeiras questões que ele lhe colocou
quando se encontraram foi a de saber se, segundo a opinião dela, era justo que um comunista combatesse numa revolução "pelos direitos do povo". Resposta da militante,
que não sabe bem o que ele quer dizer: "Os comunistas devem estar sempre na primeira linha". "Também penso o mesmo", declara ele.62 No fim do ano, o apego bastante
conformista de Hilda pela celebração tradicional das festas quase deita tudo a perder. Ela ofende-se porque ele chega atrasado ao jantar de Natal que ela organizou
e porque, mal engoliu a última garfada, foi render o seu companheiro El Patojo, para o qual arranjara um biscate, guarda-nocturno numa editora. A mesma cena na passagem
do ano. Vai-se embora às 10 da noite, sem esperar pelas doze badaladas da meia-noite. Sempre susceptível, ela decide romper com ele, mas desiste dessa ideia quando
ele aparece no dia seguinte, para a levar a passear no campo.
Nas semanas seguintes, Ernesto volta à carga, fala de novo em casamento. Em Fevereiro - cansada de lutar, segundo deixa entender - ela acaba por aceitar, decidindo
então que o casamento será no mês seguinte, em Março. Mas, uns dias depois, encontra entre as páginas de um livro de Ernesto o negativo de uma fotografia de uma
rapariga em fato de banho. Crise de ciúmes! Por muito que ele lhe explique que se trata da filha de Petit de Murat, que ela tem agora um namorado, é inútil. Ela
escreve-lhe a dizer que está tudo acabado. Está bem, responde ele; e deixa de a procurar... A Tita Infante, a sua indefectível apaixonada tímida de Buenos Aires,
escreve então: "Apesar de eu ser, por natureza, uma pessoa cheia de vitalidade, acontece-me ter momentos de abatimento [...]. Que não resistem a uns mates e a uns
poemas"63.
Arranjou um emprego suplementar, em princípio bem pago, na filial mexicana de uma agência de imprensa argentina, a Agência Latina, de criação recente, graças à qual
Perón espera melhorar a sua imagem e contrabalançar

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a "desinformação" dos meios de informação norte-americanos. A cobertura dos Jogos Pan-Americanos, que decorrerão a partir de 6 de Março no México, exige reforços.
Ernesto é contratado simultaneamente como redactor e como fotógrafo. "Não durmo mais do que quatro horas por dia", escreve ele. E logo estende aos seus amigos cubanos
essa grande sorte: são eles que irão revelar as fotografias num pequeno laboratório que improvisam numa alegre barafunda, como sempre.
Hilda, que aguenta mal o silêncio de Ernesto, vai procurá-lo, acompanhada de Myrna Torres, a nicaraguense comunista que, entretanto, casou. O pequeno estratagema
resulta. No dia seguinte, Ernesto volta a vê-la, colocando-lhe, pela última vez, a questão do casamento e, desta vez, ela aceita. Fixam um prazo de dois meses para
tratar da papelada. Será então em Maio. Retomam as suas leituras políticas, orientadas agora para a história da revolução mexicana e para a situação actual do país.
Lêem México Insurrecto de John Reed, esse "vermelho" dos Estados Unidos que tão bem descreveu os Dez Dias que Abalaram o Mundo, em Outubro de 1917. Guevara retomou
o estudo daquele a quem chama por brincadeira "San Carlos", ou seja, Karl Marx. Em contrapartida, nenhuma referência a Trotsky, destacado marxista assassinado a
poucos quilómetros dali, em Cayoacán, em 1940, por ordem de Estaline. Através das Memórias de Pancho Villa descobrem que no México, em 1910, generais-camponeses
como Villa ou Zapata provocaram um verdadeiro terramoto político e social ao comandarem, de uma forma possivelmente anarquista mas eficaz, um temível levantamento
popular contra os grandes proprietários de terras e o capitalismo estrangeiro. Desde então, essa revolução foi desnaturada, absorvida por um partido que se tornou
sobretudo uma máquina eleitoral, cujo nome é já uma heresia, o Partido Revolucionário Institucional (PRI). Numa carta ao pai, provavelmente de 10 de Fevereiro de
1955, Guevara traça um retrato demolidor da administração mexicana: "O México está totalmente nas mãos dos ianques [...], o FBI passeia-se aqui como se estivesse
em casa, muito mais perigoso do que a polícia mexicana [...], todos os dirigentes sindicais estão comprados e celebraram contratos leoninos com as várias empresas
americanas, hipotecando as greves por um ano ou dois"64.
Quando pode, Ernesto retoma o seu projecto de escrever um livro, A Função do Médico na América Latina. A ideia trabalha-lhe na cabeça desde os tempos de estudante.
As suas explorações do continente americano abriram-lhe os olhos para a indigência da imensa maioria daqueles que não podem pagar o luxo de proteger a saúde. "Pelas
condições em que eu viajava, descobri que era impossível curar crianças doentes por falta de meios. Vi a degradação da subnutrição e a repressão constante, ao ponto
de, para um pai, perder um filho se tornar um acidente sem importância"65. Na Guatemala traçou o plano da obra e chegou a redigir o primeiro dos catorze capítulos
previstos. Afirma aí que, para exercer a sua profissão de forma responsável, isenta de toda a ideia de lucro, o médico é forçosamente levado a erguer-se

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contra os poderes constituídos, a transformar-se em médico revolucionário. Guevara ignora que está a tomar uma posição semelhante à dos "médicos vermelhos" que,
no século XIX, sobretudo na Alemanha, foram atraídos pelas doutrinas sociais revolucionárias através de uma mesma revolta contra a miséria. Nunca terá tempo de terminar
o seu livro mas, a 19 de Agosto de
1960, dirigindo-se aos estudantes de medicina de Cuba, apresentará a chave do problema, para ele evidente: "Compreendi que, para ser um médico revolucionário, era
preciso começar por fazer a revolução"66.
Por enquanto, no México, está ainda a tentar tornar-se um bom especialista em alergologia. Faz simultaneamente investigação médica, cultura política, jornalismo
desportivo e fotografia. Redige um "modesto estudo onde retomo as investigações de Pisani sobre os alimentos pré-digeridos"67. Apresentado no Congresso Mexicano
de Alergologia, a 23 de Abril de 1955, o "modesto estudo" vale-lhe as felicitações do grande patrão da especialidade no México, o doutor Salazar Mayen, director
do Hospital Geral onde Guevara exerce, bem como uma (módica) bolsa de investigação.
Estes encorajamentos são extremamente bem-vindos, visto que o seu biscate de jornalista-fotógrafo se esfuma, bem como os quatro ou cinco mil pesos de salário com
que Ernesto contava. Em Abril, terminados os Jogos Pan-americanos, a agência de imprensa Latina, financiada por Perón, pôs termo às suas actividades "de um dia para
o outro, e sem pagar um tostão. Suspeito que houve negociações secretas entre os chefes da Casa Rosada* e da Casa Branca, a não ser que tenha sido apenas o da Casa
Rosada que desistiu, sem mais nem menos"68. Opinião brutal, certamente; a verdade é que os Estados Unidos nunca apreciaram muito a concorrência no que toca aos meios
de informação.

Nota: * Casa Rosada: sede da Presidência da República Argentina em Buenos Aires.

No 1º de Maio de 1955, vai com Hilda e Ricardo Rojo, chegado na véspera dos Estados Unidos, assistir à manifestação clássica da festa do trabalho no Passeo de la
Reforma, uma espécie de campos Elíseos do México. Está um dia de sol. O ambiente está ainda desanuviado, mas os operários estão lá "mais para cumprir uma rotina
do que para participar numa manifestação proletária"69, observa a peruana. E el Gordo Rojo aproveita a ocasião para colocar uma pedra no jardim do seu amigo, que
ele sabe estar atraído pelas sereias comunistas: "Parece uma manifestação operária num país socialista da Europa de Leste"70. Entre os espectadores, Hilda avista
José Manuel Fortuny, secretário-geral do Partido Comunista da Guatemala. Ela conhece-o, chama-o, faz as apresentações. Guevara faz então a pergunta que lhe queima
os lábios: "Porque é que os comunistas não lutaram quando se deu o golpe de Estado contra Arbenz?" Explicações embaraçadas do dirigente comunista: "Era difícil.
Era preferível recuarmos para combatermos mais tarde". Ernesto insiste: "Não teria sido preferível que Arbenz continuasse a luta com um grupo de verdadeiros revolucionários?
Ele era o Presidente, representava um

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símbolo"71. O embaraço de Fortuny aumenta. Ele, cuja missão era aconselhar Arbenz, disfarça mal a sua irritação e desaparece sem se despedir.
Entre os amigos cubanos que Guevara frequenta, figura um respeitável professor universitário comunista, Raul Roa, que, de Havana, abastecera em livros, mercadoria
preciosa para um prisioneiro, os fugitivos do ataque de Moncada, presos na penitenciária cubana da ilha dos Pinheiros. Também ele exilado no México, é chefe de redacção
de uma revista conceituada, Humanismo, e traça numa longa enumeração, um retrato fiel de Guevara naquela época: "Parecia muito jovem, e era-o. A sua imagem ficou-me
gravada na retina: inteligência lúcida, palidez ascética, respiração asmática, testa saliente, carácter decidido, queixo enérgico, comportamento calmo, olhar inquiridor,
pensamento penetrante, linguagem cuidada, sensibilidade vibrante, riso claro e, a aureolar-lhe o rosto, uma espécie de irradiação de grandes utopias"72.
Hilda conseguiu arranjar um emprego como técnica de estatística numa filial da Organização Mundial de Saúde. Faz alguns contactos para que Ernesto também seja contratado
e chegam a acenar ao jovem médico com a hipótese de um contrato de especialista em parasitologia em África, no ano seguinte. Mas, para já, a situação administrativa
de ambos continua por regularizar. Sem dúvida por não terem recebido as mordidas necessárias, as autoridades mexicanas não facilitam nenhuma papelada para autorizar
o casamento de dois estrangeiros no seu território. De forma que, no regresso de um fim-de-semana em Cuernavaca, perto da Cidade do México, onde por fim consumam
o seu amor, decidem começar a viver juntos, o que, na pena de Hilda se traduz por uma pudica perífrase: "Decidimos unir-nos nos factos"73. Ernesto precisará a data
do acontecimento: 18 de Maio de 1955.
Este início de ligação, por muito importante que seja, em nada altera os seus projectos de exploração do planeta. A sua opinião sobre o México, "tão duro, tão pouco
hospitaleiro", torna-se mais moderada.74 "No fundo o México não me tratou muito mal". Mas não é, obviamente, um país onde ele deseje viver, é apenas uma etapa para
"algo mais longínquo". Sonha cada vez mais com Paris, insiste com a mãe, a sua melhor confidente, para que vá lá ter com ele. Diz que está disposto a ir a nado,
se for preciso. "Para mim, é uma necessidade biológica", escreve-lhe ele a 17 de Junho de 1955.75 De tal forma que, quando os responsáveis pela extinta Agência Latina
lhe comunicam que os salários em atraso vão certamente ser-lhe pagos, ele não hesita. Corre à primeira agência de viagens e reserva uma passagem para Espanha. Mas
só lhe pagam cerca de metade do que lhe é devido, três mil pesos. O que não chega para atravessar o Atlântico.
Prosseguindo a sua "união nos factos" com Hilda, vive com ela no apartamento que ela divide, na rua do Reno, com uma poetisa venezuelana, Lucila Velasquez. Ernesto
vai fazer vinte e sete anos. Na pequena festa de aniversário que lhe organizaram, a 14 de Junho, o comunista nicaraguense Edelberto Torres, sempre ligado a Pequim,
propõe-lhe uma viagem à China

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popular, por meia tarifa. Ernesto está morto por aceitar. Mas tem um certo escrúpulo em ir sem a camarada Hilda, que não está convencida. E portanto renuncia.

Dez horas de entusiasmo: Fidel Castro

No fim de Junho, Nico López e o seu grupo de imigrantes cubanos apresentam ao companheiro Guevara um camarada de quem já lhe falaram, Raul Castro, que acaba de chegar
de Havana. Embora já no poder, o ditador Batista fez questão de ser "eleito" presidente, numa farsa eleitoral em que ele era o único candidato. Para celebrar a vitória,
acabou por conceder aos prisioneiros políticos, com alguma reticência, uma amnistia que veio beneficiar os irmãos Castro e os sobreviventes do louco empreendimento
de Moncada, denominados "Moncadistas".
Entre Raul e Ernesto estabelece-se logo uma boa relação. Raul é três anos mais novo, mas já atravessou o oceano, participou no Congresso Mundial da Juventude em
Viena, teleguiado pelos comunistas, visitou Budapeste, Praga, Bucareste, Paris. No regresso, aderiu às Juventudes Socialistas de Cuba (comunistas). Tem ideias claras
sobre a necessidade de uma revolução armada, sobre o imperialismo dos Estados Unidos, sobre a inutilidade de eleições fraudulentas. Ernesto está encantado. Está
de acordo com tudo. Em breve os dois rapazes se tornam inseparáveis. Vêem-se todos os dias, ou quase. Ernesto convida Raul a ir a sua casa, apresenta-o a Hilda.
"Aparecia pelo menos uma vez por semana [...]", diz ela. "Era loiro, imberbe, parecia muito novo. Conversar com ele era muito estimulante. Era alegre, comunicativo,
auto-confiante, muito claro nas suas exposições. Por isso se dava bem com Ernesto"76. Raul conta a história daquele trágico e inesquecível 26 de Julho de 1953, primeiro
desafio, de dimensão épica, lançado a Batista pelo seu irmão Fidel. Explica porque é que eles pensavam que, tomando de assalto uma fortaleza considerada inexpugnável,
um punhado de homens poderia humilhar o poder, desencadear uma imensa energia popular numa revolta geral contra a ditadura. É verdade que a operação falhou por razões
técnicas - carros que ficam empanados, motoristas que não conhecem bem a zona, uma patrulha militar imprevista que desencadeia o alerta geral - mas esse fracasso
não os desencorajou. Aliás, conclui ele, Fidel, que em breve vai ser obrigado a exilar-se porque a sua vida corre perigo em Cuba, saberá explicar melhor que ninguém
porque é que este fracasso é, na realidade, uma vitória.
O famoso irmão desembarca no México a 8 de Julho de 1955. Não pediu, como Raul, asilo político na Embaixada do México. Com um visto de turista no passaporte, Fidel
Castro instala-se num pequeno hotel barato. Organiza imediatamente o seu quartel-general em casa de Maria Antonia González, uma cubana que é a protectora de todos
os exilados políticos de Cuba e cujo irmão morreu após ter sido torturado pelos esbirros de Batista. Casada com

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um mexicano, Avelino Palomo, lutador de profissão, vive no centro da cidade, no número 49 da rua Emparan. O seu modesto apartamento é um porto de abrigo. É em casa
dela que, "numa dessas frias noites mexicanas", Raul apresenta o seu amigo argentino ao irmão. Encontro decisivo.
Entre Ernesto Guevara e Fidel Castro, a admiração é recíproca. O seu primeiro frente-a-frente dura dez horas seguidas. "Conversei com Fidel uma noite inteira", dirá
Guevara. "De madrugada, eu era já o médico da futura expedição"77. De que falaram eles? Guevara indica apenas que a sua primeira conversa versou sobre política internacional.
A América Latina, Cuba, Guatemala estiveram sem dúvida no centro das suas atenções. Mas é pouco provável que tenham medido o alcance de uma conferência como a de
Bandung na qual, em Abril de 1955, vinte e nove países da Ásia e da África tentaram definir uma posição anticolonialista comum para o que ainda não é designado como
Terceiro Mundo. Terão atribuído o justo valor ao sucesso que acaba de obter, em Maio, a Jugoslávia de Tito, que conseguiu que Kruchtchev reconhecesse a possibilidade
de uma via nacional para o socialismo? Não é muito provável.
Por prudência, no caso dos seus apontamentos, o seu diário e a sua correspondência caírem em poder do FBI ou outras polícias, a partir desse momento, nos seus escritos,
Guevara deixa de fazer referência aos cubanos e aos seus projectos. Todavia, a partir das memórias de Hilda e dos traços da personalidade dos dois homens, talvez
seja possível avançar algumas hipóteses.
Fidel é um sedutor, um retórico extraordinário, capaz de captar para as suas posições o mais céptico dos interlocutores. É uma figura impressionante. Porte altivo,
estatura de atleta - 1,86 m - rosto de feições regulares, de pele clara, bigode fino, olhos negros, dissimulando por vezes, atrás de óculos de armações grossas,
um olhar míope mas inquiridor. Fala num tom de voz desconcertante de criança afónica, mas o que diz é dito com uma tal convicção que provoca uma adesão imediata.
Fala de nação, de nacionalismo e de internacionalismo. Fala de Cuba e de toda a América Latina. Recorda o sonho delineado em Bogotá em 1948, quando era ainda estudante,
de uma grande federação anti-imperialista latino-americana. Fala de Marti e de Bolívar. E também de justiça social. Explica a sua estratégia: sair de Cuba para regressar
em triunfo, desembarcar lá como fez Marti, com combatentes decididos, desencadear uma grande revolta popular, derrubar a ditadura, realizar finalmente aquilo que
falhara em Moncada mas que semeou grãos de vitória, a sementeira revolucionária do "26 de Julho".
Guevara está fascinado. Escuta com toda a atenção e faz, por seu turno, perguntas. Também ele é bom em dialéctica. Desde muito novo que se habituou a discussões
políticas acaloradas. Durante as ruidosas controvérsias familiares aprendeu a forjar os seus argumentos. Se necessário, pode transformar-se num rápido esgrimista.
Conhece a arte da polémica, a boa utilização da zombaria, da ironia cruel. Cultiva o humor negro, especialidade argentina, e se não põe "toda a sua alma no seu discurso",
como Nico, é sem

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dúvida porque está sempre pronto a praticar a auto-ironia. Mas, naquilo que lhe explica aquele colosso de voz meiga, ele não encontra nada de escarninho, nem sente
necessidade de polémica. Pelo contrário, sente-se conquistado e concorda. Sem reticências, com prazer. O encontro com Castro dá-se no momento em que Guevara atingiu
o ponto de maturidade exacto para que o discurso messiânico do cubano tenha sobre ele o impacto máximo.
Por seu turno, ele conta as suas viagens, a descoberta da "América maiúscula", a miséria do povo por toda a parte, a Guatemala, a United Fruit, a liquidação cínica
e brutal de uma tentativa corajosa de libertação nacional. As suas histórias pessoais apresentam traços comuns. Ambos filhos de burgueses ou assimilados, odeiam
a burguesia. Um foi educado nos Jesuítas, o outro não. Mas nenhum crê em Deus. Ambos revelam uma grande impulsividade, por vezes temperada, em Fidel, por um sexto
sentido político sempre alerta. Mas são dois seres apaixonados, prontos a qualquer sacrifício por um ideal. Perante o sofrimento do povo, o controlo dos Estados
Unidos sobre o seu país, sentem a mesma raiva, intensa, partilham a mesma convicção de que é necessário combater de armas na mão. Recorde-se a frase de Guevara,
ainda estudante do liceu, "Dêem-me uma arma", quando Granado o incitava a combater a polícia.
Castro fica seduzido por este rapaz inteligente, com ar de estudante, que não é um ingénuo, que não é arrogante como tantos argentinos, mas que também não se deixa
intimidar, que se mostra tal qual é, sincero no seu desejo de revolução. "O Che", dirá ele quando em 1967 lhe prestarem homenagem, "fazia parte daquele grupo de
pessoas em relação às quais se sente uma simpatia imediata pela sua simplicidade, pelo seu carácter, pela sua autenticidade, pelo seu espírito de camaradagem, pela
sua personalidade e originalidade"78. Reconhecerá que Guevara possuía uma cultura marxista superior à dele. "Era um especialista do marxismo-leninismo. [...] Quando
nos conhecemos, era já um revolucionário [...]. Vinha a calhar, o argentino - por isso lhe chamavam Che - que nos falava das questões da Guatemala! Não foi preciso
muito tempo para chegarmos a acordo e para o aceitarmos na nossa expedição"79.
Se Guevara o atraiu, é porque ele, que será classificado de intelectual porque tem realmente tendência para teorizar, descobre nessa personagem volúvel o próprio
exemplo do homem que soube dar o passo em frente, passar à acção. "Sei que abandonarei os prazeres agnósticos / de copular ideias sem funções práticas"80, escreve
ele num poema composto nessa época. Guevara é mais um homem da escrita. Castro um homem da oralidade. Para o argentino, o imenso mérito do cubano é o de ter ultrapassado
o discurso, de ter empunhado a espingarda, de ter organizado um ataque com um pequeno exército, de ter conhecido a experiência amarga mas revigorante da prisão.
E eis que esse homem generoso, fora do comum, lhe oferece os "furacões desejados", a possibilidade de poder, também ele, entrar em guerra, vingar-se, de certo modo,
do golpe baixo dos ianques na Guatemala! "Depois da experiência que tinha tido, das minhas longas caminhadas através de toda a América Latina e do epílogo da Guatemala,
não era preciso muito para me

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convencer a apoiar qualquer revolução contra um tirano. Mas Fidel deu-me a impressão de ser um homem extraordinário. Enfrentava o impossível e resolvia-o[...]. Eu
partilhava o seu optimismo. Era imperativo agir, combater, concretizar. Era imperativo parar com as lamúrias e combater"81. Os dois "eus" do Dr. Guevara vão finalmente
poder reconciliar-se numa operação em que o ideal social e o romantismo se unem ao serviço de uma mesma causa. Ficam para trás as zombarias da Costa Rica, quando
ele falava de cowboys aos cubanos que lhe descreviam o assalto de Moncada.
No fim dessa noite memorável, a primeira coisa que Ernesto conta a Hilda é a impressão extraordinária que o irmão de Raul lhe causou. "Nico tinha razão na Guatemala,
quando nos dizia que se Cuba produziu alguma coisa boa depois de Marti, foi Fidel Castro; esse fará a revolução. Estamos absolutamente de acordo [...]. Só um tipo
como ele é que poderia fazer com que eu o apoiasse até ao fim"82. Mais tarde, será mais explícito, talvez mais lúcido. Nos seus Episódios da Guerra Revolucionária*,
classificados por ele próprio como "história fragmentada feita de recordações e de alguns apontamentos", Guevara dá conta, com sinceridade, do seu estado de espírito:
"A vitória, confesso-o, parecia-me muito problemática quando assumi o meu compromisso ao lado do comandante rebelde, ao qual me senti ligado, desde o primeiro instante,
por um laço romântico de simpatia e de aventura e pela ideia de que valia apena morrer num país estrangeiro por um ideal tão nobre"83.

Nota: * Publicados entre 1962 e 1964 sob a forma de artigos na revista de grande tiragem Bohemia e no semanário das Forças Armadas Verde Olivo.

A partir de agora, Guevara e Castro não mais se separarão. Mesmo no México, apesar das múltiplas actividades de cada um, vêem-se duas ou três vezes por semana, a
sós ou com Raul ou qualquer outro "moncadista". Estudam o projecto, avaliam os riscos, os custos, as necessidades logísticas. Um dia, Ernesto convida Fidel para
jantar; quer apresentar-lhe Hilda, que convidou também um casal de revolucionários porto-riquenhos, os Juarbe. Ele já esteve preso por ter exigido a independência
da ilha ocupada pelos Estados Unidos. Hilda faz a Castro uma pergunta impertinente: "Porque é que está aqui, se o seu lugar é em Cuba?" "A resposta dele durou quatro
horas!"84, escreve ela. Castro retoma alguns dos temas da sua argumentação torrencial quando, por ocasião do processo que lhe foi movido no caso Moncada, proclamou:
"A História absolver-me-á". Recorda a situação neocolonial do seu país, colocado, como a Guatemala, sob a dependência da United Fruit e dos Estados Unidos. Demonstra
que em Cuba já não é possível lutar contra a corrupção e os abusos do ditador Batista através de meios legais, pois as eleições tornaram-se uma farsa. Afirma que
é necessário, portanto, seguir o exemplo de José Marti e de Maceo, isto é, pegar em armas.
É certo que o assalto ao quartel de Moncada falhou, mas foram colhidos ensinamentos preciosos. Se saiu de Havana, explica ele, foi porque a sua vida estava à mercê
de gangsters a soldo da ditadura. Ora, o seu objectivo principal

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é derrubar a ditadura. É por isso que, agora, tem que contar com combatentes aguerridos. A sua luta, afirma ele, inscreve-se, a longo prazo, numa acção mais vasta,
pois Cuba, uma vez libertada, poderá apoiar outros revolucionários noutros países. No horizonte desenha-se o velho sonho de Bolívar de libertação de todo o continente...
Escutando o cubano inflamado, são os convidados que se animam e se põem a sonhar. Poucos dias depois - coincidência? - o apartamento que Ernesto e Hilda partilham
ainda com a amiga venezuelana é "visitado". Desapareceram a máquina fotográfica, a máquina de escrever e outros objectos de Ernesto, algumas jóias de Hilda. "Foi
o FBI", diagnostica Guevara que, desconfiado, prefere não apresentar queixa à polícia.
Duas semanas apenas após a sua chegada ao México, Fidel Castro organiza uma manifestação pública dos seus partidários, por ocasião do ataque a Moncada. Afinal de
contas, no ano anterior a maior parte deles estavam ainda, na prisão. É o seu primeiro "26 de Julho" em liberdade, embora tenham sido obrigados a abandonar provisoriamente
a sua pátria tiranizada. Castro sabe que o México, cioso das suas prerrogativas de Estado soberano, "tão longe de Deus, tão perto dos Estados Unidos", não admite
nenhuma ingerência nos seus assuntos internos, mas que é suficientemente tolerante em matéria de política estrangeira desde que sejam apenas agitados conceitos gerais
de liberdade ou de solidariedade internacional. No parque de Chapultepec, é diante da estátua do "apóstolo" José Marti, herói cubano à escala continental, que se
exprimem primeiro um venezuelano, um peruano, um nicaraguense, todos eles cidadãos de países submetidos ao absolutismo de um ditador. Castro toma a palavra em seguida
e fustiga o regime que vigora em Cuba, prometendo publicamente combatê-lo sem tréguas. À noite, festa animada, como os cubanos apreciam, em casa de duas compatriotas
conquistadas para a causa, as irmãs Eva e Graciela Jiménez. O ambiente é festivo. Toca-se guitarra. Bebe-se rum e o próprio Fidel cozinha um petisco para a malta:
esparguete com marisco e queijo. Ernesto, ao lado de Hilda, parece um pouco taciturno. "Estás muito calado, Che", observa-lhe Fidel, que o sentara ao seu lado, em
tom de gracejo. "Será porque agora te sentes controlado?"85 O cubano ainda não sabe que o seu amigo argentino é, como ele, um homem reservado, que se fecha logo
que sente muita gente à sua volta.
Quando, no início de Agosto, Hilda informa Ernesto que o mais certo é estar grávida, ele pensa primeiro que se trata de uma brincadeira. Mas não é. Ele, o vagabundo
impenitente, vai ver-se "chefe de família", ligado ao curso das gerações, recordado (se é que é preciso, para um asmático) da inevitabilidade da sua própria morte!
Oxalá que seja um rapaz, diz ele a Hilda. Influenciado pelas suas leituras "bolcheviques", planeia já chamar-lhe Vladimir Ernesto e insiste para que, desta vez,
apressem o casamento. "No hospital, há um médico meu amigo que é também presidente da câmara de uma pequena cidade, perto da Cidade do México. Ele poderá casar-nos.
Senão, vamos à embaixada"86. Fidel será testemunha, anuncia-lhe ele; pouco depois, rectifica: será Raul. À cautela, é melhor que Fidel não se mostre.


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O casamento é celebrado a 18 de Agosto de 1955 em Tepotzotlán, pequena aldeia encantadora, de tipo colonial, a quarenta quilómetros da capital, actualmente quase
absorvida pelos bairros da grande cidade. Raul Castro está presente, mas afinal, sempre por precaução, não é ele que assina como testemunha, mas um outro cubano
"moncadista", Jesus Montané, denominado "Chucho". Em seguida, Ernesto exibe a sua habilidade a preparar um bom asado, para o qual todos são convidados, a começar
por Fidel, que se juntou a eles. "Ele sabia fazer carne grelhada à moda argentina, o que só pode ser feito ao ar livre", admitirá Castro que, todavia, não deixará
de acrescentar: "Acho que cozinho melhor do que ele"87.

"Terás uma rubra vingança"

Desembarcar em Cuba à frente de um corpo expedicionário é, para Castro, um projecto de envergadura que exige tempo, paciência e dinheiro. Parte em Outubro para os
Estados Unidos, onde a colónia de refugiados cubanos é significativa, para durante quase dois meses fazer uma colecta de fundos. Oitenta por cento do dinheiro obtido
servirá para comprar armas, vinte por cento para fins de organização e propaganda. Filadélfia, Nova Jérsia, Connecticut e, antes da Florida, Nova Iorque. É lá que,
a 30 de Outubro de
1955, Fidel Castro assume publicamente o compromisso de desembarcar em Cuba antes do final de 1956: "Posso garantir-vos, com toda a confiança, que em 1956 seremos
livres ou mártires", fórmula que em breve servirá de lema aos seus partidários. Um prazo a cumprir a todo o custo.
Para já, Guevara prossegue no hospital as suas investigações e dá as suas consultas. Prepara também um concurso para professor de fisiologia e o seu artigo sobre
a alergia, tão apreciado no congresso de especialistas, é publicado numa revista médica, no México. Mudou de casa, para um apartamento no n.º 40 da rua de Nápoles,
onde vive com Hilda, num bairro da média burguesia, Colónia Juarez, segundo a terminologia urbanística do México. Ernesto passou ao seu amigo El Patojo o biscate
de fotógrafo ambulante. Já não tem tempo e, de resto, não voltou a comprar nenhuma máquina fotográfica desde que lhe roubaram a sua. Arranjou uma coisa melhor. Um
trabalho um pouco mais rentável, para o qual também é necessário andar bastante a pé: vender livros a domicílio e a crédito. O que lhe permite ler de uma assentada
alguns grandes clássicos que ainda não conhece. A isso acrescenta a leitura dos romances soviéticos em voga: Assim Foi Temperado o Aço, A Batalha de Estalinegrado,
hinos aos "heróis positivos" bem como, por exemplo, A História Secreta da Guerra da Coreia, de Irving Stone que, segundo o testemunho de Hilda, o impressionou bastante.
Mas continua a ter uma certa predilecção pela poesia. Soube, por exemplo, que León Felipe, o poeta espanhol que descobriu na Guatemala, está refugiado no México,
como milhares de outros espanhóis. Faz questão de ir cumprimentá-lo à residência dos

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republicanos espanhóis, acompanhado de Rojo (o qual observa que o poeta e o seu admirador ostentam ambos, quando estão sentados, sapatos com as solas rotas). Em
1964, em Cuba, Guevara escreverá ao reputado espanhol: "Talvez goste de saber que um dos poucos livros que tenho sempre na mesa de cabeceira é El Ciervo"88. Esse
longo poema desenvolve a alegoria desesperada do cervo perseguido impiedosamente pela matilha de cães, mas que não desiste. "Ó, destino do Homem... / Se for necessário
fazer de novo esse caminho, nós fá-lo-emos..."
No hospital, Ernesto interessa-se por uma doente idosa, asmática, a "velha Maria", que passou toda a vida a lavar roupa. Recorda-lhe certamente aquela outra asmática
chilena "nas últimas", que ele tentara socorrer em Valparaíso.89 Os seus cuidados para com a mexicana que vai em breve soltar o último suspiro não se devem apenas
à sua identificação com a doente.
O caso dessa pobre "avó proletária" ilustra sobretudo aquilo que ele procura desenvolver no seu livro inacabado sobre o papel do médico, ou seja, que, uma vez que
as questões de saúde se situam na encruzilhada dos problemas sociais, é a própria raiz desses problemas que é necessário atacar, antes de mais, para que se faça
alguma justiça. Daí o seu radicalismo. Hilda, que nunca foi subtil, confessa algum ciúme ao ver o seu jovem esposo tão preocupado com essa velhota, que o obceca.
Mais tarde encontrará, entre os papéis que Ernesto lhe deixará, um poema um pouco desajeitado que fornece a chave dessa obsessão. Da morte pela asma, ele faz um
símbolo. "Velha Maria, vais morrer/... Esfrega as tuas calosidades contra a vergonha suave das minhas mãos de médico/... Acredita no futuro que não chegarás a ver/...
Não te voltes para o deus inclemente / que, toda a vida, iludiu a tua esperança/... Terás uma rubra vingança / juro-te [...] / Todos os teus netos viverão a aurora/
Morre em paz, velha combatente"90.
Os acontecimentos que acompanham a queda de Perón, em 1955, mais não fazem do que confirmar ao médico anunciador da "rubra vingança" que é através da luta de classes
que se deve ler a História, mesmo a imediata. Por mais que se declare aventureiro e vagabundo, está absolutamente atento às notícias que chegam da sua Argentina
natal. Depois da marinha de guerra ter tentado em Junho, sem êxito, derrubar Perón, que se agarrava teimosamente à plutocracia do Jockey Club e à Igreja, Guevara
escreve à mãe (antiperonista) que "o exército só fica nos quartéis quando o governo serve os seus interesses de classe"91. E acrescenta que, para ele, qualquer negro
(mestiço) que morre por um ideal vale muito mais do que um marinheiro pituco (menino-família). Guevara nunca foi declaradamene peronista, como vimos. Quando Perón
foge para o Paraguai, sem muita dignidade, não hesita em fustigar a sua cobardia ("Caiu como todos os da sua laia"), mas aceita a opinião daqueles que vêem nos acontecimentos
na Argentina "uma nova vitória do dólar, das forças armadas e da igreja"92.
Seja como for, está fora de causa regressar a Buenos Aires, como o aconselha Rojo, que veio dos Estados Unidos para aproveitar o avião enviado pela

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Junta da Casa Rosada. O argentino Orfila Reynal, director da conhecida editora Fondo de Cultura Económica e da revista Humanismo (juntamente com o cubano Raul Roa),
reúne-se no seu escritório com alguns compatriotas para analisar a situação argentina. Recorda-se muito bem da intervenção de Guevara que, na época, sem dúvida influenciado
por Rojo, pensava que o radical Frondizi poderia talvez contrabalançar o peso da direita reaccionária, que regressara à liça em Buenos Aires. Doze anos depois, Orfila
confessa que não sentiu manifestar-se o Che sob a figura de Guevara. "Foi numa noite de Outubro de 1955 [...]. Ele entrou, um pouco atrasado e sem se apresentar,
sem mesmo nos dizer que não pensava como os outros, que estava a transformar-se naquilo que viria a ser; aproximou-se do nosso grupo com uma certa timidez, uma certa
distância, com a intenção de não intervir na discussão. Mas fê-lo. Discutimos. Discordámos. Ele mostrou-se convicto, sempre, malicioso, por vezes. E à meia-noite
deixámo-lo partir sem sabermos que tínhamos tido entre nós um ser diferente dos outros"93. À mãe, Ernesto explica que, se lamenta a queda de Perón, não é tanto pelo
próprio Perón, para o qual se está nas tintas, mas porque a Argentina "era o paladino daqueles que pensam que o verdadeiro inimigo está no norte". Nessa mesma carta,
pede que lhe enviem todas as semanas o Nuestra Palabra, órgão do Partido Comunista argentino, e acrescenta, no fim, como se se tratasse de um pormenor: "Casei com
Hilda Gadea e vamos ter um filho dentro em breve. Chao"94.
Fidel Castro, que emite o seu parecer sobre tudo, tinha-os aconselhado a utilizar a pequena indemnização da Agência Latina para fazerem uma viagem, em vez de comprarem
um carro, como era o desejo de Hilda. Ernesto, sempre apaixonado pela arqueologia, propõe, em Novembro, uma viagem de núpcias às origens de uma das mais brilhantes
civilizações do mundo, a dos Maias. Em Palenque, "pérola das Américas", regala-se a escalar templos barrocos e pirâmides que mal se destacam de uma floresta que
quase voltou a ser virgem. Consola-se da sua frustração guatemalteca quando, um ano antes, prestes a ser nomeado médico no Petén, outra jóia da arqueologia maia,
lhe exigiram que se filiasse no partido. Mas o calor húmido dos trópicos agrava-lhe a asma, esquecida nos montes do México. Na península do Iucatão, de clima árido
e seco, recupera o fôlego e descobre o esplendor dos complexos gigantescos de Uxmal e de Chichén Itzá. Não é a asma mas a indignação que poderia asfixiá-lo quando
fica a saber que, na corrida contra o tempo que os arqueólogos levam a cabo contra os ladrões de túmulos, há inúmeros norte-americanos que os pilham à vontade, enviando
esses tesouros para galerias de arte ou museus nos Estados Unidos. Mais uma razão para justificar a sua raiva antianque e reivindicar uma filiação cultural nessas
populações indo-americanas de ilustres matemáticos, que tinham inventado o zero, os sistemas decimais, um calendário de extrema precisão e uma língua tão rica que,
em comparação, o espanhol importado pelos conquistadores lhes pareceu pobre e bárbaro. Único mistério ainda por resolver: porque é que uma civilização tão notável
foi engolida pela floresta com a mesma rapidez com que surgiu?

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No caminho de regresso, num pequeno porto de pesca perto de Vera Cruz, no golfo do México, Hilda relata um pequeno incidente que revela que o argentino, agora "chefe
de família", sabe comportar-se como um macho se alguém se meter, mesmo sem maldade, com a sua querida esposa.95 Hilda, grávida, tem um súbito desejo de comer peixe;
entram numa espelunca onde já estão à mesa uns dez mexicanos a beber cerveja, certamente marinheiros. Um deles, erguendo o copo, dirige-se a Ernesto. "Bebo à tua
saúde e à da princesa". Resposta de Ernesto: "À minha saúde, podes beber à vontade. A ela deixa-a em paz". Hilda observa que o casal que eles constituíam - ela com
um ar muito mestiço, ele com um ar muito europeu - devia provocar alguma estranheza. (Em Chichén Itzá, onde estava a ser rodado um filme, toda a gente julgava que
Ernesto era um actor). "Devem ter pensado que eu era uma mexicana que andava com um gringo". No fim da refeição, nova homenagem feita pelo mesmo marinheiro, que
se aproxima deles: "À saúde da princesa!". Desta vez, Ernesto levanta-se, agarra-o pelo colarinho, empurra-o para a mesa dele e deixa-o cair na cadeira. "Já te avisei:
comigo, tudo bem. Com ela, não." No México, não é preciso mais para se puxar logo de facas ou pistolas. Mas o dono da tasca, sem chamar a polícia, consegue acalmar
os ânimos.
Para regressarem à Cidade do México alongando o caminho, embarcam numa pequena lancha que faz cabotagem ao longo do golfo. É uma zona de ciclones. Enormes vagas
agitam a embarcação, fazem rolar a carga. A travessia, que deveria durar 24 horas, prolonga-se por três dias. Toda a gente enjoa. Excepto Ernesto que, em fato de
banho, salta, a rir, de um lado ou do outro do barco, tira fotografias, brinca. Depois de um ano inteiro sem sair do México, será que esta viagem lhe despertou a
sua veia de vagabundo? Ou estará já a treinar-se para uma travessia de outro género?
O verdadeiro treino daqueles que se consideram como "combatentes rebeldes" chamados a libertar Cuba começa em Janeiro de 1956. Na sua longa volta pelos Estados Unidos,
Castro conseguiu recolher dólares suficientes para pôr em prática a sua nova estratégia. Enquanto a aventura de Moncada fora concebida como uma acção insurreccional
curta, centrada nas cidades, ele pensa agora que uma guerrilha, mesmo prolongada, tem mais hipóteses de sucesso se se apoiar numa população urbana e rural favorável
aos guerrilheiros. Falta ainda proceder à formação moral e física dos ditos. Tal como proclamou publicamente, o ano de 1956 não deverá chegar ao fim sem que eles
sejam "livres ou mártires". Também ele tem pressa.
No Natal de 1955, é ele próprio que cozinha, e convida Ernesto, prontamente incluído no círculo dos mais íntimos, para uma consoada à cubana, cuja ementa nos é descrita
por Hilda: porco assado, acompanhado de moras1 e cristianos (mouros e cristãos), isto é, feijões pretos e arroz branco, com os clássicos pinhões, maçãs, uvas e vinho.
Mas essas ágapes são excepcionais. A regra agora é a disciplina e o rigor em tudo. Antes de sair de Cuba e ir para o México, Castro tinha já lançado as bases do
"Movimento do 26 de Julho", o M-26, que irá constituir a base da rede dos seus apoiantes incondicionais,

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tendo criado agora alguns núcleos na colónia cubana nos Estados Unidos. A designação "26 de Julho" não é inocente. Adoptando a data simbólica do ataque a Moncada
para baptizar o seu movimento, Castro pretende estabelecer o carácter fundador da sua acção. Ao contrário de todos os discursos contestatários dos partidos de oposição,
ele foi sem dúvida o primeiro, depois de Marti, a criar um grupo armado sólido, disciplinado, capaz de enfrentar a morte para atacar um dos bastiões emblemáticos
da tirania. O facto de ter falhado torna-se quase secundário. Está convencido, e consegue convencer os seus seguidores, que a próxima tentativa será bem sucedida.
Em meados de Janeiro, o M-26 envia-lhe quarenta homens cuidadosamente escolhidos que, juntando-se aos que já estão no México, constituem um pequeno grupo de sessenta
valentões que é necessário agora transformar em combatentes resistentes. Alugam-se seis casas pequenas, onde é imposto um regime de caserna tão monástico como compartimentado.
Estudos sobre "questões militares ou revolucionárias", saídas vigiadas, sempre a dois, refeições a horas fixas. Nenhum álcool, nenhuma chamada telefónica. Qualquer
indiscrição é considerada como uma traição. Castro está consciente de que a polícia de Batista o vigia de perto, mesmo no México, e que é necessário redobrar a vigilância.
O seu correio pessoal é recebido em casa de Hilda Gadea, a quem Ernesto pede a máxima discrição junto dos amigos.
Elogio da guerrilha
Tratando-se da preparação militar propriamente dita, Castro descobriu, na colónia dos republicanos espanhóis instalados no México, uma personagem altamente pitoresca,
o general da força aérea Alberto Bayo, nascido em Cuba, mas que fez toda a sua carreira em Espanha e sobretudo em Marrocos onde, ao longo de onze anos, na legião
estrangeira espanhola, enfrentou a guerrilha permanente dos mouros do Sara ocidental. Velho combatente, zarolho - perdeu um olho em combate - simultaneamente ingénuo
e astuto, Bayo é conhecido pelas suas conferências em prol da guerra de guerrilha contra um inimigo poderoso e organizado. Foi a guerrilha, alega ele, que permitiu
expulsar os franceses de Espanha durante as guerras napoleónicas, foi a guerrilha que, por seu turno, os mexicanos utilizaram contra a coroa espanhola para alcançar
a independência. Foi ainda graças à guerrilha que Sandino conseguiu fustigar durante sete anos as tropas dos Estados Unidos que ocupavam a Nicarágua. O seu princípio
é simples: "Ataca e foge". Mas pressupõe, evidentemente, um apoio total dos habitantes e uma estadia prolongada em zonas rurais.
"Ébrio de entusiasmo" pelo ardor desse brilhante advogado que lhe faz vibrar a corda patriótica, Bayo abandona, aos 65 anos, a sua fábrica de móveis e as suas aulas
na escola de aviação para se dedicar exclusivamente à formação militar dos recrutas do M-26. Em meados de Março consegue encontrar,

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a quarenta quilómetros da Cidade do México, uma grande propriedade semi-abandonada, de dez mil metros quadrados, rodeada de cento e cinquenta hectares de terreno
selvagem, entre a planície e a montanha. O ideal. Para conseguir a coisa, contou uma história rocambolesca de um coronel salvadorenho, ligado à política no seu país,
que gostaria, antes de o adquirir, de remodelar o edifício com uns cinquenta operários da sua confiança, correndo as despesas por sua conta. Mas é necessário discrição.
O proprietário, um velho mexicano que combateu nas fileiras de Pancho Villa contra os Estados Unidos, compreende muito bem e aluga-lhe a sua hacienda de Santa Rosa,
durante o tempo das obras, por um preço simbólico de oito dólares por mês.
Entretanto, Guevara, que continua a trabalhar no hospital, faz o possível, sempre que pode, para acompanhar os seus novos companheiros nas sessões de treino físico:
longas marchas já está habituado pela avenida Insurgentes, que atravessa a cidade ao longo de quarenta quilómetros; remo durante várias horas, no lago do parque
de Chapultepec; treino de combate com os punhos, num ginásio de confiança. Mas o que ele prefere, por constituir um verdadeiro desafio, são as escaladas na montanha.
Não esperou pelas instruções de Bayo para se lançar na escalada dos cinco mil e quatrocentos metros do Popocatépetl, um magnífico vulcão de cone quase perfeito,
sempre envolto em nevoeiro, que é possível avistar, nos dias de bom tempo, a partir da Cidade do México. Em Julho de 1955, Ernesto descreve à mãe a sua primeira
ascensão: "Já escalei o Popo - é como aqui lhe chamam [...]. Estava disposto a tudo para chegar ao cume, mas um camarada cubano pregou-me um susto, pois ficou com
os pés gelados e, todos cinco, tivemos que descer. Quando a tempestade abrandou um pouco e o nevoeiro se dissipou, reparámos que tínhamos chegado quase à beira da
cratera. Lutámos seis horas contra uma neve que nos chegava à cintura e nos deixava derreados. O nosso guia perdera-se, ao querer evitar uma fenda [...]. Para descer,
fomos quase de escorrega, lançando-nos por ali abaixo! Quando cheguei, já não tinha calças. Os meus pés descongelaram, mas tenho a cara e o pescoço queimados como
se tivesse passado um dia inteiro ao sol em Mar del Plata. Neste momento, pareço o Frankenstein"96. Talvez mais monstruoso do que Frankenstein é este tipo de proeza
ser feita por um asmático como Guevara. Essa vontade férrea de ultrapassar a doença, essa alegre tenacidade no esforço são características que não deixarão de impressionar
Castro.
A 15 de Fevereiro de 1956 dá-se o grande acontecimento: Hilda dá à luz não um Vladimir-rapagão, mas uma menina bochechuda, cujos olhos em bico e a pele morena marcam
bem a ascendência índia. É baptizada de Hilda (como a mãe) Beatriz (como a adorada tia de Ernesto). O primeiro a vir admirar a pequena maravilha é o amigo Fidel
Castro, que promete: "Esta criança vai ser educada em Cuba"97. Ao comunicar a novidade à mãe, tratando-a por abuelita (avozinha), Ernesto comenta: "É a cara chapada
de Mao Tsé-Tung"98 À sua camarada Tita Infante, confessa: "Poderia transformar-me num insípido pai de família, mas sei que não vai ser assim e que continuarei com
a minha

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vida de boémia [...] até ao dia em que chegar à Argentina e trocar a minha capa de cavaleiro andante por um instrumento de combate"99.
No rancho de Santa Rosa, instrumentos de combate é o que não falta, embora díspares, espingardas com mira telescópica, metralhadoras, semiautomáticas portáteis e
até duas armas antitanque. Ernesto adora as armas de fogo desde pequeno. Depois de terem feito treino físico na cidade e em seguida num campo de tiro perto da Cidade
do México, os futuros combatentes passam ao estádio superior e instalam-se no aquartelamento provisório da hacienda, longe de olhares curiosos. Guevara começa por
alternar entre o hospital e o campo de treino. Mas em breve, a partir de Maio, sai do hospital para se instalar definitivamente em Santa Rosa e seguir o mesmo regime
dos companheiros. Castro, sempre muito ocupado no México com a preparação política da operação, nomeou o argentino responsável pelo grupo; ele leva a sério o seu
papel, sob a direcção do general Bayo, que declara nunca ter tido melhor aluno. Guevara reconhece que, se inicialmente teve algumas dúvidas quanto ao êxito da aventura,
elas em breve se dissiparam ao ouvir as lições de táctica militar do general, que fala como um profissional: "Desde as primeiras aulas que tive quase a certeza de
que iríamos vencer"100. Encarregam-no de dar umas aulas de instrução política e ele expõe então aos camaradas os princípios elementares da doutrina de "San Carlos",
apesar de nem todos partilharem o seu entusiasmo pelo marxismo. Mas a sua tarefa essencial, como médico da expedição, é zelar pela boa saúde física do grupo. Ministra
umas noções básicas de socorrismo, mostra-lhes quais são os primeiros cuidados a prestar a um ferido e, se se trata de dar uma injecção, não hesita em dar ele próprio
o exemplo: é perito na matéria. Um único senão, aparentemente paradoxal para um médico por definição ligado à higiene: os cubanos têm a mania de se lavar. "Tudo
isso é muito bonito, mas como é que vão fazer quando estiverem no mato? Duvido muito que possam lavar-se ou mudar de roupa todos os dias"101. E Bayo prefigura já
o aspecto que um dia terão esses combatentes barbudos quando os obriga a deitar fora lâminas de barbear e escovas de dentes "porque para onde vocês vão não há disso".
Em Santa Rosa, o regime é ainda mais severo do que na cidade. Num livrinho tosco, pleno de ingenuidade, O Meu Contributo para a Revolução Cubana102, Bayo dá uma
ideia do regime que impõe aos seus homens. Levantar às cinco da manhã e actividades teóricas e práticas intensas até ao anoitecer. Todos dormem no chão, quando dormem,
pois as marchas de noite multiplicam-se, com cargas às costas cada vez mais pesadas. Por vezes separam-se em dois grupos que simulam defrontar-se, para melhor reproduzir
as condições dos combates que poderão ter de enfrentar na sierra cubana. Guevara adapta-se a estas condições rigorosas e duras como se sempre tivesse feito isso
na vida. Consegue até arranjar tempo para jogar xadrez com Bayo, entre outros, beberricando o seu inevitável mate. Castro observa que, quando todos estão esgotados,
o argentino é o único a não manifestar cansaço, e aponta-o como exemplo. A partir dessa existência quotidiana de

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esforços partilhados, sem nenhum privilégio, Guevara é integrado pelos cubanos como sendo um dos deles, um camarada de pleno direito. Já o chamam pela alcunha Che,
nome dado a todos os que vêm do Rio da Prata, que ornamentam o seu discurso com essa interjeição familiar. "No caso do Che, ele adquiriu uma tal fama, um tal prestígio
que se tornou proprietário da alcunha"103, precisa Fidel.
Dessas semanas memoráveis, Bayo assinala uma única falta grave à disciplina quando, numa marcha, um dos aprendizes de guerrilheiro, Calixto Morales, recusa dar mais
um passo. Conselho de guerra imediato. Fidel e Raul acorrem da Cidade do México. Fidel está louco de raiva, mas é Raul que deixa Bayo estupefacto pela violência
do requisitório, e pede a morte para o "sabotador". Por fim, o culpado é banido do movimento, considerado como prisioneiro. Todavia consegue, como um perdão, que
o deixem retomar o treino.
Muito mais tarde, explicaria a Bayo que estava a sofrer terrivelmente devido a uma deformação na anca, que teimara em não revelar com medo de não ser seleccionado
entre os privilegiados que iriam desembarcar em Cuba. Quanto a Castro, parece não ter ficado nada convencido com a actuação da sua tropa, pois falará a Tad Szulc,
um dos seus biógrafos, da "inacreditável mediocridade do seu treino no México".
Apesar das precauções, todos estes preparativos militares estão longe de ser ignorados pelos serviços secretos de Batista, que conseguiram infiltrar-se no M-26.
Através das suas declarações, dos artigos que consegue fazer publicar na imprensa cubana, pelos contactos que vai multiplicando na região com os meios da oposição,
pelas visitas que recebe de emissários vindos de Havana, Castro começa a tornar-se um inimigo quase mais prejudicial no exílio do que em Cuba. Batista ordena então
aos seus capangas que se desembaracem dele fisicamente ou, pelo menos, que façam o necessário para que a polícia mexicana o "neutralize".
Na noite de 20 de Junho de 1956, ao sair de uma das casas-refúgio à disposição dos combatentes do M-26, Fidel Castro é preso em plena rua, juntamente com dois companheiros,
Universo Sánchez, um antigo comunista encarregado das questões de segurança, e Ramiro Valdés, um "moncadista" da primeira hora. A cena passa-se como nos filmes de
gangsters, com a polícia a servir-se de Sánchez e Valdés como escudo para obrigar Castro a entregar a arma e a entrar na carrinha. Nessa mesma noite, mais uma dúzia
de membros da equipa Castro são presos, entre os quais a hospitaleira Maria Antonia González. No dia seguinte, é a vez de Hilda Gadea ser conduzida ao posto da polícia,
com a pequena Hildita ao colo. Querem sobretudo saber onde se encontra o senhor Guevara, suspeito de simpatias comunistas, pecado capital numa época em que o relatório
Kruchtchev, certificando os campos do terror estalinista, acaba de ser divulgado.
Antes de ser libertada, Hilda garante ter ouvido os seus inquiridores, mergulhados na penumbra, falar inglês. Não é de excluir a hipótese de alguns agentes do FBI
ou da CIA terem acompanhado os seus colegas mexicanos

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nos seus esforços para deter toda a tentativa de penetração comunista na "coutada" norte-americana.
Quando a polícia informa Castro que vão também fazer uma busca no acampamento de Santa Rosa, do qual lhe chegam a mostrar fotografias, ele reage de imediato. Tem
de evitar um confronto tão mortal quanto inútil, uma vez que o inimigo se situa em Cuba e não no México. Consegue que o deixem acompanhá-los. A 24 de Junho, quando
os jipes e os carros da polícia se aproximam da hacienda, Guevara está de vigia, em cima de uma árvore. Enquanto os veículos se imobilizam, avista Fidel, que avança
sozinho, a descoberto, ao longo de duzentos metros, para que os seus amigos, entrincheirados atrás dos muros espessos do edifício, possam reconhecê-lo. É ainda uma
cena de filme mas, desta vez, do género western. "Estive quase para me deixar ficar escondido na árvore, mas Fidel pediu que nos rendêssemos todos"104, confidenciará
depois Ernesto a Hilda. Treze homens são assim presos. Escapam Raul Castro e um pequeno grupo, que tinham ido esconder armas numa colina próxima.
Guevara vê-se então detido com Fidel Castro e mais vinte e seis companheiros na prisão especial dos serviços de emigração do Ministério do Interior, na rua Migue-Schultz.
O acontecimento dá brado na imprensa mexicana. Em Cuba, Batista exulta e pede a extradição de toda aquela malta. Há uma grande agitação por parte dos simpatizantes
do M-26, que mandam vir de urgência, dos Estados Unidos, um dos mais próximos colaboradores de Castro, Juan Manuel Márquez que, com Raul, contrata dois advogados
que vão ter um trabalhão para contrabalançar o efeito das substanciais mordidas pagas pelos agentes de Batista. Lavalle, um juiz corajoso, ordena, porém, a libertação
dos detidos, ao que se opõe o Ministério do Interior, alegando uma conspiração comunista. "Acusação absurda", protesta Castro, que não aceita de modo algum ser rotulado
de comunista (e que não o é, por enquanto). Envia ao semanário Bohemia (15 de Julho de 1956) um longo artigo no qual recorda que, pelo contrário, foi Batista que,
nas eleições de 1940, foi o candidato oficial do Partido Comunista e que, aliás, o seu governo actual inclui muitos comunistas.105
Todavia, o falatório é tal, com avisos de greve da fome por parte dos detidos que, a 9 de Julho, vinte e cinco cubanos são libertados, abandonando a prisão a cantar
o hino nacional de Cuba e o do M-26. Só permanecem presos Castro, Calixto García e Guevara, sob o pretexto de os seus vistos ter caducado e estarem, portanto, em
situação ilegal. Os advogados de Castro apelam então para o homem que, no México, goza do maior prestígio, o antigo presidente Lázaro Cárdenas, aquele que teve a
coragem de nacionalizar o petróleo em 1938, até aí nas mãos das companhias norte-americanas. Cárdenas aceita intervir e Castro é libertado a 24 de Julho. Mas Guevara
não; a polícia mexicana tem-no especialmente sob mira, pois não entende o que é que ele faz entre os cubanos. Em sua casa foi encontrada abundante literatura marxista
e um cartão de membro do Instituto México-URSS; de facto, ele começara

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a estudar russo "para entender melhor Pavlov". Não é preciso mais para que seja considerado como o cérebro do grupo. "Quando iam buscá-los para os interrogatórios,
ele era o único a quem punham algemas"106, esclarece Hilda. E quando o ameaçam de torturar a sua mulher e a sua filha para que confesse que está a soldo do comunismo
internacional, ele decide não mais abrir a boca. Daí uma certa raiva da polícia contra esse argentino, que parece troçar dela.
Essa estada na prisão reforça ainda mais os laços de amizade já estabelecidos no acampamento de Santa Rosa e a estima dos cubanos por esse camarada vindo de outras
bandas, que Castro põe a dormir junto de si, que fala com um sotaque estranho, que prepara infusões esquisitas, que anda em tronco nu e que é tão simples, tão prestável,
tão dedicado a uma causa. O fotógrafo Nestor Almendros, que o jornal Bohemia envia em reportagem com o jornalista Carlos Franqui, recorda-se desse jovem de cabelo
curto, "muito belo, calmo, discreto, não muito simpático, pois responde num tom seco, mas cuja atitude digna contrasta com o aspecto patibular dos seus companheiros"107.
Quanto a Hilda, ela reteve sobretudo a extrema coesão de todos esses homens que, segundo diz, constituíam "um grupo maravilhoso".
Antes de Fidel sair da prisão, Guevara pede-lhe que não comprometa o projecto global por sua causa. "Expliquei-lhe o meu caso pessoal; eu era estrangeiro, clandestino
no México e sobre mim pesavam uma série de acusações. Disse-lhe que estava fora de questão travar a marcha da revolução por minha causa [...]. Tudo o que pedia era
que me mandassem para um país próximo, mas não para a Argentina. Lembro-me da resposta categórica de Fidel: "Não te abandonarei" [...]. Esta atitude em relação às
pessoas que ele estima, explica, quanto a mim, os apoios incondicionais que suscita"108.
Numa das visitas de Hilda com a filha, ele entrega-lhe, amarrotado, um poema que compôs na herdade de Santa Rosa, para que ela o envie ao destinatário quando estiver
no mar alto. É um Canto a Fidel, verdadeiro hino de admiração, quase um grito de amor, tanto mais notável por vir de um homem que procurou, até ali, manter o sangue-frio.
Desta vez já não se trata de olhar as coisas com algum desdém, nem com cepticismo; já não há distanciamento. Guevara encontrou a sua verdade e o seu guia: "Partamos
/ ardente profecia da aurora/... para libertar o caimão verde de que tanto gostas/... Quando soar o primeiro tiro/... Ali, ao teu lado... Nos encontrarás. / Quando
a tua voz gritar aos quatro ventos / reforma agrária, justiça, pão, liberdade / Ali, ao teu lado... / nos encontrarás. / E, se a metralha nos detiver no caminho,
/ que nos dêem uma mortalha de lágrimas cubanas..."109. Mais tarde, em Cuba, o semanário Verde Olivo publicará este poema e Guevara, protestando veementemente, enviará
uma carta ao director, proibindo-o de publicar o que quer que seja da sua autoria; e acrescentará, com um certo humor: "muito menos esses versos, que são horríveis"110.
Aos pais, ele já não esconde nada. Escreve-lhes da prisão: "O meu futuro está ligado à revolução cubana. Ou triunfo com ela, ou morro lá. [...] Passei a vida à procura
da minha verdade, por tentativas, e, nesta fase da vida, agora

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com uma filha para me perpetuar, encerrei um ciclo. Doravante, não considerarei a minha morte como uma frustação. Quase diria, como Hikmet: Só levarei para o túmulo
a mágoa de um canto inacabado...""1. (A referência a Hikmet* deve ser sublinhada, pois confirma a que ponto Ernesto estava influenciado, nessa época, por um universo
mental marcado pelo ideário comunista).

Nota: *Nazim Hikmet (1902-1963) é um poeta turco que fora condenado a pesadas penas de prisão pelas suas opiniões comunistas. Uma vasta campanha internacional, conduzida
pelos partidos comunistas, tinha obtido a sua libertação em 1950.


"Não sou Cristo"

A 15 de Julho de 1956, Ernesto envia à mãe, que certamente lhe reprovara um gosto excessivo pelo sacrifício, uma carta decisiva, que é simultaneamente um manifesto,
um programa de vida e uma sátira violenta contra a abjecção das meias-tintas: "Não sou nem Cristo nem filantropo; sou o contrário de Cristo [...]. Tento derrubar
o adversário em vez de me deixar pregar na cruz [...]. Não só não sou moderado como procurarei nunca o ser, e quando perceber que o meu fogo sagrado se transformou
num pequeno círio não vou certamente pôr-me a vomitar sobre a minha própria merda [...]. Toda a acção de envergadura exige paixão e, para a revolução, é preciso
paixão e audácia em grande escala". E acrescenta, referindo-se às diligências levadas a cabo pela sua família junto de amigos ou de autoridades, como o contra-almirante
Raul Lynch, primo do pai de Ernesto (que é embaixador da Argentina em Havana): "Todos os SOS que vocês lançaram não serviram de nada. Só dariam resultado se eu abdicasse
dos meus ideais. Não acredito que prefiras um filho vivo mas infame a um filho morto por ter cumprido o que considera o seu dever". E termina, depois de ter corrigido
algumas críticas feitas a Cuba: "Além do mais, irei para outro sítio qualquer. Porque é evidente que fechado num trabalho burocrático, ou numa clínica de doenças
alérgicas, fico liquidado". E, pela primeira vez, ostenta a nova identidade que lhe atribuíram os seus camaradas cubanos, assinando: "Teu filho, o Che"112.
Por seu turno, Fidel Castro cumpre o prometido e não abandona nem Che nem Calixto García. O argumento clássico de uma mordida substancial abranda a intransigência
policial. Os dois últimos detidos são libertados em meados de Agosto. Guevara tem 28 anos. Ordenam-lhe que abandone o território no prazo de dez dias. O que, evidentemente,
ele não faz. A partir de agora, para ele, como para todos os homens de Castro, até à partida para Cuba, começa o tempo da clandestinidade. Vem-lhe à memória um filme
da época, com Paul Muni: Sou um Evadido. Não se pode dizer que esse papel de conspirador, jogando ao gato e ao rato com a polícia, lhe tenha desagradado.
A prisão nem por sombras fez com que Castro renunciasse ao seu projecto. Está mais empenhado do que nunca, mas redobra de precauções. Dos

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Estados Unidos e de Cuba chegam-lhe quarenta novos recrutas. Dispersam-se todos ao longo da costa do golfo do México a que está voltada para a sua adorada ilha,
estendida como um caimão. Guevara é inicialmente enviado para Cuautla, a duas horas da Cidade do México, onde se aloja, sob o nome de González, num pequeno hotel
onde Hilda pode procurá-lo aos fins de semana. Cada um recebe uma pequena quantia de dinheiro para as despesas e a Hilda, que lhe traz esse viático, ele recomenda
que não gaste sequer um tostão dele com as viagens. O dinheiro do M-26 deve destinar-se apenas às despesas essenciais. Aproveita essas tréguas inopinadas para aperfeiçoar
o seu treino físico e os seus conhecimentos sobre o marxismo. Diz ele: "S. Carlos fez um recrutamento estudioso [...]. Eu passo o tempo a fazer exercício e a ler.
Depois disto, acho que ficarei "um barra" em matéria de economia, mesmo que tenha esquecido como se mede o pulso"113. Apesar de tudo, ele é o médico da expedição
e às vezes chamam-no para assistir um doente.
Por vezes, muda de residência. "A minha profissão actual é a de um saltimbanco, hoje aqui, amanhã ali"114. As estadias em zona tropical, quente e húmida, provocam
de novo a asma. Mas, à medida que o tempo passa sem que o controlo policial se manifeste, ele torna-se mais ousado, vem discretamente à capital respirar um ar seco
mais saudável, falar com os irmãos Castro, ver a sua filha rechonchuda, a quem chama "indiazinha", ou "Maozinha". Está todo orgulhoso. Como se pode ver pelo bilhete
atestando a sua virilidade satisfeita, que Hilda recebe um dia, através de um mensageiro que vem buscar um lote de livros marxistas: "O portador é um guajiro (camponês)
inculto. Não ligues. Mostra-lhe antes a miúda, para que ele possa avaliar a qualidade do touro"115. Em Novembro, vem esconder-se por 15 dias na Cidade do México,
em casa do guatemalteco Alfonso Bauer, o mesmo que conheceu nos tempos de Arbenz e que o ajudou a arranjar emprego no Hospital da Cidade do México. Também aqui se
dá um incidente revelador de uma boa presença de espírito. Como o apartamento de Bauer foi assaltado, a polícia vem fazer um inquérito e aproxima-se do quarto das
traseiras, onde Ernesto está alojado. Contudo, ele tem tempo de lançar um cobertor sobre o seu camarada Calixto García, deitado na cama, temendo que a sua pele negra
desse um pouco nas vistas. Mas a cara simpática de Guevara satisfaz os polícias, que não manifestam excesso de zelo e não vão vasculhar no canto onde Bauer escondeu
os caixotes de medicamentos que o argentino trouxe para casa.
Parece que foi durante esse último semestre de 1956 que começaram a surgir discussões com Hilda, sem dúvida de ordem política, tanto mais surpreendentes por a constituição
do casal ter assentado, desde a sua origem, numa conivência ideológica, e também porque para Guevara, como sempre insistiu, a primeira virtude de uma esposa é a
de ser uma "boa camarada". Em Outubro, comunica à mãe que Hilda vai regressar ao Peru, uma vez que já não é lá persona non grata. Com efeito, a APRA, o partido a
que Hilda pertence, coligou-se com o reformista Manuel Prado, que ganhara recentemente as eleições presidenciais. "Ei-la representante extraviada do mui digno e
mui anticomunista partido aprista"116, ironiza Ernesto.

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Nas suas memórias, editadas em 1972, Hilda Gadea não menciona a mais pequena nuvem nas suas relações com Ernesto em 1956. Pelo contrário, refere gestos de ternura
que, segundo afirma, não eram habituais no marido, pois ambos pensavam que cada encontro poderia ser o último. "Será pelos jornais que ficarás a saber que partimos",
dizia-lhe ele. Mas, numa extensa carta que ele escreve, em Outubro, à sua confidente Tita Infante (Penélope que ficou em ítaca), Ernesto revela de modo explícito:
"A minha vida conjugal está quase desfeita [...]. Há um certo sabor amargo nesta ruptura, pois [a minha mulher] foi uma camarada leal e o seu comportamento revolucionário
foi irrepreensível durante as minhas férias forçadas, mas havia um grande desacordo espiritual entre nós, e eu vivo dentro daquele espírito anárquico que me faz
sonhar com novos horizontes..."117. Após o divórcio, três anos depois, Hilda Gadea declara à revista Time de 8 de Agosto de 1960: "Se perdi o meu marido, foi por
causa da revolução cubana". A observação não deixa de ter o seu fundamento, pois o verdadeiro amor de Ernesto é realmente a revolução, que para ele está acima de
tudo, incluindo a vida familiar e conjugal. "Vinha a casa de dois em dois meses, confessa Hilda. O período de tempo mais longo em que pude vê-lo foi quando ele esteve
na prisão. Uma noite, apareceu. Passado um bocado, bate à porta um companheiro. Fecham-se os dois na casa de banho, para conversar. Depois ele sai lá de dentro e
diz-nos adeus. Não dá nenhuma explicação, mas pensei que era a despedida final. Não me enganava. Dias depois, li no jornal que o embarque ocorrera em Tuxpán"118.
Através de um traficante de armas mexicano, Castro compra, no fim de Setembro, um iate branco de doze metros, já velho mas com bom aspecto, o Granma (Avozinha, em
inglês), que pertence a um norte-americano de origem sueca, instalado no México. Pequeno inconveniente: o barco, construído em 1943, fora afundado por um ciclone
em 1953. Tendo estado muito tempo afundado, precisa de ser convenientemente reparado e só pode comportar, no máximo, 25 pessoas. Pouco importa; é mesmo o que Castro
pretende, e paga por ele quarenta mil dólares, recebendo como "brinde" uma casa na margem do rio Tuxpán, perto da foz, onde poderão ficar instalados os homens que
são imediatamente enviados para reparar a embarcação. O projecto de Castro não sofreu alteração: desembarcar em Cuba com os seus guerrilheiros antes do fim do ano,
como anunciara publicamente, e coordenar esse desembarque com uma série de levantamentos organizados no país, sobretudo em Oriente, isto é, na parte leste da ilha,
e em Santiago de Cuba. Frank País, encarregado das operações do M-26 nessa região, vem explicar-lhe que é demasiado cedo, que os grupos armados de Oriente ainda
estão mal preparados. Os comunistas cubanos do Partido Socialista Popular (clandestino) enviam-lhe a mesma mensagem. Seria melhor esperar, pelo menos, até Janeiro,
quando os trabalhadores agrícolas contratados para a zafra (colheita da cana-de-açúcar) poderão entrar em greve. Por enquanto a situação não é favorável, a oposição
não está unida. Seria correr para o fracasso. Em Cuba, o comandante das Forças Armadas cubanas declara que uma tentativa de desembarque seria

143

esmagada; multiplicam-se as patrulhas marítimas e os reconhecimentos aéreos, o exército e a polícia estão em estado de alerta. Castro não desiste. Pelo contrário,
anuncia mesmo, numa entrevista ao jornal governamental cubano Alerta (publicada a 19 de Novembro de 1956), que se Batista não abdicar dentro de duas semanas, ele
se reserva o direito de "desencadear a luta revolucionária". Nesta crónica de um desembarque anunciado, o prazo decisivo de 1956 será respeitado: "Seremos livres
ou mártires".
Os acontecimentos precipitam-se. Duas deserções nas fileiras do M-26 levam Castro a apressar a decisão. Começa uma corrida contra o tempo com a polícia, que dispõe
agora da lista dos acampamentos e das casas-refúgio. A
23 de Novembro ordena, com carácter de urgência, o carregamento do barco com armas, munições e víveres. Todos os combatentes seleccionados são convocados para 24
de Novembro. Uma chuva torrencial abate-se sobre eles na margem do Tuxpán. Mal conseguem distinguir o barco no qual se amontoam, encharcados. Um deles, Faustino
Pérez, admite que "foi o início de uma competição inconfessada para entrar primeiro, temendo que os últimos não pudessem partir"119. Universo Sánchez, o braço-direito
de Fidel, não acredita que é com aquela casca de noz que vão chegar a Cuba e pergunta: "Onde é que está o barco grande, o verdadeiro barco?"120. Fidel, imperturbável,
informa Frank País, por mensagem codificada, que é no dia 30 de Novembro que irão desembarcar a sul de Niquero, na praia de Las Coloradas. Às duas horas da manhã
do dia 25 de Novembro de 1956, o pequeno navio, que há vários anos não navegava, desce o rio Tuxpán, com todas as luzes apagadas, passa o porto, entra no mar alto
e perde-se na noite. Oitenta e dois homens cantam o hino cubano e o do M-26. Entre eles, um insólito argentino, que, sem se interrogar o que faz em tão estranha
companhia, passa o seu Rubicão pessoal para comparecer ao encontro que tem consigo mesmo. Rumo a leste, o iate mergulha nas águas negras do mar largo. Começa a odisseia.

Notas:
1 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., pp. 30-32.
2 Ibid., p. 34.
3 Ibid., p. 37.
4 Ibid., p. 33.
5 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 21.
6 Ibid., pp. 20-21.
7 Ibid., p. 21.
8 Ibid., p. 243.
9 Ibid., p. 29.
10 Ibid.
11 Maria del Carmen Ariet, Che, Pensamiento Político, op. cit., p. 47.
12 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 36.

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13 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 36.
14 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 39.
15 Ibid., p. 41.
16 ibid., p. 54.
17 Ibid., p. 46.
18 Ibid., PP. 35-37.
19 Ibid., p. 41.
20 Ibid., p. 42.
21 Ibid., p. 48.
22 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 226.
23 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 48
24 Ibid., p. 49.
25 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., pp. 54-55.
26 Ibid.,pp. 55-56.
27 Ibid., p. 55.
28 Ibid., pp. 40-41.
29 Ibid., p. 37.
30 Ibid., pp. 58.
31 Ibid., p. 203.
32 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 53.
33 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 48.
34 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 52.
35 Ibid., pp. 69-70.
36 Marcel Niedergang, Les Vingt Amériques Latines, Seuil, Paris, 1969, p. 83.
37 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 55 e seg.
38 Tad Szulc, Castro, Trente Ans de Pouvoir Absolu, Payot, Paris, 1987, p. 208.
39 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 56.
40 Ibid., p. 57.
41 Ibid., p. 58.
42 Marcel Niedergang, Les Vingt Amériques Latines, Seuil, Paris, 1969, p. 83.
43 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 59.
44 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., pp. 72-73.
45 Ibid., p. 224. •
46 Ibid., p. 226.
47 Ibid., p. 225.
48 Armand Gatti, entrevista com o autor, Santiago do Chile, 1993.
49 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 61.
50 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., pp. 221-222.
51 Ibid., p. 226.
52 Ibid., p. 85.
53 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 76.
54 Ibid., p. 75. "
55 Ibid., p. 76.
56 Ibid., p. 77.

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57 Ibid.
58 Ibid., p. 80.
59 Ibid., p. 78.
60 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 107.
61 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 79.
62 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 100.
63 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 81.
64 Ibid., p. 89.
65 Ernesto Che Guevara, Obras, op. cit., p. 2
66 Ibid., p. 71.
67 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 92.
68 Ibid.
69 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 116.
70 Ricardo Rojo, Che Guevara. Vie et Mort d'un Ami, op. cit., p. 60.
71 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 117.
72 Ernesto Che Guevara, Escritos y discursos, Ciências Políticas, Havana, 1985, t. I p. 20.
73 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 116.
74 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 99.
75 Ibid., pp. 99-100.
76 Hilda Gadea, Anos decisivos, op. cit., p. 116.
77 Ernesto Che Guevara, Oeuvres VI, Textes inédits, François Maspero, Paris, 1972, p. 155.
78 Fidel Castro, Révolution Cubaine, François Maspero, Paris, 1968, t. 2 p. 227.
79 Fidel Castro, Entretiens sur la religion avec Frei Betto, Ed. du Cerf, Paris, 1986, p. 227.
80 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 225.
81 Ernesto Che Guevara, Oeuvres VI, Textes inédits, op. cit., pp. 155-156.
82 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 126.
83 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 29.
84 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., pp. 127-128.
85 Ibid., p. 133.
86 Ibid., p. 119.
87 Fidel Castro, Entretiens sur la religion avec Frei Betto, op. cit., p. 262.
88 Ernesto Che Guevara, Obras, op. cit., p. 690.
89 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 373.
90 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., pp. 232-233.
91 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 104.
92 Ibid., p. 109.
93 Arnaldo Orfila, "Recordando el Che", in Che, n.º especial da revista Casa de las Americas, reproduzindo os n.º 46 de Janeiro-Fevereiro de 1968 e n.º 104 de Setembro-Outubro
de 1977, Latinas, Buenos Aires, 1986, p. 36.
94 Ernesto Guevara Lynch, Aquí va un soldado de America, op. cit., p. 111.
95 Hilda Gadea, Anos decisivos, op. cit., p. 142.
96 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., pp. 106-107.
97 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 152.
98 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 130.

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99 Ibid., p. 129.
100 Ernesto Che Guevara, Écrits I, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 29.
101 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 183.
102 Alberto Bayo, Mi Aporte a la Revolucion Cubana, Imp. Ejercito Rebelde, Havana, 1960.
103 Fidel Castro, Entretiens sur la Religion avec Frei Betto, op. cit., p. 202.
104 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 169.
105 Tad Szulc, Castro, Trente Ans de Pouvoir Absolu, op. cit., p. 301.
106 ibid, pp. 169-170.
107 Nestor Almendros, entrevista com o autor, Paris e Londres, 1991.
108 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 30.
109 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., pp. 171-172.
110 José Pardo Llada, Fidel y el "Che", Plaza y Janes, Barcelona, 1988, p. 152.
111 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 137.
112 Ibid., p. 140 e seg.
113 Ibid., p. 148eseg.
114 Ibid., p. 151.
115 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 181.
116 Ernesto Guevara Lynch, ...Aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 152.
117 Ibid, p. 150.
118 Entrevista de Carlos Maria Guttiérez na revista Casa de las Americas n.º 54, Maio-Junho, citada em Philippe Gavi, Che Guevara, Éditions Universitaires, Paris,
1970, p. 50.
119 Carlos Franqui, Journal de la Révolution Cubaine, Seuil, Paris, 1976, p. 142.
120 Tad Szulc, Castro, Trente Ans de Pouvoir Absolu, op. cit., p. 301.

147

Segunda Parte

CUBA, CROCODILO VERDE

149

IV

SIERRA MAESTRA: O CHEIRO DA PÓLVORA.

"Vim para lutar"

A horrível travessia, o desembarque em Cuba, o intenso tiroteio que se abate sobre eles pouco depois, o caos e a errância que se seguem são descritos em dois textos,
ambos arrebatados e verdadeiros. O primeiro é do próprio Guevara, que procura reconstituir "uma visão fragmentária, feita de recordações e de alguns apontamentos".
O outro é uma novela, intitulada Réunion, imaginada a partir da descrição de Guevara, pelo seu compatriota Julio Cortázar: o longo monólogo interior de um homem
cuja única preocupação, obsessiva, é encontrar o chefe das operações, o comandante, o amigo Fidel.
Logo que o pequeno iate, sumariamente reparado, entra nas águas agitadas do golfo do México, a tempestade, até aí refreada pela geografia do litoral, vem abanar
impiedosamente a casca de noz e justificar a interdição de navegar imposta pela capitania do porto de Tuxpán. Os trópicos, supostamente paradisíacos, podem revelar-se
selvagens e brutais. El Norte, a poderosa nortada, fustiga a chuva. Vagas "altas como montanhas" fazem dançar a embarcação, com uma carga quatro vezes superior à
que devia comportar: oitenta e dois homens (em vez dos 25 autorizados), com armas, bagagens e caixotes de munições (por falta de espaço foi mesmo necessário deixar
na costa mexicana cinquenta voluntários frustrados). Mergulhado abaixo da sua linha de flutuação, o barquito é sacudido de todos os lados. Mal os últimos cânticos
de "morrer pela pátria é viver" se perdem na noite, o enjoo toma conta da tripulação, com excepção de quatro ou cinco valentes, de estômago mais sólido, entre os
quais o doutor Guevara, que já tem muito com que se entreter com a asma, que não o largará durante toda a viagem. Para já, não consegue encontrar os malditos comprimidos
contra o enjoo. Tal como ele descreve: "O barco era um espectáculo simultaneamente trágico e ridículo: "homens, de rosto lambuzado de angústia e segurando na barriga;
uns com "a cabeça enfiada num balde, outros, caídos no chão, imobilizados nas mais

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estranhas posições, com a roupa suja de vomitado"1. Para cúmulo, a água invade o tombadilho. Faustino Pérez, um dos adjuntos de Castro, relata ao jornalista Carlos
Franqui: "Foi dada ordem de utilizar as bombas, mas a água, em vez de baixar, continuava a subir [...]. Está tudo perdido, pensei eu. Fui falar com Fidel [...].
Queria propor-lhe que nos lançássemos à água para chegar à costa a nado"2. A explicação de Guevara é reveladora da confusão geral: "Descobrimos que aquilo que pensávamos
ser um rombo no barco não passava de uma torneira aberta nos sanitários. Tínhamos deitado borda fora tudo o que era supérfluo, para descarregar o lastro"3.
No terceiro dia, a tempestade abranda e Castro dá aos seus homens alguns elementos de informação. A rota adoptada não irá seguir o caminho mais curto, para evitar
qualquer encontro inoportuno com as patrulhas cubanas, marítimas ou aéreas. "O itinerário escolhido", esclarece Guevara, "implicava um grande círculo ao sul de Cuba,
costeando a Jamaica, as ilhas do Grande Caimão, desembarcando por fim na costa de Oriente, nas proximidades de Niquero"4. O desembarque em Oriente, extremidade leste
da ilha, região tradicionalmente rebelde, é um clássico da história cubana. Sempre atento aos símbolos, Fidel retoma o exemplo do seu ilustre compatriota José Marti
que, em 1895, ao cabo de um longo exílio nos Estados Unidos, escolheu essas costas para vir combater o ocupante espanhol.
Durante os horríveis dois primeiros dias, o enjoo tinha tirado a todos o apetite, mas com o regresso do sol, a fome aperta, estimulada pelo ar do mar; verifica-se
então que os mantimentos, trazidos à pressa, não eram suficientes. Não se chega ao ponto de tirar à sorte por uma palhinha aquele que vai ser comido pelos outros,
mas é imposto um racionamento drástico em alimentos e água, tanto mais que a verdadeira catástrofe, de consequências dramáticas, é o atraso do barco sobrecarregado,
cujos motores se esfalfam e que só atinge
7,2 nós, em vez dos dez nós indispensáveis para chegarem a tempo. A travessia vai, pois, prolongar-se durante sete dias, enquanto tudo fora sincronizado com o M-26
de Cuba para que o desembarque ocorresse no quinto dia, a
30 de Novembro de 1956.
Nesse dia, para acolher os combatentes do Granma nas praias de Niquero, Celia Sánchez, uma mulher espantosa da qual voltaremos a falar, mobilizou camiões, guias
experientes e milícias rurais formadas pelo dirigente camponês do M-26, Crescencio Pérez. Em Santiago de Cuba, capital desse Oriente mulato penetrado por influências
africanas, haitianas e dominicanas, o jovem professor Frank País, outro grande dirigente, não imagina que Castro vai chegar com dois dias de atraso ao encontro.
De madrugada, conforme combinado, desencadeia, com vinte e sete homens apenas, o levantamento que deveria coincidir com o desembarque. Pela primeira vez, guerrilheiros
de farda verde-azeitona e braçadeiras vermelhas e negras do Movimento
26 de Julho irrompem numa cidade cubana; incendeiam o quartel da polícia nacional, apoderam-se de armas no posto da polícia marítima, travam ainda combates de rua
até ao dia seguinte, mas renunciam a atacar o quartel

152

Moncada e são forçados a recuar, deixando nove mortos, face a quatrocentos membros das forças antiguerrilha, bem treinadas, que acorreram em reforço. A insurreição
falhou. Batista decreta o estado de emergência em Oriente e redobra a vigilância da costa. Já não duvida da iminência da chegada desse perigoso Fidel Castro, que
proclamou alto e bom som que regressaria a Cuba antes do fim do ano.
No Granma, que lá vai avançando lentamente, este escuta, impotente e frenético, as informações que a rádio transmite sobre os acontecimentos de Santiago. Vocifera:
"Se eu pudesse voar...", dirigindo-se a Faustino Pérez. Na praia deserta, Célia Sánchez é informada do fracasso do levantamento e da instauração do estado de emergência.
Na noite do segundo dia de espera, vendo que ninguém chega, não tem outro remédio senão ordenar às suas milícias a retirada. Ao largo, no mar calmo, o pequeno iate
branco continua a arrastar-se. Um dos dois motores diesel avariou; foi reparado, mas é necessário vigiar o consumo de combustível, que se vai esgotando. Para cúmulo
da desgraça, surge outro acidente a atrasar a marcha. Na noite de 1 para 2 de Dezembro ainda de temporal o navegador Roberto Roque, içado sobre o habitáculo da cabine
para tentar avistar o farol do cabo Cruz, escorrega e cai ao mar. Fidel manda parar o barco e, ignorando toda a prudência (pois estão perto da costa), manda acender
o farolim do iate para tentar encontrar o marinheiro. Depois de uma hora de andar às voltas milagre! Uma voz fraca responde. Guevara e o seu colega Faustino Pérez
(que também é médico) tratam de reanimar o semi-afogado.
Algumas horas mais tarde, o piloto, Onelio Pino, começa a avançar lentamente pelo canal de Niquero. Mas hesita; as bóias não coincidem com as indicações das cartas
de navegação. Troca impressões com Castro. Este arde de impaciência por chegar a terra e não quer perder tempo. Ordena que se avance direito à costa. Decisão precipitada,
que irá custar bem caro.5
Na véspera, Castro recapitulara com os seus soldados a estrutura geral e a hierarquia do contingente. Sessenta e seis homens organizados em três pelotões (linha
da frente, centro e retaguarda) e um estado-maior de dezasseis homens. Todos são cubanos, excepto o nosso argentino, um italiano, um mexicano e o piloto, de Santo
Domingo. Fidel Castro recusou-se a aceitar El Patojo, o amigo guatemalteco de Ernesto. Não queria transformar a sua tropa em brigada internacional. São todos jovens,
mas não são garotos. A média de idades é de 27 anos. Guevara, de 28 anos, é oficial de saúde, com o posto de tenente. Raul Castro, capitão, comanda a retaguarda;
Nico López é também capitão. Vestiram as fardas verde-azeitona e calçaram as botas mexicanas novas. Na sua qualidade de comandante supremo, Fidel Castro entregou
uma arma a todos os combatentes. "A minha espingarda não era das melhores", admite Guevara. "Fui eu próprio que pedi que assim fosse, porque as minhas condições
físicas estavam deploráveis depois da grande crise de asma que me atacou durante toda a travessia, e não queria que uma boa arma se perdesse nas minhas mãos"6.
A madrugada de 2 de Dezembro de 1956 não tinha ainda despontado quando, subitamente, todos são projectados para diante. Fim da travessia.

153

O barco acaba de encalhar num banco de areia, na zona de Los Cayuelos, a dois quilómetros das praias de Las Coloradas, perto de Niquero, onde os esperara, até à
véspera, Celia Sánchez. "Se tivessem chegado pela praia, era facílimo; teriam encontrado os camiões e os jipes com combustível"7, declara ela. Fidel Castro resume:
"Depois de uma semana a aguentar a tempestade, num barco minúsculo, quase sem víveres, os homens do nosso corpo expedicionário desembarcaram num estado de enorme
fraqueza. Há três dias que praticamente não comíamos. Tivemos o azar de desembarcar num sítio mau, em pleno pântano"8. Falar de azar é escamotear um pouco a responsabilidade
daquele que tomou a decisão de avançar a direito para a costa e o "sítio mau" é uma branda figura de retórica. Los Cayuelos é o inferno.
Como sempre, o grotesco alia-se ao trágico. A lancha auxiliar lançada ao mar afunda-se de imediato sob o peso dos homens e do material. É necessário abandonar o
material pesado. Cada um tem de saltar para a água com a sua arma individual e o "estritamente necessário". O primeiro a lançar-se é um homem leve. O solo resiste.
Fidel, que se precipita atrás dele, tem outra corpulência. Enterra-se no lodo até à barriga. O mesmo sucede ao seguinte. A história não regista os palavrões desses
aprendizes de recruta que se debatem no atoleiro. Guevara é, com Raul Castro, um dos primeiros a sair do barco. Mais sarcástico com o passar do tempo, comentará:
"Não foi um desembarque, foi um naufrágio". Patinhar até ao que julgam ser a costa, ainda não é o pior. As delícias começam com a vegetação luxuriante, dos arbustos
cujas raízes, mergulhando no pântano salobro, formam uma rede de tal forma emaranhada que parece de propósito para impedir qualquer avanço. A tudo isto vêm juntar-se
matagais de silvas e moitas de plantas cortantes cujo nome, cortadora, é já todo um programa. Para completar o quadro, sobre tudo aquilo flutuam nuvens de mosquitos
e outros insectos cujos sussurros e picadas são de enlouquecer. São as boas-vindas à "pérola das Caraíbas". E contudo eles avançam, esses homens enfraquecidos, já
sob o fogo inimigo. "Uma embarcação de cabotagem viu-nos e avisou as tropas de Batista [...]. Foi por pouco que conseguimos penetrar nos pântanos: a aviação começava
já a metralhar-nos"9. A única vantagem das plantas traidoras é que protegem dos disparos aéreos.
Atolado no lodo, Castro sente uma súbita angústia, a de ter desembarcado num cavo, um desses milhares de pequenas ilhotas desérticas que se estendem ao longo da
costa cubana. Seria o desastre total, a armadilha. Um guajiro (camponês) duro de roer, Luis Crespo, trepa a um montículo e tranquiliza-o. Avistou ao longe um casebre
com um habitante. Alguns obstinados conseguem por fim chegar a terra firme. Faustino Pérez: "Deitámo-nos esgotados, esfomeados, cobertos de lama, mas conscientes
de estarmos finalmente a pisar o solo da nossa pátria [...]. Foi necessário que os mais fortes de nós levassem em braços alguns companheiros"10. O guajiro Crespo
conta: "O resto dos camaradas mal conseguiam andar. Voltei-me para o Che e disse-lhe: "Dá cá o teu saco, eu ajudo-te". "Nem pensar", respondeu-me ele. Eu insisti;
vi que

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Nesta página apresenta-se um mapa intitulado:
CUBA, TÃO PRÓXIMA DOS ESTADOS UNIDOS...

155

estava esgotado, por causa do pântano. Ele respondeu-me então: "Vai-te lixar. Vim para lutar e não para que me ajudem". Falava como costumávamos falar no México.
Por fim, consegui pegar-lhe no saco, convencendo-o que estávamos quase a chegar".
À tarde, setenta e quatro homens estão finalmente agrupados. Faltam oito, que se perderam, e que encontrarão dois dias depois. Triste balanço. Só lhes restam armas
ligeiras. O atraso fê-los falhar o encontro com os camaradas que deviam conduzi-los. Não há nada para comer e têm de fugir para a Sierra quase às cegas. "Nem casas,
nem água", diz Pérez. "Não encontrámos nem guias, nem campos. [...] Os aviões metralhavam ali perto. Fidel deu ordem de descansar durante o dia e caminhar de noite"12.
O que é extraordinário nessa epopeia - pois é mesmo uma epopeia, apesar dos seus aspectos prosaicos -, é que, diz Guevara, esse "exército de sombras e de fantasmas,
à deriva, que avançavam, como que movidos por um obscuro mecanismo psíquico"13, vai apesar de tudo conseguir safar-se, compensar as baixas sofridas, organizar-se
numa força estruturada que acabará por derrubar a ditadura. Este prodígio só é explicável pela espantosa solidariedade manifestada (salvo raras excepções) pelos
camponeses da Sierra Maestra, inicialmente bastante desconfiados e receosos e depois, com o correr do tempo, cooperantes e solidários. E também, a somar a isso,
a descomposição de um regime corrupto e o poder carismático de um chefe, Fidel Castro.

O dilema resolvido do doutor Guevara

Os três dias que se seguem são "medonhos", segundo Guevara, que não é um fraco. É certo que há quase sempre um camponês que acede a indicar-lhes o caminho, a menos
que fuja aterrorizado, como os carvoeiros que trabalham numa clareira. Mas quando encontram um bohio miserável, cabana de tábuas com tecto de folhas de palmeira,
nunca há nada para comer, ou quase nada: mandioca, mel e, uma noite - felicidade! - arroz e feijão. Desde os primeiros contactos em solo cubano, salta aos olhos
do argentino a miséria dos camponeses, de que os amigos lhe tinham falado. Caminham de noite, contornando os campos de café ou utilizando as valas no meio dos canaviais.
Essas imensas plantações de cana-de-açúcar pertencem a latifundiários cubanos, como o magnata Julio Lobo, ou a companhias norte-americanas, New Niquero, Beattie
Sugar Company ou à omnipresente United Fruit. Os guajiros, verdadeiros proletários, só são contratados na época da zafra e, depois da colheita, têm que procurar
sobreviver durante o resto do ano num pedaço de terra cuja propriedade lhes é negada. Por isso ouvirão tão atentamente aqueles que vêm dizer-lhes que a terra é de
quem a trabalha.
Guevara descreve bastante bem esses dias de emoção intensa e de cansaço extremo. "Inexperientes como éramos, para enganar a fome e acalmar a sede, trincávamos cana
na orla dos campos e lançávamos os detritos

156

pelo caminho"14. Tal como as pedrinhas do Pequeno Polegar, serão boas pistas para as tropas de Batista seguir, embora também tenham recebido indicações de um camponês
que os denunciou. Desde que iniciaram a marcha em direcção à Sierra Maestra, cujo relevo acidentado e frondoso constituirá um refúgio, só conseguiram cobrir 35 quilómetros.
Estão esgotados. A maior parte tem já os pés em sangue, retalhados pelas botas ainda novas, outro erro. As fardas estão enlameadas, laceradas pelas silvas e pelas
plantas cortantes. O grupo tem um aspecto deplorável. "Na madrugada do dia 5 [de Dezembro de 1956], poucos eram os que conseguiam ainda dar um passo [...]. Após
uma marcha longa e penosa [...] interrompida pelos desmaios, pelas náuseas, [...] a nossa tropa chegou a um ponto conhecido - belo paradoxo! - pelo nome de Alegria
de Pio [...]. Chegámos extenuados"15. Uma colina arborizada, ali perto, é propícia a um acampamento protegido contra uma eventual emboscada. Mas estão todos de tal
forma exaustos que não avançam até lá. O "paradoxo" a que Guevara se refere é que é nesse local chamado Alegria de Pio que vai dar-se o desastre.
"Passámos toda a manhã a dormir". Quando acorda, Guevara monta a sua farmácia de campanha. Trata dos pés feridos, que não conseguem voltar a entrar nas botas. Ao
seu lado está o seu amigo "Chucho", Jesus Montané, aquele que foi testemunha oficial do seu casamento no México, há um ano e meio há já tanto tempo. "Estávamos encostados
a um tronco de árvore e falávamos dos nossos filhos, comendo a magra ração, meia salsicha e dois biscoitos. Soou um tiro isolado. Em poucos segundos, um furacão
de balas (ou o que assim foi percebido pelo nosso espírito angustiado com esse baptismo de fogo) abateu-se sobre nós"16. A surpresa é total, a debandada é geral.
Como Fabrício em Waterloo, Ernesto só retém um fragmento da batalha, ("Soube depois que Fidel tentara, em vão, reagrupar os homens no canavial mais próximo")17.
Só se lembra do pânico. Cada um procura, antes de mais, proteger-se. São metralhados de terra e do ar. "Os aviões passam baixo, largam rajadas de metralhadora, o
que aliava ainda à confusão cenas, ora dantescas, ora grotescas - vimos, por exemplo, um companheiro corpulento tentar esconder-se atrás de uma cana; ou um outro
reclamar silêncio no meio do fragor da metralha..."18.
Surge então um desses momentos-chave, carregados de símbolos, que marcam um destino. "Um companheiro deixa cair um caixote de balas aos meus pés. Chamei-lhe a atenção.
Com uma expressão que ainda recordo perfeitamente, pela angústia que se estampava no seu rosto, o homem respondeu-me qualquer coisa como "não é altura para nos ocuparmos
dos caixotes de balas" [...]. Ia eu dedicar-me à medicina ou ao meu dever de soldado revolucionário? Foi talvez a primeira vez que o dilema se me apresentou em termos
práticos: tinha à minha frente uma mochila cheia de medicamentos e um caixote de balas; o peso não me permitia carregá-los a ambos; peguei no caixote e deixei a
mochila"19. Foi assim que o doutor Guevara escolheu tornar-se o Che.

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Mantendo-se vivo, evidentemente, o que não era fácil. Perto dele, Faustino Pérez dispara a metralhadora. Mesmo ao lado, um camarada, Albentosa, atingido por um grande
calibre 45, vomita sangue. A mesma rajada atinge Guevara. "Senti uma grande pancada no peito e um rasgão no pescoço: considerei-me morto [...]. Do chão, murmurei
a Faustino: "Acertaram-me". Faustino, em plena acção, lançou-me uma olhadela e disse que não era grave, mas os seus olhos mostravam bem que a ferida era feia"20.
Os olhos de Faustino enganam-se. O caixote de balas, revolucionariamente empunhado, acabou por salvar a vida ao nosso herói: a bala que deveria ser mortal apenas
fez ricochete, batendo no pescoço sem o penetrar. A ferida, embora dolorosa, é só superficial. Mas Guevara não o sabe ainda. Está a perder muito sangue. A sua asma
atinge o paroxismo. Prepara-se para morrer dignamente, como aquela personagem de Jack London, perdido na solidão gelada do Alasca, cuja recordação lhe vem à memória.
Ouve Camilo Cienfuegos, um tipo incrível, berrar: "Aqui ninguém se rende, caralho!", mas deixa logo de o ver. "Durante um momento fiquei sozinho, ali estendido,
esperando a morte. Almeida aproximou-se e encorajou-me a prosseguir. Apesar das dores, consegui avançar e lançámo-nos ao canavial [...]. Formou-se um grupo, dirigido
por Almeida"21. Um dos membros do grupo, Rafael Chao, um veterano da guerra de Espanha, deu o seu lenço a Guevara. Ele enrola-o à volta do pescoço, como um penso.
Enquanto os soldados lançam fogo ao canavial, há cinco, incluindo o argentino asmático e ferido, que fogem sem saber para onde. Como eles, uma dúzia de outros grupúsculos
de dois ou três homens, formados ao acaso, no meio da confusão, perdem-se no mato. O corpo expedicionário, tão cuidadosamente preparado por Fidel, ficou literalmente
pulverizado. Serão necessárias várias semanas para reconstituir algumas partes. Mas não o conjunto. Nos dias que se seguem a esse 5 de Dezembro fatal, dezoito "rebeldes"
- é agora o nome - deles são encontrados e assassinados pela guarda rural. Mais vinte e um são posteriormente capturados. Para além dos três mortos durante o ataque-surpresa,
vinte homens desapareceram sem deixar rasto. Sem dúvida traumatizados pelas sucessivas catástrofes do desembarque, da perseguição, do ataque de Alegria de Pio, assustam-se.
Alguns voltam para trás, e pronto. Por fim, dos oitenta e dois combatentes do Granma, apenas vinte e sete reencontrarão Castro, alguns só ao cabo de um ou dois meses.
No fim de Dezembro, Castro dispõe apenas de dezanove homens para lutar ao seu lado. Quase um quarto da expedição, mas praticamente todo o estado-maior. Falta Márquez,
segundo comandante, torturado e assassinado pelos guardas, bem como dois amigos de Guevara, Jesus Montané, preso e enviado de novo para a penitenciária da ilha dos
Pinheiros, onde estivera após o ataque ao quartel Moncada, e o caro Nico López, aquele que deu forma à aventura cubana no imaginário de Ernesto, na Guatemala. Nico
fora executado sem piedade por um oficial da marinha, Julio Laurent, conhecido pela sua crueldade.

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Quanto a Batista, canta vitória, e a agência United Press International (UPI), baseando-se em comunicados militares, dá como certa a morte de Fidel Castro. Mas o
seu cadáver não foi identificado e há jornais que ainda duvidam. Dois membros da expedição, presos e interrogados, começam a contar como decorreu a operação até
ao ataque de Alegria de Pio. Referem, de passagem, sem que a opinião pública preste grande atenção, que junto de Castro está um médico argentino chamado Guevara.
O dito Guevara está, segundo os seus próprios termos, "à deriva". Ao lado de Almeida e de Ramiro Valdés, operacionais do golpe de Moncada, e de dois outros rebeldes
Chao e Benitez irá viver "alguns dos dias mais angustiantes da guerra, atormentado pela fome, pela sede, pela sensação de derrota e a iminência de um perigo palpável
e iniludível que nos dava a sensação de sermos ratos apanhados na ratoeira"22. Caminham "sem direcção precisa, desmoralizados", numa zona de mato tropical, onde
surgem da terra vermelha pequenas rochas assassinas, de arestas pontiagudas, que constituem um tormento para homens que se arrastam, exaustos. Mas prometem a si
mesmos lutar até à morte. "Apelando aos meus conhecimentos de cosmologia, detectei a estrela polar e durante dois dias guiámo-nos por ela, caminhando para leste,
para chegarmos à Sierra Maestra.. Meses mais tarde vim a saber que a estrela que nos guiou não era a estrela polar! Foi portanto por acaso que escolhemos o caminho
certo"23. Franqueza simpática. É através deste tipo de sinceridade no pormenor que podemos avaliar o seu gosto pela verdade sem máscara. Guevara descobre que, por
uma vez, a sua asma serve para qualquer coisa. Para extrair a água da chuva depositada no interior das rochas, nada melhor do que a pequena bomba do seu pulverizador,
que em seguida redistribui o líquido na ocular de uma mira telescópica. Umas gotas para cada um. A sede torna-se ainda mais insuportável por só terem encontrado,
para se alimentarem, a carne gelatinosa e salgada dos caranguejos que fervilham à volta deles. Para se refrescarem, apenas um banho breve que concedem a si próprios
quando, ao contornar as falésias da costa, se vêem numa pequena praia no fundo de uma enseada.
Retomando a marcha nocturna, acabam por se aproximar, ao luar, de uma cabana de pescadores à beira-mar e descobrem três vultos adormecidos. São três camaradas, um
dos quais Camilo Cienfuegos, um tipo de Havana, famoso pela sua fanfarronice e audácia. Abraços sob as estrelas. "Em seguida, a troca de informações sobre o pouco
que cada um sabia dos outros companheiros e do combate [...]. Pensávamos que devia haver outros grupos de sobreviventes como o nosso. Mas não fazíamos a menor ideia
onde nos encontrávamos"24. E lá vão eles, agora oito, prosseguir a sua errância. Uma noite, impelidos pela fome, aproximam-se de uma cabana de troncos de palmeira.
Está ocupada por soldados de Batista. Recuo prudente. No dia seguinte, encontram por acaso um curso de água, e bebem sofregamente. "Deitados no chão, bebemos com
a avidez dos cubanos". Uma outra noite, ouvem música numa casa. Guevara e Ramiro Valdés vão ver de perto. Mais

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uma vez, são soldados que bebem à sua vitória. "Não esperámos mais e fizemos meia-volta a todo o vapor e em bico de pés"25.
Desde o ataque de Alegria de Pio, há oito dias que caminham praticamente sem comer nem beber. Estão esgotados. "Nessa noite, ou na noite seguinte, todos os companheiros,
com uma ou outra excepção, decretam que não querem prosseguir. Perante isto, fomos forçados a bater à porta de um camponês, à beira do caminho. Fomos amavelmente
recebidos. Esse casebre camponês tornou-se então palco de intermináveis comezainas"26. Na verdade, é a primeira refeição deles, desde que saíram do México. Durante
horas, em casa de Alfredo González - é o nome do camponês -, eles devoram. Quando o dia nasce, ainda estão a comer. Está fora de causa porem-se a caminho à luz do
dia. Durante a manhã, outros camponeses, sabendo da chegada dessas estranhas personagens, acorrem, cheios de curiosidade e de solicitude, para ver de perto esses
justiceiros extraterrestres, que só podem ser simpáticos, visto que são perseguidos pelos militares. Mas a psicologia dos nossos heróis é das mais triviais. Não
se interrompe impunemente um jejum tão prolongado, sobretudo com estômagos vazios e fatigados. "A pequena casa que nos albergava não tardou a tornar-se num inferno:
Almeida foi o primeiro a ser atacado de diarreia e, num abrir e fechar de olhos, oito intestinos implacáveis deram mostra da mais profunda ingratidão. Alguns companheiros
começaram mesmo a vomitar. Pablo Hurtado, esgotado pelos longos dias de marcha, de enjoo no barco, de fome e sede, não foi mesmo capaz de se levantar"27.
Através dos guajiros da zona, Guevara e os amigos ficam a saber que Fidel Castro está vivo. Alívio intenso; o moral volta a subir. Propõem-lhes conduzi-los, em dois
grupos, até junto do líder camponês Crescencio Pérez, um dos dirigentes da rede rural do M-26 na região, verdadeiro chefe de tribo. Mas só se despirem a farda e
não transportarem armas demasiado perigoso, caso encontrem casquitos, esses soldados do tirano que patrulham o sector e que são implacáveis. Eles aceitam e - com
excepção de Guevara e de Almeida, que não largam a sua pistola-metralhadora - partem em dois grupos, vestidos "à civil". Mas o exército está já no seu encalço. De
facto, não sabendo onde esconder as armas, o camponês que acolheu os rebeldes falou do caso a um vizinho que, por seu turno, falou a outro, o qual alertou a guarda.
No dia seguinte, a polícia invade a casa, apodera-se das armas e leva Hurtado. Contudo, a rede é eficaz. Durante uma semana, Guevara, Almeida e outros dois vão passando
de refúgio em refúgio. Primeiro escondem-nos, a poucos quilómetros dali, em casa de um pregador laico, adventista do sétimo dia, Argelio Rosabal, a quem o argentino
chama "Pastor". Rosabal contará que pediu aos quatro homens que se ajoelhassem com ele para pedir a Deus que os ajudasse - imagem insólita, a do ateu Guevara ajoelhado
ao lado de um adventista!28 Em seguida, Rosabal fá-los caminhar a noite inteira para os conduzir a casa da cunhada, que tem também a preocupação de alimentar os
seus hóspedes. Guevara vomita duas vezes antes de conseguir engolir um caldo. A ferida ainda o incomoda, mas sabe que escapou e não perde o sentido

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de humor. Entrega ao "pastor" uma mensagem para os pais, que o M-26 enviará pelo correio e que chegará a Buenos Aires a 31 de Dezembro, às dez da noite, metida debaixo
da porta, como um insólito presente de Ano Novo: "Estou bem. Já usei duas. Restam-me cinco. Continuo a tratar do mesmo assunto. As notícias continuarão a ser esporádicas,
mas esperemos que Deus seja argentino"29. Para os pais, é uma alegria. Ernesto está vivo! Descodificam facilmente a alusão às sete vidas dos gatos: houve, pois,
duas ameaças sérias. Também não havia mistério na referência a Deus-argentino, lugar-comum no Rio da Prata para significar o poder de um país opulento e dos seus
cidadãos, que não se deixam abater pelos piores desastres.
O adventista confia em seguida as suas ovelhas ao seu cunhado Guillermo García, outro líder camponês, amigo de infância de Celia Sánchez, que virá a ser o chefe
do exército rebelde em Oriente. García encaminha-os para a finca, a quinta de Mongo Pérez, irmão de Crescencio, onde Fidel Castro, chegado a 16 de Dezembro, estabeleceu
o quartel-general provisório do exército destroçado, que vai reconstituindo por fragmentos. Guevara está ainda em plena crise de asma, a 21 de Dezembro, quando chega
à quinta, mas aguentou firme. Ao vê-lo chegar, acompanhado por Almeida e pelos companheiros, Castro anuncia, grandiloquente, que a vitória está próxima.

A senha era mosquito

Fidel Castro, que se agarra às grandes referências do passado de resistência do seu país, gostaria de repetir ou, pelo menos, de fazer balbuciar a história cubana.
Mas - excepto, talvez, durante dois ou três dias - nunca tinha estado só com doze homens, como o herói da independência, Carlos Manuel de Céspedes, ou como Cristo
com os seus doze apóstolos, símbolo fácil, frequentemente utilizado no imaginário fidelista. Também ele teve de se esconder durante dias no restolho dos canaviais,
com Universo Sánchez, o inseparável, e Faustino Pérez, um dos seus comandantes. Como Guevara e os seus companheiros, sentiram a fome, a sede, a sensação terrível
de estarem perdidos numa região infestada de soldados. "A nossa revolução começou em condições inacreditáveis", dirá ele. Quando, ao fim de uma semana, consegue
finalmente entrar em contacto com Guillermo García (que avisará o M-26), está fisicamente combalido, mas o entusiasmo mantém-se intacto. Logo que chega à finca de
Pérez, na localidade de Purial de Vicana, está ansioso por reconstituir o seu "exército".
Reformulou a sua estratégia. Será uma guerrilha prolongada, que durará "o tempo que for preciso", mas que terá êxito. Guevara definirá bastante bem este novo estado
de espírito: "Os poucos sobreviventes - firmemente decididos a combater - compreendem a partir de agora que se enganaram ao imaginar levantamentos espontâneos por
toda a ilha; que a luta irá ser longa e que será necessário garantir uma grande participação camponesa"30. Raul Castro

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junta-se ao irmão dois dias depois, com quatro homens; em seguida Calixto Morales, o professor; depois outros; finalmente o Che e o seu grupo, e, mais tarde, quatro
voluntários camponeses que Fidel aceita nas suas fileiras: trouxeram-lhe armas (algumas encontradas no campo de batalha de Alegria de Pio) e também munições, cartucheiras
que a rede rural clandestina possuía e que as mulheres, as filhas e as irmãs tinham escondido debaixo das saias. Agora são vinte. Castro instalou-se na orla de uma
plantação de cafezais, na margem de um regato. O local fica apenas a 50 quilómetros de Alegria de Pio, de triste memória, mas pegada já aos primeiros contrafortes
da Sierra, difícil de detectar. O comandante rebelde começa seguro de si, por enviar Faustino à cidade de Manzanillo, para dar as suas instruções a Celia Sánchez,
depois a Santiago de Cuba, capital regional, para pedir a Frank País e aos seus camaradas que tragam jornalistas para a serra, para provar que o cadáver de Fidel
Castro, prontamente liquidado pelos comunicados militares e pelos telegramas da UPI, está de boa saúde. Pede-lhes que organizem o mais depressa possível o apoio
da "planície" (o llano) aos combatentes da Sierra.
Essa solidariedade llano-sierra explica em parte a vitória de Castro, ao fim de dois anos. A dialéctica é por vezes complicada quem ajuda quem? mas o seu alcance
político é considerável, pois levanta a questão de saber quem, da cidade ou da serra, assegura a direcção do combate.
A planície, isto é, a resistência urbana, não teria certamente tido a audácia de acabar com a ditadura se não tivesse existido, muito concreto, o "foco" da luta
armada, o foco criado na Sierra por Castro e os seus combatentes. Mas estes também não teriam podido sobreviver, desenvolver-se, armar-se, retomar a ofensiva, se
não tivessem recebido o apoio logístico e humano do pessoal da planície. O combate das cidades foi, decerto, menos espectacular, talvez mais "confortável", apesar
da repressão policial, do que o dos guerrilheiros patinhando na lama da Sierra, mas foi o seu complemento absoluto. Debate fundamental, que por muito tempo agitará
a estratégia, a táctica e a filosofia da revolução cubana. Castro pensa que a cidade é o cemitério dos revolucionários e dos recursos humanos. Guevara, tal como
ele, manterá sempre uma autêntica desconfiança em relação aos combatentes das cidades, suspeitos de falta de garra e de disciplina. Após a vitória, proclamará, é
certo, que "a Revolução pertence tanto a um grupo como ao outro" e que "toda a energia dos militantes deve ser canalizada tanto para a planície como para a serra"31,
mas nunca esquecerá o contributo decisivo dos camponeses da Sierra ao combate revolucionário. Privilegiará sempre a guerrilha rural.
A terminologia "planície-serra" não é uma mera questão de linguagem. Cuba é, antes de mais, uma vasta planície quente e húmida, por vezes ondulada, pantanosa ou
arborizada (a manigua), plantada de cana-de-açúcar e tabaco. Com três modestos maciços montanhosos, um a oeste, outro no centro - a serra de Escambray que também
ficará célebre - e o mais importante de todos a leste, a Sierra Maestra, prolongada pela serra Cristal. Se retomarmos a comparação, que se tornou clássica com Humboldt,
da ilha indolentemente

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estendida sobre o mar das Caraíbas como um longo e delgado crocodilo preguiçoso de 1250 km, a cauda do réptil estende-se então a ocidente, para Havana, que fica
em frente da Florida, a cento e oitenta quilómetros, ao passo que, na extremidade leste, próxima da Jamaica e do Haiti, a cabeça do sáurio tomba, eriçada por essa
famosa Sierra Maestra, culminando, a cerca de 2000 metros, no mais alto pico do país, o Turquino, antes de mergulhar numa profunda fossa marinha. A serra não é grande
- cento e cinquenta quilómetros de comprimento por uns cinquenta de largura - mas a região é escarpada e selvagem, de difícil acesso, cheia de desfiladeiros, grutas
e cumes que se sobrepõem, zona ideal de guerrilha para quem quer esconder-se ou despistar quem o procura. Em algumas colinas, à sombra das folhas das bananeiras,
nascem as pequenas bagas vermelhas do café e, um pouco por todo o lado, plantações de marijuana, cultura semiclandestina nesta região, já colocada fora-da-lei pela
sua geografia. Por toda a parte se erguem, no céu, os penachos altivos coroando os longos troncos das palmeiras reais, uma espécie cuja beleza e abundância foi notada,
em 1492, por Cristóvão Colombo, que descobriu a ilha. A sua casca, castanha e flexível, imputrescível, é utilizada nas paredes dos bohios* e também nas embalagens
de charutos.

Nota: * Bohio: nome, de origem índia, dado às casas dos camponeses, cobertas de folhas de Palmeiras.

Apesar de Castro ter nascido nesta região de Oriente, nunca teve ocasião de conhecer de perto a realidade física dessa Sierra, difícil de percorrer por falta de
bons caminhos. Quanto a Guevara, embora tenha tido algum contacto com a vegetação tropical da América central e na Guatemala, nunca saiu das cidades. O monte, o
mato, essa pequena espécie de selva de tojo da Sierra Maestra, é, para ele, uma novidade. Muito diferente, aliás, da paisagem seca e amena da serra de Córdova da
sua infância. Quando a asma lho permite, readquire logo o seu gosto pela caminhada, adquirida durante os longos passeios da juventude. Pouco a pouco vai-se familiarizando
com esse novo modo de vida, e habitua-se à chuva, à lama, ao frio - pois não faz nenhum calor naquelas alturas, quando o termómetro desce aos cinco ou seis graus
e o pico Turquino desaparece entre as nuvens.
A única dificuldade real é a alergia que provoca ao asmático a juta das redes onde dormem, feitas a partir de sacos velhos. Ele não se queixa, não protesta, mas
prefere dormir no chão, mesmo que esteja húmido, enrolado num oleado velho. Só quando chegarem as redes de algodão é que ele se afastará da humidade, instalando-se,
como todos os outros, na rede esticada entre duas árvores. Utensílio emblemático dos países tropicais, herdado dos índios, que legaram o nome e o objecto, a rede
(hamac) constitui para os rebeldes um dos artigos indispensáveis do equipamento de base. Serve tanto para transportar feridos, como armas, alimentos, material. Cada
um instala-a à sua maneira, adaptando-a ao seu tamanho. Está tão intimamente ligada ao seu proprietário que, após poucos dias de uso, dizem por brincadeira os

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homens mal lavados que é pelo cheiro que cada um distingue a sua rede da do vizinho.
Aguardando a chegada de hipotéticos jornalistas, a melhor forma, para Castro, de provar que está vivo é desencadear operações militares. Depois das festividades
do Natal - nessa altura, Guevara, perito no asado, fez um churrasco de porco e vitela -, Castro decide que não é prudente permanecer ali mais tempo. É necessário
partir, penetrar de vez no labirinto vegetal da serra. Três sobreviventes de Alegria de Pio juntam-se a eles, guiados por camponeses que também se alistam. Uma emissária
do M-26 rural chega com mais um carregamento de munições, cartuchos de dinamite, granadas e, para Guevara, o livro de álgebra que ele tinha pedido.
Na noite de 30 de Dezembro de 1956, são vinte e nove a caminho debaixo de chuva. Dois dias de chuvadas glaciais imobilizam-nos. Não têm nada para se proteger, a
não ser pequenos oleados para cobrir as armas. Quando chegam à linha da crista e avistam os cumes dos montes Caracas, "ninguém conseguirá desalojar-nos", garante
Castro. Contudo, opta pela costa, onde se encontra, na foz do rio da Prata, uma pequena guarnição militar que poderia constituir um alvo perfeito. Levam onze dias
a chegar à colina que domina o miniquartel: uma caserna de tábuas com telhado de chapa de zinco, ocupada por onze homens, ali colocados para vigiar qualquer desembarque
suspeito. Pelo caminho, compram o que encontram em casa dos guajiros. Um deles, Dariel Alarcón, que ainda não tem dezassete anos, vende-lhes bananas, café e um porco.
Aterrorizado, toma-os por guardas rurais de Batista. Mas quando os verdadeiros guardas, para o castigarem por ter ajudado os rebeldes, matam, na sua ausência, a
sua jovem namorada e queimam o seu bohio, ele junta-se à guerrilha e torna-se um soldado dedicado de Camilo e de Guevara, cujo pseudónimo ficará na história: "Benigno".
Os rebeldes param também em casa de um camponês, Eutimio Guerra, "símbolo do campesinato", que garantiam ser de toda a confiança. Mas Guerra, manobrado pelos oficiais
de Batista, tornar-se-á, por dez mil pesos*, o traidor perfeito.

Nota: * Um peso cubano equivale a um dólar americano.

Há aqui um episódio que Guevara descreve num tom expedito sem se aperceber que, simultaneamente, nos dá a dimensão lúdica dessa guerrilha. Através dos camponeses
que interceptaram, os homens ficaram a saber que um dos administradores dos vastos terrenos onde se encontram é um tal Chicho Osório, personagem sinistra que semeia
o terror na região, obsequioso para com o poder, implacável para com os pobres jornaleiros. E, justamente, ei-lo que chega, bastante tocado pela pinga, montado numa
mula, com um negrinho à garupa. "Universo Sánchez gritou-lhe que parasse em nome da guarda rural e ele respondeu sem hesitar: "Mosquito". Era a senha"32. Começa
então uma autêntica cena de filme. Fidel Castro desempenha o papel de um coronel em missão de inspecção, furioso por verificar que os militares ainda

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não liquidaram todos os rebeldes. "Apesar do nosso aspecto patibular, conseffuimos enganar Chicho, talvez devido ao seu estado de embriaguez"33. O qual, "todo submisso",
dá razão ao coronel e proclama a adesão ao "meu general Batista". Fidel e os companheiros, cada vez mais divertidos, prolongam o interrogatório e vão tomando nota
dos camponeses da zona que são partidários dos rebeldes e dos que não o são. Escutam, calados, o tiranete contar que ainda há pouco esbofeteou dois camponeses "um
tanto insolentes", mas quando, reparando nas suas botas mexicanas, ele acrescenta: "um desses filhos da puta que castigámos também tinha umas botas dessas", dita
a sua sentença de morte. "O homem fez o resto do caminho como prisioneiro"34.
A noite cai, mas "havia luar". Luis Crespo, o guajiro rebelde, verificou que as informações fornecidas pelo administrador são exactas. Há dois guardas de vigia:
ele conseguiu distinguir a brasa dos charutos. Tudo isso é ainda em escala reduzida mas, na história da guerrilha, é um dos raros confrontos em que os rebeldes terão
vantagem numérica: "tínhamos muito poucas balas", diz Guevara. Daí a necessidade de aproveitar o efeito surpresa. A meio da noite de 17 de Janeiro de 1957, Castro
dá o sinal disparando a primeira rajada de metralhadora, enquanto duzentos metros atrás dele o sinistro Osório é executado. Todavia, os guardas tombam e não se rendem.
Quanto ao arsenal dos nossos aprendizes de guerrilheiro, é bastante revelador do armamento artesanal a que estão reduzidos: nada funciona. O pequeno grupo de Fidel
lança duas granadas: elas não explodem. Por seu turno, Raul atira um cartucho de dinamite, que também não explode. "Só nos restava avançar e lançar fogo à caserna,
arriscando as nossas vidas", conta Guevara. Universo Sánchez foi primeiro, e não conseguiu. Depois foi Camilo Cienfuegos a tentar; também não teve sucesso. Por fim,
Luis Crespo e eu aproximámo-nos de uma cabana, à qual Luis deitou fogo. [...] Foi o suficiente para acagaçar os soldados, que se renderam"35. Balanço entre os soldados:
três mortos e cinco feridos, dos quais três não sobreviveram. "Para grande desespero meu (como médico, pretendia manter reservas para as nossas forças), Fidel ordenou
que se reservasse aos prisioneiros todo o nosso stock de medicamentos para cuidar dos feridos"36. O comportamento "cavalheiresco" em relação aos feridos inimigos,
contrastando com o do exército, "que não só abatia os nossos como abandonava os seus", será tido em conta a favor dos rebeldes, bem como a preocupação de nunca levar
nada de casa de um camponês sem o comprar a um preço generoso, enquanto que o exército pilha à vontade. O que explica que, pouco a pouco, camponeses e até soldados
de Batista se passem para o lado da guerrilha. Para Castro, a vitória é total: nem uma arranhadela entre os seus homens, uma boa apreensão de armas e munições e,
observa Guevara, para quem estes pormenores prosaicos não deixam de ter importância: "Apreendíamos cartucheiras, combustível, facas, roupa e comida"37.
As duas horas deste minúsculo confronto não mereceriam um lugar de grande destaque na história se não tivessem marcado a primeira vitória da guerrilha contra as
tropas regulares. O seu efeito psicológico foi grande, antes

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de mais sobre os próprios rebeldes que, de certo modo, se vingam da derrota de Alegria de Pio e apagam um pouco o traumatismo da debandada. Quanto à opinião pública
cubana, ela verifica - pois os jornais falam do caso - que os rebeldes não parecem estar tão neutralizados como fora proclamado. "Tínhamos travado a nossa primeira
batalha quando todos pensavam que estávamos mortos", dirá Castro.

Quando os joelhos tremem

Sendo a mobilidade uma das leis da guerrilha, Fidel Castro e o seu grupo retiram-se logo de madrugada e voltam a subir as colinas, procurando sumir-se nessa Sierra
Maestra, que conhecem ainda tão mal. Castro não duvida que o exército se lançará no seu encalço. Decide então montar uma emboscada para defrontar o inimigo nas melhores
condições e instala o seu acampamento numa zona denominada Ribeiro do Inferno, na montanha, onde se erguem dois bohios vazios que ele nem sequer pensa em ocupar,
pois uma outra regra da guerrilha é nunca dormir entre quatro paredes e um tecto, para não se ser apanhado de surpresa. Ele teve uma amarga experiência disso após
o fracasso de Moncada.
"Fidel nunca deixava as linhas sem vigilância; fazia rondas para se certificar da eficácia da defesa. A 19 de Janeiro, de manhã, estávamos nós a inspeccionar a tropa
quando se deu um incidente cujas consequências poderiam ter sido graves"38. Para compreendermos esse incidente, convém notar que, entre o pequeno grupo rebelde,
a indumentária de cada um é ainda, forçosamente, bastante heteróclita. O uniforme vestido antes de desembarcarem do Granma há muito deixou de ser uniforme; o aspecto
desses homens um pouco hirsutos assemelha-se às vezes ao dos assaltantes de estrada. É certo que, antes do ataque de La Plata, aproveitaram a passagem a vau de um
rio para tomarem um banho "delicioso, admite Guevara, após tantos dias sem as mínimas regras de higiene"39, mas esse género de delícia é excepcional. Geralmente
cheiram mal e não dão por isso. Seguindo os conselhos de Bayo no México, apoiados por Castro, não trouxeram navalhas de barba nem escova de dentes. Alguns têm já
uma barba razoável. Outros nem tanto. Mario Soriol, um comerciante da Sierra que lhes vendeu algumas provisões, lembra-se que, no início de 1957, a barba de Fidel
mal começava a despontar e a de Raul tinha apenas alguns pêlos. "Pareciam uns garotos"40. Dariel Alarcón, Benigno, ficou impressionado com os colares de conchas
à volta do pescoço do negro Juan Almeida, que lhe davam o ar de um santeiro, um desses padres que celebram os ritos da África negra, muito vulgares em Cuba.
Um camponês, Julián Pina Fonseca, conta que nessa época Guevara parecia ter apenas "pele e osso. [...] A barba era ainda rala. Tinha um olhar fixo. Ficava-se com
a impressão de se estar a ser observado por um guerreiro chinês"41.

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No seu estilo alegórico, é o próprio "guerreiro chinês" que explica que foi a sua imprudência (ou a sua inconsciência) que esteve na origem desse tal incidente.
Esses jovens guerrilheiros gostam de se disfarçar ataviando-se com tudo o que encontram, sobretudo se isso lhes for de alguma utilidade. Antes de sair de La Plata,
Guevara apoderou-se de um capacete. "Trouxe, como trofeu do combate de La Plata, um belo capacete de sargento do exército de Batista, que usava com uma enorme arrogância"42.
Esse capacete quase lhe ia custando a vida. Quando os homens colocados por Fidel na linha da frente vêem surgir o grupo precedido por uma silhueta com capacete,
não estão com hesitações. É o inimigo. "Felizmente, nessa altura os companheiros estavam ocupados a limpar as armas e só a espingarda de Camilo Cienfuegos funcionava.
Ele disparou contra nós [...] e depois a sua automática encravou"43. Grande sorte para Guevara que, se não fosse isso, seria abatido por aquele que viria a ser o
seu melhor amigo. O incidente revela bem o estado de tensão nervosa do grupo; os soldados estão próximo e, nesse caso, não se brinca.
Neste ponto, há uma observação de Guevara que nos revela que o anima um autêntico desejo de guerra, aconteça o que acontecer, semelhante àquela excitação jubilosa
que, há três anos, o fazia "regalar-se" ao observar o "espectáculo" dos bombardeamentos na cidade de Guatemala. Hoje, já não é testemunha passiva, mas actor de pleno
direito. "Todos aguardávamos o combate como uma libertação. Nesses momentos febris, todos, mesmo aqueles que têm nervos de aço, sentem um ligeiro tremor nos joelhos
e cada um deseja ardentemente a chegada do momento crucial da guerra: o confronto"44. Como desta vez o que escreve já não é uma carta pessoal aos pais, onde pode
abrir-se à vontade, mas uma narrativa que, publicada na Bohemia ou na Verde Olivo, será lida por um vasto público, corrige de imediato o que pode haver de chocante
na sua fraqueza, semiprotegendo-se atrás do "nós" impessoal da oficialidade cubana. "Todavia, combater não era o nosso sonho; fazíamo-lo porque era necessário"45.
O facto é que, durante esses dois primeiros anos em Cuba, Guevara se lançará no combate com uma voluptuosidade incontestável. "O que leva a alegria de todos ao paroxismo
é o combate, clímax da vida de guerrilha"46, dirá ele. A única reserva que Fidel Castro exprimirá publicamente em relação ao Che é justamente essa impetuosidade.
"Enquanto guerrilheiro, ele tinha um calcanhar de Aquiles, era a sua excessiva agressividade, o seu desprezo absoluto pelo perigo"47.
A 22 de Janeiro, às 5 da manhã, uma detonação alerta os homens de Castro. São os soldados da guarda que liquidam um "filho de haitiano", ou seja, um negro, que se
recusou a revelar-lhes a pista dos guerrilheiros. Estes aguardam, num estado de alerta permanente, os soldados, que só surgem ao meio-dia. "O combate foi terrivelmente
feroz"48. O Che faz a sua primeira vítima, um soldado que ele viu esconder-se no bohio. "Disparei um primeiro tiro naquela direcção, sem o atingir. O segundo tiro
atingiu-o no peito"49. Guevara corre, recolhe a cartucheira e a espingarda do inimigo, uma bela Garand americana que ele bem gostaria de conservar mas que será distribuída

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a um outro companheiro, Ameijeiras, que, mais tarde, lhe irá dar água pela barba. Três quartos de hora de combate. Cinco mortos no campo adversário. Nenhum ferido
nas fileiras de Castro. "Tínhamos medido forças com as do exército numa situação nova e havíamos superado a prova. O que veio subir bastante o moral das nossas forças,
dando-nos coragem para prosseguir, durante todo o dia, a nossa escalada para alturas inacessíveis, a fim de escaparmos às perseguições de maiores contingentes das
tropas"50.
Este comentário de Guevara não é uma mera figura de estilo. O exército, alertado pelo ataque mortífero de La Plata, envia de facto um "contingente maior" para acabar
com os rebeldes que pensava ter liquidado após a carnificina de Alegria de Pio. Organiza um cerco progressivo à Sierra Maestra, destacando para lá os seus melhores
elementos, e recorre à aviação, que irá bombardear implacavelmente tudo o que lhe parecer suspeito: e se se tratar de simples camponeses, paciência... Não tinham
nada que andar por ali... Fora-lhes pedido que abandonassem as suas pequenas culturas para os agruparem fora da Sierra, a fim de deixar campo livre aos militares,
e muitos tiveram o descaramento de recusar. O combate de Ribeiro do Inferno pôs, aliás, os homens de Castro em confronto com um dos melhores oficiais de Batista,
o tenente Sánchez Mosquera, cujo nome será citado em inúmeras descrições da batalha da Sierra, desordeiro temível, detestado pela população pelos seus inúmeros desmandos,
pilhagens, violações, assassinatos. As suas proezas em breve o alcandorarão ao posto de coronel. Durante dois anos, comandando unidades de elite, tentará, sem sucesso,
aniquilar a guerrilha. Guevara retira deste episódio um ensinamento que ele próprio irá pôr em prática, quando chegar a altura, e que sistematizará num manual, A
Guerra de Guerrilha: "O que é preciso é atingir a vanguarda. Quando os soldados se convencem que os da linha da frente estão mortos, o receio de virem também a morrer
pode provocar verdadeiros motins"51.
Oito dias depois, acampam nas altas colinas de Caracas (cujo nome é igual à capital da Venezuela) quando, de madrugada, "após uma noite gelada", escutam um zumbido.
"Cinco aparelhos avançam no céu. Subitamente ouve-se o voo picado de um avião de combate e em seguida o crepitar das metralhadoras e o rebentar das bombas. [...]
As balas de calibre 50 estalam ao tocar no chão. Parecia que saltavam da própria floresta..."52 Eles ainda não sabem, mas aquilo é o resultado da acção de Eutimio
Guerra, que se lhes juntara para os guiar. Com o pretexto de ir ver a mãe doente, foi a correr revelar a posição dos militares, que tiram todo o partido do excelente
material que os Estados Unidos forneceram a Batista, bombardeiros B- 26 e P- 47 de combate. "Com uma extrema precisão de tiro, o inimigo tinha atacado a cozinha.
O forno ficara feito em migalhas e uma bomba rebentara mesmo no centro do acampamento"53. Ninguém ficou ferido - milagre - mas, tal como após Alegria de Pio, dá-se
a debandada do grupo. É tão fácil alguém perder-se nesta vegetação tropical que Guevara e quatro companheiros levarão dois dias a encontrar o grosso da coluna dos
rebeldes. Ainda são só vinte e cinco, entre os quais

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dezassete que se consideram já como "veteranos" do Granma. Através de um camponês aterrorizado, ficam a saber que a pequena mercearia do lugarejo mais próximo acaba
de ser assaltada pela soldadesca: mercadoria pilhada, local incendiado, mulas requisitadas após execução do proprietário e rapto da mulher do merceeiro. O mistério
que os intriga é o de não perceberem como foram detectados. Atribuem a causa ao fumo no céu, produzido pelo seu pequeno-almoço; a partir de agora, só acenderão a
fogueira à noite. A única consolação vem de Celia Sánchez que, da cidade, lhes faz chegar uma trouxa de medicamentos e de roupa: "Para nós, foi uma grande emoção
receber, numa altura daquelas, uma muda de roupa com iniciais bordadas pelas raparigas de Manzanillo!"54.
Mas o exército ronda por ali, perigoso. Eles sabem-no. Mergulham então no melhor refúgio do guerrilheiro, o monte (mato), que é necessário cortar à catanada para
abrir um caminho. Para Guevara, a avançada é bastante penosa, pois durante os primeiros meses na Sierra adoece frequentemente, o que o deixa furioso. Desta vez é
a malária. A febre enfraquece-lhe as pernas. "Foi graças ao guajiro Crespo e ao inesquecível companheiro Julio Zenón que consegui ultrapassar essa angustiante etapa"55.
Desmaiou uma vez, teve diarreia dez vezes. Está num tal estado que, excepcionalmente, o põem a dormir no bohio de um camponês hospitaleiro e o deixam para trás,
com dois camaradas. Para se reunirem ao grupo, voltam a perder-se, mas Raul Castro, que foi procurá-los, consegue encontrá-los.
E depois, dez dias após o ataque aéreo, repete-se a cena, com poucas alterações. Eutimio Guerra, cheio de descaramento, regressou. Sugere a Fidel que monte o acampamento
no fundo de uma ravina, para evitar, segundo diz, os bombardeamentos aéreos que prosseguem esporadicamente. Chove. Está frio. Eutimio não tem nada para se agasalhar.
Fidel propõe-lhe que se deite a seu lado, tapando-se com a mesma manta. Não passa pela cabeça de ninguém que a vida do comandante se encontra à mercê daquele canalha,
armado de uma pistola fornecida pelos militares para a tarefa específica de eliminar o chefe da guerrilha. Mas ele não terá a coragem de o fazer. Ao contar a história
dessa "longa noite sem impermeável", Guevara revela como, nessa época, é já íntimo de Fidel. "Eu e Universo Sánchez andávamos constantemente à volta de Fidel [...].
Veteranos do Granma e homens de confiança de Fidel, íamos-nos revezando para velar por ele pessoalmente"56.
A 9 de Fevereiro, um camponês vem avisá-los. Há uma movimentação de cento e quarenta soldados em direcção ao acampamento. "Fidel decidiu abandonar a zona. Subimos
até ao cimo do monte". Ouviu-se um tiro, seguido de uma descarga. Num instante, rajadas e detonações não pararam de soar... O ataque "concentrava-se no local que
acabávamos de abandonar"57. Mais tarde tirarão as devidas conclusões, compreendendo finalmente que Eutimio os denunciara. Para já, é o salve-se quem puder, mais
uma vez. Num abrir e fechar de olhos, o acampamento esvaziou-se. [...] O grupo dispersou-se a correr. A famosa mochila de que eu tanto me orgulhava, carregada de

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medicamentos, de rações suplementares, de livros e de mantas, ficou para trás. [...] Fugi a toda a pressa"58. Entre as vítimas inclui-se Julio Zenón, o camponês
robusto, analfabeto, que Guevara tinha decidido ensinar a ler, aos quarenta e cinco anos. "Estávamos na fase de distinguir o O do A, o E do I"59.

Um país sob tutela

Todas essas emboscadas, esse contra-ataque, essa perseguição poderiam parecer simples peripécias de um "jogo de escondidas" sempre trágico se, tanto perante os seus
homens como perante os guajiros que o acolhem ou o evitam, Castro não iluminasse esse combate através de uma filosofia simples, acessível a todos: a necessidade
de lutar contra a ditadura de Batista e dos seus esbirros, o direito dos camponeses disporem da terra que trabalham e do fruto desse trabalho.
São esses, esquematicamente, os eixos políticos do M-26 das cidades e do M-26 do campo, duas "frentes" entre as quais começam a manifestar-se certas discordâncias
às quais convém pôr termo: o llano (a planície), que não desarma no seu combate urbano contra as forças de Batista, parece, efectivamente, ter dificuldade em admitir
a necessidade de atribuir uma prioridade fundamental à luta dos guerrilheiros na Sierra.
Os dias 16 e 17 de Fevereiro de 1957 são de uma importância decisiva na história da guerrilha castrista: marcam, antes de mais, o primado absoluto, exigido por Fidel,
da serra sobre a planície. "Tudo pela Sierra", é a palavra de ordem que indica ao estado-maior do seu movimento, convocado para "o terreno", numa quinta da rede,
a de Epifanio Díaz, nos confins da Sierra. O outro acontecimento, que ultrapassa o anedótico, a entrevista-espectáculo que ele concede ao repórter norte-americano
Herbert Matthews. Os três artigos de Matthews, o primeiro dos quais sairá na primeira página do New York Times de 24 de Fevereiro, vão dar a essa pequena guerrilha
ignorada do planeta uma repercussão internacional e ao seu chefe uma imagem romântica de justiceiro democrático. Conseguindo que lhe tragam um jornalista de peso,
se possível dos Estados Unidos, Castro evoca mais uma vez um episódio da história do seu país, retomando uma atitude do seu ilustre antecessor, José Marti, cujo
modelo o obceca. Em 1895, uma semana antes de se lançar numa galopada romântica no seu cavalo branco e de ser liquidado em pleno combate pelas balas espanholas,
Marti fora entrevistado por um enviado especial do New York Herald. A história repete-se, como vemos. É impossível compreender a aventura de Fidel Castro e do movimento
que o segue se não o situarmos, em traços largos, no continuum de um país que nunca conseguiu verdadeiramente sair do estado colonial. Guevara é um grande leitor,
como se sabe, mas é mais através das suas conversas com Fidel e Raul do que pela leitura que descobre a história e a geografia desse país-crocodilo, cuja voluptuosidade
e langor tropicais não teve ainda tempo de apreciar.

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Inicialmente, houve o "postal turístico" que Colombo, ao descobrir essa região de Oriente, envia aos reis de Espanha: gaba as praias e os coqueiros, as águas límpidas,
a sinfonia estonteante dos pássaros: "Nunca vi um país tão belo". É certo que não há ouro, a grande cobiça dos conquistadores que em breve acorrem, mas a ilha servirá
de base rumo aos países que o têm: Peru, México, Florida. Uma chave, nos brasões de Cuba, simboliza a importância da sua posição estratégica de abertura ao golfo
e para garantir o controlo das Antilhas.
Seguem-se então quatro séculos de colonização espanhola que só terminarão em 1898, com uma independência "sob tutela"; mais um século do que as outras possessões
americanas. O açúcar - bênção dos colonos, maldição dos escravos - é a causa disso. Antes que as teses de Frei Las Casas a favor dos índios pudessem surtir algum
efeito, o bacilo de Koch, a sífilis e outras "prendas" do velho mundo deram conta dos primitivos habitantes da ilha, calculados em cerca de um milhão. De forma que,
no fim do século XVI, a indústria da cana-de-açúcar é forçada a importar mão-de-obra robusta e abundante: negros africanos, escravos. Ao contrário dos índios, são
vistos como não tendo alma e, embora morram novos, têm o bom gosto de se reproduzir bastante. O seu número chega a preocupar os amos. Poderiam transformar-se num
perigo, como no Haiti, ali perto, onde, instigados pelas ideias subversivas da Revolução Francesa, os negros se amotinaram e obrigaram os plantadores franceses a
refugiarem-se em Oriente - o que explica a frequência de patronímicos franceses na região. Essa revolta de escravos provocou entre os colonos cubanos um grande terror:
todo o movimento pró-independência poderia desembocar na horrível perspectiva de uma república negra em Cuba. Mais vale então aceitar o statu quo colonial espanhol
e falar de reforma em vez de revolução.
Todavia, é de um agrário, mação generoso, Carlos Manuel de Céspedes, que vem o primeiro sinal de liberdade. A 10 de Outubro de 1868, na sua plantação de cana-de-açúcar,
perto de Manzanillo, faz tocar o grande sino, a Deajagua (que o estudante Fidel trará um dia, como um trofeu, para Havana). Céspedes proclama a libertação dos escravos
e incita os seus compatriotas a sacudir o jugo espanhol. O movimento dos separatistas denominados mambis* espalha-se pela ilha e radicaliza-se: trinta anos de batalhas
entrecortadas por "repouso turbulento" (Marti). Um exército mambi instala-se na mata cubana a manigua, queima os canaviais, pratica (já) uma guerra de guerrilha
contra as tropas espanholas, tanto mais ferozes porquanto Cuba, juntamente com Porto Rico e as Filipinas, permanece como o único vestígio que a Espanha pretende
salvaguardar do seu império, outrora imenso. Os negros constituem o grosso dos rebeldes. Após a morte de Céspedes, Maceo, um general insurrecto, mulato de pele clara,
lidera o combate. A escravatura só será abolida em 1886, mas será transformada num salariado miseravelmente pago, que pode ser despedido à vontade; o sistema é ainda
mais vantajoso para os plantadores.

Nota: * Mambi: nome dado aos combatentes cubanos das guerras de independência.

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No século XIX, o fenómeno mais assinalável, talvez menos visível, é o progressivo controlo económico dos Estados Unidos sobre Cuba. Em 1819, já tinham comprado a
Florida à Espanha. Ao longo das décadas seguintes, Madrid rejeita várias propostas de compra de Cuba.
Por volta de 1880, as trocas comerciais com os Estados Unidos são seis vezes mais importantes do que com a Espanha. A maior ilha das Antilhas parece destinada a
tornar-se mais uma estrela na bandeira americana. Quando Marti provoca um novo sobressalto patriótico e, por toda a parte, redobra, mais severa do que nunca, a repressão
espanhola contra o retomar dessa interminável guerra de independência, Washington finge temer pelos seus interesses e envia para o porto de Havana o cruzador Maine.
A 15 de Fevereiro de 1898, o navio de guerra explode com a tripulação. Drama, certamente, mas casus belli perfeito (mesmo quando o inquérito subsequente prova que
a explosão, providencial, foi acidental). O conflito dura apenas alguns meses. Esgotados, os espanhóis em breve são derrotados. A sua esquadra é afundada na baía
de Santiago e a cidade ocupada. Em Dezembro de 1898, o tratado de Paris dá o "controlo" de Cuba aos Estados Unidos (que aproveitam a ocasião para comprarem também
Porto Rico e as Filipinas).
Deste modo, Cuba só se libertou da Espanha para cair no domínio do poderoso vizinho. Amarga vitória. A ocupação militar dos Estados Unidos, primeira de uma longa
série, vai durar quatro anos, o tempo necessário para lançar as bases do que virá a ser um protectorado de facto. A liberdade que é concedida aos cubanos não ultrapassa
a da dosagem da bebida denominada, por ironia, Cuba libre: quatro porções de Coca-Cola para uma de rum crioulo. As grandes companhias americanas apoderam-se, a preços
irrisórios, de imensas propriedades de cana-de-açúcar, tabaco, café. Graças a uma cláusula especial imposta na Constituição Cubana de 1902 - a emenda Platt - os
Estados Unidos conseguem obter não só uma base naval de concessão perpétua, Guantánamo, que permite vigiar as Caraíbas e a rota do canal do Panamá em construção,
mas sobretudo o direito de intervir à vontade nos assuntos cubanos "para garantir a independência [sic] e para ajudar a proteger as vidas, as propriedades e as liberdades
individuais". Graças ao que, os marines americanos virão por três vezes instalar-se em Cuba, de 1906 a 1909, depois em 1910, e ainda de 1917 a 1923.
Tinham os soldados ianques saído do país há três anos apenas quando nasce, na irrequieta província de Oriente, Fidel Castro. Essa zona de Mayari, onde ele passa
a sua infância, é dominada pela United Fruit Company, um Estado dentro do Estado, com a sua polícia, as suas escolas, o seu hospital, as suas piscinas e o seu clube
de pólo: uma potência. Nessa época, os Estados Unidos controlam 80% da produção açucareira, os caminhos-de-ferro, a electricidade, os telefones e os bancos. Como
a maior parte dos cubanos, Castro alimenta em relação aos Estados Unidos um ressentimento intenso e confuso, feito simultaneamente de atracção, de rancor e de um
vago complexo de inferioridade provocado pelo desdém, ou mesmo pelo desprezo dos ianques para

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com os dirigentes corruptos de um país derrotado, encarado como um fornecedor de açúcar e de prazeres fáceis. O big brother institui, aliás, um pacto económico bastante
perverso: a compra a uma taxa preferencial do açúcar cubano em troca de direitos alfandegários muito baixos para os produtos made in USA. Tudo benefícios para os
Estados Unidos mas, para Cuba, uma dependência acrescida da monocultura açucareira.
Em 1933 surge uma personagem "muito cubana", por ser representativa do aspecto mestiço da sociedade. Ninguém desconfia que vai transformar-se num ditador. Fulgencio
Batista é um mestiço de sangue negro, espanhol e chinês. Filho de um cortador de cana, chegou ao posto de sargento-estenógrafo. Quando os Estados Unidos deixaram
de apoiar a sua figura do momento, o general-ditador Machado, que disputava um terceiro mandato presidencial, tão fraudulento como os dois anteriores, um directório
de "estudantes rebeldes" forçou-o a demitir-se. Mas a sua partida não é suficiente. O sargento Batista que, inicialmente, exige melhores salários para os oficiais
inferiores, vê-se "promovido numa noite a coronel e a comandante do exército numa hora"60. Decide entregar o poder aos estudantes, os quais colocam na chefia do
Estado, devidamente enquadrado, um professor universitário liberal, Grau San Martin. De imediato são promulgados alguns decretos "revolucionários": jornada de trabalho
de oito horas, salário mínimo para todos os cortadores de cana, reconhecimento dos direitos sindicais, esboço de uma nacionalização da electricidade e de uma reforma
agrária. Washington torce o nariz. Mas o que ultrapassa os limites do tolerável são os "sovietes" que o jovem Partido Comunista, em princípio clandestino, começa
a organizar nas centrais açucareiras nas vésperas da zafra. Trinta navios de guerra cercam a ilha e o embaixador Summer Welles, chefe da diplomacia latino-americana
de Franklin Roosevelt, sugere a Batista que intervenha de novo. O que ele faz, sem qualquer cerimónia, depondo Grau discretamente mas castigando severamente os "subversivos".
A partir desse momento, do seu forte militar Columbia de Havana, é ele que, através de presidentes-fantoches, puxa os cordelinhos até 1940. Eleições sérias conduzem-no
então à presidência. Empurrado pela vaga democrática do combate dos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial, oficializa a autonomia da Universidade, inscrevendo-a
numa nova Constituição, e arrecada as divisas obtidas através da subida do preço do açúcar. O antigo sargento não recusou o apoio do partido comunista, (incluirá
até dois ministros comunistas no seu governo, em 1942), mas permanece mais do que nunca fiel aos Estados Unidos, que zelam pelos seus interesses. Estes últimos,
em nome de uma política de boa "vizinhança", suprimiram a partir de 1934 a impopular emenda Platt, mas substituíram-na por um acordo de comércio que lhes concede
o controlo total do mercado da ilha. Cuba permanece sob a sua tutela.
Os políticos que, a partir de 1944, sucedem a Batista - que se retirou para Miami - mais não fazem do que amplificar os males endémicos ligados à situação neocolonial
do país: especulação, prevaricação administrativa, introdução

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do gangsterismo no sector sindical, respeito apenas pelos interesses norte-americanos. Um jovem senador de Oriente, Eduardo Chibas, decide combater esta corrupção.
Não se contenta em reivindicar como os outros, a herança revolucionária autêntica do imortal José Marti; funda um partido seguidor da linha do herói, o Partido Ortodoxo,
que pretende correr com os exploradores quando 25% da população activa está no desemprego. Fidel Castro, de 26 anos, advogado recém-formado, é candidato "ortodoxo"
a deputado nas eleições de 1952. Também ele quer varrer a exploração, e mais ainda, se possível.
Um tiro espectacular agita então a opinião pública. Chibas suicida-se com uma bala no peito em plena emissão de rádio, gritando "Povo de Cuba, desperta!" A vitória
do seu partido parece mais garantida do que nunca. Era não contar com o putsch de Batista. Que regressa de Miami, onde, rei e senhor, fez estranhas amizades no mundo
da escroqueria. Toma conta do poder com toda a facilidade, a 10 de Março de 1952, na madrugada de uma noite de carnaval. As eleições são adiadas sine die e os gangs
americanos, secundados pelos seus acólitos cubanos, tomam conta de Havana. É o reinado, tantas vezes descrito, de mafiosos como Meyer Lansky ou do actor-vedeta Georges
Raft, donos de casinos e de clubes nocturnos. Os parasitas controlam máquinas caça-níqueis e lotarias de toda a espécie; o vício sob todas as formas reina no interior
do bairro americanizado de Vedado, apinhado de grandes hotéis e arranha-céus. Duzentos e setenta bordéis fazem de Havana um antro da prostituição na América Latina,
sem contar com casas de passe especializadas e bares de alterne, paraíso para turistas gringos, a poucas horas de avião de Nova Iorque. Alguns também vão à praia...
O advogado Castro apresenta queixa contra o usurpador, mas sem a menor ilusão. Compreendeu que, a partir de agora, o verdadeiro combate deverá usar outros meios,
sem ser os legais. Será o ataque ao quartel Moncada.

Sobrevivência, modo de usar

Tudo isso, que constitui a história escaldante do país onde se encontra há dez semanas, Guevara não o aprendeu nos manuais, mas pelas descrições dos amigos, por
vezes através do testemunho dos protagonistas. Mas a sua visão é continental. Tem consciência de essa luta ultrapassar o simples quadro de Cuba, de o seu alcance
atingir toda a América Latina. O inimigo é comum: a United Fruit ou os investimentos norte-americanos ditam a lei no conjunto do "hemisfério americano". Para ele,
o seu combate em Cuba é apenas uma etapa.
Quando o previnem que Matthews chegou para a tal famosa entrevista do New York Times, Fidel só dispõe de dezoito homens. Naquele momento, é todo o efectivo do seu
"exército". Todavia, monta uma verdadeira encenação para fazer crer ao jornalista que as suas tropas são numerosas, enxameando pela Sierra em pequenas unidades móveis
de vinte a quarenta homens. O seu

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fantástico optimismo fá-lo antecipar a realidade. Guevara está consciente da jogada, embora não tenha o talento teatral de Castro. "A presença de um jornalista estrangeiro,
de preferência norte-americano, tinha para nós mais importância do que uma vitória militar"61, declara ele. Desse modo, todo o grupo se presta, o melhor que pode,
ao espectáculo que Castro organiza com os meios de que dispõe. Faz de conta que recebe, através de pseudo-estafetas, esfalfados mas em sentido, mensagens de batalhões
inexistentes. Manuel Fajardo, um dos primeiros camponeses a juntar-se à guerrilha, conta no Livro dos Doze de Carlos Franqui: "Fidel pediu-nos que nos comportássemos
como verdadeiros soldados. Olhei para mim, olhei para os outros, para as nossas botas desfeitas, enlameadas, consertadas com arame... Mas fizemos a nossa parte;
eu marchava à frente, em passo militar"62. E Raul, por seu turno, passa e volta a passar com os mesmos homens.
Castro obtém tal êxito com a sua performance, no sentido inglês e francês do termo, que Matthews, impressionado, se deixa seduzir. Dez anos mais tarde, uma digna
"biografia política" de Castro, explicará como, aos 57 anos, apesar da sua grande experiência de jornalismo (cobriu a guerra de Espanha), se deixou enganar por aquele
rapazola de trinta anos, que sussurra, agachado ao seu lado, porque, como lhe explica, os soldados de Batista andam por ali, o que é verdade. "Ele sabia que precisava
de publicidade. Teve sempre um sentido muito apurado para ela, e um grande talento também. Essa entrevista foi uma das suas mais brilhantes jogadas [...]. Tudo o
que Fidel teve de fazer [...] foi "vender-me" a sua personagem. Bastava-lhe ser ele próprio"63. Matthews não desconfia por um momento sequer que o território que
o chefe da guerrilha controla não vai para além de alguns metros quadrados da tenda onde se abrigam da chuva. E escreverá: "Este homem tem uma personalidade esmagadora.
É fácil perceber porque é que os seus homens o adoram. [...] É um fanático culto e devotado a uma causa, um idealista, cheio de coragem"64.
Quando, após a entrevista de três horas, à qual não assiste, Guevara interroga Castro, este tranquiliza-o: "Ele respondeu afirmativamente quando lhe perguntei se
era anti-imperialista"65. Durante esses dias memoráveis, Guevara conhece algumas das mais destacadas figuras da época. De Santiago chegaram Frank País, o organizador
da resistência em Oriente um homem que, apesar dos seus vinte e cinco anos, "se impõe logo que começa a falar"66 e Vilma Espín, uma militante excepcional com quem
Raul Castro casará após a vitória. De Havana, para além de Faustino Pérez, emissário de Fidel, vieram Armando Hart, advogado, animador da resistência cívica na capital,
Haydée Santamaría, uma "veterana" de Moncada (ambos casarão mais tarde). E depois há sobretudo aquela que representa a cavilha mestra operária do M-26, em Manzanillo
e nos arredores, a espantosa Celia Sánchez, aquela que encontra solução para tudo, que consegue resolver, ininterruptamente, os mil e um problemas logísticos. Filha
de um conceituado médico, conhece toda a gente, é estimada por todos. Com trinta e seis anos, solteira, de rosto oval, sorriso aberto, sedutora, foi ela que montou
os "comités de acolhimento"

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que na praia esperaram muito tempo, em vão, os homens do Granma, foi ela que conduziu Matthews a Fidel, do qual é apoiante incondicional mas que, até então, nunca
tivera ocasião de conhecer pessoalmente. Ninguém sabe se houve uma atracção mútua quando ambos se encontram pela primeira vez, mas a simpatia recíproca é tão forte
que, quando a polícia começa a apertar o cerco em torno dela em Manzanillo, ela vem refugiar-se na Sierra e, a partir daí até ao fim dos seus dias (em 1980), nunca
mais deixará Fidel Castro. Será a sua confidente, a sua secretária, a sua mulher, a sua sombra protectora. Junto de Guevara desempenhará o papel de irmã mais velha,
carinhosa, e entre ambos estabelecer-se-á uma amizade profunda.
"Só precisamos de uns milhares de balas e mais uns vinte homens armados para ganharmos a guerra contra Batista", garante Castro com toda a convicção. Passado um
mês, Frank País envia-lhe 58 homens, encaminhados por Celia Sánchez. Entretanto, é urgente que Castro regresse ao refúgio do mato; os militares andam por perto.
Antes da partida, decidiu-se a sorte de Eutimio. Este, convencido que ninguém desconfia dele, teve o descaramento de voltar a aparecer. Descobre-se que traz consigo
prova flagrante do seu jogo duplo um salvo-conduto dos serviços de Batista, uma pistola e algumas granadas. Ele confessa, cai de joelhos, pede que o matem. Guevara
transforma a execução do traidor numa cena de ópera wagneriana: "Naquele momento estalou uma grande tempestade e mergulhámos na escuridão. No meio de enormes trombas
de água, sob um céu riscado de relâmpagos, seguidos dos trovões, terminou a vida de Eutimio Guerra, sem que nem os companheiros mais próximos dele tivessem podido
ouvir o tiro"67.
Os dias seguintes permaneceram negros na memória de Guevara: "para mim, pessoalmente, a mais penosa etapa da guerra"68. É sempre o maldito problema respiratório.
No terceiro dia de marcha perde o aerossol, quando a crise de asma se anuncia, ameaçando ser forte e a humidade que os rodeia é absolutamente contra-indicada para
esse tipo de doença. "Era a época das chuvas na Sierra Maestra e todas as noites ficávamos encharcados até aos ossos [...]. A minha asma estava tão assanhada que
me impedia de caminhar normalmente [...]. Um numeroso grupo de soldados preparava-se para ocupar o terreno. Era preciso avançar a toda a pressa antes que a tropa
nos cortasse a passagem. [...] Chegámos todos ao cume. Todos menos eu; consegui lá chegar mas depois de terríveis esforços, lutando contra um ataque de asma tão
forte que praticamente não conseguia pôr um pé diante do outro"69. Guevara faz-nos então uma breve descrição da afectividade brusca que se manifesta na solidariedade
da guerrilha. Com o seu tom rude e a sua robustez de camponês, o guajiro Crespo vem em seu socorro. "Quando eu já nem aguentava mais e pedia que me deixassem, o
guajiro dizia-me naquela linguagem típica entre nós: "Argentino de merda, hás-de marchar nem que seja à coronhada..." Não só me encorajava com estas palavras como,
para além da sua carga, carregava comigo e com o meu saco nas passagens mais difíceis da montanha. Entretanto, caía-nos em cima uma carga de água"70.

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Sobrevivência, modo de usar. No seu manual de guerrilha, o Che sublinha as qualidades de resistência e tenacidade que são exigidas ao combatente rebelde. Para os
novatos, a aprendizagem é dura. Recorda-se de um que fraqueja: "Teve uma crise de nervos e, na solidão e no silêncio da serra, pôs-se aos gritos, a dizer que tinha
partido para um acampamento cheio de provisões [...] e que, em vez disso, estávamos cercados [...] não parávamos dois dias quietos no mesmo sítio, morríamos de fome
e nem sequer tínhamos água para beber"71! Guevara admite que é esta, pouco mais ou menos, a reacção dos combatentes durante os primeiros dias de acampamento e define,
sem floreados, qual deve ser a têmpera do guerrilheiro: "Os que aguentavam firme [...] aprendiam a habituar-se ao pó, à falta de água, de comida, de abrigo, à insegurança
e acabavam por viver fiando-se apenas na sua espingarda"72. Nada é mais perigoso do que um excesso de higiene, porque isso fragiliza. Atento aos seus homens, Fidel
pede ao camponês amigo, em casa de quem pararam, que mande buscar na cidade os medicamentos para o Che, que estava bastante mal e, excepcionalmente, instala-o num
abrigo precário perto do bohio. pondo-lhe ao lado um recruta recente. "Num gesto de generosidade, Fidel deu-me, para nos defendermos, uma espingarda Johnson de repetição,
uma das jóias da nossa guerrilha"73. Apesar da adrenalina que lhe é trazida, Guevara levará dez longos dias para alcançar o grupo, cuja distância poderia ser transposta
num dia de marcha normal. A guarda anda por aquelas paragens e o seu companheiro treme sempre que o asmático, sufocado, não consegue reprimir a tosse, apesar de
todos os esforços. "Para avançar, apoiava-me de árvore em árvore e na coronha da minha espingarda"74. Também ele poderia afirmar que aquilo que fez nenhum animal
o teria feito.
Enquanto recupera o fôlego junto dos companheiros finalmente alcançados, contam-lhe as novidades: em Havana, a rivalidade para tomar o controlo do movimento revolucionário
à escala nacional levou uma nova geração do directório estudantil a lançar-se num ataque insensato ao palácio presidencial, que falhou trinta e cinco mortos. (Nesse
momento, a eliminação de Batista teria tirado todo o interesse à guerrilha de Castro. Teria dado o predomínio à cidade, à "planície", sobre a Sierra e teria obrigado
Castro a negociar os dividendos da vitória com os vencedores de Havana.) Por outro lado, a entrevista do New York Times fez sensação em Cuba onde, aproveitando uma
brecha da censura, todos os jornais a noticiaram. Fidel está prestes a tornar-se o símbolo da resistência para a juventude. O ministro da Defesa de Batista cobriu-se
de ridículo ao alegar que a entrevista fora forjada; Matthews publica então uma fotografia, na qual Castro surge sentado a seu lado. Irrefutável. Outra notícia encorajadora:
a chegada iminente dos reforços prometidos por País.
É Guevara, recomposto, que é encarregado por Fidel de ir acolher estes novos recrutas. Ele nota a diferença entre eles próprios, que aqueles poucos meses transformaram
em centuriões "barbudos, com sacos feitos de bocados de pano, atados de qualquer maneira, e os novatos, de fardas ainda novas, com belas mochilas todas iguais, de
rosto barbeado de fresco [...]. Não

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estavam habituados a comer apenas uma vez por dia [...] e arrastavam sacos atafulhados de coisas inúteis"75. Ainda por cima, não sabem marchar, observa Guevara,
que tenta controlar as coisas, mas tem problemas com o chefe deles, também vindo da cidade, e que recusa ceder-lhe o comando. "Nessa época, ainda não me tinha libertado
do meu complexo de estrangeiro"76, explica Guevara, a quem Fidel censurará não ter sabido exercer a sua autoridade. Ele não esquecerá a lição e em breve se libertará
desse tipo de hesitação, passando a comportar-se como cubano sem por isso ocultar a sua condição de argentino. Ao fim e ao cabo, é um Che.
Escarnecido pela imprensa, Batista gostaria de se ver livre dessa guerrilha que, mesmo distante, é um furúnculo desagradável. A sua ausência de vitória da sua parte
é já uma derrota, porque os rebeldes aproveitam-na para garantir o controlo em zonas da Sierra onde os militares, escaldados, não ousam aventurar-se, e que a guerrilha
decreta, com bastante ênfase, "territórios libertados". Castro, arranjou, de resto, um émulo. Refugiado em Miami após ter sido derrubado por Batista, o antigo presidente
Prío Socarras decide também participar na corrida ao poder. Dono de uma fortuna fabulosa, retirada dos cofres do Estado, arma um iate, o Corinthia e, por seu turno,
financia uma expedição que manda desembarcar em Oriente e que será implacavelmente esmagada no próprio dia, 28 de Maio, em que os "fidelistas" obtêm uma nova vitória
sobre uma guarnição militar bem protegida.
Graças aos reforços enviados da cidade, Castro recupera mais ou menos o equivalente dos efectivos que haviam desembarcado do Granma. Redistribui os seus homens,
entrega os comandos ao seu irmão Raul, ao negro Almeida e a Camilo Cienfuegos, colocado na vanguarda da coluna. Mantém Guevara a seu lado, na qualidade de "médico
do Estado-Maior". Esta função de médico não é, aliás, um mero pró-forma. Guevara exerce-a com os meios disponíveis, tanto junto dos seus companheiros como junto
dos camponeses que vão encontrando pelo caminho - apesar de Cienfuegos, sempre trocista, lhe chamar matasanos (literalmente: matador de gente sã). "Mal chegávamos
a um lugarejo, começava logo a dar consultas. Era um tanto monótono, pois eu não tinha medicamentos. [...] Mulheres desdentadas, crianças com barrigas enormes, doenças
parasitárias, avitaminose, eram geralmente as doenças da Sierra"77.
A fama deste médico que veio da Argentina espalha-se entre os camponeses, ao ponto de um espertalhão, que conviveu uns tempos com os guerrilheiros, descobrir um
expediente para atrair as mulheres, fazendo-se passar pelo Che: "Tragam-me as mulheres; vou examiná-las". E chega ao ponto de violar a mulher de um camponês. Castro,
que garante ter fuzilado "muito pouca gente" durante a guerra, é implacável com o impostor: "Fuzilámo-lo"78.
Antes de entrarem em combate, os guerrilheiros considerados "veteranos" treinam os recém-chegados na arte de se desenrascarem nas difíceis condições da Sierra. Familiarizam-nos,
através da prática, com o vocabulário brutal e directo, com o praguejar que pontua a mínima frase, mas habituam-nos

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também, por prudência, a nunca gritarem para não revelarem ao inimigo a sua presença; a, pelo contrário, falarem por sussurros; ao atravessar um campo descoberto,
nunca o fazer em grupo, mas um a um, mantendo uma certa distância entre si, de forma a que os aviões que patrulham a área pensem que se trata de um camponês isolado.
Ensinam-lhes a caminhar sem deixar rasto, a cuidar da arma, a montar uma rede, a proteger-se da chuva e do sol, a suportar sem grandes coçadelas as picadas infernais
dos insectos. Tudo coisas indispensáveis para "manter o moral".

Uma guerrilha de chapéus de palha

Os artigos do New York Times levaram uma equipa de televisão da CBS (Columbia Broadcasting System) a vir filmar in situ a guerrilha desses "selvagens" cubanos, tanto
mais que se sabe que entre o grupo se incluem três jovens norte-americanos, filhos de funcionários da base naval de Guantánamo que, segundo Guevara, abandonaram
a família "para satisfazerem o seu desejo de aventura vivendo connosco"79 (Terão imensos dói-dóis, que o Dr. Guevara irá tratando). Conduzida por Celia Sánchez,
a equipa de televisão conviverá cerca de dois meses com os guerrilheiros. Fidel Castro adora a coisa, apesar de não ter ainda consciência do poder gigantesco que
esse meio de comunicação, ainda pouco divulgado, irá ter. Contemporâneo lúcido de Citizen Kane, dará sempre uma grande importância àquilo a que ainda não se chama
uma política de comunicação. Quanto a Guevara, é mais reservado em relação à imprensa, cujo poder não ignora mas que por vezes o irrita pelo seu lado superficial
e de "poeira nos olhos". Naquele caso, diz ele, "tratava-se de dar mostras da nossa força e de evitar perguntas indiscretas"80. Castro não encontra nada de mais
"visual" do que mandar toda a gente subir, com equipamento e carga, ao pico mais elevado da Sierra Maestra e da ilha, onde se ergue um pequeno monumento a José Marti,
o Pico Turquino (1850 metros, no seu altímetro de campanha), prova de que a guerrilha controla realmente a serra. "Esta escalada ao nosso cume mais elevado implicava
um elemento quase místico"81, observa o argentino que, como vemos, se refere ao "nosso" cume como um cidadão cubano de pleno direito. Mal a equipa da CBS parte,
chega um outro jornalista norte-americano, Andrew Saint George. Guevara, que mais tarde o classificará como um "agente do FBI", ocupa-se dele, pois "era o único
que falava francês (naquela altura ninguém falava inglês). "A partir daí, a epopeia romântica dos bons justiceiros que se batem no mato contra os soldados do terrível
ditador vai tornar-se o tema recorrente de reportagem, tanto mais que a aventura de Fidel Castro não está ainda maculada com a etiqueta infamante de comunista. Pelo
contrário, Matthews, nos seus artigos, afirmou que o programa de Castro é, decerto, vago, mas que significa para Cuba uma transformação radical, democrática e anticomunista"82.
No seu livro, sublinha que, depois do seu scoop, "as montanhas

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passaram a ser um lugar de peregrinação para um exército de jornalistas da imprensa diária e não-diária, da rádio, da televisão e para os repórteres fotográficos"83.
Passam os dias e passam as semanas... Os media relatam, a guerrilha avança, o Che endurece. A Sierra, tão selvagem quando ainda a não conhecem, passa a tornar-se
uma amiga. "Prosseguíamos a nossa lenta marcha na crista da Sierra Maestra, ou nas encostas. Levávamos a outros sectores a chama revolucionária e a lenda do nosso
grupo de barbudos. Ia-se propagando um outro estado de espírito: os camponeses vinham saudar-nos com menos terror [...] sentíamos que íamos tendo mais confiança
com os nossos guajiros"84. Quando a asma o deixa em paz, Guevara revela-se um montanhista aguerrido. Prova-o a pequena aventura que lhe sucede durante uma marcha
nocturna, quando ele se afastou um pouco "para satisfazer uma necessidade natural. [...] Enganei-me no caminho e perdi-me. Ao fim de três dias, acabei por encontrar
o grupo"85. Mais ainda do que o reencontro comovente, que mostra já como ele era estimado pelos companheiros - "que acolhimento caloroso me fizeram!"86 - é a forma
como ele se desenrascou que é interessante. "Tive toda a ocasião para verificar que carregávamos às costas tudo o que é necessário para nos bastarmos a nós próprios
[...], comida [...], tudo o que é necessário para dormir, acender uma fogueira..."87. Sobre o que deve conter um saco de combatente, mais tarde escreverá páginas
bastante esclarecedoras. No seu breviário da insurreição armada, A Guerra de Guerrilha, retira um ensinamento teórico e prático das mínimas peripécias da vida guerrilheira.
Na América Latina, essa pequena obra preciosa é considerada por alguns tão "perigosa" que se tornará um texto de leitura obrigatória das escolas de guerra anti-subversiva,
a começar pela das forças especiais norte-americanas, com base no Panamá.
Em vez de montar emboscadas a camiões militares, como Guevara sugere, desejoso de lutar, Castro prefere organizar uma acção mais espectacular, que Batista não poderá
dissimular. "Fidel já tinha na ideia o confronto de Uvero (ao passo que nós estávamos tão ansiosos por combater que acabávamos por optar por soluções imediatas,
desprezando a paciência)"88. As armas que esperavam chegam em meados de Maio. Tinham sido já bastante usadas. Mesmo assim, Guevara fica fascinado. "Para nós, foi
o espectáculo mais maravilhoso do mundo. Aqueles instrumentos de morte, expostos ao olhar de todos os combatentes"89. A observação pode chocar as almas sensíveis,
mas traduz bem o sentido da realidade, muito pragmático, de um homem que compreendeu que na guerra é preciso matar, se não queremos ser mortos. Para ele, aliás,
a distribuição das armas transforma-se num rito de passagem, confirmando finalmente a sua opção quando, na confusão do baptismo de fogo de Alegria de Pio, ele decidira
salvar as munições em vez dos medicamentos. Castro confia-lhe uma espingarda automática americana M-1, "arma altamente cobiçada [...]. Nunca esquecerei o momento
em que me foi entregue a espingarda-metralhadora [...]. Foi assim que me tornei um combatente permanente.

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Até ali, acontecera-me combater ocasionalmente, mas era, antes de mais, o médico do grupo. Para mim, começava agora uma nova etapa"90.
A guarnição de Uvero está situada à beira do mar das Caraíbas, no sopé da Sierra Maestra, tal como o pequeno quartel de La Plata onde a guerrilha obteve a primeira
vitória. Mas este quartel está entrincheirado de outra forma, com cerca de sessenta homens, ninhos de metralhadoras e a protecção de pilhas de troncos da serração
vizinha, perto de um pequeno povoado que os rebeldes têm ordem de poupar. No dia 28 de Maio, "já despontava esse claro-escuro que precede a aurora e nós ainda não
estávamos em posição. [...] Pensava-se que a acção seria muito rápida"91. Puro engano. O combate dura cerca de três horas e é sangrento: seis mortos e oito feridos
entre os rebeldes, um dos quais o robusto Almeida. Mais do dobro entre os militares, que acabam por se render. A certa altura, os gemidos dos feridos, provocam uma
certa confusão entre os rebeldes, que é detectada por Guevara. Joel Iglesias, membro da sua esquadra, relata: "Então, o Che ergueu-se e avançou, deixando de tomar
precauções, descarregando a metralhadora e gritando: "temos de ganhar!""92 Evocando esse combate, Castro louvará em Guevara "o soldado que mais se distinguiu, realizando
pela primeira vez uma dessas proezas extraordinárias que iriam caracterizá-lo"93. Depois da batalha de Uvero, "que marca a entrada da guerrilha na idade adulta"94,
os generais de Batista consideram prudente evacuar as zonas costeiras da Sierra Maestra, deixando o campo livre aos rebeldes.
A sua promoção a combatente de pleno direito nem por isso o liberta das suas funções de médico. Pelo contrário, prevendo duras represálias, Castro decide afastar-se
rapidamente com os homens válidos e confia os feridos aos cuidados do médico-guerrilheiro. "O regresso à prisão de médico não deixou de me emocionar"95, confessa
Guevara que, contudo, não explicita a natureza dessa emoção. É evidente que preferia combater em vez de tratar os doentes. O seu velho amigo guajiro, Luis Crespo
garante que se Fidel o tivesse obrigado a ser apenas médico, o Che teria sido o "primeiro desertor". Em 1960, perante os estudantes de medicina de Havana, fará uma
autocrítica, semivelada pelo "nós" oficial: "Parecia-nos uma desonra estar à cabeceira de um doente ou de um ferido e procurávamos por todos os meios empunhar a
espingarda e demonstrar no campo de batalha o que era necessário fazer"96. Contudo, ele irá dar boa conta da sua difícil missão. São cinco homens a ter de se ocupar
de oito feridos, quatro deles incapazes de andar. Não é propriamente uma passeata ter de transportar homens em redes amarradas num tronco largo "que retalha as costas
dos que os transportam". Velocidade média: quatrocentos metros à hora. Apoiado por operários da serração, e em seguida por camponeses, consegue apesar de tudo abrigar
os seus homens na casa de um guajiro do M-26, Israel Pardo, transformada em hospital de campanha bastante precário, altamente vigiado, para impedir qualquer incursão
dos soldados de Batista, e cercado por uma rede de camponeses-sentinelas, prontos a dar o alerta ao mínimo sinal de perigo. Todo o mês de Junho de 1957 será dedicado
à cura dos companheiros feridos.

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Durante essas semanas de relativa imobilidade, Guevara vai consolidando o seu conhecimento sobre o campesinato da serra cubana. Toma consciência da miséria dessa
população esquecida sem a qual, todavia, a guerrilha em breve seria esmagada. "A situação do campesinato na região da serra era simplesmente horrorosa"97. Apercebe-se
do grau de credulidade e de ignorância das pessoas, e também da sua dedicação, da sua profunda ligação à terra, mesmo quando essa terra da Sierra Maestra, é ingrata.
Todos vivem obcecados pelas questões dos limites dos terrenos que permitem aos latifundiários contestar-lhes o direito de cultivar um pedaço de terra. Tem longas
conversas com eles. Tenta explicar-lhes que é possível, que é urgente "mudar o estado das coisas". Sobretudo a um deles que, exprimindo um desejo de terra secular,
teima em querer trabalhar as suas terras por conta própria, procura demonstrar que é preferível unir esforços numa cooperativa. À noite, à luz das estrelas ou de
um fraco candeeiro, os camponeses vêm escutá-lo; por muito que se tenha "cubanizado", a sua voz conserva ainda a melodia exótica da pronúncia argentina. Eles vão
contando as suas histórias, evocando lendas e superstições; ele improvisa pequenos debates políticos muito simples. Não fala de marxismo, idioma desconhecido, mas,
segundo o neologismo castelhano, "consciencializa", isto é, procura despertar as consciências... A propósito disso, escreverá: "A nossa missão consiste em desenvolver
o que cada um tem de bom e de nobre, em fazer de cada homem um revolucionário"98. Os guajiros serão tocados pelo seu discurso. Fidel Castro reconheceu quanto, naquela
época, ele próprio e os seus companheiros ignoravam a realidade social e física da região. "Quando chegámos nem sequer tínhamos feito um estudo geográfico da Sierra,
nem sequer tínhamos previsto a organização da Sierra Maestra"99. Por seu turno, Guevara, numa conferência de imprensa efectuada logo após a vitória, sublinha o tempo
que eles demoraram a ser plenamente aceites pelas populações miseráveis da montanha. Quase todos citadinos instruídos, vêem-se confrontados, logo após o desembarque,
com camponeses confusos, desconfiados, analfabetos - imagem invertida deles próprios -, que terão primeiro de conhecer e em seguida cativar". Nós éramos homens da
cidade, instalados mas não ligados à Sierra Maestra [...]. Um grupo que era tolerado mas que não estava integrado [...]. A atitude do camponês para connosco foi
mudando pouco a pouco, devido à repressão das forças de Batista [...]. Essa mudança traduzia-se pelo aparecimento do chapéu de palha de palmeira nas nossas fileiras
e o nosso exército de citadinos foi-se transformando gradualmente num exército camponês"100.
Nessa época, Guevara mantinha o seu aspecto magricela e o rosto de menino, cercado por uma barba rala. Já não usava o cabelo rapado como dantes. Fajardo, um dos
primeiros camponeses a aliar-se a Fidel, dá conta disso101. Agora, como todos os seus companheiros, tem uma cabeleira comprida, "como uma rapariga"102, observa uma
guajira, Heralda Ortiz. Mas esse repouso forçado foi-lhe benéfico; recuperou forças, apesar de a asma, que não o larga, se tornar por vezes muito forte. "Nesses
dias, não dispondo

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de nenhum calmante, via-me reduzido a uma imobilidade semelhante à dos feridos"103. Fuma então folhas secas, um remédio da Sierra. Um batedor que chega com medicamentos
descreve-o "como um animal acossado"104; nunca deixará de explorar, sozinho, esse continente de respiração cortada.
Não muito longe do acampamento, Guevara às vezes tomava banho num lago de águas transparentes. "E isso era um acontecimento"105, garantem as testemunhas. A sua preocupação
fundamental são os feridos, evidentemente. Dia após dia, vigia o seu restabelecimento e começa até a gracejar com Almeida; não esquece que foi ele que o tirou do
canavial de Alegria de Pio, quando já se julgava morto. Justa inversão de situações. "Ele tratou deles, salvou-lhes a vida"106, dirá Castro. Quanto aos cuidados
médicos que poderia dispensar aos camponeses da região, não tem ilusões; são as condições de vida, a subnutrição, que é necessário mudar. Quando recebe da cidade
um estojo de instrumentos de cirurgia dentária, proclama-se "arrancador de dentes". Não havendo anestesia química, é à força de anestesia "psicológica" pragas violentas,
raspanetes amigáveis pondo em causa a virilidade do paciente que tenta fazê-los suportar a dor. Novos recrutas camponeses vieram oferecer-se espontaneamente. Ele
equipa-os o melhor que pode, indo desenterrar velhas armas escondidas após a batalha de Uvero. Até que, um belo dia, a pequena coluna de cerca de trinta rebeldes,
com os homens válidos a ajudar os convalescentes, se põe a caminho em direcção ao ninho de águia do Turquino, para se reunir a Fidel. Este fica satisfeitíssimo por
voltar a ter junto de si os seus dois excelentes tenentes: Almeida, ainda um tanto combalido, e Guevara, que anuncia "missão cumprida". "Desde então", dirá Castro,
o Che "afirmar-se-á como um chefe competente e corajoso"107.
Logo após os abrazos de boas-vindas, o Che é confrontado com uma realidade mais complexa do que a sobrevivência em meio hostil: a dos meandros da luta política.
Em Santiago, Frank País continua a ter um comportamento exemplar. Com Celia Sánchez, garante uma logística notável, mas propõe também o que, para Castro, constitui
o cúmulo da heresia: a partilha do poder entre a planície e a serra. Isso numa altura em que Fidel insiste com Celia: "Todas as espingardas, todas as munições e
todos os recursos para a Sierra!". Por seu turno, em Havana, Carlos Franqui, chefe de redacção do jornal clandestino Revolución, insiste na oposição do M-26 a todo
o "caudilhismo", essa praga endémica da América Latina que consiste em deixar um chefe, um caudillo mais ou menos providencial, confiscar o poder. "Desejamos que
Fidel Castro [...] seja um líder e não um caudillo"108, escreve ele.
Guevara encontra Fidel em acesa discussão com duas figuras vindas de Havana: Raul Chibas, irmão daquele dirigente "ortodoxo" que se suicidou para demonstrar a primazia
da "honra sobre o dinheiro" e Felipe Pazos, antigo presidente do Banco Nacional que, constituindo uma excepção, não enriqueceu à custa do cargo. Para evitar a pequena
escaramuça, que pressente, no seio do Movimento, contra o seu "centralismo", Castro assina com esses dois moderados um "Manifesto da Sierra", pouco revolucionário,

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que fala de "frente popular" unitária contra a ditadura, de eleições livres, de plano de reforma agrária "com indemnização dos proprietários". Para ele, é uma forma
de garantir a sua liderança à escala nacional sobre o M-26, criando a cada um dos signatários a miragem de aceder à presidência da República após a vitória. Para
Guevara, cujo radicalismo não permite concessões mas que não foi chamado à discussão, trata-se de um mero compromisso necessário. "Um passo em frente, [...] uma
breve pausa na caminhada, nada mais que isso"109. Ainda não avaliou bem a astúcia do chefe guerrilheiro.

Comandante Che

O pequeno exército inclui agora cerca de duzentos homens. É demais para manter a agilidade necessária. Castro procede a nova reestruturação. Desta vez, não mantém
Guevara na sombra protectora do seu estado-maior"; já que ele deu tão boa conta do recado, confia-lhe o comando de uma coluna de setenta e cinco homens, com o posto
de capitão. Será designada, um tanto ingenuamente, por coluna n.º 4, para enganar o inimigo quanto ao número de efectivos da guerrilha. Guevara fica muito orgulhoso,
mas mantém o sangue-frio. Descreve-nos, num tom irónico, o aspecto insólito da coluna colocada sob o seu comando, "um conjunto inacreditável de armas e de vestimentas
que mereceu entre nós o cognome de desalojo campesino"110. A expressão não deixa de ter um certo humor (negro), pois os guerrilheiros tiveram ocasião de assistir,
nos sinuosos caminhos da Sierra, ao triste espectáculo dos campesinos forçados pelos militares a abandonar as suas terras e os seus casebres para que o exército
pudesse combater melhor os rebeldes através da política da terra queimada.
E então, a 21 de Julho de 1957, chega o momento inesquecível para Guevara. Alguns dias antes do aniversário da gesta fidelista, celebrada com uma missa, os oficiais
que sabem escrever - nem todos o sabem - são chamados a assinar uma bela carta de solidariedade para com Frank País, cujo irmão fora assassinado pela "tirania".
"Quando eu me preparava para escrever a minha patente à frente do meu nome, Fidel disse apenas: assina "comandante". Foi desta forma familiar e quase oblíqua que
me vi nomeado comandante da segunda coluna"111. Uma testemunha da cena, Edelfin Mendoza, conta: "Deviam ver a cara dele; o seu sorriso e a sua alegria eram indescritíveis"112.
Guevara completara vinte e nove anos. É o primeiro, na guerrilha, a alcançar esse posto, o mais alto do exército rebelde. Isso confirma que, a partir de então, será
chamado a combater e já não a "fazer de médico". E ele confessa: "Nesse dia, não cabia em mim de orgulho. Quem, de entre nós, não tem a sua pequena vaidade? Recebi
das mãos de Celia uma pequena estrela, símbolo da minha promoção, bem como um relógio de pulso"113.
É a partir deste momento que Ernesto Guevara, assim artilhado, vai transformar-se verdadeiramente no Che, tal como o descrevem as testemunhas

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que irão construir a lenda: um homem generoso, igualitário, mas de princípios inflexíveis, um asceta tão severo em relação a si próprio como em relação aos outros,
capaz de suportar mil sacrifícios para alcançar uma vitória sobre as forças da ditadura, um chefe temível, levando os seus homens a comportarem-se como heróis espartanos,
em todas as circunstâncias.
Fidel reserva-lhe como território de combate a parte oriental da Sierra Maestra, 200 km, e dá-lhe carta branca, "desde que seja prudente". A partir de então ele
vai levar uma vida semi-independente, procurando, através de algumas acções ousadas, mostrar-se digno da confiança que lhe foi concedida. Com a sua tropa de maltrapilhos
mal equipados, pouco treinados pois muitos são novatos, vai lançar-se em várias acções que, apesar de não constituírem marcos assinaláveis na história da guerrilha,
não deixarão de representar vitórias sobre Batista. O seu armamento é tão heteróclito quanto inoperante nos momentos cruciais: metralhadoras que encravam, espingardas
que não disparam, granadas que não explodem, explosivos que falham... Mas, face ao inimigo, Guevara vai fazer da sua guerrilha uma espécie de tauromaquia.
Em Bueycito, na noite de 31 de Julho, toma de assalto uma pequena caserna guardada por doze homens e incendeia-a "depois de ter retirado tudo o que nos pudesse dar
jeito". Quando quis dar o sinal de ataque disparando sobre a sentinela alertada pelo ladrar dos cães, nicles... "Carregava no gatilho, procurando enfiar-lhe um carregador
inteiro no corpo, mas a primeira bala falhou e fiquei sem defesa. Israel Pardo disparou, mas a sua pequena espingarda 22, em mau estado, também se recusou a funcionar"
e eis que o nosso herói-guerrilheiro compreende, numa fracção de segundo, que a salvação está na fuga: "Desatei a correr a toda a velocidade, sob uma chuva de balas
da Garand"114. Outras circunstâncias mostrá-lo-ão suficientemente intrépido para que não seja obrigado a esconder a verdade. Escreve a Fidel: "Estreei os meus galões
de comandante; foi um sucesso", mas nas suas Memórias*, precisa: "Apesar de a minha participação no combate não ter brilhado nem pelo vigor nem pelo heroísmo uma
vez que só enfrentei os escassos tiros com a parte posterior da minha pessoa, atribuí a mim próprio uma espingarda-metralhadora Browning, a jóia da caserna, e abandonei
a velha Thompson e as suas perigosas balas, que nunca disparavam no momento oportuno"115.

Nota: * Episódios da Guerra Revolucionária, Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1975.

Um mês depois, cenário mais ou menos análogo a El Hombrito. Organiza uma emboscada contra uma coluna de cento e quarenta soldados comandada por um certo Merob Sosa,
personagem cuja fama é tão sinistra como o temível Sánchez Mosquera. É certo que a sua arma funcionou quando, "após uma espera interminável", decide abater o sexto
homem da vanguarda, desencadeando uma fuzilaria geral. Mas, desta vez, é a metralhadora Maxim, "a única arma importante que possuíamos", que o seu utilizador não
consegue pôr a funcionar. E, contudo, mais uma vez, com as suas pequenas carabinas que fazem mais barulho que estragos, conseguem deter a avançada da coluna

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armada de bazucas. Para se vingar do recuo forçado, Merob Sosa fuzila quatro camponeses, culpando-os por não lhe terem comunicado a presença dos rebeldes. É por
isso que, "conhecendo bem o sistema do exército de Batista, costumávamos ocultar as nossas intenções aos camponeses"116, explica Guevara. A regra de ouro é fazer
do campesinato um aliado da guerrilha e não uma vítima, e muito menos um inimigo.
Com Fidel, criam uma pequena receita estratégica que consiste em jogar ao gato e ao rato com as forças de Batista, atacando o amor-próprio machista dos soldados.
Chegar a uma aldeia e tomar conta do posto militar, "fazer um acto de presença" e fugir. É garantido que, em breve, o exército irá retaliar. Ocupar então as melhores
posições nos caminhos de acesso, para montar uma emboscada. É este o esquema do confronto de Pino del Agua, em Setembro, perto de uma serração de pinho, a 1000 metros
de altitude. Guevara espera sete dias até ver subir cinco camiões carregados de guardas. Chove a potes. O que não impede a fuzilaria e uma debandada dos guardas.
Três camiões incendiados, quatro soldados mortos e, quanto aos feridos, um incidente eloquente relatado por Guevara. Quando ele repreende severamente um dos seus
homens pelo "acto de vandalismo" que representa o tiro que acaba de liquidar um ferido, um outro guarda ferido, que até ali se mantivera escondido, revela a sua
presença gritando aos rebeldes que se aproximam: "Não me matem! O Che diz que não se deve matar os prisioneiros..."117. A notícia deste combate irá espalhar-se em
Cuba, devidamente distorcida, por uma imprensa subserviente que começa a falar de um certo "agente comunista internacional conhecido pelo nome de Che Guevara"118.
Mais do que a sua imagem na imprensa, o "comunista internacional" está sobretudo preocupado com o controlo da sua coluna e com a disciplina e resistência dos seus
homens, que pretende exemplares. Não é tarefa fácil fazer-se obedecer por um grupo de homens que não são propriamente uns meninos de coro, muitos deles recrutas
recentes, ignorando "as virtudes formadoras das privações da vida de um combatente". Nessa época, Guevara é uma espécie de magricela cuja aparente fragilidade é
desmentida por uma energia espantosa, apoiada numa vontade de ferro. Torna-se um pouco trocista quando alguns o tratam por "comandante" de um modo afectado. Não
tem tempo a perder com explicações sobre a sua filosofia do combate, a saber que ao lutar contra a ditadura, o guerrilheiro é levado a "substituir uma ordem injusta
por algo novo". Esta linguagem é ainda demasiado abstracta para camponeses que se juntaram a eles porque o exército os persegue e porque os proprietários lhes roubam
as terras que eles desbravam. Para expulsar definitivamente esse exército da Sierra, Guevara precisa, antes de mais, de combatentes experientes. É na experiência
do "marcha ou morre" que ele vai basear a sua selecção. "A marcha é o elemento de base da guerrilha, que não pode ser tolhida por gente lenta ou fatigada"119, escreve
ele em A Guerra de Guerrilha; cinquenta minutos de marcha, seguidos de dez minutos de descanso, e volta-se a partir. Toda a noite, geralmente, ou todo o dia,

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Nesta página existe um mapa intitulado:
Geografia da Epopeia da Sierra Maestra

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quando a floresta os protege dos ataques aéreos. As palavras de ordem são transmitidas ao longo da fila indiana. Os surrealistas teriam apreciado esta variante do
"cadavre exquis": quando chegam ao destino, as mensagens são por vezes bastante originais.
Enrique Acevedo, um rapaz de catorze anos, veio juntar-se ao grupo; mais tarde tornar-se-á general. Recorda-se daquilo que antes de mais o impressionou: o cheirete,
feito de suor, urina, de corpos não lavados. Descreve o aspecto desgrenhado da maior parte desses barbudos, piolhosos no verdadeiro sentido do termo, vestidos às
três pancadas, enlameados, ao ponto de lhes chamarem descamisados, como os proletários dos subúrbios de Buenos Aires, tão caros ao peronismo. O Che não tem melhor
aspecto. As suas roupas estão rotas... Acevedo refere sobretudo a obsessão diária de cada um: comer, beber, curar as feridas. Um pedaço de malanga, grande tubérculo
insípido, cozida, sem sal, e meia lata de sardinhas por cabeça, e às vezes nada para beber, a não ser, quando chove, a água de um charco. Um "veterano" ensina-o
a encher um cantil, cortando rente as lianas dos bosques. "Quem consegue aguentar as privações torna-se um verdadeiro eleito"120, garante Guevara.
"Muitos deles sofrem de disenteria, outros de malária, apanhada nos arrozais da planície, quase todos têm os pés cheios de bolhas e furúnculos nos ombros, provocados
pelo roçar e pelo peso do saco e da espingarda"121. Como não há medicamentos, o médico pouco pode fazer mas, observa Guevara, "uma simples aspirina pode ter um grande
efeito se for dada pela mão amiga de quem sente e faz seus os sofrimentos dos outros"122. Régis Debray, que será confrontado com este género de experiências, afirmou
que "nos primeiros tempos da serra a vida não é mais que um combate diário, nos mais ínfimos pormenores - e, antes de mais, um combate do guerrilheiro consigo mesmo;
[...] muitos desistem, desertam"123.
Apesar de vir da universidade, foi a experiência do Che como calcorreador das serras de Córdova e a sua enorme força de vontade que lhe permitiram adaptar-se ao
universo agreste e duro da Sierra Maestra, que transformou no seu território. Exceptuando as crises de asma, aguenta melhor do que alguns camponeses que se deixam
abater, que acham que é demasiado duro, que desertam ou pedem que os deixem ir embora. Nesses casos, acontece-lhe sair da sua reserva e entrar numa grande fúria:
"Que se ponham a andar os medricas e os papa-açordas"124, berra ele a um pequeno grupo que vem apresentar desculpas esfarrapadas para voltar para trás. Sabe que
esses podem muito bem transformar-se em salteadores ou em denunciantes. Dá-lhes meia hora para abandonarem a arma e correr. Depois disso, serão alvejados. Quando
um deles, o "Chinês", Wong, desertou levando a espingarda, acto criminoso, o Che enviou dois combatentes no seu encalço, um dos quais, tendo confessado que não traria
o desertor, seu amigo, foi imediatamente executado pelo outro. Guevara manda desfilar os seus homens em fila indiana, num rigoroso silêncio, diante do cadáver do
jovem desertor, "um simples camponês [...]. Eram tempos difíceis. A sanção servia de exemplo"125. Uma

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vez, deixa-se comover por um soldado de Batista que se juntou a eles, declarando-se também rebelde, e que lhe conta "a história patética da doença da mãe". Rói-se
todo de raiva. Não só o tratante faz com que a guarda assassine os quatro homens que o escoltam, como também se empenha em denunciar todos os camponeses que apoiaram
a guerrilha. "São incontáveis as vítimas que este meu erro custou ao povo de Cuba"126, reconhece Guevara, mais autocrítico que nunca.
Um dia, um acidente provoca um verdadeiro motim. Lalo Sardiñas, capitão e "combatente de elite", ameaçando com o revólver um guerrilheiro indisciplinado, dispara
inadvertidamente um tiro, "quando a lei da guerrilha proibia expressamente a aplicação de um castigo corporal a um companheiro"127. Os amigos da vítima ficam indignados,
exigem a execução imediata do oficial, lançam as armas ao chão. A revolta é tal que o discurso de Guevara não surte qualquer efeito. Fidel é chamado e propõe que
se vote o castigo, sugestão insólita num exército, mesmo revolucionário, mas que é aceite. Os mal-intencionados dirão que deve ter sido o único referendo verdadeiramente
democrático consentido por Castro. O facto é que a votação não resolve o problema. Saindo da cabine de voto improvisada com um oleado esticado entre duas estacas,
os duzentos e quarenta e seis guerrilheiros depositam os seus quadradinhos de papel num capacete: há um empate. À luz dos archotes, o advogado Castro lança-se então
num discurso de uma hora em defesa de Sardinas e consegue uma segunda votação, renhida, que poupa a vida ao oficial. Mas logo na manhã seguinte, duas esquadras entregam
as suas armas e pedem para partir. Vão-se embora. Guevara recorda os conselhos de Castro para depurar, sempre depurar. O autor do delito é despromovido e transferido
para a coluna n.º 1, enquanto Camilo Cienfuegos, outra "figura lendária", vem dirigir a coluna n.º 4, sob o comando do Che. E voltam a partir...

Uma ilha dentro de outra ilha

"As condições da Sierra permitiam-nos agora viver livremente num território bastante extenso"128. De facto, desde Setembro de 1957 que o exército não se atreve a
penetrar em zonas que não consegue controlar, e a guerrilha ainda não é suficientemente forte para fazer incursões fora da área agreste, mas protectora, da Sierra.
Tirando partido deste equilíbrio relativo, o Che decide instalar um acampamento sedentário numa clareira do monte, o vale de El Hombrito, no alto das colinas húmidas.
Espeta no pico mais alto, como um desafio, uma enorme bandeira vermelha e negra do 26 de Julho, que pode ser avistada ao longe, quando o nevoeiro se dissipa. "Feliz
ano de 1958!", ironiza um cartaz dirigido às tropas de Batista. E começa logo a organizar "centros de produção", pois grupos de jovens camponeses vêm reforçar as
fileiras da sua coluna e é necessário garantir o equipamento e o sustento dessa População, mais ou menos abastecida por almocreves.

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Constrói um abarracamento sumário que será baptizado, com um certo exagero, de "hospital", bem como um forno de cozer pão, de terra batida, e uma série de pequenas
cabanas de troncos e folhas para se abrigarem do frio da noite e por vezes da geada branca da manhã, pois, mesmo nos trópicos, o termómetro pode descer aos zero
graus quando se sobe a mais de mil metros de altitude. Não chegam a ter tempo de se habituar a essa base precária, pois Fidel encarrega-os de uma nova missão. É
preciso limpar a zona de alguns meliantes que, fazendo passar-se por guerrilheiros, pilham e aterrorizam os camponeses - a revolta inicial contra a injustiça é,
sem dúvida, legítima, comenta Guevara, mas "eles acabam por se ocupar apenas das suas questiúnculas pessoais, sem se preocuparem em derrubar a ordem social"129.
Daí a necessidade de uma "mão de ferro" para acabar com esses "focos de anarquia". Guevara descreve sem floreados a execução de um chefe de quadrilha, o Chinês Chang,
ladrão e violador. Três outros membros da quadrilha são poupados - "Fidel achava que era preciso dar-lhes uma oportunidade"130 mas, como castigo, vendam-lhes os
olhos e submetem-nos a um simulacro de execução. "Quando, após os tiros para o ar, os três rapazes se viram bem vivos, um deles correu para mim e, num gesto espontâneo
de alegria e reconhecimento, deu-me um grande beijo repenicado, como se estivesse diante do pai"131. Bela cena de um Guevara perplexo, à qual assiste o jornalista
Andrew Saint Georges, de novo em reportagem, que será publicada na revista Look e ganhará um prémio.
Sedentarizando-se, Guevara priva-se daquilo que, até então, constituíra o melhor trunfo da guerrilha: a mobilidade, a capacidade de desaparecer em poucos instantes
ao menor sinal de perigo, esquivando-se ao inimigo e, se necessário, atacando-o pela retaguarda. Pensa que os homens de Batista não se atreverão a penetrar até ali.
Mas este ponto de vista, demasiado optimista, não tem em conta a obstinação de Sánchez Mosquera em liquidar os rebeldes, sobretudo esse maldito argentino incapturável,
que o provoca. No fim de Outubro, Guevara regressa a El Hombrito a fim de acabar a sua instalação. Pretende construir um acampamento modelo e inicia a montagem de
toda uma infra-estrutura: uma represa, que fornecerá energia eléctrica, uma oficina de armeiro, uma correaria, uma espécie de pocilgas e galinheiros; pensa já em
editar um jornal. Como a bandeira do M-26 é uma verdadeira provocação que desencadeia diariamente tiroteios e bombardeamentos aéreos e como os rebeldes não conseguem
abater nenhum avião, a zona enche-se de abrigos antiaéreos e, no solo, são montadas emboscadas em todas as vias de acesso. Em todas, excepto uma, mal guardada, por
onde penetra justamente a coluna do inimigo mortal do Che, levando à frente, para o caso de o caminho estar minado, quarenta camponeses a sacrificar. "O exército
passou seis das nossas emboscadas, mas nós não disparámos"132, declara Guevara. Na realidade, trata-se de ver quem cerca quem. Neste género de jogo, Guevara não
tem a seu favor nem a vantagem numérica nem a do armamento - as suas munições são insuficientes -, nem, sobretudo, a agilidade de movimentos habitual; ei-lo

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agora prisioneiro do ponto fixo que tem de defender. Assim que manda evacuar o acampamento, os seus homens, dispersos, são forçados a combater numa série de confrontos
mortíferos em torno da região chamada Mar Verde.
Dia 29 de Novembro de 1957: "A luta durou onze horas, de manhã à noite"133. Sob o fogo inimigo, Guevara vai buscar o seu jovem tenente de 26 anos, Joel Iglesias,
gravemente ferido, trazendo-o às costas. Mas não se consola da morte do seu outro tenente, Ciro Redondo, atingido com uma bala na cabeça. Quando lhe dão a notícia,
ele acusa o toque. Uma testemunha, Javier Millan, recorda: "Pensava que um homem como ele não chorava, mas naquele dia ele foi-se abaixo. Vi-o abatido, com a cabeça
entre as mãos, a chorar"134. No ano seguinte, o Che dará o nome de Ciro Redondo à coluna que o leva à vitória. Para já, rápido recuo estratégico para La Mesa, uma
povoação próxima mais recuada, e última batalha num cabeço da crista da Sierra, "os montes de Conrado", com o nome do camponês comunista que lá vive, membro do Partido
Socialista Popular. "Ele prestara-nos inúmeros serviços. A sua casa era isolada: local excelente para montar uma emboscada. Só se podia lá chegar por três caminhos
estreitos..."135.
É aí que, a 8 de Dezembro, apenas semiprotegido por um tronco de árvore que mal o oculta, Guevara é atingido no tornozelo esquerdo: "Tive uma sensação desagradável,
semelhante a uma queimadura"136. Arrastando consigo um dos seus homens, também ferido, consegue alcançar o seu grupo. "Vingámo-nos da derrota de El Hombrito, escreve
ele a Castro. [...] Lamento não ter seguido os teus conselhos, mas achei que a minha presença na linha da frente era necessária"137. Numa mesa da pequena escola
de La Mesa, "com uma navalha", o doutor Machado, futuro ministro da Saúde, extrai do tornozelo de Guevara uma bala de M-1, que o atingido usará algumas semanas pendurada
ao pescoço, como um adorno. "A partir desse momento, a minha cura foi rápida"138.
Em El Hombrito, os homens de Sánchez Mosquera pilharam e incendiaram à vontade, mas após a resistência de Mar Verde e as baixas sofridas, retiram-se por uns tempos,
levando os rebeldes a pensar que, a partir de agora, controlam um "território libertado". Guevara está furioso por não ter recebido armas da planície e comunica
a Castro que irá responsabilizar a direcção do movimento, "pois começo a desconfiar que a minha coluna ou, mais exactamente, a minha pessoa, está a ser vítima de
uma sabotagem"139. Se assim for, propõe que o substituam no comando. Esta questão do fornecimento de armas foi levantada vezes sem conta pelo próprio Castro que,
numa carta a Celia Sánchez, se queixou de, desde Agosto só dispor de armas e munições retiradas ao inimigo. Carlos Franqui, que cita esse documento, rectifica todavia:
"Das duzentas armas de que nessa época o exército da Sierra dispunha, mais de cem, entre as quais as metralhadoras, tinham sido enviadas pelo Movimento de Santiago
e de Havana"140. Essa contabilidade não é anedótica, pois assenta na capacidade de a Sierra se fazer ouvir pelos companheiros da planície.

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Guevara faz de a Mesa o seu novo quartel-general. Retoma, com melhoramentos, a pequena infra-estrutura planeada em El Hombrito. Instala-se tendo em vista uma guerra
prolongada e pede até aos camponeses que semeiem, para as suas tropas, legumes, feijão, milho, etc., prometendo-lhes a compra de toda a colheita. Combina com pessoal
da aldeia vizinha o transporte de víveres, munições e de certo material de equipamento. "Foi assim que começaram a surgir récuas de mulas, propriedade das forças
rebeldes"141. Dá livre curso à sua criatividade e instala uma minicentral eléctrica servindo prioritariamente um hospital "ao abrigo de olhares aéreos". Uma correaria
confecciona algumas cartucheiras grosseiras, conserta o calçado e chega mesmo a criar um modelo de boné de couro que faz dos seus homens objecto de troça da comunidade,
pois o modelo é muito parecido com o dos revisores dos autocarros de Cuba. Uma "fábrica" fornece também charutos "execráveis, mas que nos pareciam deliciosos, uma
vez que não havia outros"142. Mais do que num D. Quixote, com o qual ele próprio ironicamente se comparou, é antes numa espécie de Robinson Crusoe muito sui generis
que ele se transforma, criando uma ilha de produtividade no interior de uma Sierra Maestra libertada mas cercada, uma ilha dentro de outra ilha. Tenta produzir meios
de alimentação, de protecção, de moralizar os seus homens e os camponeses da zona. Na "oficina de armeiro", constrói, com o material disponível, uma arma original,
de uma eficácia relativa, a M-26, capaz de lançar garrafas incendiárias a partir de uma espingarda de cano serrado, colocada num tripé. A bem dizer, a engenhoca
não assustará os soldados de Batista. Pela primeira vez após o naufrágio do Granma e da incrível reconstituição de um pequeno exército de guerrilha em torno de Castro,
o Che pode respirar um pouco. Antes de mais, está vivo, proeza notável, pois esgotou sem dúvida as sete vidas de gato que declarara aos pais ter concedido a si próprio.
Lutando como um louco, correndo apesar da asma, habituou-se a uma sobrevivência permanente, como Boris Vian a tocar trompete, com a sua doença de coração. Cada crise
traz em si a ressurreição.
Temem-no, pois é um chefe exigente e rigoroso, mas respeitam-no, porque é justo e não atribui a si mesmo nenhum privilégio. À noite, à hora de deitar, vai dar uma
palavra aos seus homens, mas será por timidez, reserva, gosto pela solidão? não é muito falador, em nada corresponde ao estereótipo do argentino loquaz e fanfarrão.
E, como não procura cativar, inspira confiança. A sua franqueza brutal choca por vezes alguns interlocutores habituados a mais "psicologia", mas provoca a estima,
pois não esconde nenhuma maldade. Quando o vêem lutar contra a asfixia, proibindo, arisco, que o venham a ajudar, os seus companheiros chegam a sentir uma certa
ternura pelo comandante. O seu saco, é sabido, é o mais pesado de todos, porque está cheio de livros. Grande leitor, assim que pode, à luz da madrugada ou de uma
vela, perdendo por vezes horas de sono, mergulha na leitura, vício impenitente. A sua velha amiga Chana, uma camponesa que ele adora (e que o adora), não cabe em
si de espanto quando o vê mergulhado "nesses livros

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sem imagens, todos cheios de letras. [...] Quando ele pegava num livro", conta ela, "era como se tivesse "partido", silencioso, de rosto sereno, como se estivesse
noutro mundo"143. Por vezes, fala desses livros aos seus soldados, a Camilo, a Ramiro Valdés, aos camponeses de la Mesa; cita Victor Hugo, Rubén Darío, o poeta indiano
Tagore, o chileno Neruda... Desde o México que conseguiu conservar uma História da Filosofia, que empresta como um tesouro a um homem de confiança, Raimundo Pacheco.
A um companheiro que tem de ir à cidade, pede-lhe que lhe traga o Capital de Marx "porque começara a lê-lo e nunca pudera acabá-lo"144. Devora tudo o que lhe vem
parar à mão. Acevedo, com a curiosidade dos seus catorze anos, bisbilhota o seu saco: "Não era Mao, nem Estaline, mas Um Americano na Corte do Rei Artur. Eu nem
queria acreditar"145. Uma fotografia, sem dúvida tirada em La Mesa, mostra-o deitado numa cabana de casca de palmeira, tendo à sua volta todos os ingredientes da
felicidade: de um lado, um cachorrinho aninhado no seu braço, do outro um aparelho de rádio; um charuto entre os dentes; está mergulhado num grosso livro que tem
por título, ou por autor, Goethe.
Apesar das duras condições da guerrilha, mesmo durante as marchas extenuantes, nunca abandonou por completo a sua droga favorita, a infusão de mate: água a ferver
deitada sobre uma yerba argentina, obtida sabe-se lá como, que gosta de beber amarga, como sempre, em pequenos golinhos. Jogar xadrez é um prazer raro, pois precisa
simultaneamente de um tabuleiro, de um parceiro e de tempo, mas, sorvendo o seu mate, conversa às vezes sobre tango com o capelão fidelista, Guillermo Sardinas,
que veio trazer a boa esperança, com a bênção do seu bispo. O padre-soldado celebra a missa quando pode, mas baptiza a torto e a direito adultos e crianças (de que
Fidel será padrinho). De todos os tangos, Sardinas declara preferir o Adíos Muchachos. Malicioso e um tanto provocador, Guevara responde que aquele de que gosta
mais é o que diz: "Yo quiero morir comigo, / Sin confesion y sin Dios, / Crucificao en mis penas, / Como abrazao a un rencor..."*

Nota: * "Quero morrer só comigo / sem confissão e sem Deus, crucificado na minha dor, / como que abraçado a um rancor...".

"O meu nome histórico"

Guevara está atento aos pormenores da vida quotidiana, mas não esquece o tempo longo da história. Nos seus Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, faz o balanço
desse ano de 1957, que foi sem dúvida o mais duro da sua breve existência, mas também o mais rico em peripécias de toda a espécie. Desde que Celia Sánchez lhe espetou
a pequena estrela de comandante na boina, os acontecimentos políticos em Cuba foram numerosos. Por vezes só teve deles, com atraso, um eco abafado pelos combates
da Sierra, mas as suas conversas com Fidel deram-lhe uma perspectiva dos acontecimentos. Sabe que a 30 de

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Julho, quando "os esbirros da tirania" assassinaram, em plena rua, Frank País, toda a cidade de Santiago se sublevou, arrastando nesse movimento uma parte da ilha:
três dias de greve geral e uma forte repressão. Sabe que na serra Escambray, no centro do país, militantes do "26 de Julho" e do Directório Revolucionário Estudantil
começaram a atear alguns focos de resistência armada. Sabe que, em Setembro, a base naval do porto de Cienfuegos se amotinou, mas que os insurrectos não ousaram
criar um foco de guerrilha na serra e foram massacrados. Tirámos uma conclusão, diz Guevara: "é aquele que detém a força é quem dita a estratégia"146. A lição não
será esquecida. Sabe que Castro teve algumas preocupações quanto ao destino da sua própria luta. Se um golpe militar, sobretudo de inspiração democrática como o
de Cienfuegos, tivesse conseguido a liquidação de Batista, a própria guerrilha teria perdido a sua razão de ser.
Quanto ao Che, teve uma preocupação ainda maior em relação ao próprio Fidel, chefe admirado, amigo respeitado, mas que ele suspeita de cumplicidade no compromisso
demasiado moderado assinado em Novembro, em Miami, em nome da unidade, por sete organizações políticas da oposição, entre as quais o M-26. Esse "Pacto de Miami"
esvaziava da sua substância revolucionária o combate que eles travavam na sierra. "Pensei coisas que me envergonho de ter pensado"147, dirá ele. Mais tarde, traçando
um balanço, escreverá: "O meu único erro de alguma gravidade foi não ter tido mais confiança em ti desde os primeiros momentos da Sierra Maestra"148. Felizmente,
o que é um alívio, Castro que não foi consultado e que se indigna com isso, denuncia vivamente esse pacto "cozinhado" por dirigentes que faziam, no estrangeiro "uma
revolução imaginária", enquanto que os do M-26 fazem, em Cuba, "uma revolução real". Está fora de causa hipotecar uma futura vitória. E para que ninguém tenha ilusões
sobre as suas hipóteses de se instalar na presidência provisória após a queda de Batista pois era disso que se tratava também em Miami, ele anuncia que o seu candidato
é "o digno magistrado do tribunal de Oriente, o Dr. Manuel Urrutia [...], que não pertence a nenhum grupo político"149. Figura honesta mas sem envergadura, um tanto
anticomunista; exactamente o que convém.
Guevara dá pouca importância a estas manobras políticas, para não dizer politiqueiras. Nunca terá muito jeito para esse tipo de jogos; é demasiado intransigente,
demasiado rígido nos princípios. Para ele, o combate em que se empenhou ultrapassa o quadro único de Cuba, é o de todo um continente. É necessário chamar as coisas
pelos nomes. "Infelizmente, teremos de enfrentar o Tio Sam demasiado cedo"150, escreve ele a Castro a 15 de Dezembro de
1957. Mais ou menos nessa data, enquanto está imobilizado pela ferida que cicatriza, envia um correio a René Ramos Latour que, em Santiago, substitui Frank País.
Acusa-o de direitismo. A sua carta é violenta mais tarde considerá-la-á "bastante idiota". Nela, declara sem rodeios: "Pela minha formação ideológica, sou daqueles
que acreditam que a solução para os problemas deste mundo está atrás daquilo a que chamam a cortina de ferro"151. Antes, em Abril de 1956, dirigindo-se à mãe, autocaricaturava-se
"escravo total da

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peste vermelha"152. Desta vez, o discípulo de "São Karl Marx" (San Carlos) já não brinca. Não é comunista, mas é convictamente marxista. Explicita, bruscamente,
pondo de parte toda a ironia: "Encaro este movimento (o 26 de Julho) como um daqueles provocado pelo desejo da burguesia de se libertar das cadeias do imperialismo.
[...] Foi nessa óptica que entrei na luta: honrosamente, sem esperar ir mais longe do que a libertação do país, disposto a sair quando as condições da luta forçaram
uma viagem à direita (no sentido do que vocês representam) em toda a acção do Movimento"153.
Se há algum génio na história, como diz Régis Debray, quando ela concede a seres excepcionais circunstâncias excepcionais, então ela parece ter revelado algum na
Sierra Maestra, pondo a combater lado a lado Castro e Guevara. A admiração do Che por Fidel é grande e sincera. Não é cega. Guevara encontrou Castro antes de o clã
se transformar em serralho e de o Líder máximo se tornar um "intocável". O Che manteve a sua liberdade de expressão; durante o seu convívio com Castro, será a sua
má consciência de esquerda, mesmo quando, por seu turno, lhe suceder ter de se sacrificar ao culto: "Sempre considerei Fidel como um autêntico líder da burguesia
de esquerda, embora a sua imagem seja realçada por qualidades pessoais extremamente brilhantes, que o colocam acima da sua classe", diz ele nessa mesma carta. E
conclui, regressando à "traição" que o Pacto de Miami representa: "É por isso que o meu nome histórico (aquele que eu tenho de construir, pela minha conduta) não
pode ser associado, perante a história, a esse crime, e nisto não cedo"154. Espantosa observação esta, de um rapaz de vinte e nove anos, mergulhado ainda na floresta
densa da Sierra e que já antevê o "nome histórico" que deve legar à posteridade. Não liga à resposta, lúcida mas convencional de René Ramos Latour que, recusando-se
a debater o lugar "onde se encontra a salvação do mundo", lhe responde: "Os da tua tendência ideológica pensam que a solução dos nossos males está em libertarmo-nos
do domínio nefasto dos ianques para nos colocarmos sob o domínio, não menos nefasto, dos soviéticos"155.
A questão do carácter comunista da revolução iniciada na Sierra Maestra é uma daquelas que não deixará de ser levantada pelos Estados Unidos, pela imprensa, por
diferentes correntes da oposição a Batista, incluindo o próprio M-26. Fidel Castro evitará dar-lhe uma resposta clara, e os sinais que fornecerá serão contraditórios.
É provável que, na Sierra, não fosse absolutamente nada comunista, nem sequer marxista. Mais tarde referir-se-á ao seu "analfabetismo político" nessa época. K. S.
Karol, jornalista extremamente bem informado sobre as questões do comunismo, descobriu uma pérola no Sierra Maestra de Junho de 1958, o órgão oficial do M-26 de
Miami. Lê-se aí que Castro não pode ser comunista porque "é oriundo de uma família de proprietários [...] e traz ao peito uma medalha com a Virgem do Cobre"156.
Requintada explicação. Apesar desta desvantagem, Castro também não é anticomunista. Tem junto de si dois bons apóstolos o seu irmão Raul e o seu caro amigo Ernesto,
o argentino que não escondem as suas simpatias marxistas. Fidel escuta-os, mas não tem em conta as suas propostas, pelo menos por

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enquanto. Está sobretudo preocupado em não afrontar nesse momento nenhuma das forças que podem ajudar a derrubar o ditador e a criar a era pós-Batista. Se fosse
necessário defini-lo, responde Guevara a um jornalista, poderíamos dizer que Fidel é "nacional-revolucionário"157.
Em todo o caso, nem a CIA, nem o FBI, nem as informações fornecidas pelos seus diplomatas em Cuba permitem a Washington afirmar que Castro é comunista. Um novo embaixador,
Earl Smith, chega em Julho de 1957; mantém uma certa distância em relação a Batista e presta mais atenção ao que se passa nessa turbulenta região de Oriente. Na
manhã do assassínio de Frank País, dirige-se pessoalmente a Santiago e ergue um protesto contra o "abuso da força" por parte da polícia que reprime a torto e direito
uma manifestação de duzentas mulheres vestidas de negro, gritando "Libertad, libertad!". Mais tarde, tudo fará para que três dirigentes do M-26 presos em Santiago,
entre eles Armando Mart não sejam mortos. Tad Szulc garante mesmo que um agente da CIA, Robert Wiecha, agindo sob a capa de vice-cônsul dos Estados Unidos em Santiago,
financiou o M-26 em cinquenta mil dólares, em várias prestações, a partir de Outubro de 1957. Mas as coisas ficaram por aí. Os Estados Unidos não aproveitaram a
ocasião de estabelecer o diálogo com um Fidel Castro que afirma não existir antiamericanismo no exército rebelde. Mantêm os seus fornecimentos de armas a Batista.
Quanto ao Partido Socialista Popular, nome eufemístico adoptado pelo Partido Comunista Cubano, só deixará de considerar os guerrilheiros como aventureiros em finais
de 1957 quando, em grande segredo, um emissário. Ursinio Rojas, virá informar Castro que o seu partido autoriza alguns dos seus membros a integrarem-se, a título
individual, no exército rebelde.
O que preocupa Guevara nesse ano é a mudança de atitude do campesinato em relação à guerrilha. Notou que os guajiros passaram de uma solidariedade espontânea, inicial,
a uma certa frieza, devido ao temor das represálias brutais do exército de Batista casas incendiadas, assassínios em massa. (Os próprios guerrilheiros compreenderam
então que o medo levara alguns à delação). Mas logo que a relação de forças se inverteu e as forças armadas foram obrigadas a abrandar a sua pressão, os guajiros
venceram o seu receio e começaram a juntar-se aos rebeldes. Fornecem-lhes víveres, garantem as ligações em tempos recordes, dão o alarme assim que há perigo, oferecem
uma mão-de-obra gratuita para a construção de cabanas e armazéns e acabam por aprender a disparar, como verdadeiros soldados do povo. E, melhor do que tudo, recuperam
a sua alegria natural.
Assim, à medida que a guerrilha de extracção citadina se tornava camponesa, os camponeses tornavam-se guerrilheiros. Esta dialéctica elementar é importante, pois
a partir daí, Guevara, com tendência para teorizar, vai estabelecer uma evidência ignorada pelo dogma marxista nascido no contexto da Europa industrializada, isto
é, que na América Latina e no Terceiro Mundo em geral o verdadeiro motor da história não é o proletariado urbano, mas sim o pequeno campesinato pobre. Os verdadeiros
condenados da terra são os que

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passam a vida, vergados sob o peso de mil servidões, nessa terra que trabalham com os seus braços mas que não lhes pertence.
Logo a seguir à vitória de 1959, numa série de artigos e entrevistas, e posteriormente na sua Guerra de Guerrilha, Guevara não deixará de sublinhar o carácter prometeico
da experiência cubana e da lição original que dela se pode extrair. Distingue três princípios gerais que vão "fazer mossa", inspirando muitos movimentos na América
Latina: 1) "As forças populares podem ganhar uma guerra contra o exército regular" (lição de optimismo, confirmada pela história recente); 2) "Nem sempre é necessário
aguardar que estejam reunidas todas as condições para fazer a revolução; o foco revolucionário fá-las surgir". (Não confundir rapidez com precipitação, mas não esperar
indefinidamente um dia D improvável: eis um escolho complicado no universo dos comunistas e daqueles "revolucionários que justificam a sua inacção" condenando aqueles
que consideram demasiado impacientes);
3) finalmente, uma vez que o verdadeiro proletariado do Terceiro Mundo é, antes de mais, de origem rural, "na América sub-desenvolvida, o terreno fundamental da
luta armada deve ser o campo"158. Percebe-se melhor, depois desta análise, porque é que, na Sierra, as primeiras medidas revolucionárias incidiram na reforma agrária.

Revolucionários na Revolução

O nevoeiro intenso amortece o ruído das detonações, mas distingue-se, amortecido, o crepitar das metralhadoras e os tiros. Há no ar um cheiro a pólvora, apesar da
humidade. O frio gela o suor na testa dos caminhantes. No alto da Sierra, na madrugada de 17 de Fevereiro de 1958, obedecendo ao guia que, de súbito, ordena que
ninguém se mexa, Carlos Maria Gutiérrez, jornalista uruguaio, imobiliza-se. Fez uma longa viagem para vir entrevistar esse argentino pouco conhecido, cuja acção
nefasta, ao lado do perigoso Fidel Castro é denunciada pelos jornais cubanos. Agacha-se, a tremer, de costas apoiadas a um tronco de árvore enegrecido pelo napalm.
Passado um bocado, na claridade difusa da vegetação interior da mata, surgem vultos que se aproximam no meio dos fetos e das ramadas. São os guerrilheiros da coluna
do Che que, num lento desfile, sobem para o acampamento de La Mesa, através de caminhos que bifurcam. Há mais de trinta horas que esses homens não dormem, explicam-lhe.
Acabam de travar, tal como há cinco meses, um segundo combate, sangrento, contra a guarnição de Pino del Agua. Fidel Castro quis aproveitar a suspensão (provisória)
da censura na ilha (com excepção de Oriente, considerado "zona de guerra") para recordar a Batista e à imprensa cubana que continua presente e activo na Sierra Maestro.
Reuniu o conjunto das suas forças, cerca de duzentos homens armados, nessa altura. Ele próprio conduziu as operações, muito excitado com essa batalha a ponto de,
desta vez, ser Guevara, juntamente com Raul, Celia, Almeida e uns quarenta homens, a pedir-lhe que não se exponha assim, na linha da frente.

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Na véspera, de madrugada, Camilo Cienfuegos, encarregado de dar início ao ataque, teve de chegar perto da caserna. Demasiado perto. O seu tiro foi mortífero, mas
ficou ferido na perna e no ventre. Ei-lo que surge, içado, numa maca improvisada; faz uma careta, mas aceita, à passagem, o cigarro aceso que o jornalista lhe oferece.
Os rebeldes sobem em silêncio as colinas escarpadas, derrapando por vezes na lama avermelhada, escorregadia, como que embrutecidos pelo cansaço e por uma tensão
nervosa que se vai apaziguando. De cabeça descoberta, apenas reconhecidos pelos uniformes amarelados, soldados prisioneiros transportam outros feridos em maca. Duas
mulheres, de espingarda a tiracolo, vigiam o estado dos feridos. A guerrilha de Castro também inclui mulheres, poucas, mas que combateram com bravura e não ficaram
sempre acantonadas em actividades de intendência.
Quando o Che chega ao seu acampamento de La Mesa, o jornalista já lá estava há um dia. Tinha sido guiado através de atalhos. O uruguaio teve ocasião de admirar o
sítio, enquadrado por dois maciços cobertos de florestas, bem como as instalações ocultas sob as árvores, invisíveis até para o olhar penetrante do pequeno avião-espia
que voa baixo para indicar aos bombardeiros que o seguem os alvos onde largar o napalm. Mostraram-lhe o "hospital" onde, entretanto, extraíram a bala do ventre de
Camilo, a escola onde três professoras alfabetizam os camponeses guerrilheiros e até alguns prisioneiros. Indicaram-lhe, discretamente instalada num cume, a estação
Rádio Rebelde, levada até lá, peça por peça, no dorso de mulas, cujo raio de alcance é ainda fraco. Reparou que havia um gerânio plantado diante do bohio do Che.
Tudo isso vem descrito num artigo que ele só publicará dez anos mais tarde, em Dezembro de 1967, no semanário Marcha de Montevideu. Quando o vê chegar à Mesa, à
frente de uma parte da sua coluna, Gutiérrez descreve Guevara deste modo: "Caminhava junto da sua mula e trazia às costas um saco pesado, uma espingarda com mira
telescópica e cartucheira, de onde pendiam duas granadas. Estava muito magro e uma barba rala enquadrava um rosto que era quase o de um garoto. No seu boné de pala
brilhava uma estrela dourada sobre uma pequena meia-lua. Era o único que tinha polainas sobre as botas de montanha. Os bolsos da sua camisa verde-azeitona estavam
cheios de papéis, blocos e canetas. Trazia uma pistola 45 à cintura. Os bolsos laterais das calças abarrotavam como alforges, e estavam deformados pelo peso das
balas e dos livros. Parou à sombra de um loureiro e perguntou, numa voz rouca e baixa, fatigada: "Que tal vai isso, Camilo?... O Fidel já chegou?" E, tirando do
saco o termos e a yerba, começou a preparar um mate. Uma rapariga veio trazer-lhe água quente"159. A cena é bíblica: Macabeu regressando do combate contra Antíoco.
Guevara mostra ao jornalista o objecto da sua principal atenção, uma escola militar para os jovens recrutas que chegam da Sierra, de Manzanillo, de Havana, camponeses,
estudantes, empregados de comércio. É um antigo oficial de Batista, convertido à revolução, o capitão Lafferté, que se ocupa da instrução desses jovens. Têm fé.
Falta-lhes experiência e armas que a planície ainda não enviou. "Falta muito para chegarem?", pergunta um deles. "Se

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estás com pressa, vai tirar a Garand a um casquito", responde-lhe Guevara, trocista. A sua brusquidão irónica não choca. Já conhecem o estilo do argentino. Os rapazes
sorriem, seguem-no com o olhar, numa espécie de admiração um pouco fascinada. A lenda começou na Sierra.
Diante do seu quase-compatriota (porque os uruguaios, do outro lado do Rio da Prata, são como irmãos mais novos dos argentinos) é estranho que Guevara não tenha
feito referência ao "boletim" que publicava nessa época. Eram algumas folhas mal impressas, mais próximas do folheto do que da gazeta paroquial, que contudo se proclamam
"órgão do exército revolucionário, de novo na manigua redentora", e estão datadas, com toda a simplicidade, da "nova era". O título El Cubano Libre é uma homenagem
ao jornal com o mesmo nome dos separatistas mambis do século XIX, em luta contra a Espanha. Distribuído (em pequena tiragem) sobretudo na Sierra Maestra, o boletim
de Guevara não teve mais do que uma dezena de números, de Dezembro de 1957 até meados de 1958. Não é o Tackle, o pequeno jornal de ráguebi dos seus vinte anos, em
Buenos Aires. É, com os meios disponíveis, um contributo para a guerra psicológica para desmoralizar o adversário e encorajar os camponeses. Guevara assina aí uma
espécie de editorial político, sob um nome que manterá mais tarde e que exprime bem a sua situação: "o franco-atirador". Numa escala mil vezes mais modesta do que
Castro, que explica à revista Coronet de Nova Iorque que foi obrigado a tomar a "terrível decisão" de mandar incendiar a colheita de cana de açúcar para forçar Batista
a "capitular", Guevara sublinha, em letras maiúsculas: "Com Batista, não há zafra!"160 É interessante notar que, dez anos antes de Debray levantar a questão "Révolution
dans la révolution?", o Che diagnostica: "Tornámo-nos revolucionários no interior da revolução [...] Viemos derrubar um tirano, mas descobrimos que é a imensa região
rural [...] que necessita urgentemente de uma libertação"161.
Mas para derrubar o tirano e libertar os camponeses é preciso sair da Sierra Maestra, ganhar terreno fora da cidadela montanhosa de Oriente. Em Março de
1958, Castro abre uma "segunda frente", na serra Cristal, cujo comando entrega ao seu irmão Raul, à frente de uma coluna de sessenta e cinco homens. Juan Almeida
é encarregado de uma "terceira frente" a noroeste de Santiago e, em Abril, Camilo Cienfuegos começa a aventurar-se na planície, em direcção a Bayamo. Simultaneamente,
multiplicam-se acções contra Batista por todo o país. A 15 de Março, por exemplo, há a "noite das cem bombas" em Havana, mas o "golpe" mais espectacular, de repercussão
mundial, é o do rapto do campeão de automobilismo, o argentino Juan Manuel Fangio. Raptado a 23 de Fevereiro de 1958, no hotel Lincoln, no centro da capital, reconhecerá
ter sido muito bem tratado pelos militantes do M-26, que só o libertam no dia a seguir à competição, depois de lhe terem pedido alguns autógrafos. O caso dá que
falar na imprensa internacional. Muitos são os que só nessa ocasião descobrem a existência do movimento de revolta contra o regime de Batista. Regime esse que sai
bastante ridicularizado.
Faustino Pérez que, enquanto dirigente do M-26 em Havana, congeminou a operação, "sobe" à Sierra para convencer Fidel que estão reunidas as

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condições para desencadear com sucesso uma greve geral que poderia dar o golpe de misericórdia na ditadura. Guevara e Raul mostram-se cépticos. Temem que o llano,
a planície, tire as castanhas do lume e que a revolução escape ao M-26. Fidel está menos reticente. Assina um Manifesto de 22 pontos, intitulado Guerra Total à Tirania,
que proclama que "a luta contra Batista entra na sua fase final" e que "a estratégia consiste numa greve geral revolucionária apoiada por uma acção militar". O perigo
que ele quer a todo o custo evitar é que se estabeleça um entendimento entre oposição civil e militares liberais, que o afastaria da corrida.
A greve geral é desencandeada a 9 de Abril de 1958. Constitui um trágico fiasco. Faustino Pérez e os seus companheiros da direcção acumulam erros sobre erros. Em
vez de sensibilizarem os ânimos, de mobilizarem todas as forças da oposição, em vez de anunciarem por toda a parte essa próxima greve geral, mesmo sem indicarem
a data exacta, esperam pelas onze horas da manhã para transmitir a ordem de greve imediata pela rádio, numa altura em que só as donas de casa têm o aparelho ligado.
A surpresa é geral. As escassas manifestações de apoio à greve são sangrentamente reprimidas: cento e cinquenta a duzentos mortos, um massacre; centenas de prisões.
Do alto da Sierra, a rádio rebelde clamava: "Greve, greve, greve!". Por muito que, no dia seguinte de manhã, Fidel anuncie: "Cuba inteira está ao rubro", o fracasso
da greve é total. Fidel está fulo de raiva: "Não passo de um merdas, que não pode decidir nada". Mas enfrenta a situação: "Sou visto como o chefe deste movimento,
portanto [...] devo assumir a responsabilidade das asneiras cometidas pelos outros"162. Com a sua prodigiosa capacidade de recuperação, vai mesmo tirar partido desse
recuo para resolver de uma vez por todas o velho conflito entre a planície e a serra, grosseiramente definidas como a direita e a esquerda do Movimento do 26 de
Julho. A Celia Sánchez declara, como de Gaulle: "Perdemos uma batalha, mas não perdemos a guerra"163, e convoca à Sierra Maestra todo o estado-maior do M-26 para
um grande momento de verdade, a 3 de Maio de 1958.
Guevara não faz parte da Direcção Nacional do Movimento (e Raul também não) mas as suas críticas a Faustino Pérez em Havana e a René Latour em Santiago foram tão
incisivas que o argentino participa na reunião para se justificar. Fi-lo, pela primeira vez, admitido no círculo dos principais responsáveis da revolução cubana.
Ao cabo de vinte horas de "intensa discussão", o Che aplaude, como se imagina, o resultado daquilo que ele qualifica como "reunião decisiva"; prioridade absoluta
à acção militar directa, reforço da autoridade de Fidel, que passa a ser simultaneamente secretário-geral do Movimento e comandante supremo das forças armadas, incluindo
as milícias urbanas, até então controladas pelo llano. Faustino Pérez e Latour são destituídos e levados para a Sierra. Haydée Santamaría ("veterana" de Moncada)
é enviada aos Estados Unidos para vigiar de perto e coordenar a recolha de fundos junto da colónia cubana e o jornalista Carlos Franqui é chamado do seu posto de
delegado do M-26 em Miami para vir ocupar-se da Radio Rebelde. A 29 de Maio, aterra num campo lavrado, semi-aplanado entre duas colinas. E descarrega

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trinta espingardas, balas, rastilhos eléctricos para as bombas enquanto o aparelho volta a descolar. Díaz Lanz, o audacioso piloto, já executou uma proeza análoga
poucos dias antes, trazendo da Costa Rica armas e munições cedidas pelo presidente da Costa Rica, o social-democrata José Figueres, graças aos bons ofícios de um
fazendeiro cubano, Huber Matos que, como recompensa, conseguirá que Castro lhe confie o comando de uma coluna.
O fracasso da greve de 9 de Abril tem duas consequências de importância diferente; por um lado, uma nova relação entre o M-26 e o PSP comunista e, por outro lado,
a decisão de Batista de acabar com a rebelião. Como já referimos, o M-26 nunca morreu de amores pelos comunistas. Até Guevara, apesar das suas simpatias marxistas
declaradas, lhes censura as suas desconfianças em relação à guerrilha e ao papel de Castro no combate revolucionário: "Vocês são capazes de criar quadros que se
deixam martirizar no fundo de uma masmorra sem abrir a boca, mas são incapazes de formar quadros que tomem de assalto um ninho de metralhadoras"164, diz-lhes ele.
Quanto a Castro, nota, muito pragmaticamente, que os comunistas dispõem daquilo que falta ainda aos partidários do M-26: uma experiência dos movimentos de massa,
uma disciplina perfeita, um real talento organizativo. Se alguém os convencer a fazer qualquer coisa, pode contar-se com eles. São bastante mais fiáveis do que muitos
militantes, mesmo os mais devotados, do seu próprio movimento. Por isso criticou os organizadores da greve de Abril por não terem incluído os comunistas. É certo
que sabe que existe um perigo: quem controlará quem. Mas, neste tipo de jogada, Castro é perito. Confia nos seus talentos de jogador. Em todo o caso, o PSP toma
nota destas boas intenções. Aguardará ainda, por prudência, que o comboio ganhe alguma velocidade mas, quando decidir saltar para a carruagem em andamento, enviará
um dos seus melhores dirigentes Carlos Rafael Rodríguez para junto de Fidel Castro.

A pulga e o martelo-pilão

Batista, um tanto eufórico, convencido de que os rebeldes estão enfraquecidos e desmoralizados pelo falhanço da sua greve e pela repressão severa que se seguiu,
pensa ser chegado o momento de organizar uma ofensiva a grande escala, denominada "FF" (Fim de Fidel). Recorre a meios de vulto: nada menos do que dez mil homens
repartidos por catorze batalhões, apoiados por artilharia, aviões, alguns helicópteros e fragatas da marinha prontos a metralhar a costa de alto a baixo. Uma espécie
de Apocalypse Now. A estratégia é simples: cercar a Sierra e apertar o cerco, cada vez mais, até ao aniquilamento ou à rendição dos insurrectos. Dez mil homens contra
duzentos e oitenta guerrilheiros mal equipados: um martelo-pilão para esmagar uma pulga. É a pulga que sairá vencedora.
Os rebeldes têm muito poucas armas, "apenas duzentas espingardas em bom estado"165, garante Guevara, mas dispõem de alguns trunfos que faltam

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aos soldados de Batista: têm fé, uma fé de mártires, têm mobilidade e um perfeito domínio do terreno acidentado da Sierra; conhecem cada caminho, cada casa, cada
colina. Podem andar depressa e durante muito tempo, trepar, correr, galgar um desfiladeiro. Conhecem os atalhos, os abrigos, as curvas propícias às emboscadas. Movem-se,
segundo a expressão de Mao Tse Tung, "como peixes na água". Castro aplica o princípio elementar de toda a guerrilha: "ataca e foge". À imprensa venezuelana que o
interroga, declara: "Cada acesso à Sierra Maestra é como que o desfiladeiro das Termópilas, cada vale é uma armadilha mortal"166. Quando, a 25 de Maio de 1958, começa
a grande ofensiva das forças governamentais, Fidel estabelecera há pouco, seguindo o modelo de Guevara, um quartel-general perto de La Plata, num maciço rochoso
próximo do pico Turquino, à beira de uma ravina inacessível. Também aí, todas as instalações estão tão bem camufladas sob as árvores que se tornam indetectáveis.
A Radio Rebelde merece, mais que nunca, o seu nome. Dotada de emissores muito potentes que permitem fazer-se ouvir em Caracas, no México, em Miami e, por maioria
de razão, no território cubano, combate com talento e censura imposta por um "estado de emergência" constantemente prorrogado. Carlos Franqui faz prodígios. O seu
jornal Revolución substitui o pequeno boletim de guerra. Além disso, uma pequena rede telefónica, sumária mas eficaz, permite que as várias colunas coordenem a sua
acção sem estarem dependentes dos mensageiros, até aí tão preciosos.
Sob a pressão dos parlamentares democratas, Washinton começou, em princípio, a fazer um embargo ao envio de armas a Batista. Este último já não é muito recomendável,
semeando o país de "subversivos" enforcados nas árvores, com o corpo lacerado por mil torturas. O efeito da imprensa estrangeira é deplorável. A 14 de Março de 1958,
um lote de duas mil espingardas Garand, destinado ao exército cubano, fica no cais, nos Estados Unidos. Mas Castro, que vinha reclamando essa medida há mais de um
ano, desde a sua primeira entrevista a Matthews, não tem muitas ilusões. Sabe que as armas para apoiar "a tirania" transitam e pela República Dominicana Nicarágua,
onde imperam, com a bênção do Departamento de Estado, as ditaduras de Trujillo e de Somoza. A base norte-americana de Guantánamo, enclave vergonhoso concedido aos
ianques, presta, aliás, o seu apoio logístico às forças aéreas de Batista, que aí vêm abastecer-se de combustível e mísseis. Castro fartou-se de repetir que não
nutria qualquer animosidade especial contra o povo dos Estados Unidos e ainda não utiliza, como Guevara, a expressão "imperialistas" para designar os gringos. Mas
sente, em relação ao poderoso vizinho, uma repulsa semelhante ao dos manifestantes que, na mesma altura, escarnecem o vice-presidente Nixon, enviado por Eisenhower
em "visita de amizade" à América latina. Duas semanas após a ofensiva FF, o bombardeamento da casa de um camponês que os apoiou põe Castro fora de si. Envia a Celia
Sánchez uma carta, datada de 5 de Junho de 1958, da qual um extracto será fixado em Havana, em 1967, por ocasião da conferência da Organização Latino-Americana de
Solidariedade (OLAS):

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"Ao ver os mísseis a cair sobre a casa de Mario, jurei a mim próprio que os americanos pagariam bem caro o que estão a fazer. Quando esta guerra acabar, começará
para mim uma guerra mais longa e mais violenta, a que eu moverei contra eles. Vejo que será esse o meu verdadeiro destino"167. Parece que estamos a ouvir Guevara.
A campanha de Batista para sitiar a Sierra Maestra vai durar dois meses e meio. Setenta e seis dias de combates diários, durante os quais o general Cantillo, chefe
das operações, pensa várias vezes ter alcançado a vitória, enquanto que esta lhe escapa; nunca conseguirá dar o golpe decisivo num adversário omnipresente e que,
contudo, não se deixa agarrar. É certo que, inicialmente, Castro cede terreno, refugiando-se no alto da serra, obrigando as forças armadas a penetrar na montanha,
para melhor as atacar. Em torno do seu QG de La Plata reuniram-se, vigiando os caminhos, todas as pequenas colunas, as de Che, de Camilo, de Almeida, várias outras
recentemente formadas, reforçadas pelos novos recrutas da escola militar de Guevara, chamados pelas circunstâncias a "trabalhos práticos" imediatos. Só a coluna
de Raul permaneceu na serra Cristal, de forma a desviar para leste uma parte das tropas governamentais. Tad Szulc estima em trezentos e vinte e um o número total
dos combatentes rebeldes. Guevara voltou a mudar, em poucas horas, o seu acampamento de La Mesa. As munições são tão escassas que a recomendação é tentar acertar
no alvo em cada disparo.
Lembrar-se-á o nosso argentino, a 14 de Junho, que faz anos nesse dia? Tem mais com que se preocupar. A batalha está no auge. O "território libertado" da guerrilha
foi encolhendo para um perímetro de apenas trinta quilómetros. Um batalhão da guarda acaba de chegar e sobe para o ataque, em duas colunas paralelas. A 19 de Junho,
Castro escreve ao seu lugar-tenente argentino: "A situação é extremamente perigosa [...] Só tenho aqui a minha espingarda para opor resistência. Necessito urgentemente
dos homens que te pedi para salvar a zona de La Plata"168. No dia seguinte, o Che quase cai ele próprio nas mãos da guarda. Aproxima-se, solitário, montado na sua
mula, da povoação de Las Vegas, ignorando que os homens de Batista acabaram de a tomar. É o comandante Sori-Marín (jurista, futuro redactor da reforma agrária) que,
dobrando-se, o avisa e lhe evita a armadilha. Carlos Franqui confirma que, a 28 de Junho, no posto de comando de La Plata, para além da equipa da Radio Rebelde,
só está Fidel e a sua sombra, Celia Sánchez, e que, do seu promontório, podem observar e contar através dos binóculos os soldados inimigos, de tal forma eles estão
próximos.
"No pasaran!" ("Não passarão!") era a palavra de ordem para impedir a guarda de atravessar o último rio, o de Santo Domingo, que dá acesso ao QG de Castro. "No pasaron!"
("Não passaram"). O combate renhido de cerca de quarenta guerrilheiros dispostos a tudo, espalhados no alto de uma colina,consegue derrotar tropas em número seis
ou sete vezes superior. Lalo Sardiñas distinguiu-se aí com brio; era aquele oficial impulsivo, que fora julgado, e cuja vida Fidel Castro salvara in extremis. A
táctica dos rebeldes é a

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mesma de sempre: não dar descanso ao inimigo, fazer fogo a toda a hora, não poupar os soldados desmoralizados, cansá-los, privá-los de abastecimento, se possível,
interceptando o envio de mantimentos. Apesar da amplitude dos meios utilizados pelos assaltantes, apesar da dureza dos combates, esta guerra é ainda, se assim se
pode dizer, de tipo "arcaico". O relevo escarpado da Sierra impõe operações na escala reduzida, que permitem a Castro utilizar uma arma que ele maneja habilmente,
a intoxicação verbal, servindo-se apenas da voz humana. Tal como na Idade Média, há interpelações de parte a parte. Troça-se de quem foge, de quem perde a arma;
há insultos mútuos, numa linguagem pitoresca que põe em causa, evidentemente, a virtude da mãe do adversário. Por vezes as posições geográficas dos dois campos estão
tão próximas que Castro manda instalar altifalantes que gritam exortações revolucionárias, cantos patrióticos, o hino nacional, todo um arsenal psicológico destinado
a enfraquecer o desejo de luta dos casquitos. "Discursos bem preparados e palavras de ordem bem escolhidas"169, recomenda Fidel a Guevara.
Não é, evidentemente, uma guerra de punhos de renda, mas Castro não desdenha travar também um combate epistolar com o inimigo. O que não agrada muito a Guevara,
avesso a esses artificialismos. Quando o general Cantillo pede a Castro que se renda, garantindo que lhe poupará a vida, este responde, como um cavalheiro, que isso
está fora de causa, mas observa, nessa carta, que é contra a ditadura que se bate e não contra as forças armadas. Em Julho, descobre que é um dos seus antigos condiscípulos
da Faculdade de Direito de Havana, José Quevedo, que comanda um batalhão encarregado da mesma "missão impossível", tal como os anteriores: desalojá-lo da sua cidadela.
Encurralado na ratoeira da Sierra, Quevedo resistirá quinze dias antes de capitular (e de se juntar aos rebeldes). É provável que para a sua decisão, tenham pesado
os cantos de sereia de Castro, garantindo-lhe que a sua rendição seria feita com honra e dignidade. Entretanto, que fazer dos prisioneiros? Franqui sugere que se
recorra, através da Radio Rebelde, à Cruz Vermelha Internacional. Castro aprova, tanto mais que vê nisso um meio de tornar público o fracasso da ofensiva de Batista.
Franqui e Faustino Pérez conduzem os prisioneiros ao seu destino, e é Guevara, de cachimbo entre os dentes, que é encarregado de velar pelo bom andamento da operação.
A opinião internacional, sobretudo nos Estados Unidos, fora sobressaltada em finais de Junho por uma manobra um tanto desesperada levada a cabo por Raul Castro na
"segunda frente" da serra Cristal. Vendo-se cercado, metralhado implacavelmente pelos aviões que o detectaram, Raul Castro tomou a iniciativa um tanto tresloucada
de raptar quarenta e nove cidadãos norte-americanos, engenheiros que trabalhavam na construção de uma fábrica de tratamento de níquel, marines que regressavam à
base de Guantánamo, após uma licença em território cubano. Alvoroço na embaixada dos Estados Unidos, que envia o seu cônsul-geral a Santiago para negociar com os
rebeldes. Raul prova, com fotografias, que apesar do pretenso embargo, os

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aviões de Batista são abastecidos com bombas e combustível na base naval americana. Obteve documentos irrefutáveis graças a um amigo do M-26, um sargento, empregado
na embaixada de Cuba em Washington. A chantagem resulta e os Estados Unidos instam de imediato Batista que obedece - a suspender os bombardeamentos até à libertação
total dos reféns. O que Raul Castro vai fazendo, lentamente, até receber as munições esperadas e recuperar o fôlego, explicará a sua companheira Vilma Espín. Os
prisioneiros americanos não guardarão ressentimento contra os seus raptores por essa aventura tão "excitante", na qual não terão sido mal tratados. Alguns partirão
até convencidos da justeza da causa desses rebeldes. Contudo, é já de assinalar a utilização pertinente da informação por parte daquele que virá a ser o grande mestre
das questões de espionagem, de segurança e dos serviços secretos. Nessa época, Raul Castro, marxista tão confesso quanto Guevara, acolhe junto de si o organizador
da futura polícia secreta castrista, Manuel Piñeiro, apelidado Barbarroja, um sujeito com quem Guevara mais tarde terá de lidar. Quanto a Fidel, sai airosamente
do incidente. Sem deixar de se solidarizar com o irmão, ordena a libertação dos reféns e acalma as coisas, procurando também ganhar tempo. Segundo o dirigente comunista
Carlos Rafael Rodríguez, que veio estudar com o chefe do exército rebelde o panorama da era pós-Batista, Castro ter-lhe-ia dito que convinha sobretudo evitar alarmar
demasiado cedo o adversário proclamando com precisão objectivos revolucionários.
Quem parece mais atingido por esta guerra que pretendia ser relâmpago mas que nunca mais acaba é o general Cantillo. Apesar da sua vasta panóplia, tem de reconhecer
que não consegue vencer aqueles malditos guerrilheiros. O moral das suas tropas é desastroso. A maior parte, antes do combate, droga-se com marijuana, tão fácil
de encontrar na Sierra. Alguns desertam, juntam-se à causa "fidelista". Outros, feitos prisioneiros, só partem com a Cruz Vermelha depois de terem obtido um autógrafo
de Fidel Castro, cujo carisma é já célebre. Aliás, foi um antigo oficial de Batista, de nome francês Coroneaux - que, tendo-se juntado à rebelião na época de Frank
País, conseguiu dar um golpe brilhante utilizando a frequência de rádio de um tanque inimigo, imobilizado pelos guerrilheiros, para fazer com que a aviação bombardeasse
os próprios soldados de Batista. O próprio batalhão de Mosquera, o inimigo jurado de Guevara, foi destruído, e Mosquera ficou ferido. No fim de Julho, em Havana,
um general insiste com Batista para que entre em negociação com os rebeldes; é preso. A 6 de Agosto, a operação "Fim de Fidel" termina sob a forma de um comunicado
que pretende manter ainda um tom marcial mas que mal consegue disfarçar o fracasso da ofensiva.

A "invasão"

É a vez de Castro cantar vitória e de traçar, ao microfone da Radio Rebelde, o balanço da derrota de Batista: quinhentas armas capturadas ao inimigo,

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entre as quais dois blindados, equipamento e munições abundantes, quatrocentos e cinquenta prisioneiros. Durante essas dez semanas intensas, Guevara não parou quieto,
preocupado sobretudo em proteger Fidel Castro. Não parou de acudir a todas as emergências, respondendo à avalanche de mensagens que o comandante supremo lhe envia.
Tornou-se o adjunto omnipresente a quem se pode pedir tudo, homens, armas, material. Consegue o impossível, fazendo os seus homens praticar feitos espantosos, levando-os
por vezes à beira do esgotamento. Ele próprio combate, evidentemente - adora fazê-lo -, mas procura dominar a sua impetuosidade natural em nome das tarefas que ainda
tem de cumprir. Confessa abertamente que uma manhã, encontrando-se isolado dos companheiros por ocasião de um confronto sério com o famoso Sánchez Mosquera, teve
de correr a toda a velocidade, sob os apupos da guarda, com um grande saco cheio de balas e uma crise de asma. "Nesse dia, senti-me cobarde". Mas, dentro do mesmo
espírito, conta também como, em plena noite, descobrindo ao luar uma récua de mulas de abastecimento abatidas, tudo numa atmosfera silenciosa de terror, enquanto
o guia foge, em pânico, ele avança, ultrapassando o medo. "Nessa noite, senti-me corajoso"170. Uma vez, consegue fazer cem prisioneiros de uma vez só, outro dia,
decide cavar fossas antitanques ou então retirar do caminho uma mina perigosa, com grandes felicitações de Castro. É ainda a ele que este último pede que trate de
fazer com que os prisioneiros sejam fotografados ao serem entregues à Cruz Vermelha. Ocupa-se de tudo.
A Sierra, a guerra, a vida rude da guerrilha tornaram-se elementos familiares de um mundo no qual o argentino se sente à vontade, livre de passear mais ou menos
ataviado, mais ou menos lavado. No furor dos combates, quando as bombas de napalm rebentam em enormes círculos de fogo à sua frente, saberá ele que talvez esteja
a viver a fase mais feliz da sua vida? Seja como for, guardará dessa liberdade uma nostalgia que nunca mais o largará. Essa guerrilha permanecerá a matriz, o modelo
fundador dos seus combates futuros. O inimigo está bem definido, as coisas são claras, os companheiros de uma dedicação extrema; está em paz consigo mesmo e descobriu
que o melhor remédio para a asma é... o cheiro da pólvora! Aliás, já não fuma cachimbo, como na época, ainda recente, em que era necessário poupar o tabaco. Agora
habituou-se aos charutos cubanos e, ainda para mais, engole o fumo. Quando lhe dizem que isso é uma loucura para um asmático, responde que é excelente para enganar
a fome e para se proteger dos mosquitos.
Em Abril, um outro jornalista veio entrevistá-lo, um compatriota argentino com quem travou amizade e cujo destino reorientará: Jorge Ricardo Masetti. No livro que
irá escrever ao regressar a Buenos Aires, Los que luchan y los que lloran, Masetti descreve Guevara a chegar na sua mula, de pernas a balouçar, com uma máquina fotográfica
ao pescoço e "alguns pêlos no queixo", à laia de barba: "O famoso Che Guevara parecia um típico rapaz argentino da classe média. E também uma caricatura rejuvenescida
de Cantinflas"171. Cantinflas é aquele herói cómico do cinema mexicano, muito

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famoso a sul do Rio Grande, uma espécie de Charlot latino-americano, reconhecido pelo seu aspecto mal pronto, com umas calças que escorregam e que ele está sempre
a puxar para a cintura. Em Agosto, Guevara ainda tem o seu aspecto de Cantinflas, mas uma testemunha da Sierra, Javier Fonseca, apresenta-no-lo já transformado:
"O Che tinha um ar mais aguerrido, não sei se por a barba ter crescido e o cabelo lhe bater nos ombros. O seu rosto já não era o de um novato. Tinha já a estatura
de um chefe, com o hábito de dar ordens e de ser obedecido. A sua actividade era intensa. Corria de um lado para o outro [...]. A última vez que o vi, estava absorvido
numa conversa com os seus homens para estudar planos de combate. Fumava um charuto"172.
Castro não espera para lançar a sua contra-ofensiva e desencadear o que ele chama a "invasão", ou seja, o avanço das colunas rebeldes "em todas as direcções, no
resto do território nacional, sem que nada nem ninguém as possa deter"173. Os alistamentos multiplicam-se; dispõe de mil homens. A ideia é atacar em três pontos:
nos dois extremos da ilha e ao centro. Ele próprio, com o seu irmão Raul e Almeida, encarrega-se da província de Oriente e de Santiago de Cuba. Camilo Cienfuegos
deve avançar até à posição de Pinar del Rio, no extremo ocidental, e é o Che que fica encarregado de cortar a ilha ao meio, atacando a região central de Las Villas,
onde se encontram já, na serra de Escambray, diversos focos de resistência, e não só o do M-26.
"Dia 21 de Agosto de 1958. O comandante Ernesto Guevara tem por missão conduzir da Sierra Maestra à província de Las Villas uma coluna rebelde e operar no território
em conformidade com o plano estratégico do exército rebelde..."174. No seu laconismo, a ordem de missão reflecte mal a imensa façanha que é pedida a Guevara e aos
seus homens: atravessar seiscentos quilómetros de planícies e de pântanos em território inimigo. Já não contarão com o abrigo protector da serra-fortaleza e a sua
logística é irrisória.
Mas "a guerra de guerrilha está ultrapassada, transformou-se numa guerra de posições e de movimento"175, garante Castro, que fez seu o lema de Danton: "audácia,
mais audácia, sempre audácia". A coluna n.º 2 de Camilo - oitenta e dois homens - está colocada sob o padroado de Antonio Maceo, famoso herói da independência, que,
também ele, em 1895, atravessou a ilha de lés a lés. A do Che, n.º 8, la ocho, sempre para confundir o inimigo, adoptou o nome de Ciro Redondo, o estimadíssimo camarada
morto em Dezembro. O objectivo final é, evidentemente, derrubar a ditadura mas, para já, trata-se antes de impedir as eleições presidenciais de Novembro, verdadeira
farsa eleitoral, com Batista a apresentar, fingindo suceder-lhe, um dos seus homens de confiança, que irá manipular, como sempre fez. Guevara tem, além disso, a
tarefa bastante difícil de coordenar a acção dos grupos de oposição que, nessa região central, se inclinam cada um para seu lado. Ei-lo agora, já não "membro associado",
mas protagonista directo na batalha política cubana.
"Pensando fazer o trajecto em quatro dias, íamos pôr-nos a caminho em camiões, a 30 de Agosto de 1958"176. Todavia, levarão sete semanas pavorosas a cobrir essa
distância. Desde o início, as dificuldades não param.

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O pequeno avião que traz as armas que eles esperam, aterra de noite, como previsto, mas é detectado e bombardeado "das dez da noite às cinco da manhã". De forma
que, depois de terem recebido à pressa as armas, os rebeldes preferem incendiar o avião em vez de o oferecerem à guarda, que avança em grande número para o aeroporto
e que, entretanto, se apodera de uma camioneta que vinha trazer fardas e combustível para os camiões. "Foi assim que a marcha começou, sem camiões nem cavalos"177.
No dia seguinte, os camiões aguardam-nos do outro lado da estrada, mas, desta vez, são os elementos naturais que se opõem. Um terrível ciclone, o "Ella", abate-se
sobre a ilha, inundando a planície, tornando impraticáveis os caminhos de terra, com excepção da estrada central, a única asfaltada e que não é conveniente tomar,
como é óbvio. Violência dos trópicos.
"Vieram dias difíceis [...]. Foi preciso atravessar rios caudalosos, e ribeiros transformados em rios, lutar incansavelmente para impedir que as munições, as armas
e os obuses se molhassem, procurar cavalos e largar os cavalos fatigados, evitar as zonas populosas à medida que nos afastávamos da província de Oriente. Avançávamos
penosamente por terrenos inundados, atacados por hordas de mosquitos que tornavam as horas de descanso insuportáveis [...]. Comíamos mal e pouco, bebíamos a água
dos ribeiros que serpenteavam pelos pântanos [...]. Arrastávamo-nos penosamente ao longo de dias insuportáveis. Uma semana após a nossa partida [...] estávamos bastante
enfraquecidos"178. Antes de partir, Guevara seleccionou cuidadosamente os voluntários que desejassem partilhar com ele essa aventura. Tem fama de ser severo, mas
justo e corajoso. É uma honra pertencer à sua coluna. Todos foram informados das dificuldades, dos enormes perigos que os aguardam. Deu algum tempo para reflectirem.
Cento e quarenta e cinco homens fizeram questão de segui-lo. Contudo, o que eles suportam ultrapassa tudo o que se poderia imaginar.
Não só a linha da frente cai numa emboscada, ao fim de oito dias e, a partir de então, "as forças inimigas perseguem-nos sem nos darem um minuto de sossego"179,
como a chuva, intensa, interminável como num romance de García Márquez, vem complicar tudo, e logo que ela pára, surgem os mosquitos, em nuvens espessas. Foi necessário
esquecer os camiões atolados na lama, que nenhuma força humana conseguiu arrancar de lá, apesar de Guevara, de metralhadora em punho, ameaçar aqueles que não querem
tentar. Foi necessário abandonar na margem os cavalos que a corrente dos rios, transformados em torrentes impetuosas, teria arrastado. Os homens têm de se agarrar
a uma corda esticada sobre o rio para ultrapassar o obstáculo. E tudo isso de noite, à luz fraca de um archote, quando muitos deles não sabem nadar. Em vez de uma
"longa marcha", é uma expedição anfíbia "com um andamento médio de 12 a 15 quilómetros por dia. [...] A lama e a chuva não param", escreve Guevara a Castro, "e havias
de ver o que tive de fazer para chegar com os obuses em bom estado; uma cena de filme"180. Os seus diários de campanha são menos líricos: "
2 de Outubro: há três dias que não comemos

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nem dormimos. Só a força de vontade nos mantém de pé [...]. Atravessámos, de noite, um lago cheio de plantas cortantes que fizeram em picado os pés inchados e já
insensíveis dos que iam descalços. Dormimos na lama"181, mais tarde, nas suas Memórias*, dirá mais explicitamente: "Os dias mais difíceis passámo-los cercados nos
arredores da central açucareira Baragua, nos pântanos pestilenciais, sem uma gota de água"182.

Nota: * Episódios da Guerra Revolucionária, Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1975.

Da sua comandancia de Sierra Maestra, Castro, que anuncia primeiro que "a coluna de invasão n.º 8 [...] prossegue a sua avançada sob a hábil direcção do corajoso
rebelde Ernesto Guevara", reconhece, a 8 de Outubro, que tiveram dificuldade em romper as linhas [o Che e Camilo], mas safaram-se bem"183. De facto, as duas colunas
caminharam juntas por um tempo, apoiando-se mutuamente; depois cada uma tomou a sua mobilidade num itinerário paralelo, semeado de combates análogos, sob bombardeamentos
constantes, mais assustadores do que eficazes, avançando durante a noite, quase sempre a pé, por vezes a cavalo, raramente de camião ou de tractor agrícola, para
cobrir distâncias curtas. O perigo de encontros com os casquitos é permanente, mesmo quando se percebe que, no exército regular, a vontade de combater não é grande.
É difícil imaginar a enorme auto-confiança, talvez a inconsciência, que os duzentos e trinta destemidos do Che e de Camilo - andrajosos, esfalfados, na maioria analfabetos
- tinham de ter para derrotar um exército cem vezes mais numeroso, dispondo de todo o arsenal clássico, armamento pesado, aviões, comunicações, rádio, etc. E, no
entanto, esses barbudos não parecem ter sido afectados pela dúvida.
Após vários confrontos, onde só por milagre as baixas entre os rebeldes foram mínimas - nove mortos - vem a recompensa, outro milagre. Uma manhã, surgem no horizonte
os contornos azulados da serra de Escambray, a terra prometida. "Até os montanhistas menos entusiastas tinham pressa de lá chegar"184, afirma Guevara. Quando entram
na província central de Las Villas, Ramiro Valdés declara que, depois de atravessarem o rio Jatibonico, saem finalmente "das trevas para a luz". Mais uma etapa esgotante
para esse "exército de sombras" que patinha nos arrozais e se arranha todo nos canaviais, mais um último rio, o mais largo, o Zaga, e "em seguida passámos o último
cordão da guarda na estrada de Trinidad para Sancti Spiritus, a 15 de Outubro, ao cair da noite, e começou o nosso duro trabalho político"185, escreve Guevara.

A maninha Escambray

Missão difícil, de facto, para Guevara, mesmo investido de plenos poderes por Fidel Castro, a de se fazer ouvir pelas diferentes "resistências" da região. Escambray
tem, também, a sua tradição contestatária. A cor da

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pele dos seus camponeses não é tão escura como a dos da Sierra Maestra, mas essa "montanha" de oitenta quilómetros de comprimento, que mal chega aos mil metros de
altitude, parece-se com ela como uma irmã mais nova. Coexistem aí, sem contudo se apoiarem, apesar da luta comum contra a ditadura, centros de resistência que reflectem
mais ou menos o leque das forças políticas de oposição. Antes de mais, há o Directório Revolucionário de Faure Chomón e de Cubela. Sentem uma certa desconfiança
em relação a Fidel Castro, que lhes paga na mesma moeda; Mas Guevara não terá dificuldade em entender-se com eles. Há uma cisão de direita desse mesmo Directório,
que se intitulou "Segunda Frente de Escambray", dirigida por um espanhol anticomunista, talvez mais bandido do que guerrilheiro, Eloy Gutiérrez Menoyo, hostil a
Castro. Menoyo recebe subsídios do antigo presidente Prio Socarras, instalado em Miami, mas que nem por isso deixa de espoliar os camponeses. Há também uma pequena
resistência comunista do Partido Socialista Popular, dirigida por Felix Torres, que recebeu a directiva de apoiar as colunas rebeldes, e que o faz. Há, por fim,
um destacamento significativo de combatentes do M-26, mal armados, grande parte dos quais refugiados nos montes após o fracasso da greve de Abril. O seu chefe, Víctor
Bordon, atribuiu a si próprio o grau de comandante. Guevara nomeia-o capitão e incorpora os seus homens na coluna ocho.
O confronto político começa, aliás, por um debate indispensável com os camaradas do M-26 local, pois o Movimento do 26 de Julho nunca teve uma doutrina específica
- facto que é frequentemente esquecido - para além daquilo que é possível encontrar nos discursos de Fidel Castro ou nas proclamações gerais contra Batista...
Enrique Oltuski, vinte e oito anos, jovem e brilhante engenheiro da Shell, responsável local do M-26 de Las Villas, "sobe" à serra de Escambray para falar com o
Che. Nas suas memórias, Gente del Llano (os da planície)186, deixa-nos um vivo testemunho do seu encontro com o argentino, que apenas conhecia através de fotografias
publicadas na imprensa. É de noite, está frio - também há Inverno em Cuba, quando se sai do calor húmido da planície. À luz das chamas de uma braseira, na casa rústica
onde se albergam, fica impressionado (como outros, antes dele) pelos traços "chineses" da personagem, talvez porque a barba fosse pouco abundante e os bigodes, caindo
de cada lado da boca, lhe dessem essa aparência. "Pensei em Gengis Khan [...]. Era de estatura média, tinha uma boina sobre o cabelo bastante comprido e uma capa
negra em cima de uma camisa aberta". A discussão é violenta:
- Meteste água em Escambray - diz-lhe logo o Che.
Oltuski explica os meandros das facções rebeldes nessa serra. É complicado.
- O Partido Socialista Popular ajudou-nos mais que vocês - continua Guevara. - Deram-nos roupa e calçado.
- Mas fomos nós que os enviámos. Pensávamos que vocês ainda estavam longe.

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- Assim que alargarmos e reforçarmos o nosso território libertado, decretaremos a reforma agrária - acrescenta Guevara. - O que pensas disso?
- Óptimo. Eu próprio escrevi a tese agrária do Movimento. Todas as terras livres devem ser entregues aos camponeses e os latifundiários devem ser pesadamente colectados.
Desse modo os camponeses poderão comprar as suas terras ao preço de custo mediante créditos bonificados.
Foi neste momento que o Che explodiu de indignação, conta Oltuski:
- Vender aos camponeses a terra que eles trabalham? Tese reaccionária! És como todos os do llano...
Seguem-se alguns insultos. A fúria de Guevara sobe ainda mais quando Oltuski explica que é necessário ter cuidado com a reacção dos Estados Unidos, que podem não
ficar de braços cruzados.
- Não passas de um comemierda*. Pensas então que é possível fazer a revolução às escondidas dos americanos? Uma autêntica revolução, um combate de morte contra o
imperialismo, não é coisa que se esconda...

Nota: * Comemierda: insulto cubano muito usado por Guevara.

A discussão dura a noite inteira. Poucos dias depois, é a vez de Oltuski se interrogar se Guevara não estará louco: ordena-lhes que ataquem o banco da cidade vizinha
de Sancti Spiritus. Antes de mais, é inútil, responde o dirigente do M-26. Para já, dispõe de cinquenta mil pesos-dólares, e envia-lhe imediatamente grande parte
dessa quantia, pedindo-lhe que lhe mande um recibo. Depois, seria virar contra eles uma grande parte da população. Finalmente, é muito provável que Fidel fosse contra.
De qualquer forma, os dirigentes locais do M-26 prefeririam demitir-se a cometer tal asneira. Resposta ríspida de Guevara: recorda-lhe que o chefe é ele, aceita
as demissões, confirma que o velho antagonismo llano-Sierra continua vivo e que os dirigentes do llano, uns "medricas isolados das massas" nunca analisaram "as raízes
económicas desse respeito para com a mais arbitrária das instituições financeiras". (Quatro anos mais tarde, em 1963, num prefácio a um tratado sobre o partido marxista-leninista,
sublinhará ainda a oposição entre o exército rebelde, formado na serra, "já ideologicamente proletário, pensando como classe desfavorecida" e a planície "pequeno-burguesa"
que gostaria de ter um exército "político" sob a direcção dos "civis")187. Convoca à Sierra Oltuski e o seu adjunto Diego.
Desta vez, o tom é mais calmo e, apesar de Oltuski notar que Guevara cheira mal - um cheiro rançoso de suor acumulado - e que não tem o menor refinamento culinário
- devora, pegando-lhe com as mãos, uma carne meio-podre que ele acaba de cuspir, com nojo -, declara ao seu amigo Diego, no caminho de regresso: "É impossível não
o admirar. Sabe o que quer. Vive apenas para isso. Eu julgava-me um verdadeiro revolucionário mas, ao lado dele, não passo de um aprendiz. É ao lado dele que irei
combater"**188.

Nota: ** Três meses depois, Oltuski será o mais novo ministro do governo revolucionário de 1959, antes de ser destituído e em seguida reabilitado. Tornar-se-á um
dos melhores colaboradores de Guevara para as questões de planificação económica.

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Esta história ultrapassa o anedótico por confirmar aquilo que será, a partir de então, a força e a fraqueza de Guevara: um radicalismo total, uma determinação, em
tensão permanente, de atingir, a todo o custo, para além de toda a contingência, o verdadeiro regime de justiça social que a revolução exige. Mas essa exigência
absoluta, que atrairá apoiantes incondicionais prontos a fazerem-se massacrar, assustará também muitos dos que dele se aproximam, adivinhando que depressa se consumiriam
nessa tocha ardente, avessa a meias-medidas.
O rapaz alegre e decidido, de ar adolescente, que embarcou no Granma, adquiriu uma nova espessura humana. Se o olhar não perdeu o brilho, o carácter tornou-se mais
grave, talvez mais solitário também. Na Sierra Maestra, à noite, Guevara lia por vezes Neruda aos seus homens. Todavia, o mais frequente era ele isolar-se em leituras
silenciosas, de charuto na boca, mesmo nos momentos em que o combate a travar em breve tendesse a provocar inquietação. Luis Simon, um intelectual do M-26, encarregado
da acção militar em Havana, encontra-o em meados de Setembro na planície, no meio da chuva e dos mosquitos. Simon, que em breve entrará em dissidência, recorda-se
que nesse dia Guevara lhe pediu emprestado Existentialisme et Marxisme, de Merleau-Ponty, e que, falando de política internacional, o Che "criticou duramente o estalinismo
e o massacre de Budapeste"189. Ponto de referência.
Todavia, é com a clássica foice e martelo que, na província de Las Villas, o regime manda afixar fotografias de Guevara e de Cienfuegos, oferecendo vultuosas recompensas
a quem facilitar a sua captura. No caso de Guevara, ao epíteto infamante de comunista vem acrescentar-se o de "mercenário estrangeiro"190. De facto, a sua lenda
de guerrilheiro terrível precede-o, e tudo concorre para a alimentar: a bravura dessa coluna ocho que ele comanda, capaz de todas as audácias, forçando todas as
barreiras, e também o exotismo da personagem, os seus cabelos ao vento, o seu ar de profeta, a boina preta, já sem a estrela, substituída por duas espadas cruzadas,
insígnia dos oficiais da guarda rural, mais uma provocação à solenidade das aparências.
Poucos cubanos conhecem o significado exacto da sua alcunha, "Che", mas esse nome bizarro identifica ainda o estranho nesse homem vindo de tão longe - a Argentina!
-, por solidariedade. Ter vivido cerca de dois anos no mato, ter ultrapassado provas difíceis, ter forçado a sua asma a suportar o insuportável, a humidade, a lama,
o fumo do charuto, ter descoberto, ao ritmo dos seus passos, a geografia da planície cubana, os campos de cana de açúcar ou de bananeiras, os espinheiros infectos
da costa, tudo isso deu a esse "selvagem" uma espécie de força telúrica sólida, que aceita mal as subtilezas do protocolo e os arrebiques da diplomacia. Para a sua
tropa, para todos, ele é sem dúvida o comandante Guevara, mas assume com um orgulho divertido passar a ser designado como "o" Che. Pois só há um.
Esse Che sem rival vai dar mostras que sabe, apesar de tudo, dominar a sua impaciência quando a estratégia política o exige. Em Julho, Fidel tinha assinado um manifesto
unitário reunindo, na Venezuela, todos os sectores da

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oposição cubana (com excepção dos comunistas): é o Pacto de Caracas. Do mesmo modo, em Pedrero, onde se instalou, nos contrafortes da serra de Escambray, Guevara
consegue, no início de Novembro, ao cabo de "complicadas negociações", reunir o conjunto das forças de resistência, incluindo os comunistas, num pacto de boa vizinhança
que lhe permite encarar o prosseguimento das operações. Tem agora o apoio incondicional do M-26 local que, anteriormente, estava pronto a mandá-lo passear.
Ladeando a costa sul, Guevara chegou à província de Las Villas uma semana depois de Camilo que, entretanto, seguiu pelos atalhos do norte. Fidel pede então a este
último que suspenda a sua avançada até Pinar del Rio, em direcção ao outro extremo do país, para se colocar sob as ordens do Che, ajudando-o a controlar essa região
central onde pulsa o coração económico de Cuba. "Depois da proeza única de, tu e o Che, terem avançado desde a Sierra Maestra até Las Villas, mesmo nas barbas de
milhares de soldados inimigos [...], é lógico, se pretendemos a unidade das forças nessa província, que o comando pertença ao comandante mais antigo, àquele que
revelou maiores capacidades militares e organizativas, àquele que suscita mais entusiasmo e confiança entre o povo"191. Camilo obedece. Aprecia e respeita o argentino,
apesar de muitas vezes troçar dele. Os dois comandantes conseguirão sabotar as pseudo-eleições de 3 de Novembro, paralisar a circulação, fazer saltar as pontes,
cortar a ilha ao meio, impedir o envio de reforços militares para Oriente, onde as colunas rebeldes dos irmãos Castro e de Juan Almeida cercam a cidade de Santiago.
No dia das eleições, a farsa é evidente, a participação irrisória - menos de 20% -, a fraude descarada. Os próprios observadores estrangeiros nem sequer consideraram
útil deslocar-se. Um político desconhecido, Rivero Aguero, deveria em princípio suceder a Batista em 1959. Daqui até lá, a história vai galopar. Guevara prepara
a sua ofensiva contra Santa Clara.
Após cinquenta dias de marchas, de combates e confrontos, durante os quais, segundo a sua linguagem figurada só comeram "dia sim, dia não, outro dia talvez", após
os pântanos fétidos e os bombardeamentos, o Che instala o seu "exército de sombras" na serra de Escambray. Organiza um verdadeiro acampamento, como na Sierra Maestra
- com "hospital", defesa aérea, etc. -, destinado a servir de base a uma guerra que ele reconhece longa e difícil. Deixa, primeiro, que os seus homens recuperem
um pouco, que tratem dos pés roídos de fungos, que vistam fardas lavadas, que mudem de sapatos, que limpem as armas. Desde a primeira visita, Oltuski ficou impressionado
com o à-vontade com que todos manejavam espingardas ou metralhadoras que "pareciam fazer parte deles próprios"192. O M-26, os camaradas do Directório e do PSP fornecem
o equipamento, garantem a intendência. Sente-se que a cidade e os seus recursos estão próximos; o exército de Batista não virá incomodá-los muito, nesse maciço cortado
por rios e vales, propícios a emboscadas.
Guevara monta, mais uma vez, uma escola militar onde os "veteranos" ensinam o essencial aos novos recrutas que, em grande número, pedem que os deixem combater nas
fileiras rebeldes. "Transferíamos os melhores milicianos

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urbanos para o campo de treino para lá aprenderem uma táctica de sabotagem que deu bons frutos"193. Às vezes os oficiais são muito jovens: o capitão Joel Iglesias
tem apenas dezassete anos, o tenente Acevedo quinze anos. Ganharam os seus galões sob o fogo da metralhadora, graças à sua coragem. Quando se dirigem aos homens
mais velhos sob as suas ordens, tratam-nos delicadamente por "você". Os "velhos" continuam a tratar por "tu" os miúdos, mas obedecem-lhes. Como, por outro lado,
verificou que outros, aventureiros, "brincavam com a morte", Guevara criou, para as missões perigosas, um "pelotão suicida", constituído por voluntários. A dirigi-lo,
um rapaz de vinte e três anos, de uma audácia louca, a quem chamam "el Vaquerito".

Uma ofensiva relâmpago

Foi na serra de Escambray que Ernesto encontrou Aleida, que viria a ser a sua segunda mulher. Até então, na Sierra Maestra, a vida amorosa do Che não parece ter
sido diferente da dos outros guerrilheiros, isto é, praticamente nula. Alguns obtiveram autorização de viver com uma companheira, que obedece às ordens e combate
como toda a gente. Mas são raros. Conta-se que Guevara teria tido os favores de uma guajira mulata, uma camponesa, quando vigiava a convalescença dos feridos, após
a batalha de Uvero. A história é plausível. O Che não é propriamente um puritano. Mas torna-se puritano quando considera que não o ser poderia prejudicar a imagem
da revolução. Mais tarde acontecer-lhe-á ter de resolver questões em assembleias de fábrica, a propósito de histórias de infidelidades conjugais que interferiam
com o andamento dos trabalhos. Responderá que não é possível vigiar de tão perto o comportamento dos trabalhadores e porá ao mesmo nível "beatice burguesa" e "beatice
socialista".
Aleida March é uma professora de Santa Clara que ficou demasiado exposta pelas suas actividades militantes no M-26 e que, para escapar aos "esbirros", foi enviada
pelo Movimento para a serra; situação análoga à de Celia Sánchez, que sobe à Sierra Maestra para se refugiar junto de Fidel, ou de Vilma Espín, que vai juntar-se
a Raul Castro na serra Cristal. Não consta que Guevara tenha tido uma repentina paixão na serra de Escambray, tal como não o tivera na Guatemala com Hilda Gadea.
Para ele, a qualidade essencial de uma mulher, de uma companheira, é ser uma "boa camarada" com quem se possa contar, com a qual exista uma sintonia ideológica total.
Jovem e bela, franzina, de pele clara, nariz arrebitado num rosto redondo emoldurado por cabelos loiros, Aleida sorri com facilidade e em breve cede ao encanto desse
intrépido comandante, de quem é secretária. Ela estará a seu lado na batalha de Santa Clara e pretenderá segui-lo quando ele entrar em Havana. Mas Ernesto irá pedir-lhe
que aguarde. Eles voltarão a encontrar-se, de facto.
"Logo que chegámos a Las Villas, a nossa primeira medida política - antes de criar a primeira escola - foi publicar uma proclamação instaurando a reforma

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agrária"194. Essa é "a ponta de lança do exército revolucionário [...] foram os camponeses que nos incitaram a fazê-la", sublinha Guevara. Retoma as disposições
redigidas (com moderação) na Sierra Maestra pelo jurista Sori-Marín e assinadas a 10 de Outubro de 1958 por Fidel Castro. A terra é atribuída aos camponeses que
a trabalham, mas nada é dito quanto à divisão das grandes propriedades. Seguir-se-á outra lei, ainda insuficiente, na sua opinião, que distribui também as terras
do Estado e dos servidores da ditadura. "O seu princípio era revolucionário"195. Para já, recomenda aos camponeses que deixem de pagar renda aos grandes proprietários
e concede a Gutiérrez Menoyo o direito de cobrar, apesar de tudo, na sua "zona", uma taxa sobre as rendas não pagas. O tipo não perde pela demora. Depois do inimigo
principal, Batista, seguir-se-ão os ajustes de contas com os inimigos secundários".
De facto, para se distribuir terras, é necessário controlá-las. Em meados de Dezembro, Guevara desencadeia a sua ofensiva. É uma blitzkrieg, uma guerra-relâmpago
cuja rapidez o surpreende a ele próprio. A 18 de Dezembro, após dois dias de combate, os homens da ocho, apoiados pelos do M-26 local e do Directório, tomam a pequena
cidade de Fomento, com dez mil habitantes, e o seu quartel. A estratégia é simples: criar o vazio à volta de Santa Clara, impedir que cheguem reforços. Poupado,
por vezes até à parcimónia, sobretudo quando se trata de bens públicos, Guevara manda redigir uma lista exaustiva do espólio apreendido, na qual figura até uma peneira:
dois jipes, três camiões, cento e trinta e oito espingardas, quatro máquinas de escrever, etc, e... um despertador! Mais cento e quarenta e um soldados prisioneiros.
Uma fotografia mostra Guevara empoleirado num dos dois jipes, cuja capota está coberta com uma grande bandeira cubana. Vêem-se os rostos das pessoas olhando fixamente
para esse guerrilheiro vindo de longe, que lhes fala com a sua estranha pronúncia.
A 21 de Dezembro, primeiro golpe duplo: dois quartéis rendem-se simultaneamente, em Cabaigan e em Guayos. A avançada foi feita pelas ruas e pelos telhados planos
das casas baixas. Em Cabaigan, ao saltar de um telhado para outro, Guevara tropeça numa antena de televisão, escorrega e cai no pátio, sobre um bidão de lata transformado
em vaso de flores. Ferida no sobrolho direito e luxação grave no pulso esquerdo. O doutor Guevara recusa a injecção contra o tétano, temendo que ela interfira com
a asma. Mas consente em "tomar aspirinas como se se tratasse de biscoitos". As fotografias desses "dias históricos" mostrá-lo-ão de braço ao peito, atado numa charpa
negra, de efeito muito atraente.
Dois dias depois, novo golpe duplo, mais sério. Em Sancti Spiritus, a tal cidade de cento e quinze mil habitantes cujo banco Guevara pretendia assaltar, um pequeno
esquadrão de vinte rebeldes, enviados como batedores, estimula, com a sua presença, uma insurreição geral da população, que ataca as propriedades dos lacaios do
regime e provoca incêndios. Algumas rajadas de metralhadora e um ultimato audacioso bastarão para que os quatrocentos soldados da guarnição se rendam. Sinal de decomposição
da disciplina militar, os aviões encarregados de atacar a cidade optam por largar as bombas no

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alto-mar. Nesse mesmo dia de 23 de Dezembro, Placetas, com trinta mil habitantes, rende-se também. O Che é o primeiro da linha da frente a atacar o quartel, onde
cento e quatro soldados travam um combate de puro prestígio. O capitão Calixto Morales recorda: "Os franco-atiradores metralhavam de todos os lados e ele, muito
calmo, avançava como se nada acontecesse, no meio da rua"196.
Logo a seguir, Guevara corre a juntar-se a Camilo, que monta o cerco a um quartel coriáceo, perto da cidade de Yaguajay, a cem quilómetros de distância. Existe,
entre o Che e Camilo, uma enorme cumplicidade, feita de estima recíproca e de fraternidade profunda, sempre mascarada pelas brincadeiras de Camilo. Com o seu eterno
chapéu de cowboy inclinado sobre o rosto, a barba negra e comprida prolongando-lhe a cara, Camilo é um operário de Havana, de língua afiada, que finge troçar de
tudo e de todos mas que impressionou Guevara sobretudo pelo seu talento de guerrilheiro. Nos momentos de verdade, a sua coragem não tem limites. Quando fazia parte
da coluna do Che, na Sierra Maestra, os companheiros ficavam pasmados com o seu sangue-frio quando havia emboscadas. Uma vez, esperou que um elemento da guarda chegasse
a um metro dele para disparar e lhe arrancar a espingarda antes mesmo dele cair. Entregando os seus dentes ao cuidado do doutor Guevara, garantia que o argentino
era capaz de lhe arrancar um dente são em vez do cariado. Quando os camponeses de Yaguajay ouvem dizer que o Che está por perto, correm em grupos, excitados, curiosos
de ver aquele de quem todos falam. E Camilo, testemunha desse fascínio, declara então ao companheiro: "Já sei o que vou fazer depois da vitória. Vou meter-te numa
jaula e percorrer o país, cobrando cinco pesos por bilhete a quem vier ver-te. Vou ficar rico"197.

Os "cinco gloriosos" de Santa Clara

Dia 27 de Dezembro de 1958. Em dez dias de combate ofegante, o Che e os seus homens "libertaram" um território de oito mil quilómetros quadrados e meio milhão de
habitantes. No dia de Natal tomaram de assalto a pequena cidade de Remédios; no dia seguinte o porto de Caibarién. No total, fizeram oitocentos prisioneiros e recuperaram
seiscentas armas. Às técnicas experimentadas nos combates em zonas rurais, Guevara em breve acrescentou algumas astúcias aprendidas na guerrilha urbana: ensinar
à população favorável a arte do cocktail Molotov, bastante útil para "cobrir" uma retaguarda; penetrar nas casas, deitando abaixo uma parede, se necessário, para
atacar o inimigo pelas costas; fraccionar a coluna em pequenos comandos; avançar pelos telhados (evitando as antenas de televisão...). A rapidez e a eficácia da
ofensiva foram espectaculares. Foi necessário dar posse de imediato a novas autoridades revolucionárias, reparar os danos, organizar o curso da vida económica: aproxima-se
a zafra e, assim como se justificava a palavra de ordem de lançar fogo aos campos de cana de açúcar contra Batista, agora

216

justifica-se, pelo contrário, proteger essa riqueza nacional, uma vez liberto o país. Nem o Che nem os seus homens tiveram tempo para dormir. As fotografias mostram-nos
um Guevara magro, pálido, de ombros um pouco descaídos e olhar fixo, como que possuído por uma chama interior.
Falta ainda o bastião, Santa Clara, capital da província, última etapa antes de Havana, sustentáculo da ilha na estrada principal. Cento e cinquenta mil habitantes,
três mil e duzentos soldados entrincheirados em doze quartéis, tanques e, às portas da cidade, um comboio blindado, temível, que acaba de chegar como reforço, com
400 homens e um canhão. Em frente, o Che coloca 364 combatentes, muito mais motivados do que os da "tirania", mas cujo armamento é ridículo se comparado com o poder
de fogo do adversário. Sempre a mesma louca desproporção de um contra dez, porém em nítido progresso se nos recordarmos que, na Sierra Maestra, o combate era de
um contra cem. Estava fora de causa, evidentemente, utilizar as grandes vias de acesso, barradas por tanques. Mas nos mapas que o geógrafo Nuñez Jiménez desdobra
à sua frente, Guevara descobre um pequeno caminho vicinal que conduz à cidade universitária. É por aí que irá começar a infiltração. Durante a noite.
A 28 de Dezembro, antes do amanhecer, começa o primeiro dos "cinco gloriosos" dias de combate que vão fazer capitular a cidade e dar a Che Guevara uma auréola de
herói que ultrapassará o espaço cubano. Os rebeldes infiltram-se na cidade e multiplicam os confrontos, enquanto a aviação dá início a bombardeamentos que irão durar
sete horas, abrir crateras de oito metros e fazer inúmeros mortos e feridos. Organizando, na Universidade, um posto de pronto-socorro e um "banco de sangue", Guevara
confessa ao médico rebelde Fernández Mell que talvez seja necessário um mês de combates para alcançar a vitória. Da estação de rádio que acaba de ocupar, pede à
população que erga barricadas capazes de se oporem aos tanques. Quando anoitece, aproveita um bulldozer encontrado na Faculdade de Agronomia para isolar o comboio
blindado, arrancando vinte metros de carris, a quatro quilómetros dali.
No dia seguinte, 29 de Dezembro, enquanto combatentes do Directório se ocupam da cidade de Trinidad, cento e trinta quilómetros a sul, e Camilo, mantido em reserva,
ataca o quartel, que continua sem se render, a cidade de Santa Clara acorda atravessada de barricadas, camiões, autocarros, viaturas, um amontoado de móveis, por
vezes lançados pelas janelas. A luta estende-se a toda a cidade. O pelotão suicida apoderou-se da estação ferroviária, onde o telefone toca. O tenente rebelde Del
Rio atende e tem o prazer de comunicar ao oficial de Batista, do outro lado da linha, que o estabelecimento mudou de proprietário. Imprecações do outro, que o desafia
a vir desalojá-lo do quartel, ali mesmo ao lado. "Quando contei isto ao Che ele mandou-me lá ir..."198. Antes que ele lá chegue, o quartel rende-se. O pelotão suicida
não tem rival e impressiona a guarda pela ousadia. Intitula-se "Mau-Mau", o nome das tribos africanas que, no Quénia, se revoltaram contra os ingleses.

217

Guevara está presente em todo o lado, vigia todas as frentes. Não encontrou veículo mais discreto para se deslocar do que um jipe Toyota vermelho. À tarde, o auge
da acção concentra-se no famoso comboio blindado de dezassete carruagens, do qual uma parte dos ocupantes se instalou numa colina próxima. Dois destacamentos rebeldes
partem ao assalto, desalojam a guarda, que corre para o seu refúgio de chapa de aço. E, uma vez que a estação já não pode ser utilizada, as duas locomotivas puxam
o comboio para trás, a toda a velocidade... em direcção aos carris arrancados. O descarrilamento é impressionante. A locomotiva vira-se e esmaga-se num apeadeiro
próximo, o que aumenta a amálgama de ferros das primeiras carruagens que balouçam e saltam uma sobre a outra. Gritos. Gemidos. "Caímos-lhes em cima sem lhes dar
tempo de ripostar"199, conta o tenente Espinoza, à frente de um pequeno esquadrão de dezoito rebeldes. Uma metralhadora perfura, em cima, o tecto de madeira das
viaturas deitadas. Cocktails Molotov incendeiam o soalho. As carruagens transformam-se em fornalha.
O Che, que acorreu ao local, considera que o combate se tornou "interessante". Fala pouco, dá quinze minutos ao comandante para se render. Mais do que o tempo que
a guarda leva a sair daquele braseiro e a abandonar as armas. São sete horas da tarde. Ainda há luz suficiente para a aviação bombardear. Recolhe-se a toda a pressa
um espólio miraculoso: bazucas, morteiros, metralhadoras, um arsenal (Guevara envia logo uma bazuca a Camilo). Em Santa Clara, privada de electricidade, o M-26 espalha
a notícia através de carros com altifalantes. Entre os civis: esperança de que os bombardeamentos acabem depressa; entre os militares, cujo moral baixa ainda mais:
desorientação. Mas que fazer dos quatrocentos prisioneiros do comboio? Ninguém os quer. Guevara não dispõe de meios para os prender nem para se ocupar deles. Tenta
enviá-los para Havana através do pequeno porto de Caibarién, mas a fragata ancorada na baía, recusa-se a aceitar aqueles miseráveis vencidos. À falta de melhor,
são entregues à milícia local do M-26.
Nos dois últimos dias do ano de 1958 assiste-se à queda da maior parte das praças militares. Trinidad rendeu-se. Em Havana, um paiol explode com grande estrondo.
Em Oriente, prosseguem as negociações entre Fidel e o quartel de Santiago. Em Santa Clara, apenas resistem ainda aqueles que mais têm a temer da justiça popular:
a esquadra da polícia - sede de torturas abomináveis - e os franco-atiradores do Grande Hotel, alguns "tigres" do bando de Masferrer, um antigo comunista que se
tornou senador, chefe de um verdadeiro bando de assassinos a soldo, ao serviço de Batista. Os rebeldes sofrem inúmeras baixas, entre as quais a de Vaquerito. "Mataram-me
o equivalente a cem homens"200, lamenta Guevara. Mas detém o gesto de um dos seus companheiros que, de lágrimas nos olhos, quer vingar-se num prisioneiro: "Achas
que ele era igual a eles?"201
Na tarde de 31 de Dezembro, Camilo consegue finalmente a rendição do maldito quartel de Yaguajay e trata de se reunir a Guevara. Porque a 1 de Janeiro de 1959, quinto
dia da ofensiva do Che, a fortaleza de Santa Clara

218

ainda resiste, apesar de o seu comandante ter fugido desavergonhadamente, vestido à civil, aproveitando a escuridão. Mas a rádio transmite um conjunto de notícias
de importância capital: Batista fugiu de avião, durante a noite, para Santo Domingo (com toda a família e uma confortável conta bancária). O General Cantillo, chefe
das forças armadas, anuncia a criação de uma junta cívico-militar. Castro lança um apelo à greve geral contra a manobra de Cantillo: "Revolução, sim! Golpe de Estado
militar, não!"

"Nunca voltaremos a ser tão felizes..."

A história dos primeiros dias frenéticos desse novo ano conta-se agora em horas. No seu derradeiro ultimato para evitar um banho de sangue, Guevara ameaça os militares
de terem de responder também por uma "invasão estrangeira" porque, garante ele, sem que se saiba onde foi buscar tal informação, é possível uma intervenção dos Estados
Unidos. Ao meio-dia e meia, o quartel acaba por aceitar a rendição. A batalha está ganha. A cidade de Santa Clara pertence aos rebeldes! Grandes manifestações de
alegria. A população sai para a rua, confraterniza alegremente com os vencedores barbudos, oferece bebidas, exige a presença do herói dessa batalha histórica: Che
Guevara! O herói está feliz, mas esgotado. Tem um sorriso nos lábios. Através da rádio, Fidel anuncia-lhe que o último bastião militar, em Santiago, acaba de se
render nesse mesmo dia 1 de Janeiro, às 18 horas. Na madrugada do dia 2, as colunas do Che e de Camilo partem para Havana. Trezentos quilómetros ao longo dos quais
são aclamados por toda a parte. Mas o pior está para vir.
Com efeito, o combate torna-se mais político do que militar. A estratégia subtil de Castro, genial Maquiavel, distingue-se da intransigência radical de Guevara,
para quem o imperialismo constitui o inimigo principal. O argentino tem uma visão internacionalista, ao passo que, sem menosprezar o perigoso vizinho norte-americano,
Castro, o cubano, permanece ligado ao nacionalismo. Um sexto sentido leva-o a adivinhar aquilo que é conveniente dizer ou fazer para ganhar a adesão popular. Antes
mesmo de começar o combate de Santa Clara, quando Guevara acumulava vitórias sobre vitórias, Castro, antecipando-se ao sucesso militar, tinha dado a Che as suas
instruções: a avançada sobre Havana deveria ser efectuada "exclusivamente pelas forças do Movimento do 26 de Julho"202. O que exclui as forças do Directório, cujo
apoio Guevara aceitou e com as quais pactuou em Pedrero. Fidel, que o criticará por ter "ressuscitado um morto", precisa ainda: "A coluna de Camilo deve constituir
a vanguarda e tomar Havana".
Porquê esta preferência, esta honra insigne concedida a Camilo Cienfuegos, a quem fora até ali exigido que se colocasse sob o comando do Che, verdadeiro "número
dois" do exército rebelde? Provavelmente porque o prestígio de Guevara já não é oportuno, a partir de agora. O seu êxito

219;

estrondoso, a tomada de Santa Clara, a proeza do comboio blindado concentraram nele as luzes dos projectores da imprensa internacional. Até a Radio Rebelde, sempre
sob a batuta de Carlos Franqui, deu um lugar de destaque aos acontecimentos da região central que, pelo seu brilho, eclipsaram o arrastar das negociações do comandante
supremo para fazer aderir à revolução os chefes militares de Oriente. Mas a decisão de Castro tem outra explicação para além de uma hipotética "ferida narcisista".
Este homem, que luta há seis anos para derrotar uma ditadura odiosa, vê finalmente o poder ao seu alcance. É natural que tenha procurado evitar dar qualquer passo
em falso nessas horas decisivas. Cuba está demasiado próxima dos Estados Unidos, e o anticomunismo marcou as mentalidades, sobretudo em Havana. É certo que o poderoso
vizinho é culpado de humilhações de que o país deve ser vingado. Assim, Castro dá-se ao luxo de, numa Santiago em júbilo, evocar a dignidade recuperada: "Desta vez,
[...] não será como em 1898, quando os norte-americanos vieram para tomar conta do país"203. Mas, ao mesmo tempo, deixa na sombra o seu irmão Raul, demasiado marcado
pelo seu "comunismo". Quanto ao caro Guevara, por muito amigo de Cuba que ele se mostre, não é conveniente que seja um estrangeiro a ser o primeiro a entrar na capital
da República, acto simbólico, nem que seja a ele que as forças armadas se rendam. Se as negociações em Santiago não se tivessem arrastado tanto, Castro poderia ter-se
juntado a Camilo e ao Che, em Santa Clara, a uma hora de avião, para encabeçar ele próprio a marcha204. Mas a 1 de Janeiro de 1959 é já demasiado tarde. Hábil na
arte de virar as situações a seu favor, Castro declara Santiago capital provisória e procura tomar a dianteira, organizando uma marcha triunfal sobre Havana.
Na noite de 2 de Janeiro de 1959, é, pois, Camilo Cienfuegos, arquétipo de uma Cuba festiva, filho de Havana, que entra, sem disparar um tiro, na fortaleza de Columbia,
praça-forte do exército, onde o aguarda um militar adversário de Batista, o coronel Barquin, acabado de sair da prisão. O comandante Guevara instala-se algumas horas
depois na fortaleza La Cabaña, dominando o porto e a cidade, mas que não passa de um posto secundário. É provável que ele pudesse já fazer suas as palavras ditas
a meia-voz, por Celia Sánchez, ao jornalista Lee Lockwood, alguns anos mais tarde: "Ah, eram os bons tempos, não é verdade? Nunca voltaremos a ser tão felizes, nunca
mais..."205.

Notas:

1 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., pp. 30-31.
2 Carlos Franqui, Journal de la Révolulion Cubaine, op. cit., p. 143.
3 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 31.
4 Ibid.
5 Centro de Estudios de Historia Militar, PAR - Ed. Política, Havana, 1985, p. 104.
6 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 35.

220

7 Carlos Franqui, Journal de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 150.
8 Ibid.
9 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 31.
10 Carlos Franqui. Journal de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 144.
11 Mariano Rodríguez Herrera, Con la Adarga al Brazo, Política, Havana, 1988, p. 81.
12 Carlos Franqui, Journal de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 145.
13 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., pp. 31-32.
14 Ibid., p. 34.
15 Ibid.
16 Ibid.
17 Ibid., p. 35
18 Ibid.. p 36.
19 Ibid., p. 35.
20 Ibid.
21 Ibid.
22 Ibid., p. 42.
23 Ibid., p. 39.
24 Ibid., p. 40.
25 Ibid., p. 42.
26 Ibid., p. 43.
27 Ibid.
28 Tad Szulc, Castro, Trente Ans de Pouvoir Absolu, op. cit., p. 328.
29 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, op. cit., p. 21.
30 Ernesto Che Guevara, Textes Politiques, François Maspero, Paris, 1965, p. 40.
31 Ernesto Che Guevara, "Le Peuple en Armes", in Partisan, Paris, Nov.-Dez. 1961, p. 24.
32 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 47.
33 Ibid.
34 Ibid
35 Ibid., p. 49.
36 Ibid., p. 50
37 Ibid.
38 Ibid., p. 51.
39 Ibid., p. 45.
40 Tad Szulc. Castro, Trente ans de Pouvoir Absolu, op. cit., p. 329.
41 Froilán Escobar. Felix Guerra, Che, Sierra Adentro, Editora Política, Havana, 1988, pp. 18-19.
42 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 51.
44 Ibid., p. 52.
45 Ibid.
46 Ernesto Che Guevara, Textes Militaires, François Maspero, Paris, 1968, p. 59.
47 Fidel Castro, Révolution Cubaine, Paris, 1968, p. 230.
48 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 53.
49 Ibid., p. 52.

221

50 Ibid., p. 53
51 Ernesto Che Guevara, Textes Militaires, op cit., p 60
52 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 57.
53 Ibid
54 Ibid, p. 58
55 Ibid., p. 61
56 Ibid., p. 63
57 Ibid, p. 64
58 Ibid., p. 65
59 Ibid., p. 62
60 Marcel Niedergang, Les iingt Amériques Latines, op cit, t 3, p. 228.
61 Ernesto Che Guevara, "Le peuple en armes", art cit., p. 23
62 Carlos Franqui, Le Livre des Douze, Gallimard, Paris, 1965, p. 80
63 Herbert L. Matthews, Fidel Castro, Seuil, Paris, 1970, p. 106
64 Ibid., p. 110
65 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 69.
66 Ibid., p. 68
67 Ibid., p. 70
68 Ibid., p. 71
69 Ibid., p. 73
70 Ibid. p. 770
71 Ibid., p. 61
72 Ibid., p. 74
73 Ibid.
74 Ibid.
75 Ibid., pp. 78-79
76 Ibid., p. 78
77 Ibid., p. 91
78 Carlos Franqui, Journal de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 202
79 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 83.
80 Ibid., p. 87
81 Ibid., p. 88
82 Herbert L. Matthews, Fidel Castro, op. cit., p. 108
83 IIbid., p. 112
84 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 89.
85 Ibid., p. 90
86 Ibid., p. 91
87 Ibid., p. 90
88 Ibid., p. 100
89 Ibid., p. 98
90 Ibid.
91 Ibid., p. 102
92 Froilán Escobar, Felix Guerra, Che, Sierra Adentro, op. cit., p. 93.
93 Fidel Castro, Révolution Cubaine, op. cit., t. II, p. 228.

222

94 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 106
95 Ibid., p. 107
96 Ernesto Che Guevara, (OEvres V, Textes inédits, François Maspero, Paris, 1972, p. 106
97Ibid., p. 12
98 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Revolittionnaire, op. cit., p. 113
99 Fidel Castro Étapes de la Révolution Cubaine, François Maspero, Paris, 1964, p. 44
100 Ernesto Che Guevara, Textes Militaires, op. cit., p. 138
101 Carlos Franqui Le Livre des Douze, op. cit., p. 81
102 Froilán Escobar, Felix Guerra, Che, Sierra Adentro, op. cit., p. 118
103 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 118.
104 Froilán Escobar, Felix Guerra, Che, Sierra Adentro, op. cit., p. 125
105Ibid., p. 106
106 Fidel Castro, Révolution Cubaine. op. cit., t. II, p. 229
107 Ibid.
108 Carlos Franqui, Journal de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 222
109 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., pp. 127-128
110 Ibid., p. 128
111 Ibid., p. 129
112 FroilánEscobar, Felix Guerra, Che, Sierra Adentro, op. cit., p. 128
113Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 129
114 Ibid., p. 134
115 Ibid., p. 136
116 Ibid., p. 141
117 Ibid., p. 148
118 Froilán Escobar, Felix Guerra, Che, Sierra Adentro, op. cit., p. 190
119 Ernesto Che Guevara, Textes Militaires, op. cit., p. 114
120 Ibid., p. 106
121 Enrique Acevedo, Descamisado, Edition Cultura popular, Havana, 1993, p. 52
122 Ernesto Che Guevara, Textes Militaires, op. cit., p. 95
123 Regis Debray, Révolution dans- la Révolution?, François Maspero, Paris, 1972, p. 161
124 Enrique Acevedo, Descamisado, op. cit., p. 63.
125 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 132
126 Ibid., p. 145
127 Ibid., p. 154
128 Ibid., p. 164
129 Ibid., p. 168
130 Ibid., p. 166
131 Ibid., p. 168
132 Carlos Franqui, Journal de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 271
133 Ibid., p. 275
134 Froilán Escobar, Felix Guerra, Che Sierra Adentro, op. cit., p. 218
135 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 159
136 Ibid., p. 161
137 Carlos Franqui, Journal de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 283.

233

138 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Revolutionnaire, op. cit., p. 163
139 Carlos Franqui Journal de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 283
140 Ibid., p. 244
141 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 175
142 Ibid., p. 176
143 Froilán Escobar, Felix Guerra, Che, Sierra Adentro, op. cit., p. 184
144 Ibid., p. 186
145 Enrique Acevedo, Descamisado, op. cit., p. 220
146 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 174
147 Carlos Franqui, Journal de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 285
148 Ernesto Che Guevara, Obras, op. cit., t. II, p. 627
149 Carlos Franqui Journal de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 285
150 Ibid., p. 194
151 Ibid., p. 286
152 Ernesto Guevara Lynch, aquí va un Soldado de America, op. cit., p. 131
153 Carlos Franqui, Journal de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 285
154 Ibid., p. 285
155 Ibid., p. 289
156 K. S. Karol, Les Guérrilleros au Pouvoir, Robert Laffont, Paris, 1970, p. 153
157 Ernesto Che Guevara, (OEuvres VI Textes Inédits, François Maspero, Paris, 1972, p. 155
158 Ernesto Che Guevara, Textes Militaires, op. cit., p. 27
159 Carlos Maria Gutierrez, in Marcha, Montevideu, Dezembro 1967, pp. 16/17
160 Froilán Escobar, Felix Guerra, Che Sierra Adentro, op. cit., p. 281
161 Tad Szulc, Castro Trente Ans de Pouvoir Absolu, op. cit., p. 373
162 Carlos Franqui, Journal de la Révolution Cubaine, op. cit, p 320
163Ibid., p. 321
164 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 178.
165 Ibid., p. 197
166 Carlos Franqui, Journal de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 346
167 Ibid., p. 362
168Ibid., p. 372
169 Ibid., p. 397
170 Ernesto Che Guevara, Obras, op. cit., t. I, pp 388/389
171 Jorge Ricardo Masetti, Los que Luchan y los que Lloran, Freeland, Buenos Aires, p. 46
172 Froilán Escobar, Felix Guerra, Che, Sierra Adentro, op. cit., p. 363.
173 CarlosFranqui, Journal de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 245
174 Ibid., p. 426
175 Ibid., p. 423
176 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 198
177 Ibid
178 Ibid.
179 Ibid., p. 199
180 Carlos Franqui, Journal de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 457

224

181 "Diario de Campaña del comandante Ernesto Che Guevara", in Bohemia, Havana, 11 de Janeiro de 1959, citado in HugoGambini, El Che Guevara, op.cit., p. 178
182 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 201
183 Carlos Franqui, Journal de la Révolution Cubaine, op. cit., pp. 433-441
184 Ibid., p. 460
185 Ibid
186 Enrique Oltuski "Gente del llano", in Casa de las Ameiricas, nº 40, Havana, 1967, p. 51
187 Ernesto Che Guevara, Textes Politiques, op. cit., p.
188 Enrique Oltuski, "Gente del llano", art. cit., p. 58
189 Luis Simón, "Mis Relaciones con el "Che" Guevara", in Cuadernos, nº 60, Paris, Maio de 1962
190 Enrique Acevedo, Descamisado, op. cit., p. 275
191 Carlos Franqui, Journal de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 450
192 Enrique Oltuski, "Gente del llano", art. cit., p. 51
193 Ernesto Che Guevara, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, op. cit., p. 202
194 Ernesto Che Guevara, Textes Militaires, op. cit., p. 142
195 Ibid.
196 Paco Ignacio Taibo II, La Batalla del Che, Santa Clara, Ed. Politica, Havana, 1989, p. 70
197 Guillermo Cabrera Alvarez, Camilo Cienfuegos, el hombre de mil anecdotas, Política, Havana, 1989, p. 67
198 Paco Ignacio Taibo II, La Batalla del Che, Santa Clara, op. cit., p. 64
199 Ibid., p. 116
200 Ibid., p. 128
201 Ibid., p. 129
202 Carlos Franqui, Journal de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 504
203 Tad Szulc, Castro, Trente Ans de Pouvoir Absolu, op. cit., p. 399
204 Enrique Oltuski, entrevista com o autor, Havana, 1992
205 Lee Lockwood, Castro's Cuba, Cuba's Fidel, The Macmillan Company, Nova Iorque, 1967, p. 80

225

V

UMA REVOLUÇÃO TIPO MELANCIA

Fuzilamentos em La Cabaña

A partir de agora, passará a deitar-se tarde. Para refazer o mundo (a começar por Cuba), para criar o "homem novo" do século XXI (a começar pelos cubanos), os dias
nunca serão suficientemente longos e as noites parecer-lhe-ão demasiado curtas. Só se empresta aos ricos. Não foi Guevara que criou, como alguns afirmam, a expressão
mordaz de Maio de 1968: "Sejamos realistas, exijamos o impossível". Mas poderia ter sido. A sua impaciência em passar à acção era tal, a sua fé na revolução tão
intensa, que nada lhe parecia impossível.
Ocultando-o na penumbra das espessas muralhas da prisão militar de La Cabaña, Castro não lhe presta um mau serviço. Entre o mundo dos combates da Sierra, o recente
frenesim da batalha de Santa Clara e a modernidade estridente de Havana, capital de todos os prazeres e de todos os vícios, que abre as suas fortalezas antes mesmo
de soar o olifante, é necessário algum tempo de adaptação. Depois de vinte e cinco meses praticamente ao relento, no clima frio e agreste dos cumes da Sierra Maestra,
depois da humidade viscosa dos pântanos da planície, da fome, da sede, dos mosquitos, dos bombardeamentos, do ruído da metralha, eis o nosso "selvagem" repentinamente
de regresso à volúpia da "civilização": uma cama com lençóis, água corrente, electricidade, refeições satisfatórias, luxos esquecidos que, não o entusiasmam muito.
"Guevara é Diógenes", afirma Papito Serguera, um advogado culto promovido a comandante e em seguida a embaixador, que ele conheceu na Sierra Maestra e que com ele
manteve um contacto regular, sobretudo porque ambos são excelentes jogadores de xadrez. Tal como Diógenes, coberto com o seu único manto, desprezando honrarias,
riquezas e convenções sociais, el Che se llevaba recio a él mismo "o Che não fazia concessões a si próprio")1. Esta austeridade para consigo mesmo, tocando as raias
do ascetismo que, como vimos, provém do regime severo e da frugalidade imposta pela asma, não predispõe o argentino a saborear os encantos de uma cidade votada aos
langores de uma sensualidade feliz.

227

No grande escritório sombrio e abobadado, destinado há dois séculos aos governadores da Bastilha havanesa, Guevara empenhar-se-á em algo mais do que o bom funcionamento
da prisão. Cortou a sua longa cabeleira, mas não tapou a barba, que continua a recusar-se a crescer em duas pequenas áreas de pele imberbe, de cada lado do queixo.
O seu uniforme verde-azeitona está agora lavado e passado a ferro, a camisa, por fora das calças, mostra apenas uma minúscula estrela dourada em cada ombro e os
bolsos continuam atafulhados de todo o tipo de papéis, lápis, blocos e charutos Montecristo nº 1, além do indispensável inalador contra a asma. Os visitantes ficarão
surpreendidos não só com a sua pronúncia argentina sibilante, que alonga as sílabas, como também com o tom de voz, grave e pausado, invulgar num país onde a regra
é falar alto, engolindo o fim das palavras. Guevara murmurava as suas ordens.
Em relação a Havana, o Che parece ter sido contagiado pela influência de Castro que, como bom "oriental", prefere Santiago, outra metrópole, símbolo de uma Cuba
mais tradicional. Terá Guevara tido tempo, ou até vontade, de descobrir as subtilezas, de decifrar os mistérios dessa cidade portuária, compêndio da história da
ilha? É pouco provável. Enganar-se-ia quem se detivesse apenas nos aspectos exteriores da americanização de Havana. É certo que, a meia-hora de avião de Key West,
a menos de uma hora de Miami, ligada ao "poderoso vizinho" por frotas de ferry-boats, a cidade pode parecer um mero apêndice da Florida. Para lá do Malecon a zona
em frente ao mar ao longo da baía, inundada de sol, atravessada pela brisa fresca da corrente do Golfo, a paisagem pode ainda reforçar essa ilusão. A publicidade
vistosa celebra marcas emblemáticas da produção norte-americana. Lucky Strike, Palmolive, Sears and Roebuck... Grandes automóveis, tipo "banheira" - Buick, Chrysler,
Oldsmobile - exibem os seus cromados, ignorando que são já peças de museu. Encorajados por Batista (que recebia o seu dízimo), erguem-se alguns hotéis ultra-modernos
recém-construídos, réplicas dos de Las Vegas (Nevada). A sua decoração, de um sublime mau-gosto faz as delicias dos amadores de kitch dos anos 50. Se a isto acrescentarmos
casinos, clubes nocturnos, play-houses e outros templos e capelas de jogos e lotarias, Havana poderia ser rotulada de "nova Babilónia", entregue ao estupro e à fornicação.
Todavia, é necessário cautela Por um efeito inesperado de "antropofagia cultural", os havaneses têm conseguido absorver essa rédea solta sem se deixarem corromper.
Impostas por meio século de protectorado económico, após uma independência sob controlo, as mensagens do way of life norte-americano foram passadas pelo pente fino
do "efeito de mestiçagem".
Cidade duas vezes mestiça, com efeito, Havana segregou os enzimas da sua mitologia caribe e africana para cubanizar alegremente o made in USA, transformando-o num
produto nacional autêntico. Basta reparar no andar bamboleante de uma mulata de bigudis no "centro histórico" de Havana Vieja, ou ver os garotos jogar basebol numa
rua de um bairro popular para se compreender

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que a cubanidade não se dissolve na Coca-Cola, muito menos se for enriquecida com uma dose de rum crioulo. Nessa cidade de mais de um milhão de habitantes, aberta
ao oceano e à vida, semeada de palmeiras e de buganvílias, perfumada pela canela e pela banana frita, o caso de Beny Moré e talvez o arquétipo dessa dialéctica do
explorador explorado. Cantor negro do oriente cubano, este "bárbaro do ritmo", ao recuperar a tradição da big band dos antigos escravos criadores do Jazz nos Estados
Unidos, abalou a paisagem musical popular dos mambos, rumbas e boleros, os quais, por sua vez, se tornam produtos de exportação cubana, tão autênticos, como o açúcar
ou o café.
Em 1959, o comandante Guevara não parece ter sentido que Havana é uma festa. O Che nunca foi, como Fidel, um "animal mediático". Seduz sem dar por isso. Não é um
sedutor. Nunca prestou atenção ao seu "marketing político", nem ostentou nenhuma medalha fotogénica da Virgem do Cobre na camisa aberta. Que seja Camilo, com o seu
chapéu de cowboy, no Quartel General de Columbia, a colher os louros da vitória não o incomoda absolutamente nada. São frioleiras. Há outras coisa mais importantes:
a garantia de uma actuação unitária das forças revolucionárias em relação ao comandante supremo, a reacção da burguesia havanesa, que convém vigiar.
O primeiro choque, que ele se apressa a reparar, vem das forças do Directório Revolucionário. Os homens de Faure Chomón e de Rolando Cubela lutaram a seu lado na
província de Las Villas. Mas Castro não quis que eles se integrassem nas colunas do "26 de Julho" para entrarem como vencedores em Havana. Barricaram-se então na
Universidade e no edifício simbólico da sua resistência a Batista o palácio presidencial, que tinham atacado durante algumas horas trágicas, em Maio de 1957, sem
terem conseguido desalojar o ditador. Desta vez, entrincheiraram-se aí recusando-se a sair. Camilo quer fazer uso do canhão! Paradoxalmente, é Guevara, o desordeiro,
que contemporiza e acaba por convencer os dissidentes a abandonarem o local. O juiz Urrutia, nomeado por Castro, em meados de 1958, presidente provisório de Cuba,
pode, pois, tomar posse a 5 de Janeiro. A mil quilómetros dail, em Santiago de Cuba, Castro vai gerindo o suspense com mão de mestre. Mantém durante três dias a
ordem de greve geral, tanto para se precaver contra qualquer nova tentativa de golpe de Estado como para sublinhar que, agora, é ele o Líder máximo. A 3 de Janeiro
inicia, por estrada, uma marcha em direcção a Havana, uma lenta e longa marcha triunfal de cinco dias e cinco noites, na qual sente, a cada minuto, o fervor popular
que a sua passagem provoca. Nunca se cansara desses banhos de multidão - uma droga, dos comícios ao ar livre, onde, perante milhares de pessoas de pé, se entrega
a uma paciente pedagogia da revolução.
Empoleirados em camiões, jipes e até tanques que, ao longo da estrada, se incorporam no cortejo, os soldados rebeldes de braçadeira vermelha e negra reforçam o pitoresco
da procissão "Invencíveis, os barbudos irromperam / para instaurar a paz na terra..."2, celebra Pablo Neruda, que lhes dedica "um momento de canto em louvor da Sierra
Maestra". Em cada etapa, a multidão

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dos partidários vai aumentando, engrossada pelos combatentes da vigésima quinta hora. Tal como o Cid de Corneille partindo ao encontro dos infiéis, partiram trezentos
mas num denodado reforço eram já três mil quando chegaram ao porto".
A chegada a Havana, a 8 de Janeiro, foi uma apoteose. Nessa mesma noite, no acampamento de Columbia, escolhido a dedo porque as forças da "tirania" o haviam declarado
inviolável, Castro faz o seu primeiro grande discurso ao povo de Cuba. Inaugura, com a sua voz aguda, o que constituirá a cerimónia ritual do seu "diálogo" com o
público: um longo monólogo interrompido de vez em quando por perguntas que provocam respostas induzidas "Oralidade quente que atinge as tripas e o coração, transformando
um auditório em comunidade viva"3, segundo o diagnóstico de Régis Debray.
Nessa noite, o discurso do vencedor é uma obra-prima de prudência e de capacidade de manobra. Afirma a primazia do poder civil sobre o militar, garante não nutrir
nenhuma ambição, promete que, longe de se transformar em ditador, se retirará logo que a sua tarefa esteja concluída, como Cincinato. Refere a necessidade de união
e, de súbito, pergunta a Camilo, à sua esquerda: "Estou certo, Camilo?" E Cienfuegos, dando-lhe a réplica aguardada: "Estás certo, Fidel!" Bramidos da multidão delirante.
A fórmula será retomada vezes sem conta. Castro ataca, sem as nomear, às forças do Directório que se apoderaram de armas e munições. "Armas para quê?" E a multidão,
repetindo em coro: "Armas para quê?" Mais tarde, Castro modificará ligeiramente a fórmula "Eleições para quê?" Acabou-se a dissidência do Directório. A maior parte
dos seus membros aderirão ao Movimento. Surge então a marca favorável do destino: os projectores captam nos seus raios uma largada de pombas brancas. Duas delas
vêm pousar nos ombros do orador Mágico!
"Fidel! Fidel!", gritam trezentas ou quatrocentas mil gargantas. É o delírio. Num país de maioria negra, marcado pela santeria, crenças espiritualistas africanas
datando do tempo da escravatura, e pela influência cristã, essas pombas brancas da paz santificam simultaneamente Castro e a revolução "Mas também vos previno",
conclui Castro, indicando que as festividades da revolução terminaram, "que nada nem ninguém poderá salvar os criminosos, os que cometeram assassínios serão punidos
sem piedade"4 É Guevara que é encarregado dessa tarefa ingrata.
Em La Cabaña, a 9 de Janeiro, no dia que se seguiu ao discurso "histórico" de Castro, reuniram-se no pátio dois mil desses combatentes que acorreram ao cheiro da
vitória no último momento. A maior parte não participou nos combates, mas não deixam de ostentar vistosas braçadeiras vermelhas e negras, bem como armas retiradas
dos inúmeros comissariados de polícia, abandonados. Quando perguntam ao Che o que se há-de fazer a essa turba heteróclita, ele responde apenas "Que vão para o diabo!".
Muitos alistar-se-ão nas colunas de comandantes menos rigorosos do que ele. Outros, despeitados, irão engrossar as fileiras da "contra-revolução".

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Após a fuga de Batista, o comportamento dos cubanos não cai nos excessos de violência que se poderiam esperar. É certo que, em Havana, houve nos primeiros dias destruição
e pilhagem dos parquímetros de estacionamento, cujas receitas se sabia reverterem para a mulher de Batista. Houve, na província, alguns ajustes de contas tão irreprimíveis
como sumários: o chefe da polícia de Santa Clara, alguns assassinos a soldo, bem conhecidos, em Santiago. Mas nenhum tumulto mortífero como em 1933, após a queda
de Machado, ou como no ano anterior na Venezuela, após o derrube do ditador Pérez Jiménez. Fidel pediu calma e prometeu que todos os criminosos seriam punidos.
Dito isto, os desmandos dos "esbirros" - nome genérico - tinham sido de tal oídem, violências, torturas, assassínios, que as famílias das vítimas, os amigos e a
maior parte da população reclamam justiça E, portanto, foi feita justiça. Não foi exactamente como Nuremberga, e a depuração foi "razoável", se se tiver em conta
a imensa raiva acumulada contra as infâmias da ditadura. Julgamentos apressados, sem todas as garantias necessárias, isso é ponto assente. Nos Estados Unidos, sobretudo,
sobem os protestos. Mas o moderado Rufo López-Fresquet, ministro das Finanças do primeiro governo de Urrutia, observa pertinentemente, num livro escrito no exílio:
"O estrangeiro, sobretudo o americano, insistia no aspecto jurídico desses julgamentos revolucionários. O cubano interessava-se pelo seu aspecto moral"5.
Claude Julien, enviado especial do jornal Le Monde, precisa: "as duzentas pessoas que foram executadas [...] eram criminosos de direito comum, que mataram com as
suas próprias mãos"6. Herbert Matthews, do New York Times, aceita como provável o número de seiscentos "criminosos de guerra" abatidos. E confessa: "Não conheço
nenhum exemplo de um inocente que tivesse sido executado" Perante a indignação da imprensa e do público americanos, observa que, durante os últimos dois ou três
anos, "sobretudo quando os partidários de Batista matavam os adversários - geralmente depois de os terem torturado - a um ritmo assustador, não tinham surgido protestos
americanos"7. Uma francesa, Marie-Chantal, surpreendida em Havana em lua-de-mel com o marido, Daniel Camus, fotógrafo do Paris-Match, observa em 14 de Janeiro de
1959, num livro-testemunho, de uma inépcia desarmante mas escrito a quente, por isso interessante: "Há dois dias que a imprensa local surge cheia de fotografias
dos assassinos do antigo regime, com descrição pormenorizada das atrocidades e dos crimes que cometeram. Fotografias de identidade, tendo como legenda: Senhor X...
110 assassínios. Senhor Z... 80 mortes". A jovem declara sentir-se arrepiada ao ver na revista Bohemia "metade das duzentas e onze páginas cobertas de fotografias
desses desgraçados torturados que foram encontrados nos postos de polícia da capital. Isso devia ser proibido"8
O presidente Urrutia, antigo presidente do Tribunal da Relação de Oriente, tenta pôr termo a esses métodos expeditos. Castro ignora-o. Sente que a opinião pública
quer ser informada. Manda até publicar um decreto que altera pura e simplesmente a constituição de 1940, que excluía a pena

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de morte. É sobretudo em La Cabaña, portanto sob a autoridade de Che, que se situam os tribunais marciais, e também os tribunais especiais de Havana, com um advogado
de nomeação oficial e, entre os juízes, um notável. Para evitar eventuais erros judiciais, a sentença não é executada de imediato.
A sólida fortaleza, transformada em prisão militar, foi construída pelos espanhóis, no fim do século XVIII, para proteger uma outra fortificação, o Castillo del
Morro, que controla a entrada do porto de Havana; o local foi sempre muito cobiçado por piratas e corsários de todos os tempos. O repórter do Paris-Match e a sua
escandalizada esposa atravessam o túnel submarino, construído pelos franceses, antes de transporem a pesada ponte levadiça. "É ali que "eles" vão ser fuzilados",
indica-lhes um capitão que os guia, mostrando-lhes os fossos secos. "Eles" - os prisioneiros, vestidos de sarja azul com um grande P nas costas - deixam-se fotografar
sem levantar obstáculos. O fuzilamento é uma tradição tão antiga na história cubana dos dois últimos séculos que se formou uma ranhura num muro, à altura do coração,
formada, segundo parece, pelo impacto das balas que atravessam o corpo das vítimas. Na cidadela, transformada agora em museu, a visita guiada inclui o famoso paredón,
o muro dos fuzilamentos.
É provável que Guevara, com a sua intransigência radical à moda de Saint-Just, tenha zelado pelo cumprimento das execuções sem grandes problemas. A revolução não
é um artifício. A sua boa consciência é total. O padre franciscano que assiste os futuros executados conta-lhe, aliás, que os condenados confessam crimes ainda piores
do que aqueles que lhes valeram o paredón. "A justiça revolucionária é uma verdadeira justiça; não é rancor ou raiva doentios. Quando aplicamos a pena de morte,
fazemo-lo correctamente"9, declara o Che. Uma vez que é necessário sujar as mãos, exige que todos os oficiais, incluindo os que se ocupam de questões de intendência,
se revezem para garantir as execuções, a fim de impedir a "profissionalização", tornar a responsabilidade colectiva e evitar a criação de eventuais "pulsões sádicas".
Aliás, é um gringo dos Estados Unidos, Hermann Mark, conhecido de Che, que comanda os pelotões. Não houve banho de sangue por parte dos "fidelistas", como afirma
levianamente o senador democrata norte-americano Wayne Morse. Tal como não houve vinte mil mortos, vítimas da repressão de Batista, como afirma não menos levianamente
a revista Bohemia, número exagerado que, porém, à força de ser repetido, acabará por servir de referência.
A única fífia mediática vem do próprio Fidel Castro que, demasiado convencido da justeza da causa e da ignomínia dos acusados, convoca a imprensa internacional,
numa grande "operação-verdade", para que ela assista, a 22 de Janeiro, no Palácio dos Desportos (com dezoito mil lugares), ao megaprocesso de três antigos oficiais
de Batista, entre os quais um comandante da polícia, Jesús Sosa Blanco, acusado de oitocentos assassínios. A operação é um fracasso. Mesmo confirmada a culpabilidade
dos acusados, a maior parte dos quatrocentos jornalistas fica impressionada com os apupos que interrompem

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as alegações, os gritos de ódio dos espectadores, entre os quais inúmeros camponeses vindos de Oriente. Por muito que o processo seja regular e as acusações devidamente
deduzidas, a imprensa só reterá as palavras do condenado à morte: "Um circo romano!"

Eminência vermelha?

Guevara vai desempenhar um papel de relevo no estabelecimento de uma historiografia oficial, que exalta a gesta heróica da Sierra Maestra derrubando a ditadura,
mas que silencia o papel da população urbana, hostil a Batista e à sua tirania, porém alérgica às orientações comunistas. O eterno conflito entre a serra e a planície.
"Na realidade", escreve Carlos Franqui, "a derrota da ditadura não foi essencialmente de ordem militar. O exército, composto por milhares de soldados, rendeu-se
sem combate"10. Observação exacta. Em muitos casos, a tropa regular passou mesmo, com armas, para o campo rebelde. Os guerrilheiros fizeram, pois, desabar um edifício
mais frágil do que parecia, minado pela corrupção e pela incompetência dos seus quadros.
Não se trata de uma mera discussão académica, mas de um ponto essencial na interpretação da revolução cubana, que irá pôr em causa vidas humanas. Pois é a partir
da leitura dessa revolução vitoriosa que muitos movimentos de oposição na América Latina optarão por orientar ou não o seu combate para a acção militar organizada
em torno do famoso foco de rebelião armada. O Che baseia a sua teoria revolucionária no modelo matricial de uma guerrilha camponesa que consegue vencer um exército
de profissionais. Mas, se não foram tanto os guerrilheiros que venceram mas sim o regime de Batista que se afundou, minado por dentro, então o mal-entendido torna-se
enorme, e a espantosa façanha de trezentos camponeses analfabetos que vencem um exército de cinquenta mil homens fica reduzida a um acidente da história. Já não
há, então, "revolução na revolução". Os comunistas ortodoxos tentarão impor esse ponto de vista, segundo o qual não era necessário recorrer à acção armada para derrubar
Batista, justificando desse modo a sua participação tardia numa luta que não correspondia ao seu esquema marxista do levantamento popular de massas.
Em 1961, num artigo publicado em Verde Olivo, revista das forças armadas sob a sua direcção política, Guevara responde-lhes, sem os nomear. Empenha-se em demostrar
que o caso de Cuba não constitui uma excepção histórica mas, pelo contrário, um exemplo de luta anticolonialista de vanguarda, podendo e devendo ser imitado, pois
os denominadores comuns - a fome, o ódio contra a repressão - são em maior número do que os factores de excepção. Quanto muito, admite dois desses factores. O primeiro,
indubitável, segundo ele, é "essa força da natureza chamada Fidel Castro [...] com uma personalidade extraordinária e qualidades de grande conductor". O outro factor
particular da situação cubana provém do facto de que "o imperialismo

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norte-americano estava desorientado. [...] Quando compreendeu que o grupo de jovens inexperientes que entrava triunfalmente nas ruas de Havana tinha uma consciência
clara do seu dever político e a firme decisão de orientar a vida nesse sentido, era já demasiado tarde. Foi assim que nasceu, em Janeiro de 1959, a primeira revolução
social de toda a região das Caraíbas e a mais profunda das revoluções americanas"11.
Enquanto Castro se instala no vigésimo terceiro andar do hotel Hilton (com elevador privativo), Guevara fixa-se na velha prisão espanhola. Logo que chega, reúne
os seus oficiais para analisar com eles o significado da vitória e para lhes explicar as tarefas que os esperam a partir de agora. Orlando Borrego, um jovem escriturário
de vinte e um anos, promovido a primeiro-tenente ao alistar-se na coluna do Che, em Las Villas, descreveu como, diante de um mapa-múndi, o comandante da fortaleza,
com a sua estranha pronúncia argentina e as suas locuções cubanas, situou o acontecimento no contexto internacional. Desta vez, Guevara já não hesita em falar de
marxismo, de Lenine, de Outubro de 1917, da URSS. Para fazer entrar a revolução na realidade do povo cubano, é o exército rebelde que deve dar o exemplo do trabalho
e do sacrifício, declara ele.12 Nesses primeiros dias da revolução, Havana fervilha numa agitação mais festiva do que inquieta. Em La Cabaña reina ainda a confusão.
O romancista Cabrera Infante, que nessa altura é ainda um jovem jornalista com a paixão do cinema, vem saber notícias do seu amigo Franqui junto do comandante Guevara,
que está desejoso por conhecer. Conta, divertido, como, num corredor, o Che se encontra cara a cara com um general de Batista que, vendo-o à civil, não deixa de
o tratar por comandante, pondo-se em sentido. "Guevara deu-me a sensação de estar um pouco retraído, como se pedisse desculpa por ser argentino, por não ser inteiramente
cubano"13.
O testemunho de Martha Frayde é diferente. Médica, descendente da grande burguesia crioula, membro do Partido Ortodoxo que, graças à sua palavra de ordem. "O dinheiro
é uma afronta", seduzira Castro, amiga pessoal deste último e das suas irmãs, vai a La Cabaña recuperar a sua ficha policial, depositada ali pelo BRAC (Gabinete
de Repressão Anticomunista). Num pequeno livro escrito no exílio, após três anos de prisão castrista, descreve o ambiente em que encontrou o argentino; este tinha
a seu lado uma jovem secretária loura, Aleida, que não mais o deixaria. "O Che intrigava os cubanos. A sua personalidade e a sua origem fascinavam-nos. [...] Vimo-nos
com frequência e, nessa época, isso não era fácil. De facto, o Che estava fortemente guardado pelos camaradas, que queriam poupar-lhe toda a fadiga, afastando-o
dos outros. Estava nessa altura diminuído por crises de asma violentas e frequentes. [...] O Che vivia ali num ambiente sórdido, numa sala escura, com o inalador
e o seu mate ao alcance da mão"14. Martha Frayde nota como, desde o início, as hierarquias do exército rebelde se voltaram para os homens considerados nessa época
mais fiáveis do que ninguém por terem sido treinados na disciplina e no secretismo. "O seu grupo era constituído por

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camaradas comunistas. [...] Entre os civis que gravitavam à sua volta, como se ele fosse um deus, havia uma figura que, imediatamente, me despertou a atenção. Chamava-se
Osvaldo Sánchez. Era o responsável do Partido Comunista Cubano para a segurança dos seus dirigentes. Tinha feito a sua formação na URSS. Era a caricatura típica
do agente do KGB, quase sempre mudo, sóbrio, grave, sempre vestido à civil e com um chapéu de feltro clássico..."15
Sobre o comportamento do Che em relação a Fidel, a apresentação habitual do binómio sagrado da revolução pretende que Guevara surja como o discípulo fascinado, pouco
disposto a brilhar e menos ainda a comparar-se com o "gigante" ainda não estatuificado, mas proclamado, desde os tempos do México, "ardente profeta da aurora". Ora
a impressão do testemunho, insólito, afasta-se do imaginário convencional, aproximando-se mais do estereótipo que circulava na América Latina do argentino com tendência
a dar nas vistas. "O Che tinha um grande orgulho em falar francês e gostava de mostrar que era culto e brilhante. Penso que ele se julgava superior a Fidel, mais
cáustico, melhor estratega. Adorava falar. Nós ficávamos horas a ouvi-lo. De boca aberta"16.
Se é (modesto) burgrave em La Cabaña, visto que é chefe da cidadela, Guevara ainda não o é na equipa dirigente do país, pelo menos na equipa oficial. Castro, que
para já não tem outro título senão o de comandante supremo de um exército que vai reestruturando, deixou ao presidente Urrutia o cuidado de constituir um governo
competente e moderado. Nele, os membros do "26 de Julho" estão em minoria, no meio de uma maioria de notáveis liberais, reformistas, gente adequada para tranquilizar
uma população cheia de desconfiança em relação aos comunistas. Obcecada com a sua paranóia anticomunista, a administração Eisenhower ainda não compreendeu muito
bem o que acabou de acontecer com a queda de Batista e a chegada inopinada desses Robins dos Bosques barbudos. Washington começa a interrogar-se se os novos senhores
da ilha irão permitir que Cuba permaneça na sua zona de influência. O que está longe de avaliar é a onda de choque que o fenómeno cubano irá provocar na América
Latina, a sua coutada. Enquanto não consolida o seu poder, Fidel Castro, lembrando-se sem dúvida das conversas com Guevara, procura não dar nenhum pretexto ao big
brother para intervir militarmente, como o fez na Guatemala, há cinco anos.
Tratando-se do seu lugar-tenente argentino, Castro é de uma prudência extrema. A penumbra de La Cabaña parece-lhe propícia a manter afastado dos holofotes esse belo
estrangeiro, cuja fama começa a tornar-se lendária. Foi já visto em público, muito romântico, com o seu rosto pálido, os cabelos compridos, a boina com a estrela,
mas tem fama de incendiário. As suas respostas bruscas aos jornalistas que o assaltam, as suas condenações radicais do imperialismo, a sua liberdade de linguagem
correm o risco de assustar. Já entre as fileiras da guerrilha corria um son, uma canção tipicamente cubana, que marcava bem o lado "rolo-compressor" da personagem
e da sua coluna de maltrapilhos: "Quilate de la acera/Mira que te tumbo / Que aqui viene el Che Guevara / Acabando con el mundo". Mais vale então manter à margem

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da revolução aquele que alguns não hesitarão em classificar de "eminência vermelha" do comandante chefe - análise um pouco apressada, pois Castro nunca aceitará
à sua volta nenhuma eminência, nem sequer vermelha. Alguns problemas de saúde, bastante oportunos, justificam o seu discreto afastamento. De facto, foi detectado
no Che um foco de tuberculose, o que, a acrescentar à asma, às duras experiências de uma campanha esgotante, às crises de malária e a um gosto imoderado pelo charuto,
impõe uma verdadeira cura.
Guevara não abandona por completo as muralhas húmidas da fortaleza, mas aceita ir "repousar" na elegante estância balnear de Tarara, a vinte quilómetios de Havana,
numa vivenda à beira-mar, confiscada a um potentado do antigo regime. Um Studebaker azul, último modelo (1958), leva-o lá em poucos minutos. Não muito longe, em
Cojimar, o pequeno porto de pesca em que Hemingway (que mora perto) se inspirou para escrever O velho e o mar, Castro fará também de um terraço alcandorado no alto
de uma colina uma das suas inúmeras pousadas. Em matéria de repouso, a vivenda de Che em Tarara torna-se em breve na sede do brain-trust da revolução, o ponto de
encontro informal dos comandantes do primeiro círculo. À beira de uma praia magnífica, com um pano de fundo de jardim tropical, num casarão confortável, em plena
efervescência permanente - mas Cuba inteira está em efeivescência -, enquanto soldados armados entram, saem, trazem café, constroem-se alguns sonhos delirantes de
libertação latino-americana, mas também uma segunda lei de reforma agrária, um código penal militar, o regulamento da marinha mercante, uma nova reflexão sobre o
papel do sector bancário, e muitos outros projectos de transformação social, económica e política do país. A ponto de Tad Szulc, apoiando-se em confidências de "velhos"
comunistas como Fabio Abraham Grobart, afirmar que se tratava de um verdadeiro "governo sombra" reunido em torno de Fidel e do Che: Raul, Cienfuegos, Ramiro Valdés
(braço direito de Guevara e futuro chefe dos serviços secretos), bem como alguns marxistas declarados, Alfredo Guevara, velho amigo comunista de Fidel dos tempos
da universidade, regressado do exílio, e Nuñez Jiménez, o geógrafo marxista que apareceu em Santa Clara.
Esse Fábio Giobart é uma figura bastante enigmática, na época já com uma certa idade, procurando nunca aparecer em fotografias. De origem polaca, promovido, segundo
consta, a coronel do KGB, eminência bastante parda dos serviços soviéticos, teria começado por instalar, em 1928, a partir de Havana, uma rede de espionagem através
do continente latino-americano Juan Vivés, um jovem do pelotão suicida do Che em Las Villas, posteriormente recrutado para a contra-espionagem militar por Ramiro
Valdés, estava de guarda a 3 de Março de 1959 quando Castro teve uma reunião com Grobart, no gabinete do Che em La Cabaña. Segundo Vivés, Guevara insistiu em manter
confidencial esse encontro, uma vez que, no dia seguinte, arrancou do registo de entradas a respectiva página. Três dias depois, de forma discreta, duas missões
com membros do PSP partiram de avião, uma para Moscovo, dirigida por Carlos Rafael Rodríguez, a outra para Pequim. Foi Ramiro Valdés que se

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encarregou de obter, dos Negócios Estrangeiros, passaportes virgens para os emissários especiais, e de os mandar preencher pelos serviços. Aproveitou, aliás, para
retirar cerca de cinquenta passaportes. De tal forma que, com o espírito travesso próprio da juventude, o tal Vivés, de dezasseis anos, que conta esta história em
Les Maìtres de Cuba, se diverte a fabricar para o Che um passaporte com o nome de Carlos Gardel, cantor de tango (A brincadeira valeu-lhe quinze dias de detenção,
conta ele).
E em Tarara que, muito discretamente, comunistas de peso como Blas Roca, Carlos Rafael Rodríguez e Anibal Escalante vêm escutar Fidel. São eles os primeiros a aperceber-se
que, se há dois governos paralelos em Cuba - o do presidente Urrutia e o "outro" -, o único que detém o poder é aquele onde está Castro. Isto é de tal forma verdade
que o primeiro ministro em exercício, o bastonário Miro Cardona, para não fazer apenas figura de corpo presente, decide demitir-se, a 13 de Fevereiro. Fidel Castro,
que já mostrara estar interessado no cargo, é imediatamente empossado - desta vez oficialmente - na chefia do Conselho de Ministros.
O sociólogo norte-americano Wright Mills ficou impressionado com o "vazio ideológico" que nessa época reinava em Cuba entre a classe política. Falava-se aí, como
nos Estados Unidos, de "democracia" e de "mundo livre", sem se perceber que esses conceitos não faziam sentido numa ditadura manipulada por Batista. Por isso, apesar
do Relatório Kruchtchev e da revelação dos crimes de Estaline em 1956, apesar do esmagamento pelos soviéticos da revolta na Hungria, nesse mesmo ano, uma política
de justiça social inspirada na filosofia marxista era ainda susceptível, no fim dos anos cinquenta, de provocar a adesão, desde que se adaptasse à mentalidade do
país e que invocasse mais José Marti do que Karl Marx. Nesta perspectiva, se Castro se "colou" habilmente à sensibilidade do país, dizendo o que as pessoas queriam
ouvir, sem dar um passo em falso, Guevara, em contrapartida, manifesta desde o início um radicalismo que destoa, surpreende e até assusta. Contrapondo-se a pachanga,
ao arraial folclórico dos amanhãs que cantam, e que dançam, ele encarna o espírito de seriedade, recorda as virtudes de resistência e de determinação que prevaleceram
na Sierra e, opondo-se à improvisação festiva, exige pontualidade e eficácia.
por muito pouco cubano que seja, este comportamento vale-lhe a idolatria dos puros, dos incondicionais da mudança radical, que vêem nele o modelo a seguir, o arquétipo
do revolucionário exemplar. Não deixa de ser surpreendente verificar que, entre todos aqueles que conviveram com ele, que se bateram ou que trabalharam a seu lado,
são raros os que saíram indemnes desse encontro. Como se tivessem sido tocados por uma espécie de chama, declaram-se marcados, quase transformados pelo contacto
com um ser considerado excepcional. Outros, pelo contrário, não tendo tido com ele senão um contacto esporádico, sentem-se incomodados com esse modelo culpabilizador
e declaram que ele é um pesado", um chato - censura grave num país em que o uso é consubstancial à vida. Pesado é "aquele que não sabe viver"

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ou que, como o nosso herói, só aceitará viver quando for feita justiça na América Latina e no mundo inteiro. O que significa: alguém que corre ao encontro da morte.

"Não sou um artista de cinema"

Quando, alguns dias após a vitória, um jornal pergunta a Guevara qual foi o momento mais tocante da sua vida de guerrilheiro, ele declara que foi quando ouviu a
voz do pai ao telefone, seis anos depois de ter deixado o seu país. Mas não é ele, demasiado austero, que toma a iniciativa de convidar a família a vir a Cuba. É
Camilo Cienfuegos que, sem ele saber, lhe oferece esse presente; dá instruções para mandar vir a "tribo" Guevara no mesmo avião cubano que traz da Argentina um grupo
de exilados anti-Batista e alguns jornalistas amigos. O filho-prodígio só é informado a 9 de Janeiro, poucos momentos antes da chegada do voo, e abraça a mãe em
lágrimas, o pai que, sempre um pouco teatral, beija o chão de Cuba ao sair do avião, Célia, a irmã mais velha e Juan Martin, aliás Patatín, o irmão mais novo, já
com catorze anos, e que ele adora.
É com a mãe, Célia de la Serna, inteligente e culta, mulher de carácter e corajosa, que Ernesto sempre se relacionou melhor. Foi ela que tomou a iniciativa de empurrar
para o exterior o pequeno asmático sofredor, instigando-o a lutar, sozinho, contra a doença. Em relação ao pai, tipo simpático e prosaico, que vive em Buenos Aires
separado da mulher mas que mantém contacto com o domicílio conjugal, adopta uma atitude um tanto protectora. Quando o pai lhe pergunta, a ele que acaba de sair do
seu mundo da guerrilha, o que conta agora fazer com o seu diploma de médico, responde à pergunta absurda com a indulgência trocista que é dispensada àqueles que
não entendem nada de nada. "Há muito que larguei a medicina. Sou um combatente que, por agora, trabalha para apoiar um governo. O que vai ser de mim, ignoro-o. Não
faço a menor ideia onde vou esticar o pernil..."17.
Camilo reservou quartos para os Guevara no décimo-sexto andar do hotel Hilton. Mas quando, após alguns dias naquele palácio, Guevara Lynch manifesta o desejo de
mudar para um hotel menos luxuoso, o seu ilustre filho, conhecendo Fidel Castro, previne-o que se arriscam a ir parar a um sítio ainda mais elegante, o que de facto
acontece. Se o Che é muito austero, não ignora que os cubanos sabem mostrar-se generosos, por vezes até à ostentação. Mas quando o pai pergunta ainda se é possível
ir ver in situ, em Oriente, o teatro das operações da guerrilha na Sierra Maestra, Ernesto filho responde que sim senhor, é possível, e que pode colocar um jipe
e um motorista à sua disposição, desde que ele, Ernesto pai, pague a gasolina do seu próprio bolso, pois está fora de questão utilizar um combustível que é pago
em divisas pelo povo cubano para ir fazer passeatas de diversão. O projecto é, portanto, adiado.
Quanto muito, vão todos a Santa Clara, para conhecerem os pais de Aleida, a nova companheira do filho.

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O pai, divertido por ver o filho tão mudado, entregar-se-á mais tarde à comparação clássica com o antes: "Quando partiu era quase imberbe, e agora tinha uma barba
esparsa. Era magro, queimado do sol. Os olhos não tinham mudado, penetrantes, trocistas. Dantes, falava depressa, as ideias atropelavam-se, comia as palavras. Agora
falava pausadamente, com segurança. Reflectia antes de responder, coisa que antes não fazia nunca. [...] Tinha dificuldade em reconhecer o nosso Ernesto. Estava
diferente. Parecia carregar nos ombros uma enorme responsabilidade..."18. Fascinado com a transfiguração, Guevara Lynch vai, anónimo, assistir a uma conferência
desse "comandante Guevara", que muito o orgulha: "Falou durante duas horas com clareza e precisão, numa voz pausada, sem fazer gestos nem mímicas, com as mãos apoiadas
no púlpito, como se reflectisse em voz alta"19. Uma forma de discorrer que se demarca da retórica utilizada pelo Líder máximo...
Este reencontro familiar despertou em Ernesto o desejo de voltar a ver a filha, Hildita, que ainda não sabia andar quando ele saiu do México, em Novembro de 1956.
Vai fazer três anos agora. A menina chega a Havana a 21 de Janeiro, caminhando a passos curtos ao lado da mãe, Hilda Gadea. Esta, em 1958, tinha enviado uma carta
ao marido guerrilheiro, manifestando o desejo de se juntar à luta, hipótese que Ernesto pôs de parte, argumentando com a ofensiva iminente das forças de Batista.
Tanta coisa mudou desde então... "Com a sua franqueza habitual, Ernesto disse-me que tinha outra mulher, que conhecera durante os combates de Santa Clara e, com
grande pesar meu, mas fiel às nossas convicções, resolvemos divorciar-nos. [...] Recordo-me de um pormenor que me comoveu. Quando viu a minha tristeza, disse-me:
"Mais valia que eu tivesse morrido em combate""20.
A peruana congratula-se por ele estar vivo: tem ainda uma missão a cumprir em Cuba e na América Latina, diz-lhe ela. Ficam então "amigos e camaradas". Hilda instala-se
em Havana, com a filha. O divórcio é decretado a 22 de Maio de 1959.
Após um mês de estadia, a família argentina volta a partir. Ernesto acompanha o pai ao aeroporto quando um passageiro argentino, compatriota, o reconhece, se aproxima
dele e vem apertar-lhe a mão, pedindo-lhe um autógrafo. Virando-lhe as costas, brusco: "Não sou um artista de cinema"21, declara o Che, que parece sentir uma aversão
sincera pelas honrarias. Timidez? Orgulho? Numa sociedade jovial, onde todos se tratam por tu, ele prefere manter as distâncias, quer isso agrade ou não. Cabrera
Infante recorda-se de um incidente ocorrido em Janeiro de
1959 e exagerado por um efeito de lupa catódica. Um jornalista muito conhecido na época, German Pinelli, tinha começado a sua entrevista na televisão, em directo,
com um "Muito bem, Che...", imediatamente interrompido pelo visado: "Para si, sou o comandante Guevara. Che, reservo-o aos meus companheiros e aos meus amigos".
O jornalista fica embaraçadíssimo. "Nunca um cubano reagiria daquela maneira"22, indigna-se ainda o romancista, passados trinta anos.
Guevara faz parte, evidentemente, desde o início, do regime de excepção instaurado pela revolução, quanto mais não seja pela protecção cerrada que

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lhe é dispensada (e à qual, aliás, ele tenta escapar). Procura sobretudo não se deixar amolecer por outros privilégios menos visíveis, mais insidiosos.
"Comandante da revolução" é já uma designação controlada, designando apenas essa nobreza de armas restrita que ganhou a sua estrela no combate. É o título mais elevado.
"Esta é a única revolução no mundo de onde não saiu um general, nem mesmo um coronel"23, declarou Castro um dia*. Quando cada um dos membros dessa honrosa confraria
é convidado a atribuir a si próprio um salário mensal, Guevara outorga-se um bastante irrisório: cento e vinte e cinco pesos. Mesmo equiparada ao dólar, esta quantia
é baixa. Certos ministros atribuem a si próprios setecentos e cinquenta pesos, outros mil. Será afectação? Decerto que não. É antes a preocupação de ajustar a sua
vida a uma determinada ética. Àqueles que poderiam considerar essa austeridade pessoal exagerada, o nosso jansenista recordaria que o salário anual de um camponês
não ultrapassava então noventa e dois pesos.

Nota: * Os coronéis e os generais irão surgir quando a hierarquia militar cubana alinhar pelo modelo soviético.

Quando, ao chegar a La Cabaña, descobre nos aposentos do general Tabernilla, chefe do Estado-Maior de Batista, um cofre cheio de divisas, comenta, num trocadilho
engraçado, de difícil tradução: "Aquí se podrá meter la pata, pero la mano jamás" ("Aqui pode-se meter água, mas a mão nunca"). A era das prevaricações está ultrapassada.
Neste ponto, a sua susceptibilidade é extrema. Basta uma "breve" da revista Carteles, a comunicar que "o comandante Guevara fixou a sua residência em Tarara", para
ele se irritar e protestar junto de Carlos Franqui, chefe de redacção da revista e director de Revolución, outrora folha clandestina e actualmente o jornal diário
do novo regime. Que não se imagine que ele se enfiou nalguma Tebaida. É só porque está doente, explica ele, e porque o seu salário de oficial é demasiado baixo para
poder alojar as pessoas que o acompanham, e porque os médicos recomendaram o repouso à beira-mar. Escolheu a menos luxuosa das vivendas abandonadas pela corte de
Batista. Sem por isso deixar as suas actividades em La Cabana.
Apesar das recomendações médicas de prudência e descanso, Guevara recusa abstrair-se do ambiente efervescente que reina em Cuba. O desafio é imenso e é necessário
andar depressa para fazer tábua-rasa do passado, reorganizar todo o país no plano económico e social. Parece-lhe elementar que, à sua volta, ninguém conceda a si
próprio a menor trégua. Num dia de Janeiro, um dos seus antigos capitães da província de Las Villas, que ele nomeou comissário da revolução na pequena cidade de
Cólon, vem visitá-lo na sua Bastilha de Havana. O jovem oficial, que se aperaltou todo, apresenta-se e faz continência ao seu comandante. O qual, fingindo não o
ter visto, continua a escrever atrás da secretária e ordena que mandem entrar o tal capitão. Espanto do visado e de Aleida, sempre presente: "Mas ele está à sua
frente...". "Não conheço este senhor", responde o Che. "O capitão do exército rebelde, aquele que eu deixei em Cólon, deve estar neste momento a trabalhar lá, noite
e dia,

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extenuado, esgotado, mal tendo tempo para comer, para dormir ou para se lavar, com tanto que há a fazer para organizar e consolidar a revolução. Que esta coisa que
está à minha frente se retire, que entre então o revolucionário." Envergonhada, a "coisa" retira-se. Muitos anos mais tarde, num pequeno livro-testemunho, o capitão
Julio Chaviano, que conta esta história, afirma, à laia de epílogo: "Que grande lição recebi do Mestre..."24.
São incontáveis os exemplos deste espírito rigoroso, nos limites do humano, deste voluntarismo pascaliano dos quatro costados exigido pelo Che para servir a causa,
de corpo e alma. Nem todos são exibidos por Guevara com a mesma teatrealidade cruel; mas nenhum está isento dessa mística do sacrifício, que por vezes chega ao ponto
de esquecer o homem, sem piedade, em nome dessa revolução que, contudo, se destina a restabelecer o homem na sua plenitude. O Che gostaria de ter à sua volta samurais.
E também alguns kamikazes. Em Santa Clara descompusera o seu "pelotão suicida", que hesitava em tomar de assalto um ninho de metralhadora assassino. Arrastando os
indecisos, foi o primeiro a lançar-se ao ataque, aos berros, deixando estupefactos os soldados de Batista, que se renderam. É com o mesmo ardor que ele gostaria
que prosseguisse o combate em tempo de "paz". Mas, em La Cabana, queixa-se de só dispor de burocratas mais ou menos analfabetos para instruir os processos. Dura
realidade.

"Vamos viver coisas extraordinárias"

Na repartição das tarefas, Castro, que quer fazer tudo, saber tudo, dirigir tudo, destina a si próprio, prioritariamente, a política interna, delicada, e a gestão
das relações com os Estados Unidos, não menos delicada. Guevara, desde o seu encontro no México, nunca lhe escondeu que, se chegassem à vitória, considerava que
a sua missão estava cumprida e recuperaria a liberdade para ir erguer noutras paragens a sua lança contra outros moinhos do monstro imperialista - D. Quixote é,
por definição, cavaleiro andante. Mas Fidel não vê as coisas desse modo. Explica ao seu fiel companheiro que a vitória ainda não está garantida, que a tarefa é imensa,
que precisa dele, mesmo que, de momento, seja conveniente que ele se mantenha em segundo plano. Confia-lhe, entre outras actividades a desenvolver com a máxima discrição,
as que respeitam aos movimentos de libertação na América Latina.
Prevendo que o argentino possa vir a ter necessidade disso - pois, um dia, terá de assumir funções oficiais -, declara-o "cidadão cubano de nascimento", a 9 de Fevereiro
de 1959. A terminologia legal não deixa de ser um tanto humorística, mas a distinção é merecida, para quem arriscou a vida mais de vinte vezes ao serviço desse país
de adopção. O precedente, prestigioso, é o de um herói nacional da independência: Maximo Gomez, natural de Santo Domingo mas consagrado cidadão honorário no panteão
da trilogia dos libertadores, com José Marti, o "Apóstolo", e António Maceo, o "Titã".

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Em 1964, na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, Guevara responderá ao delegado da Nicarágua, que ironizara a propósito da pronúncia argentina desse
estranho representante de Cuba: "Nasci na Argentina; ninguém o ignora. Sou cubano e sou também argentino, e, se os digníssimos representantes da América Latina não
se ofenderem, sinto-me também patriota da América Latina, o mais patriota de qualquer país da América Latina". E acrescenta, sem que ninguém pressinta a sua partida
iminente: "No momento oportuno, estarei pronto a dar a vida pela liberdade de um país da América Latina, sem pedir nada a ninguém, sem nada exigir..."25.
Ei-lo então, no início de 1959, superintendente-geral da cooperação técnica, militar e financeira que, logo nas primeiras semanas, Cuba vai organizar para apoiar
os "países irmãos" da América Latina a travarem, por seu turno, o seu justo combate. Para este cidadão latino-americano, a tarefa, de alcance bolivariano, tem qualquer
coisa de excitante.
O país irmão mais próximo fica apenas a setenta e sete quilómetros da costa cubana; é o Haiti. Esquece-se por vezes que essa região destacada da negritude antilhense,
de língua francesa e crioula, é também uma parte integrante da América dita "Latina". Reina aí um ditador, François Duvalier, aliás Papa Doe, preocupado com a vitória
desses barbudos que conseguiram expulsar o seu compadre Batista. Imaginando que um sinal de simpatia poderá desencorajar eventuais projectos de desestabilização
do seu regime, tenta utilizar os talentos de um poeta "subversivo", mantido em residência vigiada, René Depestre. Autoriza-o a publicar, no jornal controlado por
Port-au-Prince, um artigo saudando o novo poder em Cuba. Pior a emenda que o soneto! A vitória dos guerrilheiros, exulta o poeta, "é uma música que nos faz nascer
o sol nas tripas". É "a vitória das forças tumultuosas da justiça e da razão [sobre] os tenebrosos instigadores do terror e da corrupção"26. O artigo, que dá brado,
incita Fidel e o Che a convidarem o autor a vir a Cuba, a pretexto de um inocente colóquio sobre poesia.
Mulato, rebelde e, aos 33 anos, comunista já experimentado, Depestre denuncia de imediato os desmandos dos tontons-macoutes do seu país, análogos aos dos "esbirros"
cubanos. Acolhido em Havana pelo bardo nacional, Nicolas Guillén, comunista genuíno, fica sobretudo espantado por ser conduzido a casa de Guevara por dois membros
do bureau político do PSP (comunista), que ele conhece, Anibal Escalante e Osvaldo Sánchez (o homem cujo ar de KGB tinha impressionado Martha Frayde, em La Cabana).
Depestre, que mais tarde se tornará um romancista bastante produtivo, laureado com o Prémio Renaudot 1988, em França, faz-nos uma viva descrição do seu primeiro
encontro com o Che, em Tarara, numa tarde de domingo de Março de 1959.
Mal acaba de beber o café oferecido por Aleida, o haitiano é recebido em privado, no primeiro andar, pelo argentino, que acaba de vencer uma crise de asma e que
está deitado na cama, de botas e com as calças da farda, mas em tronco nu. A vivenda enxameia de gente. Comandantes, amigos, Camilo

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Cienfuegos, Almeida, entram e saem, lançam cumprimentos ruidosos. "Era um corrupio louco... O Che exprimia-se num francês aplicado, por vezes em busca das palavras,
mas muito claro. Tinha uma ideia romântica do Haiti, da sua luta contra a escravatura, na época da Revolução Francesa, etc. Tracei-lhe um quadro detalhado da situação
no meu país e ele fez-me um resumo muito sumário do projecto revolucionário cubano. Disse-lhe então: "Comandante, se não estou em erro, trata-se de uma revolução
radical". Ele olhou-me, malicioso, e respondeu: "Vou confiar-te um segredo. É uma revolução so-cia-lista" (destacando as sílabas). Depois pôs um dedo na boca, para
indicar que era uma confidência"27. Quando Depestre lhe fala do seu projecto de participar num congresso de escritores em Roma, Guevara aconselha-o então: "Não é
em Roma, mas aqui, que as coisas estão a acontecer... Fique por cá. Vamos viver coisas extraordinárias"28. O poeta ficará dezanove anos em Cuba. Exercerá uma influência
considerável. A sua admiração pelo Che não parará de aumentar. "Com ele, nunca senti que estava a lidar com um branco. Bom sinal"29.
"Estão aqui, há dois meses, uns cinquenta haitianos agrupados em torno de um deles, um senador com um discurso ambíguo", prossegue Guevara. "Vais ajudar-me a trabalhar
com eles e receber um treino militar. Se tudo correr bem, vamos desembarcar no Haiti e abrir uma dupla frente com Santo Domingo..."30. A história irá passar-se de
outra forma. Há, de facto, um desembarque, em Junho de 1959, em Santo Domingo, onde Batista se refugiou, outra metade da ilha Espanhola* partilhada entre os dois
Estados, mas as autoridades e a CIA estavam informadas e a expedição fracassa. Nenhum sobrevivente. Desse modo, o projecto haitiano é adiado sine die. E Depestre,
em Havana, será catalogado como um "homem do Che".

Nota: * República Dominicana.

Ultrapassando as instituições, foram-se constituindo redes, de fronteiras pouco nítidas, que prolongam o espírito de corpo das colunas rebeldes, e cuja manifestação
fundamental é uma obediência privilegiada a um chefe, um comandante, de quem se recebe directivas e a quem se presta contas. Não é a gens romana, porque não se trata
de "clientela", mas antes a "liga dos antigos combatentes e dos seus amigos" - cuja aristocracia subtil se media pela antiguidade do alistamento a partir do 26 de
Julho de 1953, data fundadora do ataque ao quartel Moncada. Isso provoca alguma confusão, mas Fidel gere as coisas com mão de mestre; os serviços de informações
funcionam bem. Soberano, não proíbe aos seus barões que tenham os seus próprios apoiantes. Assim, há os homens do próprio Fidel, os do Che, os de Raul, de Camilo,
de Almeida, os do Directório, etc. As coisas irão complicar-se quando os homens do Partido Comunista, planeta à parte, tentarão puxar para a sua órbita o conjunto
da constelação castrista "para te comer melhor, minha netinha"...
Logo a seguir à vitória, as tendências dessas redes tornaram-se mais visíveis, cada uma marcando a sua cor política. "Há mais coisas a separar-nos que aquilo que
nos unia face ao inimigo", constata então Carlos Franqui,

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que vê na posição de uns e outros em relação ao comunismo a linha de clivagem que já surgira durante a guerra entre a serra e a planície. "A cidade travou um combate
em quinze assaltos, mas a vitória escapou-lhe. Fidel e a Sierra venceram por knock-outs"31.
Entre as forças rebeldes, a corrente mais forte é, incontestavelmente, a do Che e de Raul, próximos dos comunistas. Camilo Cienfuegos está do lado deles, talvez
mais "guevarista" que "marxista". A outra corrente manifesta, pelo contrário, uma clara aversão ao comunismo. Nela encontram-se dirigentes do Movimento de 26 de
Julho urbano, como Faustino Pérez, cristão convicto, o jornal diário Revolución, com Carlos Franqui e, sobretudo, a CTC •(Confederação dos Trabalhadores Cubanos),
dirigida por David Salvador. Este antigo operário do açúcar, muito popular, "fidelista" moderado, dirigente de um frente obrero na época de Batista, mantém uma orientação
um tanto corporativista, defendendo o direito à greve e resistindo à infiltração comunista - até ao momento em que, em 1960, será neutralizado por Castro.
Uma terceira corrente, dita "democrática", reúne simultaneamente comandantes como Juan Almeida e dirigentes da clandestinidade, de filiação "ortodoxa", como Raul
Chibas, Huber Matos ou Manuel Ray, principal organizador da resistência cívica das classes médias que se opunham à ditadura.
Face a este poder revolucionário cujos matizes não tardarão a ser detectados, ergue-se uma nova resistência poderosa, a da burguesia económica e dos media. Imprensa
escrita, rádios e televisão, estão longe de estar conquistadas para o movimento castrista. Quanto aos grandes proprietários açucareiros, ligados às companhias norte-americanas,
em breve compreendem que é necessário aliarem-se à burguesia nacionalista e aos impérios financeiros dos Estados Unidos implantados na electricidade, nos telefones,
no petróleo, na banca...

Marxista independente

Politólogos, historiadores e biógrafos têm vindo a interrogar-se se Fidel Castro já seria comunista quando entrou triunfalmente em Havana ou se foi a sua alma danada,
Che Guevara, que o converteu à religião marxista de "São Karl". A questão não é ociosa, pois se existe uma grande cumplicidade entre os dois homens, eles ainda não
sabem que não estão a correr atrás da mesma quimera.
Apesar dos seus arrebatamentos, Castro é mais o homem do hic et nunc. do aqui e do agora, porque cada dia que passa exige um ajustamento táctico, se não estratégico.
Avança passo a passo. Ser marxista e, por maioria de razão, comunista, implica a adesão a um padrão pré-estabelecido. Demasiado rígido, demasiado constrangedor para
quem navega por instinto, sem nunca estar certo de conservar o leme. Mais tarde afirmará que foi marxista-leninista "sem o saber", desde os tempos da Universidade.
Admirável espírito de jesuíta! A 23 de Abril de 1959, numa conferência de imprensa em Nova Iorque, por

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ocasião de uma memorável digressão de relações públicas pelos Estados Unidos, declara, contudo, o que o auditório quer ouvir: "Pretendemos estabelecer em Cuba uma
verdadeira democracia, sem o menor traço de fascismo, peronismo ou comunismo. Somos contra todas as formas de totalitarismo"32.
O Che não teve sobre Castro a influência ideológica que lhe atribuíram. É certo que impressionou Fidel pela sua cultura, pelo seu ardor combativo, a sua inteligência
fulgurante, a sua lealdade absoluta, o seu radicalismo revolucionário; contribuiu, sem sombra de dúvida, para colorir de "antimperialismo ianque" o nacionalismo
de Fidel, mas era chover no molhado. Castro inspira-se bastante numa história nacional que conhece bem e, juntamente com José Marti, o seu modelo não seria Marx,
mas sim Antonio Guiteras, o jovem ministro do Interior do governo Grau, que militava contra o estatuto de protectorado imposto pela emenda Platt, e que a polícia
liquidou após o golpe de Estado de Batista, em 1934.
Não é necessário que Guevara invoque, perante Fidel, Lenine e o seu Imperialismo, estádio supremo do capitalismo para ele saber que é necessário libertar o seu país
do império. Para atingir esse objectivo, de que lhe adiantaria ser comunista? Basta-lhe não ser anticomunista. Quanto a Guevara, embora não negligencie as premências
do quotidiano, tende muito mais do que Castro para um mañana revolucionário que se projecta, a prazo, muito para além de Cuba. Continua a ser o homem do amanhã e
do algures, um amanhã latino-americano que verá atearem-se braseiros, focos revolucionários, como outros tantos sóis negros, desde a Terra do Fogo ao Rio Grande
mexicano, transformando a Cordilheira dos Andes numa imensa Sierra Maestra. Sobre esta complementaridade de duas atitudes, Régis Debray utilizou uma expressão feliz:
"Fidel vivia na horizontal das questões práticas. O Che vivia na vertical do sonho"33.
Será o próprio Guevara comunista? A 4 de Janeiro de 1959, respondendo telefonicamente a essa questão ao jornal (conservador) La Nación, de Buenos Aires, protege-se
com uma prudência idêntica à que Castro manifestará nos Estados Unidos: "Creio estar a ser vítima da campanha internacional que se desencadeia sempre contra aqueles
que defendem a liberdade da América"34. Mas se lhe exigirem o seu minuto de verdade, afirma sem hesitar que o é. Com a particularidade de, sem ser membro do partido,
estar sobretudo à esquerda dos comunistas. O marxismo seduziu-o porque encontrou uma explicação global do desenvolvimento da sociedade e do jogo das forças económicas.
Mas, nessa matéria, ele é autodidacta, como quase toda a gente na revolução castrista. As suas leituras teóricas foram erráticas, ao sabor das obras abordadas caoticamente
na Guatemala, no México e até na Sierra Maestra onde, como se sabe, tenta terminar a leitura inacabada de O Capital. O que é certo é que o seu desejo de revolução
é permanente - e é uma das razões da simpatia ideológica que sentirão por ele os trotskistas e outros defensores da revolução permanente. No seu estudo La pensée
de Che Guevara, o sociólogo Michael Lowy sublinha uma observação feita em Abril

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de 1959 a um jornalista chinês: o Che refere-se a um "desenvolvimento ininterrupto da revolução" e à necessidade de abolir "o sistema social" existente e os seus
"fundamentos económicos"35.
Ao longo dos anos, no contacto com marxistas franceses como Charles Bettelheim e Ernest Mandel, o Che prosseguirá a sua formação, descobrirá os efeitos perversos
da lei do valor e as diferenças consideráveis entre o pensamento do jovem Marx e a estruturação posterior da sua doutrina. Seguindo o conselho de Lenine, verá no
marxismo, submetido ao fogo da sua crítica pessoal, não um dogma, mas um guia para a acção. O que seduzirá toda uma geração e fará dele o anjo tutelar do movimento
de revolta de Maio de 1968 na Europa, e não só, será a sua forma de reinserir os valores morais numa sociedade dominada pelo mercado. Reabilitará desse modo palavras
gastas à força de serem manipuladas, tais como dignidade humana, liberdade, solidariedade, fazendo do comunismo uma filosofia libertária, um meio de alcançar uma
humanidade nova.
Em 1965, confessará ao presidente Nasser que, no México, foi ele que iniciou verdadeiramente Raul Castro no comunismo, apesar da adesão antiga mas fugaz deste último
às juventudes socialistas (comunistas), e que, ao tomar conhecimento disso, Fidel ficou muito irritado por lhe terem escondido uma coisa dessas36. Raul, de temperamento
mais militar e menos filósofo, tornar-se-á um marxista-leninista puro e duro, um homem de aparelho. Apoiar-se-á sem reservas no PSP, infiltrará os seus homens em
todos os níveis do exército e da nova administração. Guevara, pelo contrário, não se deixará amarrar pela nova guarda do PSP, alinhada por Moscovo. Para grande desespero
de alguns, procurará manter-se, segundo a expressão cubana, um marxista por la libre, isto é, um marxista independente, autónomo, "não alinhado", cioso das suas
opções e avesso às meias-tintas.
Apesar ou devido à sua intransigência, e também porque se sabe que ele é um incondicional de Fidel, o Che dar-se-á ao luxo um tanto provocador de acolher na sua
rede inúmeros "órfãos" da revolução. Militantes pouco conhecidos ou dignitários de primeiro plano guindados ao Capitólio, se num dia de desgraça caírem da rocha
de Tarpeia, é junto de Guevara, o incorruptível, que imploram uma segunda oportunidade redentora. O Che é severo, já se sabe. Pode ser brutal, grosseiro, implacável,
se for preciso. Mas não é surdo ao debate de ideias, desde que se trate de revolução. Com ele é possível explicar-se, discutir, desenvolver uma argumentação herética
sem se ser excomungado. Neste franco-atirador inveterado, a chama contestatária não esmoreceu. É por isso que ele, que é considerado cruel - e às vezes sê-lo-ámanifesta
uma firme indulgência em relação a esses homens rejeitados. Recuperando-os como que por desafio, transformando esses falhados em incondicionais consumados, demonstra
que o castigo foi desastrado ou excessivo. O que alguns castigadores não lhe perdoarão.
Por muito entusiasmado que esteja com o seu sonho bolivariano, o Che não negligencia as contingências do momento. É ele, tão avesso à comunicação

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quando ela não passa de espectáculo, que, lendo a imprensa cubana e os telegramas das agências noticiosas, se apercebe de que a revolução não está preparada para
fazer ouvir a sua voz. Na segunda semana de Janeiro de 1959 manda vir de Buenos Aires Jorge Ricardo Masetti, o jornalista argentino que o entrevistou na Sierra Maestra
e lhe parecera conquistado para a causa dos guerrilheiros. Pediu-lhe primeiro que o ajudasse a montar a "operação-verdade", destinada a contrabalançar, se possível,
os terríveis exageros das agências norte-americanas e da imprensa local sobre os tribunais revolucionários, de forma a explicar que os barbudos não são perigosos
sanguinários. Mas o projecto mais vasto, de uma louca ambição para um pequeno país como Cuba, é criar uma agência de imprensa nacional, de vocação internacional,
destinada a mostrar la otra cara de la moneda, a outra face da moeda, o aspecto da realidade que as agências menosprezam e que os jornais conservadores ignoram,
isto é, esse movimento popular que cresce e que procura estabelecer a justiça e a equidade nas estruturas sociais.
A agência nasce; chama-se Prensa Latina. Com um capital de mil dólares inicialmente abonados por Guevara, Masetti recruta como redactores em Havana, ou como correspondentes
na América Latina e no mundo, a fina-flor do jornalismo latino-americano: Gabriel García Márquez, futuro prémio Nobel da literatura, Carlos Maria Gutiérrez, do conceituado
semanário uruguaio Marcha, o romancista mexicano Carlos Fuentes, os argentinos Rodolfo Walsh e Rogelio García Lupo, o boliviano Teddy Córdova, o colombiano Plínio
Apuleyo Mendoza... Durante alguns anos, a aventura é bela, exaltante e divertida. E cara: seis milhões de dólares para arrancar. Depois, pouco a pouco, veio o tempo
do congelamento...
O próprio Che faz, à sua escala, um trabalho de informação permanente. Durante os seus anos cubanos, não pára de explicar e voltar a explicar a revolução nas suas
diferentes etapas e porque é que ela precisa de ser apoiada com entusiasmo. Os seus discursos, exortações e outras intervenções acabam por encher uma série de volumes.
A primeira conferência que o comandante Guevara, aureolado com a sua jovem glória, aceita proferir em Havana, menos de um mês depois de ter lá entrado à frente da
sua coluna, é reservada a um pequeno público de comunistas e simpatizantes. O facto não é inocente. Cabrera Infante afirma que esse gesto foi considerado como uma
inépcia pelos intelectuais havaneses anti-Batista, pouco atraídos pelos comunistas. Nos salões de Nuestro Tiempo, associação cultural do PSP, o Che insiste sobretudo
no modo como se teceram os laços entre o exército rebelde e o campesinato. Sublinha que a primeira lei da reforma agrária de Outubro de 1958, concebida por Fidel
Castro, redigida pelo advogado Sori-Marín "e na qual tive a honra de colaborar", modesta lítotes - permitiu a distribuição de terras pertencentes ao Estado ou a
apoiantes de Batista a mais de duzentas mil famílias. Mas não chega, diz ele; falta abolir a grande propriedade, o latifúndio, "fonte indiscutível do atraso do país
e dos males de que padecem as massas camponesas"37.

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Guerra ao latifúndio

As questões da reforma agrária podem parecer áridas. Todavia, elas constituem o prisma através do qual se ilumina toda a estratégia política dessa revolução que
Castro faz avançar, etapa por etapa, com algum génio. Falando dos guerrilheiros desembarcados, como ele, do Granma, Guevara sublinha como eles evoluíram, no plano
ideológico, porque partilharam a existência da "parcela dessa classe social que mostra, quase agressivamente, o seu desejo de possuir terra [...]. Eles sabem que
a reforma agrária é a base sobre a qual deve ser construída a nova Cuba"38. O Che sentiu que o latifúndio, ligado à monocultura do açúcar, era o símbolo da dependência
económica e política da ilha: os grandes proprietários de terras tinham feito uma aliança com os monopólios norte-americanos, "os mais poderosos e cruéis dos opressores"39.
Manifestamente, os cubanos punham uma grande carga afectiva no seu desejo de se libertar daquilo que transformara o seu país em anexo rural da grande potência industrial
do Norte.
Enquanto que, para empatar, para consolidar o seu poder e acalmar eventuais inquietações dos Estados Unidos, Castro deixa o seu ministro da Agricultura (o advogado
Sori-Marín) preparar uma lei agrária de carácter reformista e liberal, sabe que, na sua casa à beira-mar, o Che, rodeado de um pequeno comité de tendência comunista,
prepara, secretamente, um projecto muito mais radical. "Durante dois meses, tivemos reuniões nocturnas em Tarara, onde o Che convalescia"40, conta Nuñez Jiménez.
E Alfredo Guevara especifica: "Ficávamos em casa de Che até de madrugada, aguardando a chegada de Fidel, que modificava tudo"41. E então, a 17 de Maio, Sori-Marín
é colocado perante o facto consumado (demitir-se-á algumas semanas depois). Castro vai com os seus ministros e comandantes ao antigo acampamento de La Plata, nas
encostas da Sierra Maestra, espaço já sacralizado, para aí promulgar, com pompa e circunstância, uma lei de reforma agrária que irá alterar o curso dos acontecimentos
em Cuba.
Numa primeira leitura, essa lei não parece muito má. Proíbe, como estava previsto, os latifúndios. Nenhuma propriedade deve estender-se por mais de 400 hectares
e, para evitar um parcelamento excessivo, não deve ser inferior a duas caballerias (27 hectares), área considerada mínima em sistema de agricultura extensiva. Mas
algumas explorações agrícolas "de ponta", de alto rendimento, são autorizadas a conservar até cem caballerias (1350 hectares). O agrónomo Michel Gutelman, autor
de um estudo aprofundado, L'agriculture socialisée à Cuba, observa que "a lei de 17 de Maio de 1959 visava sobretudo criar e consolidar uma pequena burguesia camponesa
[mas que] na prática, e contrariamente às intenções explícitas da lei, o sector cooperativo tornou-se rapidamente um sector estreitamente dependente do Estado. [...]
De facto, para abolir efectivamente os latifúndios, era forçosamente necessário pôr em causa a propriedade estrangeira"42. Com as consequências que se podem adivinhar.

248

Outro fenómeno de extrema importância é que não são os tribunais, mas um Instituto Nacional da Reforma Agrária (INRA) - presidido pelo próprio Fidel Castro! - que
controla as expropriações e redistribuição de terras. Para esse efeito são-lhe conferidos poderes tão amplos que muitos passam a considerar essa instituição como
o verdadeiro governo do país. Tanto mais que "departamentos" criados ad hoc, como o da Indústria, serão decalcados dos ministérios oficiais, que, por seu turno,
parecem não servir para nada. "Com base na reforma agrária virá a grande batalha da industrialização do país", explicará Guevara, dirigindo-se, em 1960, à "juventude
da América Latina"43. Uma milícia de cem mil homens bem armados, criada em poucos meses e constituída essencialmente por camponeses, tornar-se-á o braço executivo
do INRA.
Ao mesmo tempo, sob a direcção de Raul Castro, prossegue o desmantelamento, por fases sucessivas, do exército de Batista, sem grandes sobressaltos. "Não deve subsistir
a mínima estrutura do antigo exército", preconiza Guevara na sua Guerra de Guerrilha44, para que se crie um novo exército que seja verdadeiramente, segundo a expressão
de Camilo Cienfuegos, "o povo fardado".
Ao decretar, em Janeiro de 1959, a suspensão dos despejos e, em Março, a redução para metade de todos os arrendamentos, o novo regime obteve, de imediato, uma enorme
popularidade junto das populações urbanas. Com a proclamação da reforma agrária de Maio, são os guajiros de todo o país que exprimem a sua alegria e gratidão. Após
séculos de exploração, os camponeses, povo esquecido e desprezado, têm finalmente a sensação de que lhes é feita justiça. Tornar-se-ão incondicionais da revolução.
Por muito que Guevara se tenha apagado durante esses primeiros meses de 1959, nenhum dos protagonistas da vida política ignora que é ele, mais do que ninguém, o
"extremista", o vermelho. Numa digressão pela América Latina após a sua viagem aos Estados Unidos (Abril de 1959), Castro inventou, em Montevideu, uma palavra de
ordem liberal, conciliadora, muito apreciada. Aquilo que Cuba deseja, declara ele, é "pão e liberdade, pão sem terror. Nem ditadura de direita, nem ditadura de esquerda;
uma revolução humanista". É muito aplaudido. O que, pelo contrário, Guevara pretende é o combate justiceiro antimperialista. Tendo, como arma de guerra, "a reforma
agrária [que] dará a terra a todos os desapossados e tirá-la-á aos que se apropriaram dela injustamente. [...] Os maiores proprietários, são também homens influentes
do Departamento de Estado ou do governo dos Estados Unidos"45 denuncia ele. Percebe-se que Castro tenha achado conveniente afastar por uns tempos este enfant terrible,
avesso à arte da subtileza, na qual ele é mestre, e que diz com uma franqueza desastrada aquilo que convém ocultar por enquanto. Primeiro-ministro, chefe das forças
armadas, presidente do INRA, Castro declara que a revolução é verde-azeitona, que é tão verde como as palmeiras cubanas. Mas, pelo que diz Guevara, a oposição pressente
que, como afirma o conservador Diário de la Marina, essa revolução é mais do tipo melancia: verde por fora, mas vermelha na sua verdade profunda. Fidel sugere então
ao

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seu impetuoso amigo - bem o merece - que vá percorrer o vasto mundo ou para ser mais preciso, o vasto Terceiro Mundo. O revolucionário sem fronteiras, eterno vagabundo,
aceita de bom grado, tanto mais que se trata de ir espalhar a boa nova de Cuba e se sente restabelecido dos seus problemas de saúde. Faz, porém, questão de regularizar
antes dois "pormenores" da sua vida pessoal: um divórcio e um novo casamento.
Como vimos, as coisas com Hilda Gadea estão claras. O casal já não era exactamente um casal antes mesmo da expedição do Granma os separar. Hilda arranjou emprego
no departamento de economia da Prensa Latina (a rede dos "homens do Che") e cuida de Hildita, que vai ver o pai quando este está livre - mas durante a fase de tuberculose
do papá, para evitar o contágio, diz-lhe adeus de longe, sem se aproximar.
A 2 de Junho de 1959, em Havana, Ernesto Guevara de la Serna casa com a cubana Aleida March. Tem trinta e um anos. Ela tem vinte e cinco. Terão quatro filhos em
seis anos. Uma fotografia do casamento, um pouco afectada, publicada nos jornais, mostra-nos, no gabinete do Che em La Cabaña, uma esposa convencional, penteada
à Joana d'Arc, num vestido branco de mangas curtas, de rosto sério, quase sisudo, ao passo que o marido-comandante, sempre com a sua farda verde-azeitona e a boina
com a estrela, ostenta um sorriso trocista, de sobrancelhas erguidas sob as protuberâncias características da testa, revelador da ironia com que se presta ao jogo.
A seu lado - presença não desprovida de significado político - o amigo de longa data, Raul Castro e a sua esposa Vilma Espín, de origem francesa, que serviram de
testemunhas. Também eles são recém-casados; Raul, de 28 anos, "regularizou" no princípio de Janeiro, em Santiago de Cuba, a relação iniciada na Sierra com a responsável
local do M-26. Nem Fidel, nem o Che, demasiado ocupados em Havana, tinham podido entretanto deslocar-se ao outro extremo da ilha. A cerimónia de casamento de Guevara
é o mais "civil" possível. Ernesto é um ateu declarado e Aleida desligou-se, ao que consta, da religião presbiteriana em que fora educada em Santa Clara.
Uma outra fotografia tirada por ocasião desse acontecimento merece ser referida, por ser um dos raros documentos em que se vê Guevara rir abertamente. Régis Debray,
sublinhando que nunca viu Fidel nem o Che fazerem tal coisa, observa que rir em público é descobrir-se. É verdade que, com o passar do tempo, Guevara irá provavelmente
rir cada vez menos. Passa a sorrir. Um sorriso matreiro, por vezes sarcástico. O seu humor (quase sempre negro) saboreia o segundo sentido. Mas há inúmeros testemunhos
que falam do seu riso desenfreado e contagioso em privado. Calica Ferrer recorda-se da alegria espontânea e tonitruante do seu amigo Ernesto quando fizeram a viagem
beatnik de 1953. Ricardo Rojo, Alberto Granado, Gustavo Roca e outros companheiros de juventude são testemunhas disso. Mas foi talvez com o seu verdadeiro cúmplice,
Camilo Cienfuegos, que Guevara, no meio de insultos amigáveis e exclamações afectuosas, soltou as maiores gargalhadas. Julio Chaviano, o tal capitão muito aperaltado
que Guevara ignorou

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como uma "coisa" quando se apresentou diante dele em La Cabaña, escreve no seu livrinho de memórias: "Apesar das diferenças de carácter, tudo o que o Camilo fazia
ou dizia era pretexto de risota para o Che, que olhava o amigo com aquele misto de admiração e de ternura que se tem por um irmão mais novo que se estima muito"46.
Essa fotografia de casamento, portanto, mostra-nos um Guevara que se descobre, que se abre. De mão dada, curvados pelo riso, os noivos fogem da sala como se acabassem
de pregar uma boa partida aos presentes.

Vasto é o Terceiro Mundo

A 12 de Junho de 1959, dez dias apenas após o casamento, Guevara parte de avião, não em viagem de núpcias, mas como celibatário, para Madrid, primeira escala de
uma viagem de três meses que vai levá-lo ao Médio Oriente e à Ásia: Egipto, Índia, Japão, Indonésia, Ceilão, Paquistão, Jugoslávia, Marrocos. Todos esses países
estão relutantes em aderir a um ou ao outro dos dois blocos que partilham entre si as suas zonas de influência desde os acordos de Ialta, em 1945. Exceptuando o
Japão, que conseguiu refazer a sua economia após a derrota de 1945, todos fazem parte do vasto Terceiro Mundo. O termo, lançado em 1952 pelo demógrafo Alfred Sauvy,
é ainda recente. Surgiu em França num artigo do semanário L'Observateur, evocando esse Terceiro Mundo ignorado, explorado, desprezado como o terceiro estado"47,
categoria social que, no tempo da Revolução Francesa, não era nada e queria ser "alguma coisa".
O pretexto da digressão do comandante Guevara é vago e múltiplo: visita de amizade, procura de contratos económicos, apoio diplomático em caso de conflito com os
Estados Unidos, compra de armas, se tal se proporcionar... Especulou-se sobre os fracos resultados concretos dessa longa viagem: nada que pudesse ser contabilizado
de forma precisa. É avaliar por baixo um balanço importante, difícil de apreciar por derivar do qualitativo, a imagem positiva dada pelo Che, de forma viva, de um
pequeno país da América Latina, pouco conhecido, se não mesmo desconhecido, que tenta escapar à tutela dos Estados Unidos e que está prestes a juntar-se ao campo
dos que em breve passarão a ser designados como "não-alinhados". Quando, como ele contará no regresso, um cidadão desses países distantes, vem vê-lo de perto, perguntando
numa língua estranha: "Fidel Castro?", a sua simples presença física torna subitamente real o "fenómeno quase abstracto da Revolução cubana"48.
A lenda ainda fluida desse argentino que passou a ser cubano chegou até as chancelarias de países remotos. A personagem desperta curiosidade; pressentem-na importante.
Apesar de não utilizar o registo da sedução, como Fidel Castro, apesar de se mostrar avesso às sofisticações do protocolo, que considera geralmente ridículas, Guevara,
filho-família, é bem educado. A sua cultura é vasta, sabe responder com segurança e clareza às perguntas dos

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jornalistas e evitar as armadilhas. Ao enviar esse "vermelho" ao outro extremo do mundo, Castro não fez uma má jogada. Não só tranquiliza a sua ala direita e uma
oposição burguesa anticomunista que vai tentar puxar para o seu campo como, simultaneamente, transforma o seu mais fiel partidário se não num embaixador da simpatia
- é preciso muita prática -, pelo menos num "excelente objecto mediático" ad majorem gloriam... Barba, camuflado e boina com estrela são coisas fotogénicas. Graças
a elas, populações até aí incapazes de situar a ilha no mapa descobrem que existe um país amigo que se chama Cuba. Em seis anos de vida cubana "oficial", o Che passará
mais de onze meses - quase um sexto do tempo - em digressões deste género, como caixeiro-viajante ou porta-voz da revolução cubana.
Começar pelo Cairo não foi gratuito. A escolha não foi ditada unicamente pela comodidade geográfica de um itinerário complicado. Corresponde também a certas afinidades
pessoais de Guevara. O Egipto acaba de dar ao mundo uma magnífica lição de antimperialismo. O seu presidente, o coronel Nasser, conseguiu o seu "26 de Julho" em
1956 quando proclamou, nesse dia, perante uma multidão chorando de entusiasmo, numa embriaguez de dignidade recuperada, que nacionalizava o Canal do Suez - Estado
dentro do Estado, sob controlo anglo-francês. O dirigente egípcio tirou o melhor partido do jogo de equilíbrio entre a URSS e os Estados Unidos para converter em
vitória política a resposta militar abortada levada a cabo pela Inglaterra, a França e Israel. Também ele dirige uma ambiciosa reforma agrária e, com a gigantesca
barragem de Assuão, ambiciona transformar a economia geral do país. Os cubanos têm muito a aprender com tudo isso.
O Che, ficara impressionado com esses acontecimentos quando ainda estava no México, treinando-se ao lado dos irmãos Castro. Tinha redigido nessa altura, exaltando
o feito, um daqueles maus poemas que costumava fazer, no qual os bons sentimentos contam mais do que a feitura prosódica. O seu Hino ao Nilo: "Canta hoje o ontem
da pedra morta. / Se convoco a memória de Tebas, / é porque o presente emerge do teu passado, / é porque estás vivo na barragem de Assuão / e no Suez reconquistado"49.
Eis, pois, o apaixonado por mapas e imagens a concretizar a sua "viagem ao Oriente". Assiste a manobras navais no Mediterrâneo mas, sempre que pode, finta os guarda-costas
e vai comer espetadas de carneiro nas ruas do Cairo.
O facto de o embaixador extraordinário Ernesto Guevara caminhar deliberadamente fora do tapete vermelho estendido em sua honra, como conta um dos seus tenentes,
é puramente infantil e anedótico50. É sabido que o comandante liga pouco à etiqueta. Mais interessante é a primeira pergunta que ele coloca ao chefe de Estado da
República Árabe Unida* logo que abordam o tema da reforma agrária: "Quantos refugiados foram obrigados a deixar o país?" Quando o presidente Nasser lhe responde
que foram muito poucos,

Nota: * O Egipto e a Síria constituíram em 1958 a República Árabe Unida (RAU); em 1961, a Síria retomará a sua autonomia.

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Guevara não esconde o seu cepticismo. "Isso significa que não se passou nada de especial com a vossa revolução", responde ele. O conselheiro privado de Nasser, Mohamed
Hassanein Heikal, que assistiu à conversa, conta que Guevara acrescenta: "Eu avalio a profundidade da transformação social pelo número de pessoas que são atingidas
por ela e que pensam que não têm lugar na nova sociedade"51. Nasser, grande e forte, dez anos mais velho, parece divertido com aquela petulância. Explica-lhe que
os proprietários perdem toda a importância a partir do momento em que se destrói o sistema que os fazia proprietários.
Ao longo da sua estadia, de 15 a 30 de Junho de 1959, o Che terá várias conversas com o "Raïs" que, segundo Heikal, "estava fascinado com Guevara"52. Durante quinze
dias, o comandante-embaixador multiplica os contactos e as visitas. Vai a Gaza, onde os israelitas efectuaram um ataque mortífero. É aclamado aí como "o libertador
de todos os oprimidos". Visita campos de refugiados palestinianos e cumpre o programa clássico que, com algumas variantes, se repetirá na maior parte dos países:
visitas a fábricas, a refinarias de açúcar, a instalações militares, etc. Por ocasião de um banquete, conhece o futuro e efémero presidente do Brasil, Jânio Quadros,
que voltará a encontrar anos mais tarde. Explica também aos jornalistas a solidariedade de Cuba para com o Egipto, que apoia o combate dos argelinos pela independência.
Quando Anwar al-Sadat, futuro sucessor de Nasser, convida Cuba a participar na próxima conferência afro-asiática, da qual é secretário-geral, Guevara escreve: "A
África e a Ásia começam a olhar para além dos mares"53. Desenvolverá este tema de geopolítica num artigo publicado quando regressa: "A América vista da varanda afro-asiática"54.
Tratam-no quase como um chefe de governo, mas o aparato não lhe sobe à cabeça. Exige, aliás, dos cinco membros da pequena delegação que o acompanha um comportamento
bastante austero. Quando dois deles lhe pedem autorização para comprar botas novas, ele agasta-se - o dinheiro pertence ao Estado cubano, diz ele -, mas acaba por
consentir. Contudo, para demonstrar aos compradores intempestivos que a despesa não era indispensável, calça ele próprio o par de botas usadas, abandonado por um
deles, para ir visitar o presidente Nasser55. Na sua equipa reduzida, introduziu o seu companheiro el Patojo, o comunista guatemalteco que Fidel não quis aceitar
no Granma mas que, logo após a vitória, veio para Havana, para se juntar ao seu ilustre amigo.
Com Nehru, presidente da União Indiana, "patriarca" de setenta anos, o contacto é diferente. É um pandit, um letrado, um socialista esclarecido, tão frágil e magro
quanto Nasser era forte e vigoroso. Vestido com a sua eterna túnica branca, fala filosoficamente de não-violência e de resistência passiva, como o seu mestre Gandhi.
Na sua adolescência, Guevara fora seduzido pelo pensamento de Gandhi. Tinha lido a Descoberta da Índia e oferecera o livro, com uma dedicatória, a Chichina, a primeira
noiva de Córdova. Agora, o seu ponto de vista é absolutamente contrário. "Pode ser que o sistema funcione na Índia", observa ele, "mas na América não serve. A nossa
resistência deve ser activa"56. E conta aos

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membros do Estado-Maior indiano como, com camponeses armados de espingardas de má qualidade, a guerrilha cubana conseguiu vencer a ditadura.
Na Índia, onde permanece duas semanas, de 1 a 14 de Julho, a reforma agrária em curso surpreende Guevara pelo seu método suave: "A grande nação indiana procura convencer
os grandes proprietários de terras que é justo dar a terra aos que a trabalham, e os camponeses a pagar um preço por essa terra..."57 Em honra desse embaixador extraordinário,
Nehru oferece um sumptuoso banquete, no qual faz sentar Guevara junto da sua filha Indira que, por seu turno será conduzida à chefia do Estado em 1966. Enquanto
el Patojo regressa a Cuba, chega entretanto um jornalista de pena afiada, por vezes verrinosa, Pardo Liada, que observa, a propósito desse banquete a que assiste,
"o esforço do comandante para dar mostras de um comportamento refinado"58. Numa outra noite, um funcionário cubano das Nações Unidas em Nova Deli, Eugênio Soler,
levou-os a casa do embaixador do Chile, adepto convicto do ioga; aí, "o Che surpreendeu a assistência demonstrando a sua habilidade no ioga: deitou-se no chão e
em seguida ergueu-se, apoiando-se na cabeça"59. Compreende-se o espanto dos convivas ao verem o honorável guerrilheiro fazendo "o pino" no meio do salão. Protocolo?
Não sei o que é isso.

Um cruzado

Por muito que Guevara seja um dignitário do novo regime cubano, nem por isso perdeu a sua espontaneidade, que manifesta quando está farto de desempenhar o seu papel,
recusando a assumir-se como o "Che". Na edição espanhola da hagiografia escrita por Guevara Lynch sobre o seu filho, (Mi hijo, el Che, Planeta) figura a fotocópia
de uma carta espantosa, não datada, enviada pelo Che à mãe, numa folha de papel com o carimbo da Air-India, de algures nesse país, provavelmente quando foi a Bombaim,
na segunda semana de Julho de 1959, para visitar uma fábrica de montagem de aviões. O texto merece ser referido quase in extenso, não tanto pela alegria um pouco
ingénua que o menino prodígio confessa sentir ao visitar essas regiões que excitaram o seu imaginário adolescente, como pelo que revela de fé revolucionária do nosso
herói. Estamos na Índia e já não no Egipto! "Fala-se de questões políticas e económicas, dá-se festas nas quais o mínimo que posso fazer é vestir um fraque e esquecer
um dos meus prazeres mais puros, sonhar à sombra de uma pirâmide ou do sarcófago de Tut Ank Amon [...]. O Egipto constituiu um sucesso diplomático estrondoso". Com
a sinceridade que sempre o caracterizou em relação à mãe, confidente privilegiada, Guevara revela nessa carta o que futuramente guiará a sua vida: um radicalismo
arrepiante. É certo que lamenta a ausência de Aleida que "não pude trazer devido ao meu complicado esquema mental* (sic), mas, quinze linhas abaixo, faz uma

Nota: * Sublinhado pelo autor.

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confissão mais importante: "Desenvolveu-se em mim o sentido do que é a massa em oposição ao que é pessoal. Continuo tão solitário como dantes, procurando o meu caminho
sem a ajuda de ninguém, mas tenho agora a consciência do meu dever histórico"*. E acrescenta, fornecendo então a chave de uma mudança psíquica que irá esclarecer
o seu comportamento futuro: "Não tenho casa, nem mulher, nem filhos, nem país, nem irmãos. Os meus amigos só são meus amigos na medida em que pensam politicamente
como eu.* E contudo sou feliz, sinto-me alguém na vida, conduzido não só por uma poderosa força interior, que sempre senti, mas também por uma capacidade de a transmitir
aos outros. Um sentimento de fatalidade absoluta da minha missão liberta-me de qualquer receio* Não sei porque é que te escrevo isto; talvez sejam saudades de Aleida.
Toma esta carta por aquilo que é, escrita numa noite de tempestade, nos céus da Índia, longe das minhas pátrias* e dos meus entes queridos. Ernesto"60.


Gosto da solidão, individualismo, "dever histórico", fatalismo, predominância absoluta do político, aceitação implícita da morte. Todos os ingredientes do fatum
estão resumidos neste documento cujo significado só pode ser comparado com a "revelação" de 1952. Uma noite (sempre a noite), nos Andes venezuelanos, como já referimos,
uma estranha "sombra" falara e, desde então, o jovem tinha jurado a si próprio "preparar-se para que no [seu] ser ressoasse [...] o grito bestial do proletariado
triunfante". Desta vez, já não é o aspirante a revolucionário que faz ouvir a sua voz e se exalta; é o revolucionário assumido que faz uma constatação. Já não é
um encarregado de uma missão, mas sim um missionário, encarregado da salvação das massas, motivação messiânica que tudo muda. Se quisermos descobrir o segredo profundo
do homem-Guevara, o seu Rosebud, o seu irredutível ponto cego, é na identificação total com esse destino marcado que talvez seja necessário procurar. Ele já não
é o pequeno condottiere com quem tantas vezes se comparou. Demarca-se do aventureiro clássico, de tipo Lawrence, versão Malraux. Terá, um dia, que voltar a cavalgar
o Rocinante? A sua loucura ultrapassará então a de D. Quixote, seu herói. A partir de agora é um cruzado, e a luta anti-imperialista a sua Jerusalém.
No Japão, a estadia é um pouco mais curta - de 15 a 26 de Julho -, mas rica de ensinamentos económicos e políticos. Guevara fica a saber que o Japão só não participou
na conferência de Bandung - tão importante para os países não-alinhados - porque os Estados Unidos o dissuadiram, a fim de provocarem a China comunista, representada
por Chu En-Lai. O Japão permanece "alinhado" pelos Estados Unidos, a ponto de ter sido o general MacArthur, para pôr termo ao regime feudal tradicional, a impor
depois da guerra uma reforma agrária draconiana: não mais de um hectare por habitante!
De forma que a prosperidade do país só lhe advém do seu desenvolvimento industrial, apesar de não possuir petróleo nem carvão. Não dispondo

Nota: * Sublinhado pelo autor.

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também de minérios, exceptuando níquel, o Japão conseguiu desenvolver uma indústria pesada. "No mundo moderno, o desejo de desenvolvimento é mais importante do que
a existência de matérias-primas", conclui Guevara, após as clássicas visitas às fábricas. "[...] Não há nenhuma razão para que uma indústria siderúrgica não seja
o ponto de partida da industrialização em Cuba"61. Uma visita breve de um dia a Hiroshima deixa-o sem fala. "Tudo o que possa ser dito ficou gravado em quatro rolos
de fotografias"62. Em Osaca, o Che mostra-se não tanto puritano, mas sim político prudente. Proíbe os três militares da sua equipa de irem a um cabaret, célebre
pelas suas 600 prostitutas, mas deixa os civis "livres, se lhes apetecer, de serem fotografados pela revista Time a gastar o dinheiro do povo em orgias com putas..."63.
Em contrapartida, em Tóquio, aceita assistir à cerimónia do chá e não pode deixar de rir quando vê a cara de espanto do seu adjunto, o capitão Omar Fernández, ao
verificar que a gueixa que o serve com gestos graciosos não é a bela cortesã que ele imaginara, mas uma venerável senhora com mais de 50 anos... "Foi a única vez
que vi o Che rir", observa Pardo Liada. "Geralmente era reservado e pouco falador"64.
Durante o seu périplo, Guevara procura estar a par, tanto quanto possível, do que se passa em Cuba. O seu homónimo comunista, Alfredo Guevara, envia-lhe relatórios
de três em três dias. É assim que fica a saber que, no próprio dia da sua partida, alguns ministros chocados com a reforma agrária, que consideravam demasiado radical,
se demitiram, tendo sido imediatamente substituídos por "homens de Fidel". Parece-lhe, porém, mais grave, visto de longe, o psicodrama desencadeado a 17 de Julho
por Castro que, por seu turno, finge demitir-se do seu cargo de primeiro-ministro (mas não de chefe das forças armadas), a pretexto de o presidente Urrutia lhe complicar
demasiado a tarefa. Gigantescas manifestações de protesto, organizadas pelos sindicatos. É então o próprio Urrutia que se demite no dia seguinte: objectivo alcançado.
Sucede-lhe à frente do país, nomeado pelo governo, o ministro Dorticos, antigo bastonário de Havana, discreto simpatizante comunista. De Tóquio, Guevara felicita
o novo presidente. Em Havana, Castro mantém o suspense e aguarda o aniversário do 26 de Julho, a partir de então decretado festa nacional, para "obedecer à vontade
popular" e retomar a direcção do governo. Com poderes reforçados.
Para o Che, ainda não é o momento de regressar. A sua presença poderia incendiar os espíritos. A oposição anticomunista não desarmou; algumas bombas rebentaram em
Havana. Todavia, o ritmo da viagem acelera: fica só seis dias na Indonésia. Apenas o tempo necessário para trocar alguns pontos de vista com o presidente Sukarno,
que dirige o arquipélago indonésio de cem milhões de habitantes e que é considerado um dos grandes líderes do Terceiro Mundo.
Depois de quatro dias no Ceilão e três no Paquistão, é a vez da Jugoslávia, última etapa da viagem "oficial", onde chega em meados de Agosto. O país interessa o
futuro responsável pela economia cubana. Primeiro, porque essa república compósita dos Balcãs conseguiu sair da órbita soviética sem

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cair na dos Estados Unidos, e depois porque funciona aí um sistema auto-gestionário que merece ser observado de perto. O Che faz dele um resumo um pouco superficial:
"Trata-se de um capitalismo de empresa com uma distribuição socialista dos lucros [...] mas obedecendo às leis da oferta e da procura [...]. Na minha opinião, não
se insiste suficientemente na industrialização, o que exige à população enormes sacrifícios". Contudo, retém da experiência jugoslava o princípio dos dias de trabalho
voluntário, o da participação dos conselhos operários na vida económica e política e a "grande liberdade de crítica" que aí reina, "apesar de só existir um partido
político, o comunista"65.
O seu encontro com Tito convence-o de que está a lidar com um "grande". Sabe que o chefe dos jugoslavos considera ter sido sacrificado pelos acordos de Ialta. Foi
o homem que ousou dizer a Estaline que se os resultados da experiência contradiziam Marx, ele iria obedecer, não a Marx, mas aos resultados da experiência. Tito,
que recebe a delegação cubana no seu refúgio da ilha de Brioni, pequena pérola do Adriático, repete a Guevara um discurso que os seus amigos Nasser e Sukarno conhecem
bem "O não-alinhamento não é um estado. É uma tendência"66. Explica, evidentemente, que cada um é livre de seguir o seu próprio caminho para o socialismo e deixar
uma mensagem clara: "Bem-vinda ao clube, se Cuba assim o desejar!". A primeira conferência dos países não-alinhados irá ter lugar em Belgrado, em 1961. Cuba participará
nela.
No caminho de regresso, o Che fica ainda setenta e duas horas em Marrocos, para repetir que Cuba apoia a luta de independência do povo argelino e, via Madrid, a
delegação regressa finalmente a Havana a 8 de Setembro de
1959. Guevara anseia por se colocar ao serviço da revolução de uma forma mais directa do que proferindo discursos de amizade em salões dourados. Não ficará desapontado.
Fidel está, agora, em condições de utilizar os seus talentos.

Morte de um amigo

A primeira função que é atribuída ao Che é a de director do departamento industrial do INRA. O cargo pode parecer modesto; todavia, é de importância primordial.
Em primeiro lugar, o poder de compra dos cubanos aumentou devido aos aumentos salariais e à redução das rendas de casa; é necessário fazer face a um disparo na procura
de produtos manufacturados, quase todos importados dos Estados Unidos. Além disso, a própria reforma agrária, ao multiplicar o número de explorações, provocou um
aumento da procura de artigos industriais. Por fim, e sobretudo, é esse departamento que decide os novos investimentos em todos os sectores da economia, desde a
construção de estradas à construção de casas; é ele que concede os créditos tanto ao sector privado como ao sector do Estado. Cargo de vulto, como se vê, cuja dimensão
política é evidente, apesar da modéstia do título. É necessário um homem de toda a confiança.

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Guevara não é um entendido; aliás os entendidos são raros em Cuba. Mas regressou da sua digressão terceiro-mundista cheio de projectos, depois das realizações que
viu. Registou os pontos fortes, que podem servir de modelo e também os perigos a evitar. Castro ouviu o seu relatório com a preocupação de fazer o país beneficiar
de todas essas experiências. Com o INRA, Fidel forjou uma verdadeira máquina de governar, apoiada no exército. A nomeação de Guevara é uma maneira discreta de fazer
entrar no aparelho de Estado uma figura explosiva. Apesar de ter sido "decretado cubano de nascimento" é ainda visto pelos detentores do poder como um extremista
estrangeiro. A modéstia do título esconde que Castro faz dele o seu braço direito. O número dois.
Em Cuba, Outubro é o mês das chuvas e de uma certa frescura, bem vinda após a canícula do Verão. No plano político, esse mês de Outubro é bastante quente para Castro:
tem de esmagar aquilo que ele denuncia como uma conspiração mas que é mais a expressão de um movimento de desagrado de alguns oficiais perante a orientação, demasiado
"comunista" para o seu gosto, do regime e do exército. Com efeito, a 17 de Outubro, Fidel nomeara ministro da Defesa o seu irmão Raul, de 28 anos, cujas posições
marxistas-leninistas são conhecidas. De uma ortodoxia total, as ideias de Raul são desprovidas da reserva crítica que Guevara é capaz de manifestar. Terá sido a
gota de água para o comandante Huber Matos, chefe militar da província central de Camaguey, relutante em aplicar a reforma agrária? A 20 de Outubro, envia a Fidel
Castro uma carta de demissão comedida: "Não quero tornar-me um obstáculo à revolução..."
Huber Matos não é uma pessoa qualquer. É certo que não fez parte do corpo expedicionário do Granma, que representa já, para a "aristocracia" militar cubana, aquilo
que o Mayflower significava para os WASP (Brancos, Anglo-Saxões, Protestantes), fundadores dos primeiros Estados Unidos, em 1620. Mas esse jovem professor de liceu
é um destacado militante do M-26. Pequeno proprietário em Oriente, nos confins da Sierra, ofereceu os seus camiões aos guerrilheiros. Foi depois à Costa Rica arranjar
armas, que conseguiu trazer, nas barbas das forças de Batista, fazendo aterrar o seu avião, um DC-4, no sopé da Sierra Maestra. O que deu para equipar uma coluna
inteira, cujo comando Castro lhe confiou. Foi o único que conseguiu ferir e pôr em fuga o terrível Sánchez Mosquera, inimigo declarado do Che. Mas não aprecia o
activismo dos comunistas do PSP.
Para Castro, toda a demissão por motivos políticos é acto de traição. Já quatro meses antes, pouco depois da partida do Che, um outro comandante, o intrépido aviador
Díaz Lanz, abandonara a luta, refugiando-se em Miami Quando Alfredo Guevara comunica a notícia ao Che, este reage com clareza: "É um filho da puta. Ponto final"67.
Desde então, multiplicam-se as incursões de aviões vindos da Florida, que lançam sobre Havana panfletos anticomunistas e, por vezes, algumas rajadas de metralhadora.
Está fora de causa permitir que esse movimento de rebelião alastre, sobretudo no exército. Tendo

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sido informado de que mais vinte oficiais de Camaguey vão imitar o chefe, Fidel, antes mesmo de receber a carta de Matos, envia Camilo Cienfuegos, com ordem de prender
o "traidor". Ele próprio se dirige ao local e avança sobre o quartel-general do "oficial prevaricador" a fim de esmagar qualquer tentativa de resistência. Matos
será condenado, em Dezembro, a 20 anos de prisão, que cumprirá até ao último dia.
A 26 de Outubro, enquanto Fidel convoca, em Havana, um comício-gigante de "solidariedade popular" às suas medidas, ocorre um outro drama, desta vez no céu cubano.
O pequeno avião no qual Cienfuegos embarcou, sozinho com o piloto, para regressar à capital, desaparece com pessoas e bens. Durante vinte dias, todo o exército bate
o território à procura do mínimo indício. Em vão. Camilo desapareceu. Nem o mais pequeno vestígio do aparelho nem dos dois passageiros. Mistério absoluto.
Para o Che, é uma tragédia pessoal. Camilo era aquele guerrilheiro intrépido e trocista que, por ocasião do baptismo de fogo na debandada de Alegria de Pio, gritara
que nunca se renderia. Havanês típico, embora filho de refugiados republicanos espanhóis, tornara-se o melhor amigo do argentino, em seguida seu adjunto, e por fim
seu alter ego à frente de uma coluna. Tinham entrado juntos em Havana. Quando, em 1960, Guevara publica a sua Guerra de Guerrilha, obra cheia de conselhos práticos
e de reflexões sobre a arte e a maneira de organizar uma guerrilha, presta homenagem a Camilo numa longa dedicatória, cheia de ternura: "[Ele] foi o companheiro
de inúmeros combates [...]. Ia rever [o texto] e fazer as correcções necessárias. [...] Camilo possuía a inteligência natural do povo. [...] Praticava a lealdade
como uma religião. [...] Quem o matou? Foi o inimigo que o matou [...] porque não há aviões seguros, [...] porque, sobrecarregado de trabalho, tinha de regressar
a Havana o mais depressa possível..."68. A tese de acidente foi sempre controversa e, a esse "inimigo" não identificado, alguns tiveram a audácia de lhe dar um nome
da primeira figura cubana.
Um jovem guajiro que Guevara começara a alfabetizar na Sierra, Dariel Alarcón, mais conhecido por Benigno, será o companheiro de Che até ao último dia. Integrado
na coluna de Camilo que, após a vitória, o nomeou chefe da polícia militar da província de Havana, Benigno romperá com o regime cubano em 1996, após anos e anos
de fidelidade absoluta e de silêncio. Numa obra desconcertante, Vie et Mort de la Révolution Cubaine, publicada em Paris, afirma estar convencido, como muitos outros,
de que "o acidente foi organizado por Fidel e Raul, porque o nome de Camilo era mais popular na ilha do que o do próprio Fidel"69. Mesmo tom de denúncia de um outro
dissidente, Juan Vives: "A nomeação de Raul Castro para a pasta da Defesa foi muito mal recebida pelo exército, que desejava que Camilo Cienfuegos fosse ministro.
[...] A partir dos elementos que possuo, estou certo de que, aproveitando o caso Huber Matos, eliminaram Camilo, matando assim dois coelhos com a mesma cajadada"70.
Esta acusação, gravíssima, vem juntar-se à dos guarda-costas, que ficaram em terra por razões desconhecidas, mas que se baseia apenas em convicções

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pessoais. Em 1987, Matos, saído da prisão, revela em Nadie Escuchaba, um filme de Ulla e Almendros, que Cienfuegos, ao telefonar de Camaguey para Fidel Castro, para
lhe dizer que não havia o menor vestígio de conspiração, teria dessa forma assinado a sua sentença de morte.
Consequência clássica em sistema de "baronia": a rede dos "homens de Camilo" é desmantelada e Benigno, regressado à base, é enviado para um campo de trabalho militar,
para aí construir uma cidade-escola com o nome de... "Camilo Cienfuegos"!

Che Guevara banqueiro? Uma anedota

A história, já gasta à força de ter sido repetida, é retomada pelo próprio Fidel Castro. Durante uma reunião das cúpulas, surgiu a pergunta: "Há aqui algum economista?".
Guevara levanta o braço e é nomeado de imediato presidente do Banco Nacional. Entretanto, Fidel chama-o de parte, para lhe observar que desconhecia os seus talentos
ocultos de economista. Ao que o Che lhe respondeu: "Não sou economista. Pareceu-me ouvir perguntar quem é que era comunista...". Pode não ser mais do que uma das
muitas anedotas cubanas - inventam-se dez por dia, todas deste género -, contudo ela exprime a ideia geral de que não é a competência técnica que mais conta, nessa
época, mas sim a determinação política.
Porque se, no estrangeiro, Guevara pôde dissertar sobre o modo como um punhado de guerrilheiros derrubou uma ditadura, em Cuba, como ele próprio verifica, a batalha
revolucionária está longe de estar ganha. Uma parte da burguesia local, proprietários de terras e criadores, não aceita as medidas sociais, protesta, compra espaços
na rádio para dizer que a reforma agrária é um roubo, que estão a estrangular as liberdades. Uma parte da imprensa junta-se ao coro. Muitos profesionales - médicos,
engenheiros, advogados, contabilistas e outros quadros - também se inquietam, por razões que escapam ao racional, pois nada os ameaça directamente. Mas, obcecados
pelo medo dos "vermelhos", dão início a um movimento de emigração para a Florida, fenómeno de semi-pânico, mais de ordem cultural de que de económico.
"Não era apenas uma questão de interesses de classe", observa K. S. Karol, "mas o resultado de hábitos mentais, de convicções profundas e insidiosamente arraigados.
Nem todos os que abandonavam Cuba eram latifundiários, grandes burgueses, nem sequer pró-americanos indefectíveis; muitos tinham sido "americanizados" à força, ou
temiam simplesmente as consequências de um conflito com os Estados Unidos"71. Partem, então, "até as coisas se acalmarem".
Mas elas não se acalmam. Em 1959, a reforma agrária dá início à expropriação dos latifúndios, a maior parte dos quais pertencente a estrangeiros: United Fruit -
outra vez ela -, e também Francisco Sugar, King Ranch (da província de Camaguey, controlada por Matos) e muitos outros. Não são os tribunais que decidem sobre as
indemnizações, mas apenas o todo-poderoso

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INRA. Em Junho, o novo embaixador dos Estados Unidos, Philip Bonsal, exigiu "indemnizações rápidas, adequadas e efectivas". Foi-lhe respondido que a lei era a mesma
para todos: pagamento em "Títulos da Reforma Agrária", a 4% de juro por vinte anos. Em Washington - a confirmação virá mais tarde -, há já quem encare uma intervenção
armada. Ao fim e ao cabo, na Casa Branca e no Departamento de Estado continuam os mesmos homens - Eisenhower e Foster Dulles - que, há cinco anos, organizaram, na
Guatemala, a queda do coronel Arbenz, acusado de crimes análogos contra as plantações norte-americanas. Prisioneiros dos seus esquemas passados, agarram-se à ideia
de que a América Latina é a sua "coutada" e não têm em conta um elemento fundamental, que não pode ser medido em dólares: o desejo dos países do "sub-continente"
de verem reconhecida a sua dignidade.
Testemunha da época, o romancista Carlos Fuentes dirige-lhes, em 1962, sem raiva mas sem papas na língua, um simples pedido: "Americanos, peço-vos que vejam mais
longe do que o provincianismo da guerra fria. [...] Tentem compreender a diversidade do mundo. [...] A América Latina não é um subúrbio do vosso país. Vamos fazer
a nossa entrada no mundo"72. Os "Estado-unidenses" - neologismo mais justo do que o de "americanos" que engloba stricto sensu o conjunto do continente - não aproveitam
a ocasião histórica que lhes é oferecida para reverem a sua posição em relação aos seus vizinhos latinos. Em vez de aceitarem, e até de acompanharem uma descolonização
por etapas que lhes teria dado uma excelente imagem de democratas esclarecidos (e lhes teria permitido, além do mais, retirar vantagens económicas substanciais a
longo prazo), assustam-se e congeminam projectos obscuros de desestabilização e de assassínio de Fidel Castro.
Apesar da questão argelina, Guevara tinha uma certa simpatia por De Gaulle, cujo mérito, na sua opinião, fora sobretudo o de ter sabido "fazer frente aos ianques.
[...] Com ele, a França poderia simbolizar de novo aquilo que representava na Revolução francesa"73, declara ele. Castro pensa o mesmo. Comparando a histeria anticomunista
dos "norte-americanos" com a paciência e a moderação do chefe de Estado francês perante as expropriações em massa decretadas pela Argélia a seguir à independência
(1962), dirá um dia a Ben Bella: "Vocês têm sorte! Se ao menos tivéssemos um De Gaulle nos Estados Unidos!"74. Todavia, em Novembro de 1959, o general Cabell, número
dois da CIA, não se engana quando afirma: "Os comunistas consideram Castro um representante da burguesia. [...] Castro não se considera um comunista"75. O mesmo
já não poderia dizer de Guevara...
Guevara vê bem que a batalha não está ganha quando, a 9 de Novembro desse mesmo ano de 1959, em Havana, a igreja católica consegue reunir um milhão de pessoas -
o equivalente à população da capital! - para exigir o respeito pelas liberdades e pela propriedade.
E todo o trabalho que ainda falta fazer quando, a 18 de Novembro, o congresso da Confederação de Trabalhadores Cubanos (CTC) aplaude os candidatos próximos do M-26
mas vaia os do PSP comunista.

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Fidel Castro recorre então ao velho princípio revolucionário da depuração permanente. Remodela o governo, elimina companheiros como Faustino Pérez, veterano do Granma,
e Manuel Ray, chefe da resistência em Havana em 1958. Tiveram o desplante de pedir que se poupasse a vida a Matos. Carlos Franqui, que afirma ter recordado a Fidel
as suas próprias palavras: "A revolução cubana não devora os seus próprios filhos", garante ter ouvido Guevara dizer nessa altura a Fidel: "Pessoas como Faustino,
Ray e Oltuski, que têm a coragem de defender as suas opiniões arriscando a própria vida, não devem ser fuziladas. Pelo contrário, devem continuar a ser ministros"76.
Testemunho não confirmado, que se ajustaria ao carácter hiper-crítico de Guevara, mas que parece insólito, já que o Che "se cola" quase sempre à posição de Fidel,
quando não a antecede. Seja como for, Fidel parece não se preocupar com isso: na onda da remodelação, a 26 de Novembro de 1959, nomeia Guevara presidente do Banco
Nacional, em substituição do economista Felipe Pazos, demasiado moderado, que é enviado para a Europa para aí defender, como puder, os interesses cubanos.
A nomeação do médico-guerrilheiro para a direcção do Tesouro público é um sinal político deliberado: "Senhores especuladores, tenham cuidado". De facto, o Che não
encara essa nova função como uma brincadeira. Pelo contrário, empenha-se com a mesma seriedade que põe em todas as coisas sempre que se trata de servir a revolução.
Cuba a caminho do socialismo torna-se, para ele, uma nova Sierra Maestra, na qual o combate, "mais difícil que o de tomar o poder", é desenvolver o país e mudar
as mentalidades.
Já se viu um banqueiro numa figura daquelas? O presidente do Banco Nacional de Cuba, sempre despreocupado com a sua aparência, chega de farda verde, camisa aberta,
pistola à cinta, com as botas de páraquedista mal atadas, como sempre. Está ladeado de guarda-costas que se parecem com ele como irmãos, capazes de assustar qualquer
visitante não prevenido que, de resto, não perdem de vista. "Compreendo que um homem de negócios americano, de rosto escanhoado e trajando um fato cinzento convencional
me tenha confessado o seu espanto perante aquele banqueiro desalinhado, de sorriso aberto, de olhar brilhante de inteligência", escreveu Claude Julien no Le Monde
a 22 de Março de 1960.
O gabinete é amplo, sóbrio mas confortável: alcatifa, poltronas de couro. Na parede, um grande mapa de Cuba, estendendo-se na horizontal. (Um outro mapa, esse da
Argentina, ornamenta, na vertical, a casa de banho contígua). Num armário, em vez do whisky propício às discussões de negócios, um termos de água quente, uma embalagem
de yerba mate e a cabaça com a pipeta que costuma circular entre os convidados, em sinal de amizade. Que o argentino-cubano não dispensa, quando quer divertir-se
a desconcertar o interlocutor. "Eu próprio acabei por me tornar guajiro", confessou ele em Fevereiro de 1959, sem nenhuma demagogia, perante um público de camponeses.
"E quando estou na cidade não aprecio muito o ar condicionado. Não é uma coisa para mim"77. Contudo, habitua-se a ele. O essencial não é isso.

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As noites brancas da Revolução

O seu dia de trabalho, interminável, começa a meio da manhã. E nunca acaba antes das três ou quatro da madrugada. Às vezes mais tarde. Será que esse gosto pela noite
lhe vem do tempo da guerrilha onde tudo, marchas e combate, era feito ao abrigo da escuridão cúmplice? Vir-lhe-á do tempo em que os ataques de asma o obrigavam a
levantar da cama? As reuniões, em todo o caso, processam-se a partir da meia-noite. Nos gabinetes contíguos ainda circulam colaboradores; e Aleida, que se adapta
ao ritmo guerrilheiro do marido. Se, por sorte, o nosso banqueiro encontra um bom parceiro de xadrez, a partida, repouso perfeito, pode estender-se então até de
madrugada. É de noite que Guevara escreve os seus artigos, as suas Memórias da Guerra Revolucionária ou a sua Guerra de Guerrilha, manual do perfeito combatente
camponês, que nas entrelinhas se refere aos textos de Mao Tsé-Tung, cuja leitura lhe fora recomendada pelo comunista Carlos Rafael Rodríguez. Por vezes dita os textos
para o gravador; de manhã encontra-os transcritos por Manresa, um antigo soldado de Batista que, durante anos, será o seu fiel e discreto secretário particular.
A regra, implícita, do bom revolucionário é que ele não dorme nunca, ou quase. Há muito que fazer. Cuba é uma colmeia. Os assuntos urgentes são constantes e a revolução
não espera. "Em Cuba as noites são brancas".
Para o Che, o desafio que se coloca é mostrar que é possível dirigir um grande navio como o Banco do Estado sem conhecer em pormenor todos os seus maquinismos; o
essencial é traçar o rumo e manter-se ao leme. As reformas agrária e urbana que agora se iniciam não abalaram o carácter ainda capitalista do sistema económico cubano.
Em Abril de 1959, quando estava ainda em La Cabaña, Guevara declarara à televisão: "Temos fome de capitais, mas não desejamos que entrem capitais que tenham muita
fome"78. Trata-se, porém, de "tranquilizar os mercados". E o Che aplica-se a fazê-lo. No próprio dia da sua nomeação, exprime-se como o mais experiente dos economistas
da finança. Declara ao jornal Revolución: "O nosso objectivo principal, para já, é a defesa da nossa reserva de divisas. É provável que ela diminua ainda um pouco,
mas será recuperada em meados de 1960. Travámos as importações. É necessário restringi-las [...]. Esperamos uma retoma da cotação do açúcar no mercado internacional,
de modo a utilizar uma boa parte das divisas em projectos de industrialização...".
A nova política económica está a despontar, como se vê. Consiste em apoiar-se no açúcar para se libertar do açúcar, isto é, para montar uma verdadeira indústria,
garantia de independência. Quando Carlos Franqui o interroga então sobre os intensos movimentos bancários que marcam o anúncio da sua nomeação, ele responde: "É
lógico, porque a substituição de Pazos Por alguém que tem a fama de ser extremamente radical deve assustar os depositantes. Mas é uma coisa que não tem fundamento,
porque o governo vai continuar a canalizar os investimentos para a industrialização, mas sem

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utilizar métodos coercivos [...]. Mas é evidente que defenderemos a nossa moeda contra a desvalorização..."79
Assim fala aquele que desde sempre manifestou um desprezo soberano pelo dinheiro, aquele que, há um ano, queria organizar o assalto ao Banco de Sancti Spiritus.
Ei-lo transformado num perito financeiro! Seis meses depois, o enviado especial do Le Monde pergunta a um observador francês instalado em Havana: "Ele é competente?"
Resposta: "Vi todo o tipo de homens de negócios estrangeiros procurá-lo, convencidos de que aquele médico revolucionário se deixaria enganar pelas suas astúcias
comerciais. Saíram de cabeça baixa, depois de uma discussão renhida com um homem que possuía um conhecimento profundo dos assuntos e que defendia os interesses cubanos
com uma sólida competência"80.
Para o ajudar na sua tarefa, Guevara precisa de economistas "comprometidos", capazes de entenderem o significado das transformações a operar nas estruturas do país.
No INRA, um jovem chileno de 26 anos, Carlos Romeo, observa-lhe que em Santiago do Chile existe um "potencial humano" que gravita em torno da CEPAL (Comissão Económica
das Nações Unidas para a América Latina) e que poderia ser útil. Encarregam-no de explorar essa pista e ele transmite aos seus amigos longínquos - quase todos comunistas
ou simpatizantes do partido - a proposta de virem para Cuba "fazer com que os sonhos se tornem realidade". Entretanto, Carlos Rafael Rodríguez - o dirigente do PSP,
antigo ministro de Batista que fora à Sierra falar com Castro percorre a América Latina, numa viagem de informação e de recrutamento junto dos partidos irmãos. É,
pois, de partido a partido que o PC cubano trata com o PC chileno no sentido de que este lhe "empreste" alguns economistas escolhidos a dedo. Guevara vê assim chegar,
por vagas sucessivas, alguns verdadeiros especialistas que se colocam ao serviço da revolução com entusiasmo e disciplina: Jaime Barrios, antigo alto responsável
pelo Banco Central do Chile, Raul Maldonado, equatoriano, também membro do PC chileno, Alban Lataste, Sérgio Aranda, Gonzalo Martner, socialistas, Alberto Martínez,
engenheiro comunista, Carlos Matus, Edmundo Meneses... um batalhão. Mais tarde a equipa será reforçada com argentinos e uruguaios, provenientes desse "cone sul"
latino-americano rico em quadros bem formados.
O Che fala com uma simpatia divertida dos seus chilenitos, cuja dedicação e conhecimentos técnicos aprecia. No sétimo andar do edifício inacabado, destinado à Câmara
de Havana mas totalmente ocupado pelo INRA - Fidel Castro escolheu o último andar -, instalou-os num amplo gabinete ao lado do seu, de forma que, conta Carlos Romeo,
"quando ele queria ir à casa de banho, era a mim que confiava a pistola 7,65 que trazia à cintura. [...] No INRA, acrescenta ele, em Setembro/Outubro de 1959 começámos
a preparar as leis revolucionárias das nacionalizações e até a organizar um sistema central de planificação da economia [...]. O Che pensava que Fidel levaria algum
tempo a anunciar a nacionalização das minas e das indústrias petrolíferas. Eu apostei uma caixa de charutos em como, pelo contrário, Fidel

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iria ser mais rápido a tomar medidas. Foi o que, de facto, aconteceu. O Che, que sabia perder, mandou colocar na minha secretária uma magnífica caixa com cinquenta
charutos"81.
Foi ao seu oficial de ligação cubano, Pancho García Valls, também ele comunista, que Guevara pediu que gerisse com o PSP a melhor utilização possível daquele contingente
de combatentes internacionalistas de um novo tipo. Mas percebeu logo quais eram os melhores. Quando, sem deixar por completo o INRA, toma as rédeas do Banco, leva
Barrios consigo.* Quanto aos chilenos, estão fascinados com aquele homem irónico, cujo sentido de humor entendem, com o qual têm provavelmente mais afinidades do
que os cubanos. "O Che não se abria com facilidade, mas ao fim do dia, já tarde, vinha aprender connosco economia"82, conta ainda Romeo. Raul Maldonado, que virá
a ser vice-ministro do Comércio Externo, acrescenta: "Aproveitávamos para lhe puxar pela língua, incitando-o a contar-nos histórias da guerrilha. Quando estava à
vontade, ele acedia de bom grado. Por vezes apareciam outros comandantes, Raul Castro, Almeida, Camilo (pouco tempo antes de desaparecer), o seu irmão Osmany...
Cada um contava umas coisas. Às vezes havia grandes momentos de emoção e também grandes gargalhadas [...] Esse tipo de reunião chegava a durar até às cinco da manhã,
para grande irritação de Aleida. E retomávamos o trabalho às onze da manhã"83.

Nota: * Jaime Barrios integrará mais tarde a equipa económica do presidente chileno Salvador Allende e morrerá sob as balas dos soldados do general Pinochet, após
o golpe de Estado deste último, em 1973.

A revolução caminha mais depressa do que a reflexão dos peritos, que se interrogam sobre o modelo de desenvolvimento industrial que melhor convém a Cuba: "Mal tínhamos
chegado", explica Borrego, "os operários vieram pedir-nos que fosse posta de novo a funcionar uma velha fábrica, a American Steel, abandonada pelos seus proprietários
americanos. Mas nós não tínhamos um centavo. Tivemos de pedir uma pequena subvenção a Fidel que, ao fim e ao cabo, era o presidente do INRA. Ele deu-nos um cheque
de 200 000 pesos-dólares e nós pusemos a funcionar a fábrica, com um novo nome: "Cubana de Acero""84.

A visita do Espírito Santo

Nesses tempos de construção alegre e febril de uma sociedade nova, Guevara está presente em todas as frentes. Saiu do semi-anonimato prudente dos primeiros meses
em La Cabaña mas mantém, na velha fortaleza, a sua logística militar pessoal; é aí que dirige a formação dos quadros do exército rebelde. Vem ainda uma vez por semana
ao INRA, para acompanhar os resultados industriais da reforma agrária. Na presidência do Banco, adquire uma consciência clara, perante as estatísticas, do enorme
desequilíbrio das trocas comerciais que fazem de Cuba

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um país de economia colonial clássica, exportando matéria-prima e importando produtos manufacturados. Continua também a ser informado do apoio pedido por uma grande
quantidade de movimentos revolucionários, estimulados pelo exemplo cubano. E ainda arranja tempo para receber personalidades de passagem pelo país, que fazem questão
de conhecer essa figura insólita, já célebre, da revolução.
Do México, onde acaba de rodar com Buñuel A Febre Sobe em El Pao, chega primeiro o actor Gérard Philipe, no auge da sua glória (e a poucas semanas do cancro fulminante
que o matará). A imprensa traça logo uma comparação entre o comandante guerrilheiro, de rosto tão puro, e a vedeta que, em Paris, desempenhou um fogoso Rodrigo em
Le Cid. O actor fora convidado por Alfredo Guevara, grande cinéfilo, a quem Fidel Castro atribuíra a quantia (irrisória) de trinta mil pesos-dólares para criar um
"Instituto Cubano das Artes e das Indústrias Cinematográficas" (ICAIC), que terá uma bela carreira. "Gérard fazia perguntas inocentes; Anna, a sua mulher, fazia
perguntas muito mais pertinentes"85, comenta Alfredo Guevara. Por seu turno, Carlos Franqui aproveitou uma viagem à Europa para, em nome do jornal Revolución, convidar
a vir a Cuba alguns grandes nomes da intelectualidade literária e artística: Sartre, Picasso, Breton, Le Corbusier...
Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir são os primeiros intelectuais franceses de peso que, respondendo ao convite, vêm de certo modo dar a sua bênção cultural à
jovem revolução, conferindo-lhe, pela sua presença, uma espécie de honorabilidade. Sartre já esteve na URSS, em 1954, e na China, em 1955. Aos cinquenta e cinco
anos, publicou já o essencial da sua obra, ou quase. A sua celebridade é grande. É já algo mais do que "o papa do existencialismo" nascido no Café de Flore e nas
caves de Saint-Germain-des-Prés - banalidades que por muitos anos fizeram as delícias da imprensa sensacionalista. Quatro anos, antes de lhe ser atribuído o prémio
Nobel, e de o recusar, assume-se como o protótipo do escritor "em situação".
Uma vez que não existe nem Diabo nem Bom Deus, está condenado, como todos os homens, pela liberdade absoluta de que dispõe, a conciliar as exigências da acção, nomeadamente
revolucionária, com um pessimismo fundamental que é a própria negação dessa acção. Em Cuba, porém, ele esquece todo o pessimismo filosófico para se deixar arrebatar
pelo entusiasmo vigoroso de um movimento social e político único que lhe parece proporcionar um encontro excepcional com a História. Confessa que, antes de regressar,
tentou, em vão, que os seus convidados lhe dissessem se o regime era ou não socialista. "Devo reconhecer que estava errado, ao colocar a questão desse modo"86. Mas
o seu preconceito é favorável. No próprio dia da chegada, antes de ver seja o que for, declara ao jornal Revolución: "Admiro sinceramente a revolução cubana". A
visita de Sartre a Cuba constitui um acontecimento nacional. "Para nós, intelectuais cubanos, era como receber a visita do Espírito Santo"87, declara um deles, Juan
Arcocha.
Durante um mês inteiro, de 22 de Fevereiro a 21 de Março de 1960, o "Espírito Santo" da margem esquerda parisiense vê tudo, fala com todos,

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circula por toda a ilha. Castro joga forte, sem imaginar que pode cansar o filósofo. Faz-lhe as honras da Cienaga de Zapata - pântanos transformados em reserva natural
- o "Rambouillet" cubano, leva-o, com Simone de Beauvoir, no seu jipe sacolejante, a visitar os campos de cana de açúcar e de tabaco, cooperativas, fábricas, quartéis
transformados em escolas. Fala-lhe da reforma agrária, dos latifundiários maus, dos camponeses bons, dos projectos industriais, da tentativa de conquistar uma independência
económica ameaçada pelos Estados Unidos, ali tão próximos, tão poderosos. Sartre deixa-se seduzir, engole tudo, esquece todas as resistências. "É a lua-de-mel da
revolução"88, confia ele ao "Castor", ou seja, a Simone. Levam-no ao Teatro Nacional para assistir à representação de uma peça sua, La putain respectueuse. "É a
minha melhor puta", declara ele89.
Carlos Franqui fá-lo descobrir a loucura africana das danças do carnaval cubano: ritmos das Caraíbas e sensualidade. A primeira página do diário Revolución publica
grandes fotografias do francês com a sua companheira. Passados poucos dias, o rosto de Sartre passa a ser tão conhecido do cidadão cubano como o retrato de Marylin
Monroe. É reconhecido na rua, é aclamado: "Saltré! Simona!" Sartre fica encantado. Há sobretudo duas coisas que o seduzem: a juventude geral de todos aqueles revolucionários
e a democracia directa" que Castro exerce quando "dialoga" com o povo, disposto, se necessário for, a ir buscar a lua para a oferecer às massas. "Não há velhos no
poder. Não vi nenhum entre os dirigentes. Em todos os postos de comando [...] encontrei, se assim posso dizer, filhos meus"90.
O filho que talvez o impressione mais é o comandante Guevara. O presidente do Banco Nacional recebe-o "cedo", isto é, à meia-noite, hora que o visitante considera,
apesar de tudo, insólita. Uma fotografia mostra-nos, num grande sofá, Simone de Beauvoir num vestido discreto e Sartre de gravata e casaco assertoado, escutando,
atentos, o Che que, sentado à sua frente, de farda verde e boina na cabeça, lhes explica, imaginamos, as graças, desgraças e esperanças da revolução.
"Respondia a todas as perguntas com muita competência. Só falei com ele duas ou três horas, e é evidente que não sou uma especialista; mas disseram-me que ele conseguia
espantar os próprios especialistas; à partida, pensam que é fácil manobrá-lo; e depois vêem que não [...]. É Guevara que consegue levá-los à certa", escreverá Simone
de Beauvoir no France-Observateur de 7 de Abril de 1960.
Sartre confirma: "Guevara passa por ser um homem de grande cultura, e isso é notório. Em breve nos damos conta de que, por trás de cada frase, haver um grande saber.
[...] Pálido, tinha uma barba rala e um cabelo comprido, mas o rosto liso e saudável pareceu-me matinal. [...] A noite não entra naquele gabinete. Não faço ideia
quando Guevara descansa. [...] Imaginem um trabalho contínuo, num ritmo de três por oito, executado desde há catorze meses por uma só equipa. Em 1960 não se dorme
em Cuba. Ainda se distingue a noite do dia, mas apenas por delicadeza e para poupar o visitante estrangeiro. [...]

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Estes jovens prestam um culto, aliás discreto, à energia que Stendhal tanto apreciava. [...] São felizes. Certamente vão envelhecer depressa. [...] Mas terão eles
vontade de morrer velhos? [...] Trazem em si a presença da morte; a sua vida já foi dada. Ainda não lha tiraram, mas eles continuam a oferecê-la. E uma vida que
arde"91. Por muito estrábico que seja, Sartre é perspicaz. Apesar do deslumbramento tropical, a sua análise é premonitória.
O escritor Erik Orsenna, em busca de um longínquo antepassado cubano, encontrou em Havana, em 1995, Álvaro, o guia que conduziu "os Sartre" na sua visita a Cuba.
Num tom malicioso, finge contar a descrição do encontro, ao qual Álvaro não assistiu, entre Che Guevara e o "homenzinho muito feio" acompanhado de uma rapariga "alta
e bonita, um pouco antiquada, constrangida com o ar de uma freira à civil". O que dá um texto divertido, simplório e injusto:
"Abriu-se uma porta e apareceu o comandante.
- Como vai a França?
Tão alto, tão belo, tão radioso e paternal... Por um instante, vi os intelectuais franceses perturbados, infantis... Perguntei a mim próprio se não iriam cair nos
braços abertos do Che. Mas eles recompuseram-se. E, mal se sentou, Sartre adoptou um ar severo, o ar de papa consagrado do existencialismo, encarregado de informar
o mundo.
- Qual é o projecto da vossa revolução?
- Alargar o campo do possível.
Este vasto programa espevitou de imediato os nossos dois enviados parisienses. Seguiu-se um diálogo exaltado"92.
Juan Arcocha, que serviu de intérprete a Sartre, confessa: "Sempre lamentei não ter podido acompanhá-lo quando ele foi visitar Che Guevara que, para meu azar, falava
francês"93.
De regresso a Paris, Sartre publica, não em Les Temps Modernes mas, deliberadamente, no popular France Soir, sob o título "Ouragan sur le sucre" (Furacão no açúcar),
uma série de artigos de página inteira tão favoráveis à revolução cubana, tão desajeitados na sua ingenuidade, que não foram incluídos na sua bibliografia. (Mas,
editado em opúsculo no Brasil, em Cuba, e também nos Estados Unidos, esse Ouragan sur le sucre teve um grande sucesso.) "Essas reportagens surpreendem pelo seu carácter
anedótico, pela sua simplicidade, e até pela sua afectação. É o género "Castro contado às crianças", escreve um dos seus biógrafos94. Juízo apressado, pois encontramos,
nesses textos de circunstância, um esclarecimento sobre a situação internacional de Cuba, benevolente, é certo, mas lúcido. "Vou pedir-lhe uma coisa difícil. Não
diga que somos socialistas"95, pede Castro. O filósofo cumpre o prometido. Todavia, levanta algumas questões e anuncia algumas verdades incontestáveis que decorrem
tanto das suas observações como de uma geopolítica de simples bom-senso.
Reivindicando a sua independência, escreve Sartre, "Cuba entra em choque com a força de atracção de uma enorme massa continental que pretende integrá-la no seu campo
de gravitação. [...] As relações da ilha com os

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Estados Unidos não são boas, com efeito. [...] Irão os EUA fazer um boicote aos navios cubanos? Irão reduzir a sua importação de açúcar? Farão um bloqueio a Cuba?
[...] Há uma ordem do Novo Mundo que é elaborada em Washinton e é imposta ao continente e às ilhas, desde o Alasca à Terra do Fogo; essa ordem não tolerará por muito
tempo aquilo que considera como uma pequena desordem insular; um dia, as forças armadas do continente virão meter na ordem esse torrão de açúcar contestatário. [...]
O mundo viu, sem se insurgir, Monroe meter na ordem a Guatemala. Cuba arrisca-se, a cada instante, a ter o mesmo destino dessa república"96. Para um filósofo que
poderíamos imaginar perdido nos meandros de uma Crítica da Razão Dialéctica, estas observações são de uma pertinência que resiste ao tempo.

Lenda de uma imagem lendária

O acaso da história fez com que Sartre e seu Castor assistissem, como testemunhas oculares, a uma das mais manifestas tentativas de desestabilização do regime: a
explosão, a 4 de Março de 1960, no porto de Havana, do navio francês La Coubre, carregado de armas belgas. Enorme estrondo e nuvens de fumo no céu. Uma centena de
mortos ou desaparecidos. Fala-se imediatamente em sabotagem. Vem logo à memória, é óbvio, a explosão do navio norte-americano Maine em Havana, em 1898, que serviu
de pretexto aos Estados Unidos para afastar a Espanha e estabelecer o seu "protectorado" na ilha. No dia seguinte, na cerimónia fúnebre das vítimas no cemitério
Cólon, Castro organiza uma manifestação de protesto. Em termos velados, aponta o culpado: os Estados Unidos. Explica que eles já fizeram tudo para impedir os belgas
de vender armas aos cubanos, depois da recusa da maior parte dos países da Europa. "Ao terror contra-revolucionário, responderemos com o terror revolucionário",
ameaça ele. E lança nesse dia a fórmula que ficará consagrada como palavra-de-ordem revolucionária: "Patria o Muerte. Venceremos!" Sartre apoia-o: "A liberdade cubana
exaspera o país da liberdade. Guerra de nervos, vexames, alfinetadas e depois, por vezes, uma intuição brusca e sinistra, iluminando o mar até à costa: a explosão
do La Coubre. Capta-se, de passagem, a verdade trágica: Cuba é mortal"97.
Foi nesse comício de 5 de Março de 1960 que um fotógrafo até aí desconhecido, "Korda", passa à posteridade fazendo o "boneco" da sua vida, o retrato do Che que,
aumentado para cartaz, tem dado a volta ao mundo, desde então, povoando quartos de adolescentes, servindo de emblema em manifestações estudantis, simbolizando o
redentor das injustiças do planeta. Alberto Díaz Gutiérrez, que usa o nome Korda "porque faz lembrar Kodak", fora encarregado pelo jornal Revolución de fazer a cobertura
fotográfica desse acontecimento. Avistou, na tribuna erguida na esquina da rua 23 e da rua 2, Sartre e Beauvoir, ao lado de Castro. Guevara não está ali. Acompanhou
o cortejo fúnebre com Fidel e os dirigentes da revolução. Depois desapareceu. "Eu costumo fotografar

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sistematicamente todos os que rodeiam Fidel", conta Korda. "Tinha o olho pregado no visor da minha velha Leica. Subitamente, do fundo da tribuna, num espaço vazio,
surge o Che. Tem uma expressão de desafio. Quando ele surgiu na minha objectiva de 90 mm, quase me assustei, ao ver a raiva que ele exprimia. Talvez estivesse comovido,
furioso, sei lá. Disparei de imediato, quase que por reflexo. Fiz um novo disparo mas, como de costume, a primeira imagem era a melhor. Ele só ficou ali um instante
e eu só tirei aquelas duas fotografias. Aliás, nem sequer estão muito nítidas, porque não tive tempo de focar"98.
Tal como está, a força expressiva da fotografia é intensa. Com a sua boina e estrela, um estranho blusão de cabedal verde escuro ornado de lã azul-escura
- oferta de um amigo mexicano - o Che tem um olhar sombrio, distante. O rosto, severo, está enquadrado por uma cabeleira longa, despenteada. Paradoxalmente, essa
imagem de um homem com uma raiva interior tornar-se-á o símbolo do revolucionário de rosto angelical, sereno, quase místico, que os media, cartazes, T-shirts e outros
objectos espalharão pelo mundo. Korda esquecerá essa fotografia no fundo de uma gaveta. Contudo, ela será utilizada e muito reproduzida em Cuba. Até ao dia em que
o editor italiano Giangiacomo Feltrinelli fará dela "a imagem mais divulgada no planeta". "Ofereci-lhe duas provas 30/40", conta o fotógrafo. "Quando se soube da
morte do Che, Feltrinelli fez um cartaz com a minha fotografia. (Será a capa do Journal de Bolivie). Se ele tivesse pago apenas uma lira de cada vez que a imagem
foi reproduzida, teríamos recebido centenas de milhões..."99.
É pena que Feltrinelli, desaparecido entretanto em circunstâncias trágicas, não possa dar aqui o seu testemunho. Porque a paternidade da célebre fotografia é também
reivindicada por um trânsfuga dos serviços secretos cubanos, Juan Vives, que afirma que foi ele, nessa altura com dezasseis anos apenas, que tirou essa fotografia
histórica. Segundo afirma, Castro tê-lo-ia encarregado, em Outubro de 1967, de arranjar documentos sobre o Che para o editor italiano. "Entre as fotografias que
eu tinha tirado [...] por acaso, descobri uma, tirada na tribuna durante uma cerimónia em memória dos marinheiros do navio La Coubre. [...] Foi a fotografia escolhida,
[...] o cartaz mais vendido da história. No entanto, nunca recebi um tostão de direitos de autor"100. Provavelmente isto não é verdade. A obra de Vives carece de
rigor, apesar das informações por vezes interessantes e plausíveis; além de que não fornecer nenhuma prova do que afirma. Ao contrário de Korda, que apresentou o
rolo inteiro, onde se incluem as duas fotografias.

Em Cuba, entre visitas, excursões e diversas entrevistas, Sartre arranjou tempo para redigir um importante prefácio a uma reedição de Aden-Arabie. do seu colega
da Escola Normal, Paul Nizan, morto na frente de combate aos trinta e cinco anos, em 1940. O caso não valeria a pena ser mencionado se, para além do retrato de Nizan
traçado pelo biógrafo, não se desenhasse, como em sobre-impressão, espantosamente parecido, o do Che: "Um militante incorruptível e crítico, sempre à esquerda dos
comunistas, incapaz de hipotecar a prática à linguagem oficial da burocracia"101.

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O militante incorruptível e, não obstante, banqueiro, sugeriu a Sartre que não deixasse de conversar com o seu assessor, Orlando Borrego, se quisesse entender certos
aspectos inéditos do processo económico da revolução. Borrego propõe ao ilustre visitante que vá no dia seguinte ao INRA, às nove da manhã, para assistir a "uma
coisa interessante". "De que se trata?" Da nomeação de miúdos de 15 a 20 anos para cargos de administradores de empresas.
Com receio do "perigo comunista", muitos directores de pequenas e médias empresas preferiram, de facto, aguardar em Miami até que o ar se tornasse mais respirável
em Cuba. Abandonaram as suas empresas aos operários, que não têm nenhuma competência em matéria de gestão. É necessário então arranjar, urgentemente, um pessoal
mais ou menos qualificado, decidido a colocar a produção ao serviço da revolução. Borrego lembra-se então de utilizar a boa vontade de duzentos jovens, quase todos
adolescentes, que se dispuseram a "alfabetizar" aqueles que o antigo regime tinha deixado na ignorância. Fala com Guevara, que acha a ideia "genial" e se faz acompanhar
de Castro para ir explicar a essa bela juventude a tarefa imprevista que a revolução lhes exige. Resposta entusiástica dos "alfabetizadores". Dois dias de formação
acelerada - contar o dinheiro em caixa, verificar o saldo no banco, certificar os documentos, apoiar-se nos elementos mais "revolucionários", etc. - e ala!
Borrego recorda-se da estupefacção de Sartre ao assistir, nessa manhã, à cerimónia das nomeações oficiais: "Vocês estão loucos", disse-me ele. Mas senti que o dizia
com admiração. Para nós, dada a urgência, não havia outra solução"102. Quando, meses mais tarde, em Paris, os jovens o vêm interrogar sobre que destino dar à sua
vida, Sartre responder-lhes-á bruscamente: "Sejam cubanos!"103.
Pingue-pongue entre David e Golias Enquanto os Estados Unidos vão olhando com um ar cada vez mais desconfiado a evolução do regime cubano, as suas relações com o
urso soviético desanuviam-se um pouco. Desde que em Setembro de 1959 Kruchtchev visitou Eisenhower em Camp David, nota-se um certo degelo. Mas o que é válido de
super-potência para super-potência deixa de o ser quando um "torrão de açúcar contestatário" como Cuba decide afastar-se da tutela dos Estados Unidos. Que Mikoyan,
vice-presidente do conselho de ministros da URSS, venha inaugurar feiras comerciais em Nova Iorque ou até no México, sim senhor. Que esse mesmo Mikoyan, veterano
da revolução de Outubro de 1917, se desloque a Cuba, em Fevereiro de 1960, sob o pretexto de uma exposição de ciência e tecnologia soviéticas, é que já não agrada
tanto a Washinton. Tanto mais que o honorável visitante faz muito mais do que inaugurar. Acolhido por Castro e Guevara, é com eles que negoceia o restabelecimento
de relações diplomáticas, a venda de armas, a compra de açúcar

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e um crédito de cem milhões de dólares, de 1961 a 1964, para o fornecimento de máquinas, material e assistência técnica.
Colocando o Che na chefia das finanças do Estado, Castro deu-lhe o controlo sobre a economia da ilha, posição essencial, visto que o combate político vai travar-se
cada vez mais no campo dos interesses financeiros. Para Guevara - e Castro concorda, sem o proclamar ainda -, o futuro de Cuba reside, custe o que custar, numa libertação
total da sua dependência do poder imperialista dos Estados Unidos. Por isso no 1º de Maio de 1960 surge a palavra de ordem "libertadora" que, adaptada por cada país
ao seu próprio caso, será retomada em toda a América Latina: "Cuba si, Yanquis no!".
A visita de Mikoyan fez com que se esboçasse a criação de um eixo Havana-Moscovo, que se traduz primeiro no reatamento de relações diplomáticas, a 7 de Maio de 1960,
e numa longa e (discreta) estadia de Raul Castro na URSS e na Checoslováquia. O irmão mais novo, ministro da Defesa, assina contratos para a obtenção de armamento
pesado (tanques, peças de artilharia, aviões Mig) e ligeiro, destinado às milícias populares, enquanto que os primeiros pilotos cubanos partem para Praga para receberem
treino no manejo de aviões com reactores. Enviado a Moscovo e aos países de Leste para assinar os acordos estabelecidos com Mikoyan, Nuñez Jiménez, responsável do
INRA, regressa entusiasmado.
Na verdade, Cuba não representa ainda um interesse de maior para Kruchtchev, empenhado numa política de desanuviamento com os Estados Unidos. Apesar dos êxitos soviéticos
na tecnologia espacial - lançamento do satélite Sputnik e outras acções - a economia soviética está enfraquecida. Tem uma necessidade premente dos recursos gigantescos
até aí dedicados às indústrias militares. Só uma "coexistência pacífica" entre os dois blocos permitirá à URSS ganhar um novo fôlego económico. Em Camp David foi
aceite o princípio de uma cimeira, em Paris, em Maio de 1960, incluindo a Grã-Bretanha e a França.
Ora, no dia 1 de Maio de 1960, um avião-espião americano U-2 é abatido sobre a Rússia continental e o piloto é preso. Eisenhower argumenta que, tratando-se da sua
segurança nacional, os Estados Unidos têm o direito de violar o espaço aéreo soviético e Kruchtchev indigna-se. Na cimeira de Paris, o presidente americano teima
em não apresentar desculpas. Aproximando-se as eleições presidenciais nos Estados Unidos, Kruchtchev declara à imprensa que rompe o diálogo com Washington, esperando
ter em breve, na Casa Branca, um interlocutor "mais responsável". Para além do caso do U-2, delineia-se o do estatuto de Berlim, que os soviéticos reivindicam para
a RDA. Entretanto, não contente com isso, Kruchtchev lembra-se da existência do diabrete cubano, a desafiar o big stick do tio Sam. Perante a imprensa, em Paris
- modesta represália, destinada a vingar um amor próprio nacional ferido - proclama: "A aurora do progresso ergue-se nas Américas, mesmo diante do nariz dos americanos"
e encoraja "a luta do povo cubano pela sua independência"104. Em Havana, Castro e Guevara, que não esperavam tanto, exultam.

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É neste novo contexto internacional que vão ser adoptadas uma série de medidas que irão desencadear entre o David caribe e o Golias norte-americano um vai-vem de
decisões de ordem política, económica e militar. No fim desse "pingue-pongue", Cuba vai ver-se livre, muito mais depressa do que esperava, do sistema capitalista
e ao mesmo tempo inserida num sistema de tipo socialista. Mas, exceptuando alguns radicais (entre os quais certamente não se incluem os comunistas), seriam muitos
aqueles que, como Guevara, tinham já previsto, e até anunciado, que esse seria o caminho?
No fim de Maio de 1960, o Che dirige-se às três companhias petrolíferas instaladas em Cuba: Standard Oil, Texaco (Estados Unidos) e Shell (anglo-holandesa). Informa-as
que, a partir de agora, vai ser necessário refinar petróleo bruto soviético e já não aquele que elas próprias extraem e importam do sub-solo venezuelano. Além disso,
e na sua qualidade de presidente do Banco Nacional, comunica-lhes que o Estado cubano não está em condições de liquidar uma dívida anterior de cinquenta milhões
de dólares. As companhias hesitam, reúnem e, finalmente, recusam. A 29 de Junho, Castro manda então embargar as três refinarias enquanto que, entretanto, chega o
primeiro petroleiro soviético (a 4 de Julho, por ironia, data da independência dos Estados Unidos, mas, para a revolução cubana, marco simbólico no processo da sua
nova independência).
A partir deste momento, a cronologia precipita-se. O "gigante do Norte" zanga-se, mas os novos donos da pequena ilha não alteram a sua política. Pelo contrário,
apostando na ajuda aguardada dos soviéticos, endurecem as posições e a escalada sobe. A 6 de Julho, Eisenhower anuncia que os Estados Unidos põem termo às compras
de açúcar cubano para o ano em curso (setecentas mil toneladas). Dá a entender que o seu país poderia de futuro nunca mais comprar nada. Tendo em conta que, para
Cuba, o açúcar representa 80% das suas exportações,^compreende-se a reacção do ministro cubano da economia, Regino Boti: "É uma punhalada". Virão os soviéticos em
socorro dos seus novos amigos, arriscando-se a esfriar de novo as suas relações com os Estados Unidos?
K. S. Karol, politólogo especializado na análise da URSS e da China, faz, em Les Guérrilleros au Pouvoir, uma interpretação interessante da reacção de Moscovo105.
Recorda que a política de desanuviamento de Kruchtchev não agradava aos chineses que, classificando o chefe do Kremlin de "revisionista", preconizavam nessa época,
pelo contrário, uma estratégia combativa para o conjunto do movimento revolucionário internacional. Kruchtchev já considerava a hipótese de decretar contra a China
um bloqueio análogo ao que fora organizado por Estaline, em 1948, contra a Jugoslávia que saíra da linha: cortar todo o auxílio económico e retirar todos os técnicos
soviéticos que trabalhavam nesse país. Como se vê, cada bloco tinha os seus rebeldes a meter na ordem.
Quanto à decisão de Eisenhower de prescindir do açúcar cubano, provinha mais do orgulho ferido de uma grande potência do que de uma reacção fria e sensata. Se a
Casa Branca quisesse verdadeiramente dar uma "punhalada"

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nas costas da economia cubana, teria aguardado cinicamente o momento em que Castro seria obrigado a ver-se a braços com toda a colheita da próxima safra. Alguns,
como o presidente Frondizi, pensam mesmo que se trata de uma simples "advertência" e propõem-se servir de medianeiros. Castro aceita esperar um mês antes de executar
a ameaça contra os Estados Unidos, feita há duas semanas num discurso televisivo: "Se perdermos toda a nossa quota de açúcar, eles poderão dizer adeus a todos os
seus investimentos em Cuba"106.
Tratando-se de Kruchtchev, declara Karol "a questão cubana fornecia-lhe um alibi internacionalista inesperado"107. De facto, vê aí uma ocasião de mostrar aos chineses
que é possível invocar a "coexistência pacífica" entre os dois blocos e, mesmo assim, proteger uma pequena ilha distante que ousa declarar-se antimperialista. A
9 de Julho, a URSS declara-se então compradora de todo o açúcar cubano que os Estados Unidos se recusam a comprar hoje ou que recusarão comprar no futuro. Em Cuba,
prossegue ainda o debate fundamental entre a manutenção da monocultura tradicional, fornecedora de divisas, e uma industrialização inovadora, garante de autonomia.
Mas, de momento, é a euforia: a sobrevivência económica está garantida. Tanto mais que o chefe da União Soviética acrescentou uma pequena frase verdadeiramente explosiva,
indicando que, "falando de maneira figurada", na era dos foguetões intercontinentais, a URSS podia agir sobre os Estados Unidos como se eles fossem simples vizinhos108.
Não é preciso mais para que Guevara exalte essa generosidade exemplar. No dia seguinte, 10 de Julho, perante cem mil pessoas reunidas em Havana, o Che, substituindo
Fidel Castro, doente, esquece que Kruchtchev falou "de maneira figurada" e agradece-lhe calorosamente, tomando à letra a sua frase. E proclama, desencadeando uma
imensa ovação: "Cuba é hoje uma ilha gloriosa no centro das Caraíbas, defendida pelos foguetões da maior potência militar da história"109. Por seu turno, Kruchtchev
embandeira em arco. Como poderão os chineses continuar a censurá-lo pelo seu "egoísmo de grande potência" e pelo seu revisionismo? Mas os Estados Unidos preocupam-se,
e o seu candidato democrata à presidência, John F. Kennedy, indignando-se por terem ousado tocar na "coutada" americana, garante que se está a assistir à "primeira
violação da doutrina Monroe, desde há um século"110.
A 28 de Julho, na sessão de abertura do primeiro Congresso Latino-Americano da Juventude - de onde sairão inúmeros militantes revolucionários do continente americano
- Guevara sublinha a importância do apoio soviético num momento crucial. O seu discurso, simples e forte, evitando a linguagem oficial, escapa à retórica, por vezes
ambígua, de Castro: "Se a União Soviética não nos fornecesse petróleo e não nos comprasse açúcar, seriam necessárias toda a força, toda a fé e toda a dedicação do
nosso povo para aguentar a situação". Aumenta, para que ninguém o ignore, a solidariedade com a qual Cuba pode contar, sem fazer a mais pequena alusão, evidentemente,
às dissenções internas do campo socialista: "A União Soviética, a China e todos os países

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socialistas, bem como os países coloniais e semi-coloniais que se libertaram, são nossos aliados". E, respondendo às "acusações de comunismo vindas do imperialismo
e das potências coloniais", afirma: "Esta revolução, se fosse marxista - e sublinho, marxista - sê-lo-ia porque, também ela descobriu, pelos seus próprios meios,
as vias indicadas por Marx". O condicional, figura de estilo, não é mais do que uma medida de prudência face a uma oposição que não desarmou, pelo contrário. É também
uma estocada, semi-embotada, para arranhar o "grande Tio Sam". Aliás, tomando como pretexto a presença na sala do coronel Arbenz, antigo presidente da Guatemala,
derrubado em 1954 pelas manobras da CIA (e criticado nessa época pelo próprio Guevara pela sua pusilanimidade), o Che explica diplomaticamente que essa reforma agrária
frustrada permitiu que Cuba tivesse podido ir "ao fundo da questão e liquidar de um só golpe os que detêm o poder e os seus esbirros"111. Leia-se: Cuba não será
uma segunda Guatemala.
Os Estados Unidos não deixam de entender a mensagem. Sem recorrer a subterfúgios, a imprensa norte-americana concentra-se na confissão de Guevara - patrão da economia
cubana - das suas convicções comunistas. Já há um ano, o jornalista do Chicago Tribune, Jules Dubois, denuncia o facto de o próprio Guevara, ao receber estudantes
dos Estados Unidos, ter ironizado: "Segundo Dubois, em Cuba só existe um comunista e ele chama-se Guevara"112.
No seu número de 8 de Agosto de 1960, a revista Time, um dos primeiros "criadores de opinião" do país, coloca na capa o retrato do Che, apresentado como "o cérebro
de Castro". Segundo o artigo de fundo da reportagem de capa, Guevara deseja "romper os laços históricos entre Cuba e os Estados Unidos. Com a fria determinação de
um marxista fanático..." Observando que o presidente do Banco Nacional tomou a precaução de colocar na Suíça as reservas de ouro e de dólares até então depositadas
nos Estados Unidos, a Time explica que o comandante marxista começou a preparar-se para "a guerra" que espera da parte dos Estados Unidos, e que a influência revolucionária
está a espalhar-se "audaciosamente" por toda a América Latina. "Fidel é o coração e a alma da Cuba actual, sublinha o autor do artigo. Raul Castro é o punho fechado
sobre a adaga da revolução. E Guevara é o seu cérebro. É ele o principal responsável pela viragem à esquerda de Cuba. [...] É o elemento mais fascinante e mais perigoso
do triunvirato. Alvorando um sorriso de doce melancolia, que muitas mulheres consideram irresistível, o Che dirige Cuba com um calculismo frio, uma enorme competência,
uma grande inteligência e um forte sentido de humor".

A grande viragem

A "guerra" anunciada não tarda. Um mês após a decisão americana de não voltar a comprar açúcar cubano, Castro fecha-se três dias e três noites com Guevara, no gabinete
do INRA, para preparar a resposta. Que se traduzirá

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nos decretos de nacionalização de 7 de Agosto de 1960 os quais, aos olhos de Washinton, cometem o irreparável. São nacionalizados trinta e seis grandes impérios
açucareiros, entre os quais a emblemática United Fruit, duas refinarias de petróleo (Esso e Texaco), as companhias de electricidade e de telefone..., todas elas
pertencentes a empresas norte-americanas. No total, mais de setecentos e cinquenta milhões de dólares, representando três quartos dos bens que os Estados Unidos
detêm na ilha. Para cúmulo, as indemnizações previstas são irrisórias, visto que estão subordinadas à compra anual de mais de três milhões de toneladas de açúcar
a um preço fixado acima do câmbio mundial! Em Havana, mais uma vez, é o entusiasmo e a festa. Fidel, afónico, não consegue terminar o seu discurso. O seu silêncio
é preenchido pelas palavras de ordem da multidão: "Fidel, seguro! A los Yanquis, dales duro!" É Raul Castro que, por fim, lê o decreto, numa voz emocionada. O povo
desfila cantando e dançando diante das escadas do Capitólio, onde estão depositados caixões com os nomes das companhias nacionalizadas, que serão lançados ao mar.
Os Estados Unidos enfurecem-se, mas encaixam. Para a nação que pretende ser o arquétipo da democracia ocidental, uma intervenção armada dos marines em 1960 está
fora de causa. De qualquer forma, o período eleitoral impediria esse género de decisão. No imediato, Washington opta então por fazer condenar pela OEA (Organização
dos Estados Americanos), reunida no fim de Agosto em San José da Costa Rica, a "ameaça de ingerência de potências extra-continentais" nas questões do hemisfério
americano. Castro responde de imediato, fazendo aprovar por aclamação uma "Declaração de Havana", que repudia "cada um dos termos" da Declaração de San José, e adia
as eleições para as calendas gregas. Entretanto, aproveita para fazer aclamar a decisão de restabelecimento das relações diplomáticas com a China Popular e com todos
os países socialistas. Mais vale alargar o escudo. Nunca se sabe.
Mas não chega. A provocação máxima à Casa Branca será, para Castro, receber o abraço de Kruchtchev justamente em Nova Iorque, "na boca do lobo", como diria Marti.
Perito na encenação espectacular, o líder cubano vai transformar a sua participação na Assembleia Geral das Nações Unidas num espectáculo mediático. Fingindo ter
sido expulso do seu hotel, no centro da cidade, "refugia-se" com o comandante mulato Almeida e os seus oitenta barbudos num hotel do bairro negro de Harlem (antecipadamente
alugado, como virá a saber-se mais tarde). Uma matilha de jornalistas segue-lhe os passos. É aí que o chefe do Kremlin, baixo e gordo, de cabeça rapada, vem em pessoa
estreitar nos seus braços curtos o grande e robusto guerrilheiro de camuflado, tão hábil a desafiar o gigante americano. Kruchtchev está encantado e repete a cena
na bela sala das sessões plenárias, nas Nações Unidas, sob os disparos dos fotógrafos e o olhar divertido, consternado ou fascinado dos chefes de Estado do mundo.
Que, a partir daí, a CIA tenha tentado eliminar Castro, com a concordância do chefe da agência, Allen Dulles, e a colaboração directa da Mafia, é coisa que hoje
não oferece dúvida113. O que já poucos sabem é que a decisão

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abrangia também os dois outros membros do "triunvirato" apontado pela Time, isto é, Raul Castro, a "adaga", e Guevara, o "cérebro". Tad Szulc conta que, durante
as audições perante uma comissão de inquérito do Senado, o chefe da Divisão do Hemisfério Ocidental da CIA reconheceu que "se os três chefes principais não forem
eliminados num só golpe - o que é praticamente impossível - a operação corre o risco de se arrastar e o actual governo só poderá ser derrubado pela força"114.
Aguardando a concretização de uma tal hipótese, Washington decide, a 18 de Outubro, impor um embargo a todas as exportações com destino a Cuba, com excepção de medicamentos
e produtos alimentares. Resposta imediata: Cuba nacionaliza tudo o que ainda é americano na ilha. Logo em Junho, o hotel Hilton, paraíso do conforto norte-americano
em Havana, havia sido requisitado e rebaptizado de "Havana Libre". A 13 de Outubro, poucos dias antes da decisão do embargo norte-americano, um forte contingente
de empresas pertencentes à burguesia cubana fora também expropriado, bem como o conjunto dos bancos - com excepção dos canadianos. Desta vez, a revolução nacionaliza
as últimas cento e setenta e três empresas norte-americanas, cuja lista, não exaustiva, revela bem a importância da presença física dos Estados Unidos na vida quotidiana
dos habitantes da ilha. Coca-Cola, General Electric, Remington Rand, os grandes armazéns Sears and Roebuck, Woolworth, etc... e, já agora, as minas de níquel de
Nicaro e de Moa que, durante a guerrilha em Oriente, tiveram conflitos com os rebeldes.
Assim, em poucos meses, a estrutura capitalista do sistema económico cubano ficou estilhaçada. O Estado vê-se proprietário de um imenso património que terá não só
de aprender a gerir como também defender, pois a avalanche de medidas económicas e políticas dessa "grande viragem" provocou uma onda de protestos entre a classe
média e a burguesia cubana. A oposição - ainda existe uma - insurge-se o mais que pode contra a orientação "comunista" do país, mas os seus dias estão contados.
Em relação a ela, Guevara mostra-se mais radical do que nunca: "Atacam-nos, e atacam-nos muito. Nós, membros da Revolução cubana, que somos o povo de Cuba, chamamos
amigos aos amigos e inimigos aos inimigos. Não admitimos o meio-termo: ou se é nosso amigo ou nosso inimigo". E o Che denuncia "todos aqueles que constituíam a reserva
do governo americano neste país, os que se disfarçavam de anti-Batista mas que pretendiam simultaneamente derrotar Batista e manter o sistema, os Miro, os Quevedo,
os Díaz Lanz, os Huber Matos...115
Miro Cardona, promovido a primeiro ministro quando era necessário tranquilizar a opinião pública a seguir à vitória e "demitido" cinco semanas depois, é expulso
da sua cátedra na Universidade e acaba por se exilar. Díaz Lanz e Matos, ambos comandantes rebeldes, nutrem a mesma aversão pelo comunismo. O primeiro organiza,
a partir da Florida, incursões aéreas sobre Cuba para incendiar, com napalm, campos de cana de açúcar, ou para abastecer de armas e material uma resistência que
se organiza na Serra de Escambray; o segundo cumpre vinte anos de prisão. Quanto a Quevedo, amigo de

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Castro e director da Bohemia, o mais importante semanário de Cuba, é forçado a refugiar-se numa embaixada, o que ilustra um processo de controlo da imprensa, que
vai endurecendo à medida que a tensão política cresce.
Desde finais de 1959 que surgiu na imprensa uma forma insólita de contestação, a coletilla. Trata-se de uma "apostila", ou seja, um comentário acrescentado pelos
trabalhadores da empresa, que tomam a liberdade de exprimir uma opinião diferente da do autor do artigo ou da legenda da fotografia. (No fim dos anos setenta, em
Paris, as "notes de la claviste" do jornal Libération retomam o mesmo princípio).
Em Cuba, aquilo que começou como um debate público original transforma-se num sistema organizado, coordenado por um comité político que, do interior, esvazia o jornal
da sua substância. Os directores que tentam resistir em breve se vêem obrigados a seguir o caminho do exílio. Desaparecem assim Prensa Libre, El País, a revista
popular Carteles, etc. A maior parte deles voltarão a ser publicados em Miami, onde começa a desenvolver-se a maior comunidade cubana dos Estados Unidos.
O caso do conservador Diário de la Marina é exemplar; venerável instituição de direita, o jornal, que tem então cento e quarenta anos, defendeu a escravatura negra,
condenou José Marti, saudou Franco e todos os fascismos. Guevara não deixa de ler os editoriais reaccionários do Marina para avaliar a virulência da opinião contrária.
Ao contrário do pessoal dos outros jornais, os seus operários e trabalhadores recusam por maioria a prática da coletilla, e assinam mesmo, em Maio de 1960, uma tomada
de posição anticomunista da direcção. O sindicato dos trabalhadores gráficos envia então os seus "caceteiros" para tomarem de assalto o jornal. É René Depestre,
o poeta haitiano recebido anteriormente em Tarara, que o Che nomeia interventor, novo patrão. "Eu era uma espécie de comissário, conta Depestre. Entrei fardado,
no gabinete do director, para o despedir. Foi divertido... O que espantava muita gente é que eu escrevia simultaneamente no Hoy e no Revolución"116.
Se bem que, em princípio, todos os partidos políticos tenham sido dissolvidos desde o início de 1959, o Partido Comunista organiza sem problemas o seu congresso
de Agosto de 1960 - com a participação de Jacques Duelos, membro do bureau político do partido irmão francês. O Hoy é o órgão do PC cubano, ao passo que o Revolución,
criado na Sierra Maestra, porta-voz do Movimento do
26 de Julho, passou a ser o jornal de Fidel Castro. Carlos Franqui, o seu director, tenta não surgir muito como "a voz do dono" e faz o possível para se demarcar
dos comunistas. Distingue-se sobretudo por um suplemento cultural semanal, à
2ª feira, que se torna um ponto de referência, Lunes de Revolución, confiado ao escritor iconoclasta Cabrera Infante. Este instiga os "jovens turcos" da inteligentsia
literária e artística cubana que encontram, graças à revolução, um vasto espaço de liberdade. "A nossa estética era o surrealismo, o trotsquismo, tudo misturado
com más metáforas, como um cocktail inebriante"117.
Quando, nas magníficas instalações do Diário de la Marina, é instalada uma Imprensa Nacional, é ainda o Che, fiel aos seus sonhos de infância, que

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decide que a primeira publicação dessa nova casa editora será uma edição de cem mil exemplares do Don Quixote de Cervantes, em quatro volumes. "Fui eu que redigi
a apresentação", prossegue Depestre. "Era a primeira vez, em Cuba, que um livro simbólico como aquele atingia uma tal difusão. Aliás, ele não foi vendido, mas sim
oferecido às pessoas, aos jovens, ao público. Toda a gente leu o Don Quixote... Mais tarde, a Imprensa Nacional será confiada ao romancista Alejo Carpentier, regressado
do exílio, mas eu tive de travar uma dura batalha contra velhos comunistas, como Octavio Fernández, por exemplo, braço direito de Escalante, que pretendiam impor
uma série de obras medíocres trazidas de Moscovo, toda a literatura do realismo socialista. Era necessário negociar título a título. O Che dissera-me: "Sobretudo,
não confundas as tuas posições com as desses senhores. São uns sectários, gente complicada". Ele sabia que eu não era um comunista tacanho"118.
Virá o tempo em que os "comunistas tacanhos" irão atacar o próprio Guevara, demasiado livre para o gosto deles. Daí até lá, das máquinas do Diário de la Marina sairão
edições gigantescas de Marx, Engels, Lenine, Mao e Kim Il Sung, mas também Moby Dick, Robinson Crusoé e, evidentemente, O Velho e o Mar. Hemingway, famoso cidadão
honorário em Cuba, observou certo dia a um jornalista da Prensa Latina: "I'm not a Yankee, you know" ("Sabe, eu não sou um ianque")119. Guevara pediu a Depestre
que fizesse aquilo que ele melhor sabia fazer, escrever: "Pediu-me que preparasse, para o Revolución, crónicas sobre a guerra da Argélia. Era o padre Berenguer,
um padre pied-noir de Orão, enviado pela FNL argelina, que me fornecia as informações para os meus artigos. Havia inúmeras tendências no Revolución e o Che estava
satisfeito por ter alguém de confiança dentro do jornal"120-
Em fins de 1960 só subsistem, portanto, jornais, estações de rádio e de televisão favoráveis à revolução. Estimulada, sem dúvida, pelos artigos de Sartre no France-Soir,
a revista L'Express envia a jovem Françoise Sagan à festa do 26 de Julho em Cuba. Ela regressa com uma reportagem muito favorável ao regime, mas que reconhecia:
"Já não há imprensa livre e o resultado é confrangedor"121.
Em Março de 1960 - confirmar-se-á mais tarde122 - Eisenhower deu luz verde a um projecto da CIA defendido pelo vice-presidente Richard Nixon, aliás candidato republicano
à presidência. Antes de atacar o regime pelas armas, há que o desestabilizar primeiro: instalação de uma rádio anti-Castro na América Central, espionagem, treino
de comandos, etc. O objectivo consiste em encorajar a oposição a reforçar os numerosos grupos de guerrilha anticomunista que, sem coordenação real, reinam um pouco
por toda a parte a partir do refúgio da serra de Escambray. Fidel garante que existem 179 grupos desses em Cuba, abastecidos por pára-quedas provenientes dos Estados
Unidos. O seu irmão Raul precisa que o número desses bandidos - como ele lhes chama - chega aos três mil e quinhentos, o que não é uma brincadeira. Serão necessários
longos meses, anos, para que "operações de limpeza", difíceis

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e caras em vidas humanas, liquidem essa resistência que tem o descaramento de voltar contra Castro o método da guerrilha que lhes proporcionou os comandos da ilha.
Uma legião especial, a LCB (Luta Contra os Bandidos) é criada entre os camponeses fiéis à revolução, para apoiar o exército e as milícias; mas, apesar de milhares
de prisões, execuções e deportações, certos focos dessa oposição armada persistirão até 1965.
Retomando uma estrutura já funcional, o exército de Castro montou um excelente serviço de contra-espionagem, o G-2, sob a direcção do antigo braço direito de Guevara,
Ramiro Valdés, ele próprio assistido por um adjunto, o capitão Manuel Piñeiro, mais conhecido por Barbaroja, devido à sua barba ruiva. (Responsável pelo Departamento
América Latina, este último ficará famoso junto dos revolucionários latinos do continente, que terão todos de lidar com ele). O que não impede que "a síndroma da
Guatemala" continue ainda a pairar. À medida que a escalada de represálias económicas para com o perigoso vizinho aumenta, a ideia de uma invasão directa ou apoiada
por Washington vai ganhando corpo e espalha-se entre a população, chamada a mobilizar-se ao mínimo sinal de alerta. Assim, ao longo dos meses, e pontuadas pelas
bombas que rebentam em Havana e nalgumas grandes cidades, sucedem-se as medidas que vão acabar por "normalizar" a imprensa, a Igreja, a Universidade, os sindicatos.
Por tradição, a igreja cubana apoiava os poderosos. Em 1959, começou por saudar a dimensão cristã de uma revolução "humanista". Mas no ano seguinte essas boas intenções
desapareceram. O arcebispo de Santiago denuncia o comunismo ateu, o controlo dos meios de comunicação, os excessos da reforma agrária. "Cuba sim, comunismo não,
escravatura nunca", proclama ele em Outubro de 1960. O regime proibira já as procissões e os toques de sinos das igrejas. Meses depois, o jornal católico La Quincena
é encerrado, várias escolas e a universidade católica são nacionalizadas e uma centena de padres são expulsos.
Na Universidade, onde o meio estudantil nunca apreciou muito os comunistas, acusados de conluio histórico com Batista, Castro considera que a autonomia tradicional
já não tem razão de ser em regime revolucionário, e comissões mistas de estudantes e professores organizam uma depuração política sistemática, que leva ao exílio
excelentes intelectuais. Enquanto que o reitor, suspenso, é substituído pelo presidente do Partido Comunista, o estudo do materialismo histórico é introduzido em
todas as especialidades.
Essas manobras surgem também nos sindicatos. A Confederação dos Trabalhadores Cubanos (CTC), também ela avessa à dialéctica comunista, teve de aceitar a direcção
de um homem de Castro, David Salvador, apesar de tudo moderado. No ano seguinte, esse homem é considerado demasiado moderado. Sobretudo quando as nacionalizações
trazem consigo uma indexação salarial pela base, particularmente no sector da electricidade no qual, por tradição, as companhias americanas praticavam salários elevados.
Os trabalhadores desse sector chegam a desfilar gritando: "Cuba sim! Rússia não!"123 É um comandante do exército rebelde, guindado à direcção da CTC para pôr

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as coisas na ordem, que se apressa a declarar "greve à greve" e a reorganizar de imediato o sindicato.
Apesar das suas reservas em relação à velha guarda dos comunistas, Guevara não ficou chocado com a agitação desse segundo semestre de 1960, rico em decisões revolucionárias
e pesado de ameaças. Pelo contrário, o seu radicalismo levou-o sem dúvida a aconselhar Castro a ser ainda mais intransigente, a desembaraçar-se das ovelhas ranhosas.
Quando a pátria está em perigo, não se deve deixar a oposição minar o moral das tropas, fomentar intrigas, ajudar o inimigo. Basta lembrar a sua observação a Nasser,
quando declarou que media o alcance de uma revolução pelo número de pessoas que abandonavam o país.
Analisando em 1960 "a situação cubana, presente e futuro", o Che precisa, num apêndice à sua Guerra de guerrilha, que "após a fuga do ditador", aquilo a que se assiste
é "o resultado de uma longa luta civil armada do povo cubano". Seguem-se então uma dezena de páginas espantosas, onde são passados em revista diversos cenários,
políticos, económicos, militares, de uma agressão imperialista dos Estados Unidos contra Cuba. O Che examina assim a "variante Guatemala", a "variante República
Dominicana", a "variante Espanhola", calculando friamente as baixas prováveis em ambos os lados, mas incitando veementemente à organização imediata da resposta nas
cidades e nos campos, mediante a aliança entre milícias e o exército que representam, como afirmou Camilo Cienfuegos, "o povo fardado"124. "O nosso inimigo", insiste
o Che perante uma assembleia de médicos, em Agosto de 1960, "o inimigo de toda a América, é o governo monopolista dos Estados Unidos da América"125. Por isso, Guevara
não protesta, antes aplaude, quando Castro organiza os CDR. Esses Comités de Defesa da Revolução, criados em Setembro de 1960, vão estabelecer, rua a rua, casa a
casa, fábrica a fábrica, uma temível rede de vigilância das acções e do comportamento revolucionário de cada um. Servirão de estrutura poderosa para fazer "descer"
às bases as directivas políticas e fazer "subir" as informações "adequadas" até à hierarquia... e ao G-2, que começa a receber a assistência de conselheiros soviéticos
do KGB.
Muitos cidadãos não suportam esse controlo policial cerrado, prenunciador, pensam eles, do sinistro "admirável mundo novo" de Huxley, e optam por abandonar o país.
Entre eles, e de novo, inúmeros técnicos e membros de profissões liberais. Virá o dia em que o Che fará uma auto-crítica sobre este ponto e lamentará essas partidas
mas, para já, empenha-se sobretudo em tornar o processo irreversível.
Quando, após uma primeira estadia em Maio, o agrónomo René Dumont regressa a Cuba em Agosto de 1960, a convite de Castro, repete a Guevara, "grande inspirador da
política económica cubana", o que já dissera a Fidel: que a reforma agrária exige uma gestão correcta e não aquela desordem intempestiva, onde se nacionaliza à pressa
aquilo que ainda se não é capaz de administrar. Descrição: "O Che recebeu-me bastante cedo - são apenas
22 horas -, no gabinete do Banco. [...] Proponho [...] que os cooperantes

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participem, sem remuneração, na construção das suas habitações [...] e invistam trabalho na sua cooperativa durante a época baixa [...] [evitando-lhes desse modo]
sentirem-se promovidos a assalariados do governo, a semi-funcionários. [...] Essa participação dar-lhes-ia um sentimento de compropriedade, de ligação pessoal, ao
seu colectivo de trabalho". O Che que lera certas obras de Dumont, reage então violentamente: "Houve aqui em 1959 uma tendência para a "jugoslavização" e para os
conselhos operários. Não se deve dar-lhes [aos cooperantes] o sentido da propriedade, mas sim o da responsabilidade". René Dumont prossegue: "O Che desenvolvia uma
espécie de visão ideal do homem socialista, alheio ao lado mercantil das coisas, trabalhando para a sociedade e não com vista ao lucro". Entrevemos já os traços
desse "homem novo" que Guevara não deixará de tentar formar, um ser de qualidade, animado pelos mais nobres sentimentos, sempre disposto a prestar um trabalho voluntário,
mais sensível aos estímulos morais do que às recompensas materiais. "O Che estava muito adiantado para a época," conclui o agrónomo. "Pelo seu pensamento, ele encontrava-se
já na etapa do comunismo [...]. Esse avanço a toda a pressa prejudica o motor..."126.

"Trabalho, trabalho e mais trabalho!"

Reagindo contra Cuba como o fizeram, os Estados Unidos revelaram o seu verdadeiro rosto, segundo Guevara, o de uma potência colonial que não aceita que uma parcela
do seu império se revolte. Nessa guerra não declarada mas real, o Che está, como sempre, presente em várias frentes. Prepara o futuro empenhando-se em que os militantes
revolucionários que afluem de toda a parte do Terceiro Mundo recebam a formação adequada, o apoio financeiro, se possível armas, para combaterem o inimigo imperialista
comum. Esta solidariedade activa não se limita, aliás, à América Latina. Os futuros dirigentes de Zanzibar, colónia britânica na costa oriental de África, recordar-se-ão
do seu treino em Cuba e, depois de se fundirem com o Tanganica, formando a Tanzânia, não hesitarão, em contrapartida, em dar a Cuba (e em particular a Guevara) um
apoio indispensável quando as circunstâncias o exigirem. Por várias vezes o Che saudou calorosamente o comportamento antimperialista de Patrice Lumumba, no Congo
ex-belga. O assassínio do líder congolês, em 1961, indigná-lo-á. O comandante também não negligencia as suas responsabilidades de grande organizador do departamento
de instrução militar das forças armadas cubanas, sobretudo a partir do momento em que as milícias operárias e camponesas vão cada vez mais militarizar-se. E continua
a manter um pé no INRA, cujo património industrial aumentou, enriquecido pela confiscação por vezes desordenada dos "bens mal adquiridos" pelos parasitas do antigo
regime.
Mas é ao Banco que Guevara, consciencioso, dedica o essencial do seu tempo. Desde a sua tomada de posse, instaurou um rigoroso controlo dos câmbios. Desde então,
dia após dia, observa o nível das reservas de divisas.

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Manteve para o pessoal os salários elevados existentes, mas, para si e para os seus assessores, fixou uma remuneração inferior (que ele nem sequer recebe, uma vez
que tem o seu salário militar). E, aos fins de semana, dá o exemplo e leva aqueles que desejam fazê-lo a transportar perpianhos para a construção dás casas dos operários.
Não existe demagogia nesse "trabalho voluntário", dificultado às vezes pela asma, que o leva a continuar a ultrapassar-se. Não faz mais do que aplicar o princípio
erigido em regra de vida: um revolucionário deve dedicar toda a sua vida à revolução. A um amigo americano, escreve: "A minha vida resume-se a uma palavra: trabalho,
trabalho e mais trabalho. A revolução necessita de todos os nossos minutos"127. Muitos serão aqueles que não conseguirão acompanhar este rigor.
Por muito que este "monge" empenhado na sua era notável tenha declarado que só os seus amigos estavam autorizados a tratá-lo por Che, é cada vez mais por essa alcunha
familiar que ele é conhecido no país, sinal de uma popularidade que leva os cubanos a nunca dizerem Castro, mas Fidel. "Só os soberanos não tratados pelo nome próprio",
observa Régis Debray, trocista128. A identificação é tal que, quando pedem ao presidente do Banco Nacional que assine notas novas, ele não hesita e coloca maliciosamente
as três únicas letras Che à laia de assinatura. Aliás, está tão pouco preocupado com a sua irreverência que por vezes envia a amigos no estrangeiro notas assim ornamentadas,
que passaram a constituir objecto de colecção. Esta ironia em relação ao sacrossanto papel-moeda provoca inúmeros comentários agridoces. Alguns brincalhões terão
o mau gosto de acrescentar uma cruz à assinatura, o que dá cruz-che, aproximação fonética, em espanhol, de Kruchtchev, para marcar a submissão aos soviéticos atribuída
a Guevara.
Agora que as hostilidades estão abertas e Castro já não receia assustar a burguesia cubana ou a opinião pública norte-americana, o Che, saído da semi-clandestinidade
dos primeiros tempos, desempenha claramente o seu papel de coadjuvante. Não há visitante que não peça para lhe falar. Às vezes a surpresa é comovente. Um dia aparece
Granado, com quem ele fez a sua memorável primeira digressão latino-americana. "O comandante deu ordem para que não o incomodassem," declara Manresa, o devotado
secretário. "Está a estudar matemática". "Mesmo assim, anuncia-me", insiste Granado. Ernesto vem imediatamente. Grandes abraços. Pelao já não é digno desse nome;
agora a sua cabeleira é enorme. Já não se viam desde 1952 - oito anos já! Alberto casou. Guevara conta-lhe que esteve para ir em missão à Venezuela, mas que a sua
fama de semeador de revoltas precedeu-o e o governo de Caracas pediu-lhe que renunciasse ao projecto. Por isso foi Mial que fez a viagem para reencontrar Fuser e
para se colocar ao serviço da revolução.
Algumas semanas depois, convidado por Franqui em nome do jornal Revolución, aparece Pablo Neruda, o poeta por excelência, cujos versos Guevara sabe de cor. "Ele
tinha dito à meia-noite, mas era já quase uma hora quando eu cheguei, retido por uma reunião oficial interminável", conta Neruda. (Franqui evoca a rivalidade surda
que opunha Nicolas Guillén a

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Neruda, ambos poetas comunistas. O cubano Guillén conseguiu ser o primeiro a recitar os seus poemas, mas foi o chileno o mais ovacionado). Como sucede com todos,
Neruda fica impressionado pelo contraste entre o aspecto marcial daquele presidente de Banco, de pistola à cintura, e a decoração presidencial do gabinete. "O Che
era moreno, falava pausadamente e tinha uma pronúncia argentina acentuada. Era o género de pessoa com quem se pode conversar calmamente, na Pampa, entre vários mates.
As suas frases eram curtas, terminando num sorriso, como se o comentário pairasse no ar. Senti-me lisongeado com o que ele me disse do meu Canto General. Costumava
ler uma passagem dele aos seus guerrilheiros, à noite, na Sierra Maestra. [...] Nessa noite, disse-me uma coisa que me deixou perplexo mas que talvez explique o
seu destino. Falámos de uma possível invasão norte-americana de Cuba. Eu tinha visto, nas ruas de Havana, sacos de areia colocados em pontos estratégicos. E ele,
de repente: "A guerra... a guerra... Somos todos contra a guerra. Mas quando se fez a guerra, já não se pode viver sem ela. Estamos sempre a querer voltar a ela""129.
Chave para uma morte anunciada? Aleida, a esposa, vai acompanhando o movimento conforme pode. "Para além da minha mãe, tu és a única mulher que verdadeiramente amei",
disse-lhe ele um dia130. Ela já não o acompanha tanto nos seus longos dias e noites de trabalho; espera um filho. Depois da vivenda de Tarara, mudaram três vezes
de casa, por instruções dos serviços de segurança. Em Junho de 1960, instalaram-se numa vivenda que lhes foi atribuída na rua 18, em Miramar, no bairro elegante
de Havana. É o guajiro Alarcón, alistado na Sierra Maestra que, entretanto promovido a capitão, dirige por uns tempos a equipa dos seus guarda-costas e entra com
o Che no Oldsmobile preto, modelo de 1958, que substitui o Studebaker de La Cabaña. Olhando para ele, adivinha se o comandante sai das reuniões satisfeito ou de
mau humor. Guevara é uma figura que convém proteger, pois a contra-revolução não desarmou. O interessado refila um pouco contra esse excesso de precauções que o
incomoda, mas o chocalhar das metralhadoras no chão do automóvel não lhe desagrada. O Che sempre gostou de armas de fogo. Em Maio, a mãe vem visitá-lo de novo, sozinha.
Ele leva-a a uma grande pescaria para a qual Fidel o convidara, por ocasião de um trofeu Hemingway. Em algumas fotografias aparecem os dois à popa de um barco confortável
com motor fora-de-bordo: ele, de tronco nu, com a pele muito branca, a caixa toráxica larga, a clássica boina negra; Célia, sentada a seu lado, sorridente. Imagem
de um casal feliz. Mais tarde o Che convidará a mãe a acompanhá-lo, de avioneta, a Oriente, excursão de que o pai fora privado. O piloto, Eliseo de la Campa, conta
que ao chegarem às minas de El Cobre encontram mesas postas com uma refeição sumptuosa destinada ao poeta antifascista Marcos Ana, de visita a Cuba. Convidam Guevara
e a mãe a participar no festim. "É isto que os operários de Santiago costumam comer?", pergunta ele. Respondem-lhe que o visitante normal tem direito a carne russa
em conserva e esparguete. "Então dá-nos o que come o visitante vulgar. Aos convidados de Cuba, que se dê o que há de melhor. Mas a minha mãe é uma camarada como
eu.

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Não nos trates como visitantes estrangeiros"131, responde o presidente do Banco Nacional. De regresso a Buenos Aires, Célia de la Serna escreverá uma série de quatro
artigos elogiosos, "Cuba vista por dentro", publicados no semanário socialista argentino (de pequena tiragem) La Vanguardia.
O mesmo Eliseo de la Campa conta uma história que dá simultaneamente uma ideia do estilo de vida dos barbudos, nos primeiros tempos da revolução e da vida austera
que Guevara impunha a si próprio. Uma tarde, após uma reunião em Bayamo, na parte leste da ilha, o Che insiste em regressar sem falta a Havana, apesar de a previsão
meteorológica ser má. Descolam, mas o tempo está péssimo e são obrigados a voltar para trás. Aleida, que também tinha ido, pergunta ao piloto se tem dinheiro. E
explica: "É que o Che não tem um tostão para pagar o jantar e o hotel. Por isso queria por força regressar". Eliseo acrescenta: "E ele era presidente do Banco Nacional,
naquela época!"132.
Apesar dos seus constantes afazeres, Guevara arranja sempre tempo para escrever, uma disciplina diária a que ele se submeteu durante a vida inteira. Artigos para
a revista Verde Olivo, assinados "franco-atirador", reflexões políticas sobre a orientação da revolução, rascunhos de discursos, cartas. Em Abril de 1960, responde
ao seu "caro compatriota" Ernesto Sábato, "possuidor do que [é] para mim o título mais sagrado do mundo, o de escritor", diz-lhe ele. Apesar de "ter passado a ser
cidadão cubano por decreto, continuo a pertencer à terra onde nasci". Claro que voltaria a empunhar uma espingarda "com entusiasmo, se fosse necessário", confessa
ele. É visível que isso o satisfaria mais do que dirigir um banco, mesmo nacional. Mas este combatente é também um intelectual, e em Cuba não há muita gente que
possua estas duas qualidades. Sarcástico, admite que "esta revolução, [...] a mais autêntica criação da improvisação, [...] avançou mais rapidamente do que a sua
ideologia anterior"133. Simpática lucidez, que o leva a tentar elaborar uma tentativa de explicação histórica dessa velocidade revolucionária. Mas quando, na sequência
do anúncio das nacionalizações dos bens americanos, um jovem estudante de medicina chileno, Hernán Sandoval, lhe pergunta até onde irá a revolução, Guevara não está
exactamente a brincar quando fala em "salto no vazio". "Olha", diz-lhe ele, "quando te atiras do décimo andar, não perguntas até onde vais, quando passas pelo quinto"134.

Ernesto no continente das maravilhas

A 21 de Outubro de 1960, para garantir a rede de protecção que evitará o esmagamento da revolução, Fidel envia o digno representante da dita numa longa digressão
de dois meses por cinco países socialistas: Checoslováquia, URSS, China, Coreia do Norte e RDA. Na véspera da partida, em directo na televisão, Guevara explica o
significado da sua missão: definir as importações pretendidas por Cuba, de forma a permitir a esses países integrá-las na

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sua planificação económica. No total, cerca de dez milhões de toneladas de produtos diversos, declara ele.
Regressa da viagem maravilhado. Tal como Aragon, está pronto a gritar: "Hourra l'Oural!" (Viva os Urales!). Tudo lhe pareceu admirável, exaltante, magnífico. A 6
de Janeiro de 1961, também na televisão, declara: "Disseram-me que, quando há uns meses o camarada Nuñez Jiménez apresentou o seu relatório, após uma viagem aos
países socialistas, lhe chamaram "Alice no país das maravilhas". Posso garantir-vos que eu, que viajei mais, que visitei todo o continente socialista, posso ser
considerado como a "Alice no continente das maravilhas""135.
A razão fundamental do seu deslumbramento é de ordem política, insiste. Porque se a URSS prometeu fornecer petróleo em troca de açúcar "durante vários anos", se
os países socialistas no seu conjunto se comprometeram a comprar de imediato quatro milhões de toneladas da principal produção de Cuba, a quatro centavos a libra,
"isto é, a um preço nitidamente superior àquele que é definido pelas duas grandes Bolsas de Nova Iorque e de Londres", fazem-no, sublinha ele, não por razões económicas,
mas por um "princípio político", porque "o pedido cubano foi apresentado em termos políticos". Podemos já entrever essa filosofia de uma solidariedade indispensável
no seio do campo socialista, que Guevara reivindica permanentemente, ou seja, que os países socialistas "ricos" têm o dever moral, o dever político, de ajudar generosamente,
de forma desinteressada, os países em vias de desenvolvimento ou que caminham para o socialismo. Um dia, em Argel, em
1965, irá mais longe, e acusará os países socialistas que se furtam a esse dever, rotulando-os de neo-colonialistas. Nessa altura, a irritação do país farol do socialismo
será tal que precipitará a saída de Cuba de Guevara. Mas, por enquanto, está ainda na fase da admiração incondicional.
Apesar das suas simpatias marxistas, Guevara está mal informado sobre os costumes secretos da família comunista. O seu conhecimento da URSS é quase de ordem poética.
Leu inúmeras obras edificantes desses escritores apologéticos a que Estaline chamava "engenheiros da alma", viu imensos filmes não menos edificantes, exaltando os
"heróis positivos". Os soviéticos são épicos. Ele gosta. A sua opinião é de tal forma favorável que não se apercebe do que se passa por detrás das aparências. Toma
como ponto assente o que lhe dizem, o que lhe mostram, o que lhe prometem. Baixou a guarda, e compra, como boas, fábricas que, com o tempo, se revelarão de fraca
qualidade: sessenta e uma para já, anuncia ele. E mais cem, até 1965. Em Moscovo, enchem-no de atenções. Único senão: o beijo na boca, à russa quando o recebem.
Ele não contava com isso. A partir de agora, quando chega a altura dos cumprimentos, mantém o charuto entre os dentes. Na festa do 43º Aniversário da Revolução de
Outubro (celebrada a 7 de Novembro, segundo o calendário gregoriano), é convidado para a tribuna de honra, na Praça Vermelha. Precisamente ao lado de Kruchtchev
e de Maurice Thorez, "primeiro comunista de França". Mais afastados ficaram os dirigentes chinês (Liu Chao-Chi),

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vietnamita (Ho Chi Minh), polaco (Gomulka), checoslovaco (Novotny), etc. Como todo o detalhe tem o seu significado no protocolo soviético, o Che, sempre com a sua
farda verde-azeitona, tem o privilégio de ser admitido no círculo especial reservado ao primeiro-ministro, aos membros do Praesidium e aos chefes de Estado dos países
comunistas. Kruchtchev, que acaba de regressar de uma sessão histórica da ONU, em Nova Iorque, faz um brinde a Fidel Castro e ao seu arauto, o "valente e glorioso
Guevara", aqui presente. "Enquanto nos reuníamos, os delegados dos partidos comunistas de 81 países reuniam-se também para tratar de questões importantes". O Che
não especifica de que questões se tratava, cuja importância provavelmente lhe escapou, pois nunca se lhes refere. Moscovo pretende fazer aprovar naquele conclave
a estratégia da "coexistência pacífica" com os Estados Unidos: só essa política permitirá de facto proceder ao desarmamento do complexo militar-industrial que provoca
a sangria da economia soviética. A China Popular rejeita violentamente uma tal revisão política, considerada "contra-revolucionária". Anibal Escalante, representante
do PC cubano, assiste aos debates, mas nada diz a Guevara. K. S. Karol afirma que, "por incrível que pareça, essa família desunida, em pleno conflito, mantinha os
seus hábitos de "segredo entre iniciados" (em relação ao mundo exterior) a ponto de até um Che Guevara, progressista, revolucionário, amigo por excelência do bloco
socialista, não ter nenhum direito a ser informado da situação, nem sequer parcialmente. [...] Guevara não tinha segundas intenções e não imaginava que os outros
pudessem tê-las"136.
A ingenuidade dos cubanos joga a seu favor. Confiantes que estão (que pensam estar) na protecção dos foguetões soviéticos, provocam os norte-americanos, correndo
o risco de precipitar a prova de força. "Estamos em guerra económica, e quase em guerra real contra uma super-potência", declara Guevara antes de acrescentar, deliciado:
"Também nós somos apoiados por uma super potência"; uma forma de recordar o seu comentário, emitido em 10 de Julho em Havana, perante uma assistência de cem mil
pessoas: "Somos os árbritos da paz no mundo"137. Este ardor revolucionário não convém ao senhor K. (Kruchtchev) que, pelo contrário, pretende eliminar os "pontos
quentes", e que toma consciência de que, tratando-se de defender uma ilha a dez mil quilómetros de Moscovo, a superioridade soviética em matéria de armamento convencional
ficar anulada pela distância. É certo que é sempre agradável entreabrir a porta até aí aferrolhada dessa América Latina proclamada off limits desde 1823 pelo presidente
Monroe. Mas a que preço?
Karol explica bem o mal-entendido. Ao receber o auxílio económico da URSS e dos seus aliados, Cuba, a começar pelo seu fogoso número dois, pretenderia demonstrar
a superioridade do modelo de desenvolvimento socialista, transformar-se numa espécie de "montra" da eficácia soviética na América Latina. O que significa desconhecer
dois elementos de peso. Primeiro, que apesar das aparências e dos discursos, e pondo de parte algumas ilhotas de tecnologia avançada, a URSS assemelha-se mais às
"aldeias

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Potemkine" erigidas perante Catarina II pelo marechal do mesmo nome, apenas para impressionar. Esse país, em muitos aspectos ainda próximo do Terceiro Mundo, está
atrasado no seu desenvolvimento, afectado pela guerra fria, desmoralizado pela revelação dos crimes da época estalinista, despolitizado. A sua prosperidade é fictícia.
Por seu turno, a URSS não avalia bem o esforço necessário para ajudar um país como Cuba, que já está bastante americanizado. É certo que pelo menos um terço da população
não tem possibilidade de aceder aos bens e serviços, e esse escândalo agrava-se pela situação neo-colonial da ilha. Mas os dois terços restantes dispõem de um nível
de vida e de consumo superior ao dos cidadãos soviéticos, para não falar dos chineses. Quando Guevara se indigna em público por lhe terem pedido, antes de partir,
que comprasse material para fabricar desodorizantes ao passo que no Leste, diz ele, nem sequer sabem o que isso significa, sublinha involuntariamente o fosso que
existe entre uma sociedade habituada a consumir "à americana" e uma outra para a qual é prioritário ter sabão e comida.
Mais tarde, o Che cairá em si, mas, no calor tropical que encontra em Havana e no dos spots televisivos, nos primórdios desse ano de 1961 que acaba de ser declarado
"ano da educação", esforça-se por dar o seu contributo educativo fazendo a descrição mirífica daquilo que descobriu. Levado pelo entusiasmo, quase delira, como a
heroína de Lewis Caroll diante das montanhas de chocolate e dos rios de mel. "Esse país [a União Soviética] que preza tanto a paz, está disposto a arriscar tudo
numa guerra atómica [...] unicamente para defender um princípio e proteger Cuba. [...] Os soviéticos têm todos um elevado grau de cultura política". A uma questão
que lhe é colocada, após o seu discurso, ele responde falando da "enorme liberdade individual [...] a enorme liberdade de pensamento" de que cada indivíduo goza
na União Soviética. A Michel Tatu, correspondente do Le Monde, por ocasião de uma entrevista numa datcha, perto de Moscovo, declara, febrilmente, que "a URSS é,
segundo a expressão de Neruda, a mãe da liberdade"138.
Perante os telespectadores cubanos, e referindo-se à Coreia do Norte, onde permaneceu 5 dias, prossegue afirmando que, entre os países visitados, esse é "um dos
mais extraordinários". "Esse país conseguiu sobreviver graças a um sistema e a dirigentes admiráveis, tais como o marechal Kim Il Sung. [...] Tudo o que pudéssemos
dizer pareceria inacreditável". Na China, onde foi recebido (brevemente) por Mao Tsé-Tung e se avistou com Chu En Lai, "todos estão cheios de entusiasmo, toda a
gente faz horas extraordinárias e interessa-se pela produção". "Os chineses não quiseram que fosse mencionada a sua ajuda desinteressada, uma vez que têm interesse
em ajudar Cuba que se bate, na vanguarda, contra o inimigo comum dos povos, o imperialismo". Este raciocínio encanta-o. Em suma, na Checoslováquia, na Alemanha Oriental
e na Polónia (onde um dos seus adjuntos foi assinar acordos) "as realizações dos países socialistas são extraordinárias. Não há comparação possível entre os seus
sistemas de vida, os seus sistemas de desenvolvimento e os dos países capitalistas"139(!)

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Mesmo inserido no contexto de um país ameaçado como Cuba, que tem uma necessidade premente desses novos aliados, esse ramalhete de ingenuidades exibidas com desenvoltura
é confrangedor; revela-nos um Guevara desconhecido, cujo radicalismo maniqueísta lhe retira a lucidez, a capacidade de falar sem papas na língua, o distanciamento
que, geralmente, constituem o seu talento e o seu encanto.
Retenha-se, entretanto, que na RDA, em Leipzig, conhece uma encantadora compatriota, Tamara Bunke Bider, de vinte e três anos, que lhe serve de intérprete. Filha
de comunistas alemães refugiados na Argentina, na época nazi, nasceu em Buenos Aires, cresceu lá e, aos catorze anos, no início dos anos cinquenta, regressou com
os pais à RDA. O Che voltará a encontrá-la no ano seguinte, em Havana, como ardente militante revolucionária. Irá dar-lhe um papel a desempenhar na sua história
- e na história.

El señor ministro

No regresso, Guevara descobre a filha que Aleida deu à luz, a 24 de Novembro de 1960, enquanto ele se encontrava em Xangai. A menina recebeu o nome da mãe, uma tradição;
mas a euforia russófila da viagem transforma de imediato a pequena Aleida numa Aliucha. Entretanto, o pai não tem tempo de se entregar às delícias da família. O
rastilho não pára de arder entre Cuba e os Estados Unidos, e precisam dele.

Desde que começou a escalada de expropriações e de medidas de retaliação, Castro e Guevara admitiram como provável uma intervenção militar dos Estados Unidos. Apelaram
preventivamente para os recursos económicos e militares dos países socialistas e, em caso de necessidade, para o seu apoio diplomático. Para celebrar o segundo aniversário
da vitória contra Batista, os soldados do exército rebelde, com a sua farda verde-azeitona, e os milicianos em camisa azul, desfilam em Havana a 2 de Janeiro de
1961, desta vez com um equipamento que os guerrilheiros esfarrapados de 1959 não possuíam. Ostentam uniformes impecáveis e magníficas armas, novas em folha, soviéticas,
checas, belgas, e até tanques Estaline. Ainda não há parada aérea; os Mig encomendados chegarão mais tarde. Nesse dia, no seu discurso, Castro exige aos Estados
Unidos que os sessenta e tal membros do pessoal da sua embaixada em Cuba (metade dos quais trabalha para a CIA ou para o FBI) sejam reduzidos para dezoito pessoas,
número equivalente ao dos cubanos colocados na embaixada de Washington. Esta "provocação" suplementar serve a Eisenhower como último pretexto para adoptar uma medida
concebida desde há uns meses. No dia seguinte, 3 de Janeiro, anuncia a ruptura de relações diplomáticas, o que é uma forma de evitar que o seu sucessor tome esse
tipo de decisão.
John Fitzgerald Kennedy, o jovem e brilhante candidato democrático que ganhou as eleições de Novembro, vai entrar em funções a 20 de Janeiro. Daí até lá, pensa Castro,
tudo é possível. Decreta uma "mobilização geral" que

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põe todo o país em estado de alerta: o acesso às praias é proibido e no Malecón, o bairro em frente ao mar, em Havana, surge uma fila de canhões apontados para o
horizonte. O argumento do perigo externo será utilizado por Castro de uma forma recorrente para galvanizar energias revolucionárias, mas desta vez as informações
dos serviços cubanos batem certo: está em preparação uma acção militar, uma "invasão". Entre a população vai-se desenvolvendo um espírito de país cercado e surge
uma nova palavra de ordem: "Si vienen, quedan!"
O tema da pátria em perigo é susceptível de unir uma nação durante um certo tempo. Mas não chega para dissimular os primeiros fracassos da economia. As previsões
negativas de René Dumont confirmam-se: a reforma agrária, conduzida de forma anárquica pelos administradores do INRA, desorganizou o campo, provocando hiatos e posteriormente
rupturas, tanto na produção como na distribuição. A gestão caótica das cooperativas e as decisões contraditórias dos vários planificadores começam a provocar escassez.
Na altura em que os camponeses vêem o seu poder de compra aumentar, os artigos de consumo corrente - sabão, por exemplo - começam a faltar, até mesmo na rede de
tiedas populares, instalados no meio rural, que vendem em pesos, a preço de custo, aquilo que foi pago em dólares. Torna-se urgente repensar toda a economia do país
no seu conjunto, sobretudo agora que o sector estatizado se tornou enorme. A 21 de Fevereiro de 1961, Castro transforma então o antigo departamento industrial do
INRA num verdadeiro Ministério da Indústria e coloca à sua frente o seu homem de confiança, o comandante Guevara.
Poucos dias após a sua nomeação, o señor ministro, interrogado pelo jornal Revolución (27 de Fevereiro de 1961), traça as linhas gerais de um plano que parece não
o ter apanhado desprevenido. Retoma no essencial o mito estalinista da indústria pesada: "Os próximos cinco anos serão dedicados à industrialização de Cuba. [...]
Vamos montar paralelamente uma indústria ligeira e uma indústria pesada. A primeira será o resultado dos nossos esforços; a segunda será criada através dos créditos
e das compras dos países socialistas [...], minas, siderurgia, petróleo, altos-fornos. [...] A Junta Central de Planificação (Juceplan) fixará os programas, que
terão força de lei [...]. A industrialização é um dos grandes objectivos do governo revolucionário [...]. Ao contrário do imperialismo, os países socialistas não
se limitam a conceder-nos créditos para montar fábricas; vendem-nos também fábricas para fabricar outras fábricas"140 Exaltantes perspectivas de prosperidade futura!
Mas não se explica o que vai acontecer ao principal recurso de Cuba, o açúcar. O jornal refere, em conclusão, um ponto que o novo chefe da economia nacional parece
considerar fundamental: a importância, para todo o responsável governamental, de se entregar a tarefas manuais como o fazem, diz ele, os membros do governo na China
popular: "Uma vez que somos todos operários e que o poder está nas mãos da classe operária, é normal que todos nós trabalhemos em conjunto, pelo menos uma vez por
semana, para nos integrarmos melhor e melhor nos compreendermos".

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Que, em Fevereiro de 1961, o poder esteja na mão da classe operária cubana, é uma afirmação um pouco apressada. Guevara, como é sabido, tem tendência a andar mais
depressa do que a música. Mas a intervenção militar aguardada - o desembarque de 1500 mercenários na costa sul da ilha - vai fazer acertar os relógios.

A baía dos porcos: um fiasco monumental

No sábado, 15 de Abril de 1961, de madrugada, duas bases aéreas em Havana e uma outra em Santiago, Oriente, são bombardeadas por B-26, disfarçados pela CIA com as
cores cubanas, para fazer crer que se trata de pilotos anti-Castro. Os aparelhos partiram do território da Nicarágua, gentilmente cedido pelo ditador Luis Somoza.
O objectivo - destruir em terra a insignificante força aérea cubana - só é atingido parcialmente. Castro espalhou oito aparelhos dissimulados que, ao entrarem em
acção, irão ser de grande utilidade.
O ataque a Havana provocou sete mortos, que são enterrados com pompa no cemitério Cólon, no domingo, dia 16. Durante a oração fúnebre, ritual clássico da vida política
em Cuba, Castro dá livre curso à sua indignação. Compara o ataque norte-americano ao dos japoneses contra a marinha dos EUA em Pearl Harbor, a 7 de Dezembro de 1941,
e apelida os Estados Unidos de "mentirosos" por terem querido fazer passar os bombardeamentos por acções de cubanos passados para o lado inimigo. De facto, na ONU,
o embaixador norte-americano Stevenson, enganado pelos seus próprios serviços secretos, exibiu fotografias dos B-26, garantindo serem aviões cubanos. A sua humilhação
é enorme quando é forçado a reconhecer que as fotografias tinham sido falsificadas e que os aviões eram americanos.
Mas esse dia 16 de Abril de 1961 é uma data a fixar porque, pela primeira vez, num arroubo retórico, Castro confirma uma evidência nunca antes admitida: "Aquilo
que os imperialistas não podem perdoar-nos é termos feito uma revolução socialista mesmo nas barbas dos Estados Unidos, uma revolução socialista, repete ele, que
defenderemos de arma na mão"141. A melancia verde da revolução "humanista e liberal" de 1959 explode nesse mesmo momento, revelando o interior vermelho da sua verdade
profunda.
Um regime socialista conseguiu, pois, instalar-se a 160 quilómetros dos Estados Unidos, guardiões do continente, um regime que reivindica uma filosofia política,
social e económica situada nos antípodas dos princípios orientadores da potência imperialista. Apoiado em inúmeros argumentos, este puro escândalo teria podido justificar
uma intervenção militar. Mas teria de sair vitoriosa. A operação Baía dos Porcos é, pelo contrário, um fiasco absoluto, um dos maiores fracassos dos Estados Unidos
no século xx. E, para Castro, uma vitória total.
Em Cuba, no início do mês, muitos opositores são presos. Durante o fim-de-semana de 15-16 de Abril, a actividade da polícia é mais intensa do que

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nunca. Os Comités de Defesa da Revolução fizeram o seu trabalho de detecção e de delação, casa por casa. Em Havana, 35 mil pessoas são metidas nas prisões, nos quartéis,
em salas de cinema, num estádio. Cem mil em todo o país. "É a mais gigantesca varridela da história das Américas"142. Os "invasores" não poderão contar com nenhum
apoio local. Uma sabotagem consegue, no entanto, fazer deflagrar um incêndio num grande armazém da capital, El Encanto. Guevara previne os seus milicianos: "Será
a luta de todo um povo contra uma ínfima parte desse povo, que não se resigna a perder os seus privilégios"143.
A 17 de Abril, durante a noite, na Playa Giron, a praia mais importante da Baía dos Porcos, começa o desembarque dos mercenários, a brigada 2506. São rapidamente
detectados por milicianos que abrem fogo e alertam o exército, que de imediato informa Castro. Este conhece a zona palmo a palmo, a região dos pântanos de Zapata
que mostrou a Sartre com algum orgulho, uma reserva natural onde abundam os crocodilos e que, desembaraçada dos mosquitos, daria um local de férias ideal para o
bom povo de Cuba. Mas não se sabe se não haverá ainda outras tentativas nas duas extremidades do país. É Guevara que é encarregado de dirigir as operações na zona
ocidental da ilha, a mais sensível por estar mais perto da Florida. "Fidel disse-me que tinha enviado forças consideráveis para a área ocidental da ilha, sob as
ordens do Che Guevara, para defender a costa"144, observa Herbert Matthews. A zona oriental é confiada a Raul Castro e a região centro a Juan Almeida. Do seu QG
Punto Uno em Havana, Castro coordena e comanda. Tal como na Sierra Maestra, são os "veteranos" do Granma que, retomando o seu posto, estão de novo na linha da frente.

Sobre o fiasco espectacular desta operação "Baía dos Porcos" foram escritos milhares de artigos, centenas de reportagens, dezenas de livros. Do conjunto sobressaem
algumas conclusões que demonstram a que ponto as instituições mais sólidas - uma CIA, célebre pela sua eficácia - podem enganar-se quando obedecem às pulsões dos
seus dirigentes em vez de se regerem pelas exigências da realidade. Intoxicados pela sua própria propaganda, os serviços secretos americanos revelaram uma ignorância
espantosa do clima psicológico que reinava na ilha. Porque, excepto uma franja minoritária de cubanos lesados nos seus bens ou nas suas convicções, a grande massa
permanece ligada a uma revolução ainda rica de promessas e de amanhãs que cantam. Além disso, Castro, líder carismático, não parou, durante meses, de "aquecer" a
opinião pública nacional contra a invasão iminente dos gusanos, epíteto de desprezo com que são designados os exilados que, como "vermes" que saem do fruto, deixaram
o país para se juntarem ao campo dos imperialistas.
A CIA funcionou de acordo com o wishful thinking; só quis ouvir o que diziam os que tinham fugido do "comunismo cubano". A isso veio juntar-se uma certa arrogância
de grande potência, segura do seu modo de vida e de pensamento, persuadida que bastava o aparecimento dos "combatentes da liberdade" para unir uma população impaciente
por se livrar do jugo castrista.

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Finalmente, acumularam-se erros tácticos e técnicos: a guerrilha anti-revolucionária de Escambray, muito próxima, nem sequer foi informada; e, entre os americanos,
a convicção de que os bombardeamentos dos aeroportos chegariam para liquidar a pequena aviação cubana. De tal forma que os navios da operação de desembarque nem
sequer tinham artilharia antiaérea!
Concebido por Allen Dulles, o patrão da CIA, que mais não fez do que repetir o que resultara bem na Guatemala, o projecto, aprovado por Eisenhower e por Nixon, fora
"congelado" em Novembro, na sequência da eleição de Kennedy. Tendo herdado o dossier, este último hesitou por muito tempo em dar luz verde. Consultou, interrogou,
ponderou e, pondo de lado as reservas de alguns dos seus conselheiros, acabou por se render aos argumentos tranquilizadores que lhe garantiam um grande sucesso.
A 12 de Abril, teve, contudo, o cuidado de declarar que as forças americanas não interviriam em Cuba. A formulação é hipócrita, mas a mensagem é entendida por Castro,
que compreendeu que a operação seria executada por cubanos contra-revolucionários. Em Havana, sabe-se também que foi criada uma Frente Democrática Revolucionária,
dirigida por Miro Cardona, antigo primeiro-ministro, afastado em 1959.
É claro que os Estados Unidos não intervêm no sentido literal da palavra, e a tropa que desembarca é composta quase exclusivamente por cubanos. Mas a ficção não
vai além disso. Foram os Estados Unidos que organizaram, na Guatemala, o treino de 1.500 homens da brigada de invasão. Foram eles que os equiparam, transportaram,
escoltaram com os seus destroyers, lhes forneceram armas e todo o apoio logístico. Foram eles ainda que pagaram a cada um, em dólares, montantes diversos consoante
os encargos familiares, justificando desse modo a classificação de "mercenários", que não mais os abandonará. A responsabilidade de Washington é total e, depois
de ter hesitado, Kennedy terá a coragem de assumir, perante a opinião pública, a responsabilidade do fracasso.
De facto, as coisas avançaram depressa, e tudo ficou mais ou menos decidido no primeiro dia. Enquanto na madrugada de 17 de Abril de 1961, um milhar de cadetes da
milícia cubana avançam sobre a Playa Giron para reforçar o exército rebelde e as milícias já instaladas, Castro utiliza a sua "arma secreta" - a sua pequena aviação
- e faz sair dos seus esconderijos os oito aparelhos (herdados de Batista) que escaparam ao bombardeamento. Mandara transformar discretamente os três aviões de treino
a reacção T-33 em aviões de combate rápidos e perigosos, dotando-os de metralhadoras de calibre 50. A sua missão é eliminar os pesados bombardeiros B-26, pouco manejáveis,
que fazem a ligação entre a Nicarágua e a Baía dos Porcos e cobrir os dois Sea Fury, armados de foguetões, da força aérea insular, cujo objectivo é atacar implacavelmente
os navios da força invasora. O que Castro quer evitar a todo o custo é que os mercenários se apoderem de uma parcela de território cubano, onda viria instalar-se
um "governo provisório", imediatamente reconhecido por Washington que, respondendo à solicitação premente,

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poderia então agir abertamente e com recurso a grandes meios. O procedimento é clássico.
Não se chega a esse ponto. De manhã os foguetões dos Sea Fury afundam dois navios: o Houston, que se afunda com um batalhão de cerca de 200 homens, e o Rio Escondido,
carregado de munições e material de comunicações, que explode. Os outros navios consideram prudente retirar-se rapidamente, abandonando à sua sorte os combatentes
já desembarcados. Nesse histórico 17 de Abril, os T-33 abatem quatro B-26 inimigos, dois dos quais pilotados por cidadãos dos Estados Unidos. Como Kennedy se recusa
a comprometer mais a Força Aérea norte-americana, a batalha da Baía dos Porcos está, a partir daí, mais ou menos ganha para Castro. Durante um dia e meio haverá
ainda combates renhidos, porém "arcaicos"; ambas as partes se reconhecem e se insultam, como na Sierra Maestra, antes de abrir fogo. Mas, privados de todo o apoio
marítimo ou aéreo, abandonados ingloriamente por aqueles que os haviam incitado a participar numa acção que deveria assemelhar-se a um passeio militar, os emigrantes
anticastristas rendem-se a 19 de Abril, à tarde. Mil cento e oitenta e três prisioneiros. Cento e catorze mortos do lado dos assaltantes. Duas ou três vezes mais,
sem dúvida, entre os "lealistas".
Guevara saboreia sem dúvida, mais do que qualquer outro, a vitória da Playa Giron; para ele, trata-se de uma vingança histórica contra a sua amarga experiência na
Guatemala, quando ansiava por agir e estava praticamente só e desarmado. Há poucas informações sobre a sua actividade ao longo desses dias. A certa altura, correu
um boato alarmante: o Che fora ferido, vítima de um atentado. Mais tarde, Carlos Franqui chegou mesmo a garantir que durante os combates "o Che fora atingido no
rosto"145. Quando, em 1975, Sam Giancana, chefe de um bando norte-americano, foi encontrado morto, crivado de balas, na sua residência, o New York Times revelou
que a CIA tinha planeado utilizar os serviços do bandido para assassinar Ernesto Guevara e Raul Castro, a fim de desmoralizar o exército cubano146. Mas nada disso
aconteceu. A verdade é bem mais prosaica. Houve realmente um disparo, mas esse tiro partiu da pistola do próprio Guevara! Tendo-se desprendido do estojo, a arma,
ao cair, fez disparar uma bala que, felizmente, só provocou um arranhão no rosto do comandante. "Foi apenas um acidente sem importância", declara Guevara a Hilda
Gadea, quando ela vê a pequena ferida. "Desta vez safei-me. Mas se a bala se tivesse desviado, não estaria aqui para te contar"147. Diz-se que os gatos têm sete
vidas. Mas quantas terá Guevara?
O único testemunho directo sobre o Che na Baía dos Porcos é o de uma francesa, Ania Francos, que nessa altura passou um ano em Cuba, por sugestão de Joris Ivens
- esta revolução plena de sol fascina os Franceses. Com 22 anos, loura e rosada, muito excitada com a batalha de Playa Giron, com a "festa cubana" e com os "belos
revolucionários", faz uma descrição comovente pela sua ingenuidade deslumbrada - a revolução contada às crianças - que contribuiu bastante para fazer sonhar os estudantes
do Quartier Latin, em Paris.

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Ao lê-la, é possível notar que estão já fixados todos os ingredientes do mito: "O "ché" Guevara é aquele que mais me impressiona. Regresso às minhas emoções de adolescente.
[...] Rodeado de uma multidão de milicianos, surge de vez em quando o rosto belo e pálido do "ché". Usa uma boina preta e não tem nenhuma marca distintiva na farda
verde escura. Nada que indique que ele é um dos primeiros comandantes e Ministro da Indústria, a não ser a deferência que os milicianos lhe manifestam. Recordo-me
do que me dizia uma amiga argentina: "Todas as raparigas da América Latina estão apaixonadas pelo "ché". Ele é belo e romântico, com grandes olhos negros e uma barba
extravagante. Parece Saint-Just! O mais radical! E é asmático!" Fico toda corada quando me empurram para ele, que me diz amavelmente, em francês: "Bonjour, ça va?".
E eu respondo inteligentemente: "Très bien, et vous?""148.
Mais interessante do que este diálogo sublime é aquele que Guevara trava com alguns prisioneiros da Playa Giron: um padre espanhol falangista que pede perdão mas
que será enviado para Franco, um playboy que também se declara não-culpado e que não quer ser confundido com os "esbirros", um negro a quem o Che prega um sermão:
"Vieste combater numa invasão financiada por um país onde reina a segregação racial, para permitir que os "meninos bem" possam reaver os seus clubes privados. Tens
menos desculpa que os outros". "Eu sei, foi o que me disseram os milicianos", responde o negro, envergonhado149.
Mais desembaraçada do que parece, a rapariga francesa consegue que a levem para Havana "num grande automóvel a abarrotar de gente, entre o "ché", ao volante, e um
outro comandante desconhecido. "Tem cuidado com o "ché". Es un barbaro (ele é terrível)", comenta o outro comandante, a brincar. Fico corada; mesmo no escuro, deve
notar-se. "Não te aflijas, francesa; sou um marido excelente", responde o "ché". Ela adormecerá encostada ao ombro dele150. Assim vai a revolução...
Será necessário esperar um ano e meio para que, ao cabo de intermináveis negociações, os prisioneiros sejam trocados por medicamentos e víveres. Sobre a composição
social dos prisioneiros, Claude Julien consultou uma contabilidade interessante, elaborada por Castro. A brigada dos emigrantes compunha-se de 194 antigos polícias
de Batista e 112 condenados e outros delinquentes. "Por outro lado, tratava-se de recuperar 371 930 hectares de terras, 9666 prédios, 70 fábricas, 10 centrais açucareiras,
3 bancos, 5 minas e
12 cabarets"151. O suficiente para justificar todos os discursos guevaristas sobre a luta de classes entre uma minoria de privilegiados e os outros.
Esta "guerra de bolso", que termina em menos de três dias, terá consequências insuspeitáveis. Parece vir confirmar a declaração feita por Kruchtchev, em Julho de
1960, de que a doutrina Monroe estava ultrapassada. Incitará os Estados Unidos a combaterem com mais ardor o comunismo por toda a parte do mundo - no Laos, por exemplo,
e no Vietname do Sul - e a colocarem a tónica na sua própria segurança. Traz em si - imagem invertida - as premissas de uma "crise dos foguetões" que, no ano seguinte,
irá pôr o

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planeta à beira de uma guerra nuclear. Quanto a Castro, o seu poder está no auge. Para ele, o fracasso americano é magnífico. "Fidel campeón! Tu comiste el tiburomn!",
gritará uma multidão entusiasmada. "Ele devia agradecer-nos, dirá Kennedy a Matthews. Deu-nos um pontapé no rabo e isso tornou-o mais poderoso do que nunca."152
A partir de então, um gigantesco cartaz proclama, no local do combate: "Giron. Primeira derrota do Imperialismo na América". O impaciente Guevara avança finalmente
ao ritmo da música. Já não precisa de pedir a Depestre que guarde segredo como o fez em Tarara, revelando-lhe, com dois anos de antecedência, que essa revolução,
chico, era so-cia-lista. Essa revolução, vermelha como uma melancia.

Notas:

1 Jorge Papito Serguera, entrevista com o autor, Havana, 1992.
2 Pablo Neruda, in Partisans, François Maspero, Paris, n.º 2 Nov.-Dez. 1961, p. 165.
3 Régis Debray, Cours de Médiologie Générale, Gallimard, Paris, 1991, p. 179.
4 Fidel Castro, Révolution Cubaine, op. cit., t. I, p. 85.
5 Rufo López-Fresquet, My Fourteen Months with Castro, World Publishing, Nova Iorque, 1966, p. 68.
6 Claude Julien, Révolution Cubaine, Julliard, Paris, 1961, p. 102.
7 Herbert L. Matthews, Fidel Castro, op. cit., p. 148.
8 Marie-Hélène Camus, Lune de Miel chez Fidel Castro, Fayard, Paris, 1960, p. 155.
9 Ernesto Che Guevara, "Hasta la victoria siempre", Cuba, número especial, Havana, Nov. 1967, p. 44.
10 Carlos Franqui, Vida, Aventuras y Desastres de un Hombre Llamado Castro, Planeta, Barcelona, 1988, p. 126.
11 Ernesto Che Guevara, Obras, op. cit., t. II, pp. 404-405.
12 Orlando Borrego, entrevista com o autor, Havana, 1992.
13 Guillermo Cabrera Infante, entrevista com o autor, Londres, 1992.
14 Martha Frayde, Écoute, Fidel, Denoèl, Paris, 1987, p. 69.
15 Ibid.
16 Ibid.
17 Ernesto Guevara Lynch, My Hijo el Che, op. cit., p. 86.
18 Ibid. , p. 85
19 Ibid., p. 182
20 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., pp. 201-202.
21 Ernesto Guevara Lynch, My Hijo el Che, op. cit., p. 117.
22 Guillermo Cabrera Infante, entrevista com o autor, Londres, 1992.
23 Fidel Castro, Révolution Cubaine, op. cit., t. I, p. 87.
24 Julio O. Chaviano, La Lucha en Las Villas, Ciencias Sociales, Havana, 1990, p. 119.
25 Ernesto Che Guevara, Textes Politiques, op. cit., p. 254.
26 Claude Couffon, René Depeslre, Seghers, Paris, 1986, p. 59.
27 René Depestre, entrevista com o autor, Paris, 1991.

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28 Ibid.
29 Ibid.
30 Ibid.
31 Carlos Franqui, Retrato de família com Fidel, Seix Barral, Barcelona, 1981, p. 40.
32 Herbert L. Matthews, Fidel Castro, op. cit., p. 165.
33 Régis Debray, Loués soient nos Seigneurs, Gallimard, Paris, 1996, p. 176.
34 Hugo Gambini, El Che Guevara, op. cit., p. 201.
35 Michael Lowy, La pensée de Che Guevara, François Maspero, Paris, 1970, p. 84.
36 Mohamed Hassanein Heikal, Les Documents du Caire, Flammarion, Paris, 1972, p. 224.
37 Ernesto Che Guevara, Obras, op. cit., t. II, p. 18.
38 Ernesto Che Guevara, Textes politiques, op. cit., p. 44 e p. 64.
39 Ibid., p. 65.
40 Tad Szulc, Castro, Trente Ans de Pouvoir Absolu, op. cit., p. 416.
41 Ibid., p. 417.
42 Michel Gutelman, L'Agriculture Socialisée à Cuba, François Maspero, Paris, 1967, pp. 53-55.
43 Ernesto Che Guevara, Textes Militaires, op. cit., pp. 115 e 129.
44 Ibid., p. 115.
45 Ernesto Che Guevara, Textes Politiques, op. cit., p. 44.
46 Julio O. Chaviano, La Lucha en Las Villas, op. cit., p. 111.
47 Alfred Sauvy, in L'Observateur, Paris, 15 de Agosto de 1952.
48 Ernesto Che Guevara, Obras, t. I, op. cit., p. 387.
49 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 230.
50 - Luis Alberto Lavandeyra, entrevista com o autor, Paris, 1991.
51 Mohamed Hassanein Heikal, Les documenls du Caire, op. cit., p. 220.
52 Ibid., p. 224.
53 Ernesto Che Guevara, Obras, op. cit., t. II, p. 387.
54 "America desde el balcón afroasiatico, Humanismo, Set.-Out. 1959, Havana" in Ernesto
Che Guevara, Obras, op. cit., T. II, pp. 387-389.
55 Luis Alberto Lavandeyra, entrevista com o autor, Paris, 1991.
56 José Pardo Liada, Fidel y el Che, Plaza y Janes, Barcelona, 1988, p. 144.
57 Ernesto Che Guevara, "La India: país de grandes contrastes", El Che en la Revolución Cubana, t. I, p. 8-9. (Esta edição, em 7 volumes, de tiragem limitada e não
comercializada, foi feita em Havana, sob a responsabilidade do Ministério da Indústria Açucareira, dirigida por Orlando Borrego, provavelmente a partir de 1966.
Mas não menciona local nem data).
58 José Pardo Liada, Fidel y el Che, op. cit., p. 230.
59 Ibid., pp. 143-144.
60 Ernesto Guevara Lynch, Mi Hijo el Che, Planeta, Madrid-Barcelona, nova ed. 1982, extratexto.
61 Ernesto Che Guevara, "Recuperase Japón de la tragedia atomica", El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. I, p. 15.
62 José Pardo Liada, Fidel y el Che, op. cit., p. 166.
63 Ibid., p. 185.
64 Ibid., p. 186.
65 Ernesto Che Guevara, "Yugoslavia, un pueblo que lucha por sus ideales", El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. I, p. 33.

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66 Mohamed Hassanein Heikal, Les Documents du Caire, op. cit., p. 277.
67 Alfredo Cevara, entrevista com o autor. Paris, 1991.
68 Ernesto Che Guevara, La Guerra de Guerrilla, op. cit., pp. 24-25.
69 Benigno (Daniel Alarcón Ramírez), Vie et Mort de la Revolution Cubaine, Fayard, Paris, 1995 pp. 76-77.
70 Juan Vives, Les Maîtres de Cuba, Robert Laffont, Paris, 1981, p. 49.
71 K. S. Karol, Les Guerilleros au Pouvoir, op. cit., p. 305.
72 Jean Lartéguy, Les Guerrilleros, Presse Pocket, Paris, 1972, p. 305.
73 José Luis Llovio-Menendez, La Vie Secrète d'un Révolutionnaire à Cuba, Ergo Press, Paris 1989, p. 33.
74 Herbert L. Mathews, Fidel Castro, op. cit., p. 109.
75 Ibid., p. 173.
76 Carlos Franqui, Retrato de Família com Fidel, op. cit., p. 109.
77 Ernesto Che Guevara, Escritos y Discursos, op. cit., t. IV, p. 24.
78 El Che en la Revolución Cubana, t. II, op. cit., p. 44.
79 Ibid, p. 124.
80 Le Monde, Paris, Março de 1960.
81 Carlos Romeo, entrevista com o autor, Paris, 1991.
82 Ibid.
83 Raul Maldonado, entrevista com o autor, Santiago do Chile, 1993.
84 Orlando Borrego, entrevista com o autor, Havana, 1992.
85 Alfredo Guevara, entrevista com o autor, Paris, 1991.
86 Jean-Paul Sartre in Obliques, Paris, n.º 18-19, "Sartre", 1979.
87 Juan Arcocha, "Le voyage de Sartre", Autrement, La Havane, 1952-1961, Paris, 1994, p. 200.
88 Simone de Beauvoir, La Force des Choses, Gallimard, Paris, 1963, t. II, p. 286.
89 Carlos Franqui, Retrato de Família com Fidel, op. cit., p. 131.
90 Annie Cohen-Solal, Sartre, 1905-1980, Gallimard, Paris, 1985, p. 513.
91 Jean-Paul Sartre, "Ouragan sur le sucre", France Soir, 10 de Julho de 1960.
92 Erik Orsenna e Bernard Matussière: Mésaventures du Paradis, Mélodie Cubaine, Seuil, Paris, 1996, pp. 37-39.
93 Juan Arcocha, Le Voyage de Sartre, art. cit., p. 513.
94 Annie Cohen-Solal, Sartre 1905, 1980, op. cit., p. 513.
95 Carlos Franqui, Retrato de Família com Fidel, op. cit., p. 132.
96 Jean-Paul Sartre, "Ouragan sur le sucre", art. cit.
97 Ibid
98 Alberto Korda in La Razón, Buenos Aires, 10 de Julho de 1986.
99 Alberto Korda in L'Autre Journal, Paris, Outubro de 1990.
100 Juan Vives, Les Maîtres de Cuba, op. cit., pp. 184-185. "•'••''''
101 Annie Cohen-Solal, Sartre, 1905, 1980, op. cit., p. 559.
102 Orlando Borrego, entrevista com o autor, Havana, 1992.
103 Jean-Paul Sartre in Revolución, Havana, 4 de Outubro de 1960.
104 K. S. Karol, Les Guerilleros au Pouvoir, op. cit., p. 203.
105 Ibid., p. 204 e seg.
106 Tad Szulc, Castro, Trente Ans de Pouvoir Absolu, op. cit., p. 458.

298

107 K S. Karol, Les Guerilleros au Pouvoir, op. cit., p 205.
108 ibid.
109 Ernesto Che Guevara, Escritos y Discursos, op. cit., t. IV, p. 171.
110 Jean-Pierre Clerc, Fidel de Cuba, Ramsay, Paris, 1988, p. 222.
111 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. II, pp. 288-289. \\T-lbid.
112 Ibid.
113 Tad Szulc, Castro, Trente Ans de Pouvoir Absolu, op. cit., pp. 463-464.
114 Ibid.
115 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. II, pp. 296-298.
116 René Depestre, entrevista com o autor, Paris, 1991.
117 Citado por Pio Serrano, "La Havane était une fête", Autrement, La Havane, 1952-1961, op. cit., p. 222.
118 René Depestre, entrevista com o autor, Paris, 1991.

119 Citado por Jean-François Fogel ""Papa" dans sa Finca vigia", Autrement, La Havane, 1952-1961, op. cit., p. 195
120 René Depestre, entrevista com o autor, Paris, 1991.
121 Françoise Sagan in L'Express, Paris, 11 de Agosto de 1960.
122 Tad Szulc, op. cit., pp. 455-456.
123 Jean-Pierre Clerc, Fidel de Cuba, op. cit., p. 238.
124 Ernesto Che Guevara, Textes Militaires, op. cit., p. 117 e seg.
125 Ernesto Che Guevara, (Oeuvres V, Textes inédits, op. cit., p. 104.
126 René Dumont, Cuba, Socialisme et Développement, Seuil, Paris, 1964, p. 53-55.
127 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. I, p. 406.
128 Régis Debray, Loués soient nos Seigneurs, op. cit., p. 161.
129 Pablo Neruda, Confiesso que he vivido, Planeta, Buenos Aires, 1992, p. 439.
130 Aleida March, entrevista com o autor, Havana, 1992.
131 Mariano Rodríguez, Com la Adarga al Brazo, op. cit., p. 168.
132 Ibid., p. 173-174.
133 Ernesto Che Guevara, Escritos y Discursos, op. cit., t. 9, pp. 375-377.
134 Hernán Sandoval, entrevista com o autor, Santiago do Chile, 1995.
El 135 Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. III, p. 3 e seg.
136 K. S. Karol, Les Guerilleros au Pouvoir, op. cit., p. 209.
137 Le Monde, Paris, 12 de Julho de 1960.
138 Michel Tatu, ibid., 21 de Dezembro de 1960.
139 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. III, p. 3 e seg.
140 Ibid., p. 77 e seg.
141 Tad Szulc, Castro, Trenle Ans de Pouvoir Absolu, op. cit., p. 488.
142 Jean-Pierre Clerc, Fidel de Cuba, op. cit., p. 254.
143 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. III, p. 64.
144 Herbert L. Matthews, Fidel Castro, op. cit., p. 218.
145 Carlos Franqui, entrevista com o autor, Monte Catini, 1991.
146 Le Monde, Paris, 21 de Junho de 1975.
147 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 205.
148 Ania Francos, La Fête Cubaine, Julliard, Paris, 1962, p. 222 e seg.

299

149 ibid.
150 ibid.
151 Claude Julien, L'Empire Américain, Grasset, Paris, 1968, p. 364.
152 Herbert L. Matthews, Fidel Castro, op. cit., p. 226.

300

VI

À PROCURA DO HOMEM NOVO

A pachanga e depois

A pachanga é a festa, em Cuba. A vitória da Playa Giron veio intensificar os festejos que desde 1959 acompanham sistematicamente as acções e decisões revolucionárias
- reforma agrária, reforma urbana, apropriação dos meios de produção. A alegria ruidosa, a dança, o cha-cha-cha e a rumba sobrepõem-se aos protestos suscitados pelos
excessos dos CDR, que insultam, molestam, mandam prender quem não se associa, ou não se associa rapidamente, ao entusiasmo geral. A componente negra e mulata, largamente
majoritária entre a população, acentua a explosão de riso nacional que agita os cubanos ao mais pequeno êxito anunciado pelo governo. Diz-se que os espanhóis estão
marcados pelo sentimento trágico da vida. Os negros sublimam esse lado trágico na melopeia, que passa frequentemente ao êxtase e ao transe consoante os ritos da
santeria africana.
A mestiçagem cubana, bem sucedida, deu origem a uma sociedade alegre, espontânea, extrovertida, por vezes iconoclasta, apesar da sua ingenuidade. As palavras de
ordem políticas são convertidas em música, transformam-se em sons, ritmando as marchas populares. A Internacional transforma-se numa conga. Um dia, durante uma das
festas memoráveis do jornal Revolución, o subdirector apareceu disfarçado de Groucho Marx, com um exemplar de O Capital debaixo do braço. Humor sacrílego, que inquieta
os comunistas do diário Hoy, decididos a pôr uma certa ordem naquela anarquia. Os conselheiros "russos" (isto é, soviéticos), ucranianos, checos, não entendem aqueles
comportamentos pouco edificantes. Produtos típicos da burocracia insípida que os moldou, recusam abandonar-se ao prazer do corpo e verificam, com espanto, que em
Cuba a Revolução coexiste com a pachanga, como diria Guevara. Logo que Castro proclamou, por exemplo, que essa revolução era socialista - sim senhor, socialista
-, a rua desatou a dançar, cantando: Somos socialistas! P'alante, P'alante! (Somos socialistas! Avante,

301

avante!). Ninguém explicara aos soviéticos que existia uma versão tropical luminosa, da Revolução...
Nessa época, o colombiano Gabriel García Márquez era apenas um jornalista desconhecido da Prensa Latina. "Mesmo depois do desembarque da Playa Giron, os casinos
continuavam abertos e algumas prostitutas sem turistas rondavam por ali na esperança que algum felizardo da roleta lhes salvasse a noite. [...] Em Havana a festa
estava ao rubro. Havia mulheres magníficas que cantavam à varanda, pássaros luminosos sobre o mar, música por todo o lado. [...] A cidade permanecia um santuário
de prazeres, com lotarias até nas farmácias. [...] As noites em Havana e em Guantánamo eram sempre longas e insones e a música das festas prolongava-se até de madrugada"1.
Raros são os visitantes estrangeiros e os repórteres internacionais que ficam insensíveis a esse "fervor contagioso". Mas também são raros os que medem as consequências
da medida tomada por Kennedy a 25 de Abril de 1961: um embargo comercial total e radical contra Cuba. Com o cordão tradicional do consumo quotidiano cortado, são
de prever mil e uma complicações. Os cubanos sentem-se protegidos pela URSS, cuja tecnologia, no auge do seu prestígio, faz entrar na linguagem um termo novo:"cosmonauta".
A superpotência soviética enviou um homem para o espaço, o primeiro, o camarada Gagarine. Humilhação para os Estados Unidos, assim distanciados. Finalmente, e como
novo sinal de amizade, Moscovo atribui a Castro o Prémio Lenine da Paz, recompensa simbólica para o vencedor da Playa Giron, que conseguiu neutralizar Gulliver.
O ilustre Gagarine virá honrar com a sua presença a festa do aniversário do 26 de Julho.
Apenas dez dias após a vitória contra a brigada 2506, a manifestação do 1°ºde Maio é uma autêntica apoteose. Um milhão, dois milhões de pessoas? Não se sabe. Ania
Francos, a quem os dirigentes cubanos chamavam, com uma indulgência divertida, "la francesita loca", conseguiu subir à tribuna, na Plaza de la Revolución, onde,
desde a véspera, é proibido circular. Cerca das seis horas da manhã, pela fresquinha, enquanto os alti-falantes debitam ininterruptamente A Internacional (nesse
dia tocada a rigor), o desfile é aberto pelos dirigentes cubanos, que avançam de braço dado. Durante todo o dia, sob um sol implacável, o desfile engrossa, pontuado
de cartazes: "Viva os trabalhadores no poder!", "Os cubanos não se vendem nem se rendem ao bloqueio económico ianque", "Já não temos sabão mas temos coragem". O
calor é mais que tropical e, observa a Pequena Francesa: "é um concurso de chapéus. [...] O "che" desaparece sob um chapéu de cortador de cana e o embaixador soviético
pôs uma boina de miliciano [...]. Por volta das dez da noite, Fidel vai finalmente discursar. "Temos para umas boas cinco horas", declara Celia [Sánchez], sentando-se
no chão. [Castro] fala das declarações de Kennedy ("Não podemos permitir uma revolução socialista a 160 quilómetros da nossa costa".) "E nós", diz Fidel, "temos
de aguentar com um país capitalista a 160 quilómetros da nossa costa!" [...] Estou sentada aos pés de Fidel e ao lado de um ou dois ministros, que dormem em pé.
O "che" dá

302

o braço à mulher, cuja cabeça balança bastante, e vêem-se pessoas a dormir um pouco por todo o lado. Em baixo, a multidão não arreda pé e tenho a impressão que vai
pachangar a noite inteira"2. García Márquez insiste na "impressão de feira fenomenal que Cuba dava naquela época. [...] Nesses primeiros anos, Cuba foi o reino do
improviso e da desordem. À falta de uma nova moral - que não ia formar-se tão depressa na consciência da população - o machismo caribe encontrava uma razão de ser
naquele estado geral de emergência"3.
Guevara resiste como pode à negligência assim descrita. Na véspera desse 1º de Maio memorável, fez, na televisão, uma longa exposição sobre a situação económica
de Cuba e sobre os problemas a resolver, apesar de admitir que "o momento emocional não é o mais adequado". O país tem falta de técnicos, diz ele, não daqueles que
só sabem encomendar por catálogo aos Estados Unidos os artigos necessários e as peças sobresselentes, mas homens verdadeiramente qualificados. Existe uma hemorragia
de técnicos: "Não é segredo nenhum, eles optam pelo exílio. [...] Por isso temos de organizar uma formação de massas, alfabetizar rapidamente as pessoas e, logo
que elas saibam ler, escrever e contar, dar-lhes funções que sejam capazes de assumir"4.
Iniciada em Outubro de 1960, a campanha de alfabetização ganha um novo fôlego após Giron. A taxa de 26,6% de analfabetos (recenseados em 1953) não é, nem de longe,
a mais baixa da América Latina; esse mal atinge sobretudo o meio rural (40%). É uma forma de "matar dois coelhos com a mesma cajadada" e de "consciencializar" simultaneamente,
num trabalho social e político fecundo, tanto aqueles que, vindos da cidade, vão ensinar, como os guajiros que recebem os jovens professores. Em 1961, durante esse
"ano da educação", toda a população é mobilizada para fazer de Cuba o que nunca se viu num espaço de tempo tão curto: um "território libertado do analfabetismo".
Duzentos e setenta mil "alfabetizadores" - metade dos quais alunos do liceu, entre os 12 e os 18 anos - partem em brigadas entusiásticas para o campo, munidos dos
seus cadernos e manuais ad hoc, à descoberta da vida precária dos camponeses, ensinando-lhes que R se escreve como Revolución, F como Fidel e que um C com um H se
pronuncia Che, como o cognome do comandante Guevara. Todos querem vingar um dos seus: um jovem negro, Conrado Benitez, que foi morto por anticastristas em Escambray:
essa ida não estava isenta de alguns riscos. A parte de doutrinamento é inegável, e ninguém afirmou que a educação era inocente. Quando o objectivo é alcançado,
é içada uma bandeira azul, sinal de ter sido vencida a ignorância. Balanço: setecentas mil pessoas passarão a ser capazes de assinar o seu nome e de soletrar os
títulos do jornal Revolución. Mas daí a tornarem-se técnicos!...
Entre os artesãos desconhecidos que participaram nessa campanha, dois "internacionalistas" ignoram ainda que o destino os irá reunir um dia, na Bolívia: Tamara Bunke,
a argentina que Guevara conhecera no ano anterior na RDA, e um jovem francês da Escola Normal, Régis Debray, de 21 anos. Vindo de Miami, e chegando ali um pouco
por acaso, atraído por "um cheiro a festa, a fervor verde-azeitona", toma-se, segundo diz, por Victor Hugues, "o jacobino

303

transviado que Alejo Carpentier situa no seu O Século das Luzes"5. Em Havana é recebido na Imprensa Nacional por René Depestre, francófono, que o recorda como um
rapaz tímido que lhe causara boa impressão. "Levei-o a sério. Pediu-me que o apresentasse a algumas pessoas. Dei-lhe uma pequena lista..." "Simples estudante turista",
o francês troca com o Che "breves palavras numa tribuna" (que Guevara não recordará). Debray confessa não saber uma linha de espanhol, ignorância venial que não
o impede de se integrar num acampamento de "alfabetizadores" em plena Sierra Maestra, onde lhe destinaram uma família de camponeses iletrados. "Passei três meses
a aprender a dormir em redes, onde é difícil fazê-lo de barriga para baixo, a aprender com os mosquitos, com os coices das mulas e com a carne enlatada soviética"7.
A alfabetização nem sempre é uma festa.

Um pouco de seriedade, por favor

Os comunistas do PSP não perderam tempo para tirar todo o partido da profissão de fé socialista de Castro. O ano de 1961 não é apenas o ano da educação - todas as
escolas privadas são nacionalizadas -, é também o ano do controlo ideológico da informação e da cultura. Suprimidos os jornais da oposição, começa o controlo do
que deve ser politicamente correcto. A história da agência de imprensa Prensa Latina é emblemática. Logo após a vitória contra Batista, Guevara pede ao jornalista
argentino descoberto na Sierra Maestra, Jorge Ricardo Masetti, que monte uma agência e dá-lhe os meios para o fazer. A "Prela", como é chamada na gíria jornalística,
em breve se torna um elemento essencial dos serviços de informação de Cuba. Elemento demasiado importante para que se entregue a sua direcção a um jornalista cuja
competência profissional é inegável, sem dúvida, cujas opiniões de esquerda são inequívocas, mas cujo alinhamento político apresenta o inconveniente de não ser suficientemente
decalcado pelo modelo "socialista".
Plinio Mendoza, responsável, juntamente com García Márquez, pela delegação da Prensa Latina em Bogotá, contou como, pouco a pouco, "eles" (os comunistas) se apoderaram
da agência, começando por enviar os seus comissários políticos para controlar os telegramas e acabando por correr com o director8. Uma noite, Mendoza vê chegar de
imprevisto um enviado de Havana que se põe a expurgar os telegramas e a rectificar o vocabulário. "Diplomata americano" passa a ser "agente imperialista", "forças
da ordem" passam a ser "forças da repressão", etc. O comissário faz o seu relatório. Os comunistas transmitem-no a Guevara, que culpa Masetti, o qual defende o seu
pessoal e explica ao Che a manobra. García Márquez, nomeado para a delegação de Nova Iorque, passa nessa época algumas semanas em Havana. "Gabo [alcunha de Garcia
Márquez] fervilhava de informações, confirmando tudo o que eu tinha adivinhado. [...] Tinha percebido imediatamente a linha de separação entre os jornalistas e "eles",
declara Plinio Mendoza9.

304

Julgando poder contar com o apoio do Che e até de Castro, que o interroga quase todas as noites sobre as notícias do dia, Masetti corta o mal pela raiz despedindo
esses "comissários" ou enviando-os para países de Leste. Resposta imediata do Ministério do Trabalho (controlado pelo PSP): ordenam-lhe que volte a admitir todos
os despedidos. Desautorizado, Masetti apela para Castro e apresenta a sua demissão. Como única resposta, são as milícias armadas que vêm expulsar a equipa e instalar
um grupo de "jornalistas" disciplinados. Mendoza, García Márquez (mais tarde) e alguns outros demitem-se também. Terminou a época do jornalismo combativo e divertido.
Para Guevara, é um duro golpe. É certo que ele não é um homem de poder, ao contrário de Castro, mas a Prensa Latina era um pouco uma criação sua; às vezes, de madrugada,
ia bebericar um mate ou ouvir um tango na companhia de Masetti. Atacando este último, é uma miniprova de força que travam contra ele, uma espécie de teste para avaliar
a sua reacção. Ora, o Che não reage. A intervenção da milícia só pode ter sido decidida com o acordo de Fidel e não é concebível que ele se lhe oponha, ainda menos
para defender um argentino, seu compatriota, apesar de tudo. Quando muito, reforça a distância que mantém em relação aos comunistas, procurando rodear-se apenas
de homens em quem confia inteiramente. Quanto a Masetti, indignado, resmunga: "Apesar de tudo, não vou refugiar-me numa embaixada!"10. Sem profissão, destituído
sem apelo nem agravo, só lhe resta o recurso sugerido por Guevara: redescobrir o valor das coisas trabalhando algum tempo numa cooperativa. O Che propõe-lhe ir para
a Argélia juntar-se à FNL, que está na fase final da sua luta pela independência. Mais tarde, após um treino militar em Cuba, regressará à Argentina para montar,
em 1963-64, uma guerrilha desesperada que desembocará numa morte que muitos compararam a um suicídio. Tinha 35 anos. Esse destino quase anónimo prefigura, estranhamente,
o destino mais mediatizado do "guerrilheiro heróico" das lendas deste século.
Na frente cultural, o que verdadeiramente incomoda os comunistas é o semanário Lunes de Guillermo Cabrera Infante, editado à segunda pelo jornal Revolución, órgão
do M-26. Com uma tiragem de mais de 250 000 exemplares, a sua influência é grande, demasiado grande, e a sua liberdade de linguagem demasiado evidente. Uma "comissão
de orientação revolucionária", que pretende dirigir a propaganda de Estado, sob a orientação do número dois do PSP, Anibal Escalante, e do Conselho Nacional de Cultura,
dirigido por uma temível comunista, Edith García Buchaca, critica o Lunes pelo seu diletantismo pequeno-burguês, pelo seu gosto pela provocação e pelo escândalo.
Misturar Marx com Kafka, Virgínia Woolf, Breton, Beckett, Trotsky e Picasso, dedicar um número especial a Camus após a sua morte, e outro a Sartre e a Beauvoir,
brincar com os caracteres tipográficos à moda de Apollinaire, tudo isso é revelador de um elitismo culpável, de uma irresponsabilidade grave na formação cultural
do país. "Um pouco de seriedade, senhores intelectuais" torna-se a palavra de ordem.

305

Durante três sábados consecutivos, a Biblioteca Nacional de Havana transforma-se em tribunal, para o qual são convocados trezentos intelectuais e artistas, a fina
flor das artes e letras de Cuba. O pretexto é a polémica aberta por um artigo de um realizador de cinema, Nestor Almendros, que, no exílio, passará a ter uma fama
mundial, ao ser "oscarizado" em 1978. Defende ern Limes uma desajeitada curta-metragem experimental, P M (À tarde), proibida por ter tido o mau gosto de mostrar
a vida nocturna dos bares populares de Havana e de fazer "cinema-verdade" em vez de exaltar os verdadeiros valores revolucionários. Requisitório severo do comunista
Alfredo Guevara; defesa obstinada de Carlos Franqui, director rebelde do Revolución. O próprio Fidel Castro compareceu, rodeado do seu estado-maior. Convida "os
que têm medo" a falar. Uma larga maioria ousa declarar-se a favor de Limes e da liberdade de expressão. Castro pronuncia então uma longa "Mensagem aos intelectuais",
da qual uma expressão, sobretudo, é retida: "Pela Revolução, tudo; contra, a Revolução, nada!"11 Único problema, infelizmente fundamental: quem vai julgar o que
é "a favor" ou "contra" a Revolução, a não ser a própria autoridade revolucionária? Por isso, Limes de Revolución é suprimido passados poucos meses e, a partir daí,
cada um estabelece a sua autocensura.

Guevara, que se manteve (ou foi mantido?) afastado deste debate, observa, dois meses depois, que "a beleza não se estraga com a Revolução"12. A 28 de Março de 1960,
interrogado a propósito do primeiro aniversário do suplemento, ele havia declarado que Lunes "constituía o melhor contributo para a realidade cubana". Aliás, ele
próprio não desdenha a sua pequena provocação: numa sessão oficial de bailado no Teatro Nacional, coloca negligentemente os pés na balaustrada do camarote, gesto
que tem o condão de indignar a esposa de Cabrera Infante. Só em 1965 exprimirá uma opinião precisa sobre essa questão. Nunca apreciou muito os teóricos, suspeitos
de se atolarem em subtilezas. Retomando os termos da alternativa sem saída proposta por Castro, adopta uma posição ainda mais radical, que se traduz em proibir aos
intelectuais que não combateram Batista o direito de exercerem qualquer reflexão crítica: "O sentimento de culpa de muitos dos nossos intelectuais e artistas é fruto
do seu pecado original; não são autênticos revolucionários. [...] A nossa tarefa é impedir que, lacerada pelos seus conflitos, a geração actual se perverta e venha
a perverter as novas gerações"13.

Esta ideia de perversão, que pressupõe a existência de valores morais "puros" e pré-estabelecidos, está sem dúvida na origem da primeira grande purga de 1961, organizada
pela polícia, durante uma famosa "noite dos três P" (pederastas, prostitutas, proxenetas). Um poeta célebre, Virgilio Pinera, é preso em casa, em princípio por ser
homossexual. Mas o seu crime é outro. Na Biblioteca Nacional, cometeu a imprudência, ou impudência, de fazer uma pergunta de mau gosto, respondendo ao convite de
Castro: "Por que é que um escritor deveria ter medo da sua Revolução e por que é que a Revolução deveria ter medo dos seus escritores?"14

306

A PROCURA DO HOMEM Novo

Na época da ascensão em força dos comunistas, nos meses que se seguiram à invasão da Playa Giron, Guevara tenta apesar de tudo travar a inquisição. Quando tem conhecimento
de estar a ser efectuada uma "caça às bruxas" entre a população, para fazer a triagem entre os "bem-pensantes" e Os outros, intervém, no único âmbito em que possui
uma competência legal, e publica, a 19 de Maio de 1961, uma resolução que, "considerando que o Ministério [da Indústria] tem plenos poderes para fixar as normas
que melhor convêm aos objectivos propostos, [...] se determina [...] a proibição dos directores dos centros de trabalho dependentes do nosso Ministério de procederem
a interrogatórios ideológicos aos trabalhadores"15.

Apesar das suas afirmações peremptórias e do seu radicalismo extremista, o Che não é um sectário. Nunca cairá na repetição mecânica dos chavões da propaganda soviética.
Quando teceu louvores aos países socialistas, estava a ser sincero. Mais tarde terá a coragem de fazer, como Gide, algumas "correcções no [s]eu regresso da URSS".
Não chafurda na má-fé. Também nunca recusou a discussão em nome de uma verdade aceite como imutável. Na realidade, o Che é um revolucionário com pressa, no qual
arde ainda uma chama contestatária. Talvez deseje dar um contributo, de alguma maneira, à teoria marxista, mas, na verdade da acção, uma vez traçado o rumo político,
não perde tempo com cambiantes e escolhe a "boa" ideologia.

Quando K. S. Karol o interroga, ainda em Maio de 1961, sobre a escolha dessa ideologia, Guevara não faz nenhuma revelação, mas explica o lado essencialmente prático
de uma posição que é também a de Castro e aproxima-se indubitavelmente dos marxistas ortodoxos. "Num país que tem de enfrentar tarefas sem precedentes na história
do continente, seria criminoso e absurdo deixar o povo hesitar entre a boa e as más ideologias. [...] Queremos formar rapidamente os nossos jovens na ideologia dos
países socialistas"16. Para ele, esta atitude tem a vantagem de ser eficaz; pelo menos, nessa época, está convencido disso. Uma vez que, libertando-se da tutela
económica dos Estados Unidos, Cuba optou por se guiar pelo socialismo, é necessário caminhar depressa, pois são muitas as ameaças e o único modelo disponível é o
dos países socialistas. A partir daí, não é altura de tergiversar. Karol, que conheceu o dogmatismo da URSS e que fala com conhecimento de causa, evoca os males
que ele próprio observou: despolitização, cinismo, semiparalisia intelectual estalinista, mas o Che, como resposta, recorre ao argumento que passará a constituir
uma arma de arremesso para justificar os excessos autoritários do regime: "Quer o queira quer não, toda a revolução comporta uma parte inevitável de estalinismo,
porque toda a revolução tem de enfrentar o cerco capitalista". Mas acrescenta, tranquilizador: "em Cuba não existem condições para uma evolução estalinista; esse
fenómeno não pode reproduzir-se aqui"17. Seduzido, como toda a gente, pelo seu "encanto intelectual", Karol observa, apesar de tudo: "Tenho a impressão que ele fechava
os olhos perante uma certa realidade do mundo socialista porque isso lhe convinha"18. Melhor não se poderia dizer.

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Dois meses depois, no seu discurso comemorativo do 26 de Julho de
1961, Castro anuncia a criação da Organização Revolucionária Integrada (ORI), que incluirá comunistas, membros do M-26 e do Directório. É o primeiro esboço do Partido
Unificado da Revolução, que posteriormente se transformará em partido único.

O sonho acordado de Punta del Este

Guevara pensa, tal como Castro, que após a derrota da Baía dos Porcos (os Cubanos dizem Playa Giron), os Estados Unidos vão tentar desforrar-se e melhorar a sua
imagem deteriorada. A vitória do impertinente Lilipute das Caraíbas provocou uma enorme alegria entre as camadas populares da América Latina e até alguma satisfação
discreta nalgumas chancelarias. Kennedy, que despediu Allen Dulles, cujos serviços o informaram tão mal, vai tentar utilizar métodos mais subtis do que os do seu
antecessor. Traça as grandes linhas de um plano de auxílio económico de envergadura, uma "aliança para o progresso" destinada a manter o continente americano no
quadro da doutrina Monroe. posta em xeque pela subversão cubana. Uma reunião do CIES (Conselho Interamericano Económico e Social) vai, assim, reunir os Ministros
da Economia da Organização dos Estados Americanos para discutir o alcance desse plano e os meios a utilizar. A reunião efectua-se a 5 de Agosto de 1961, no Uruguai,
em Punta del Este. Trata-se de uma pequena estação balnear na costa do Atlântico Sul, frequentada no Verão pela burguesia argentina, que só tem de atravessar os
200 quilómetros do estuário do Rio da Prata, el Charco, como dizem os frequentadores habituais. É a Guevara que Castro pede para representar Cuba, com a missão de
"apagar incêndios" e evitar as provocações.
No hemisfério sul, Agosto é um mês de pleno Inverno, semelhante a Janeiro, a norte do Equador. O tempo está frio e enevoado quando o cubano desembarca no aeroporto
de Montevideu, onde o aguarda, como um herói, uma multidão de estudantes, de militantes de esquerda e quase toda a sua família, vinda de Buenos Aires. Será a emoção
de se encontrar tão perto da sua terra natal, de voltar a ouvir a pronúncia sibilante e arrastada das pessoas que se interpelam, dizendo che? Ou, depois dos alísios
tropicais, o arrepio provocado pela humidade e pelo vento agreste que sopra dos planaltos da Patagónia? Desde a sua chegada, o herói sente-se cansado, asfixiado
por uma violenta crise de asma, a primeira de uma série que o atormentará durante toda a estada.
O Uruguai, apressadamente rotulado de "Suíça da América Latina" porque a sua história parece pacífica, é uma invenção dos Ingleses que, no início do século XIX,
levaram à criação desse Estado-tampão entre a Argentina e o Brasil, eternos rivais. A população é pouco numerosa - menos de três milhões de habitantes num território
do tamanho de metade da França -, o país é próspero - carne e couro - e a legislação bastante democrática. Ao longo dos cento e cinquenta quilómetros da estrada
costeira que conduz

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a punta del Este, a multidão agita bandeirinhas cubanas de boas-vindas e grita "Cuba si, Yanquis no!". Convocado por Guevara, Ricardo Rojo, sempre bem relacionado
nos meios políticos, encontra-se nessa mesma noite com o amigo, no velho palácio onde se instalaram os quarenta e quatro membros da delegação cubana, jornalistas,
conselheiros e guarda-costas, tudo à mistura. Rojo conta que Ernesto, apesar da sua dificuldade em respirar, lhe explica, numa voz sibilante, que em 1959, em Pequim,
durante o seu breve encontro com Mao Tsé-Tung, tivera uma crise tão forte que lhe adveio uma paragem cardíaca, tendo desmaiado diante do presidente chinês. Apesar
de todos os meios da acupunctura e dos médicos de Mao, a asma não cedera19.
Durante a conferência, Guevara é um modelo de pontualidade e de assiduidade. Ouve as intervenções, sobretudo a de Douglas Dillon, o subsecretário de Estado enviado
por Kennedy. Quando, a 8 de Agosto, chega a sua vez de falar, esquece a asma. Sabe que o seu discurso é aguardado com interesse porque Cuba está, indirectamente,
no centro dos debates. Começa logo por avisar que não irá ser breve - o seu discurso demorará duas horas e meia - e que irá abordar temas políticos porque a economia
é inseparável da política e porque "esta conferência é política porque se destina a contrariar o exemplo que Cuba constitui no continente americano"20.
Geralmente, neste género de reuniões, os discursos são quase sempre convencionais e soporíficos. O de Guevara contraria a monotonia habitual e põe de lado a linguagem
oficial. Cuba, recorda ele, demonstrou que era possível lutar contra "um monstro invencível" e derrotá-lo. "Isto é uma novidade na América, meus senhores". E atribui
o carácter socialista da revolução cubana tanto às agressões externas como a uma evolução interna.
Debruçando-se sobre o documento de trabalho da conferência, redigido por técnicos, não resiste ao prazer de ironizar sobre a "latrinocracia" dos autores que, considerando
que as condições sanitárias são indispensáveis ao desenvolvimento económico, pretendem "fazer das latrinas um elemento fundamental". Como se sabe, a higiene nunca
foi, para ele, uma prioridade. Os seus sarcasmos incidem sobretudo na quantia mirífica de vinte mil milhões de dólares que os Estados Unidos exibem para os próximos
dez anos. "Cuba não veio sabotar esta reunião", esclarece ele, mas nada é tão incerto como essa promessa americana acompanhada, além disso, de prudentes condições.
Mesmo que fosse cumprida, não representaria mais de dois terços do que Castro pedira, em Maio de 1959, numa reunião análoga, em Buenos Aires, exigindo trinta mil
milhões. No fundo, sublinha ele, foi graças à revolta de Cuba que a América Latina passou a ser objecto da solicitude dos Estados Unidos. "Mais um esforço", declara
ele, dirigindo-se ao delegado dos Estados Unidos, "para distribuir essa quantia pelos países da América, com excepção, evidentemente, da pequena Cinderela, que não
receberá nada"21. ("Risos", refere, neste ponto, a acta do discurso).
Segue-se então uma longa descrição, idílica, feérica, daquilo que Cuba vai ser no fim do seu próximo plano de quatro anos, num socialismo paradisíaco.

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Ernesto volta a ser a Alice sonhando em voz alta com o País das Maravilhas. Graças a 500 milhões de dólares de crédito garantidos pelos países socialistas, Cuba
irá ter "uma taxa de crescimento anual de 12%!" O que fará dela "o país mais industrializado do continente em relação à sua população"22. Mil milhões de dólares
serão investidos na indústria, de forma que Cuba vai situar-se "no primeiro lugar da América Latina no que respeita ao aço, ao cimento, à energia eléctrica, [...]
antes de mais na produção de tractores, calçado, têxteis, etc. Em segundo lugar, à escala mundial, na produção de níquel. [...] A sua produção de açúcar oscilará
entre oito milhões e meio e nove milhões de toneladas!" E prevê ainda: "Em 1980, o rendimento per capita será de três mil dólares: superior ao dos Estados Unidos"!23
Estará o comandante Guevara, Ministro da Indústria, a delirar? Nada disso. Traça apenas, "com toda a objectividade, os contornos do paraíso".
No dia seguinte, numa conferência de imprensa, a pergunta de um jornalista: "Quando é que haverá eleições em Cuba?" provoca um diálogo interessante:
- Haverá eleições quando o povo o exigir - responde o Che.
- Como é que ele o vai exigir?
- Nas Assembleias Gerais Nacionais do Povo, nas quais participam um milhão de pessoas. É uma forma de democracia directa.
- E os outros cinco milhões?
- É muito simples. Quando mil e duzentos gusanos vêm atacá-lo, o povo mobiliza-se e liquida-os.
- Nessas assembleias, houve alguém que pedisse eleições?
- As pessoas disseram que não queriam eleições. Ninguém pediu eleições24.
A pirueta é hábil, mas a resposta, alinhada pelas de Castro, manifesta uma certa má-fé ou então, o que é mais provável, a rejeição deliberada de um sistema de tal
forma manipulado pela fraude, na América Latina, que lhe parece obsoleto. Churchill dizia mais ou menos que a democracia eleitoral era o pior dos sistemas, com excepção
de todos os outros. Ora Guevara, como já vimos, tinha irritado o pai da sua primeira namorada chamando "velho gagá" a Churchill.
Como é sabido, as questões diplomáticas sérias tratam-se nos bastidores, longe dos curiosos. Na delegação dos Estados Unidos estava Richard Goodwin, conselheiro
de Kennedy para a América Latina e seu representante junto dos cubanos no exílio. Ele pretende avistar-se com Guevara, para uma conversa privada informal. Alguns
"jornalistas amigos" encarregam-se, de ambos os lados, de preparar um encontro discreto em casa de um diplomata brasileiro, a pretexto de uma recepção. Goodwin quer
saber se Cuba está disposta a juntar-se ao campo "ocidental" caso lhe fosse concedido um auxílio económico através da mediação do Brasil e do México. A história
demonstrou que Cuba recusou a proposta, optando por permanecer ligada ao campo dos países socialistas. Aliás, o chefe da delegação cubana responde a Goodwin em assembleia
plenária. É evidente que o seu país não votará

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a favor de uma "aliança para o progresso" da qual está excluído, mas considera positivo que o documento final admita de facto a coexistência de regimes diferentes
na América Latina, "porque a Revolução Cubana é irreversível", insiste ele.25
Guevara é a vedeta indiscutível desses dias agitados que emocionam o Uruguai. Os movimentos de esquerda, e sobretudo os estudantes, desde a primeira hora exigiram
um encontro com o homem que, para eles, representa o arquétipo do revolucionário. Os jornais uruguaios publicaram inúmeras fotografias do ministro-guerrilheiro cuja
farda verde-azeitona contrasta com os clássicos fatos cinzentos dos participantes. É belo, inteligente, tem sentido de humor; continua a beber mates, como uma pessoa
vulgar. E, sinal positivo num país machista, gosta muito da mãe, que o acompanha por toda a parte. É quase um nativo do país. Os argentinos são nossos primos. Na
noite de 17 de Agosto, o Che reservou três horas para fazer uma conferência na Universidade de Montevideu, em princípio de carácter económico, mas que os gritos
de Viva Cuba! e os apupos contra os Estados Unidos em breve transformam em reunião política. Poucas horas antes, grupos de direita tinham enchido o anfiteatro de
ampolas de mau cheiro. Quando Guevara começa a falar, em pé, diante de um microfone, de camisa ao vento, sente-se sobretudo o cheiro da clorofila dos produtos desodorizantes.
À saída chegou mesmo a haver tiros e confrontos, e um professor foi morto por uma bala.
Guevara retoma, resumidamente, os temas desenvolvidos em Punta del Este, mas dá sobretudo uma descrição curiosa do "diálogo" entre o governo e o povo e sobre o modo
como se organiza a participação popular nas decisões: "Há momentos em que a população, silenciosa, está suspensa dos lábios de Fidel (aplausos). Mas outras vezes
há em que o povo exige também a sua participação na discussão colectiva; grita, às vezes dança, salta, aplaude, enfim, demonstra de mil e uma maneiras as suas emoções,
de forma que, no governo, ficamos a saber o que é melhor, o que mais interessa ao povo, o que mais lhe agrada, o caminho mais justo a seguir"26. Complemento perfeito
do sistema "não eleitoral" cubano, esta prática do poder "popular" terá dificuldade em ser entendida pelos Institutos de Ciência Política. Em 1961, "no clima de
real democracia" que, segundo Guevara, "reina no Uruguai"27, ela não parece chocar. Os estudantes aplaudem entusiasticamente.
Nessa noite, na Universidade de Montevideu, o Che encontra "um amigo", o socialista chileno Salvador Allende que, a convite dos mesmos estudantes, deu, por seu turno,
duas conferências "anti-imperialistas". Conhecem-se desde o tempo de La Cabaña, quando, nos primeiros dias da Revolução em Cuba, o jovem comandante asmático recebera,
deitado na cama, de inalador na mão, esse corajoso deputado que não temia, em plena guerra fria, declarar-se marxista. Ele dissera-lhe então: "Allende, sei muito
bem quem você é. Ouvi dois discursos seus durante a campanha presidencial de 1952: um muito bom, o outro muito mau"28. Desta vez, de pé, num corredor, têm apenas
uma breve troca de palavras. "Guevara disse-me: "Salvador,

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vamos sair separadamente, de forma a não constituirmos um único alvo, em caso de atentado"". Nessa noite, os dois homens jantam juntos, com a mãe do Che que, sempre
que possível, acompanha o filho. Em 1970, eleito presidente do Chile graças a eleições sem fraude, Allende exibirá com algum orgulho a obra A Guerra de Guerrilha
do Che, cuja dedicatória, vinda de um homem que parece não apreciar grandemente a via eleitoral, merece ser destacada: "A Salvador Allende que, por outros meios,
prossegue o mesmo objectivo". "Conheci muita gente, com grandes responsabilidades", dirá Allende, "mas dois homens apenas me impressionaram por terem algo que os
outros não tinham, o olhar: Che Guevara e Chu En-Lai. Em ambos havia uma força interior, a mesma firmeza, a mesma ironia. Quando conversava com Guevara, ao olhar
para ele já sabia a resposta. Nos seus olhos senti muitas vezes ternura e solidão"29.
Diligências complicadas foram também efectuadas na Argentina, onde o presidente Frondizi, sempre pronto a servir de mediador, gostaria de falar com esse estranho
comandante cubano, que considera um compatriota. Os seus serviços de informação confirmaram-lhe que "a conferência fora dominada psicologicamente por Guevara"30
e que Kennedy não veria com maus olhos uma negociação. Monta-se um dispositivo complexo para garantir a confidencialidade do encontro, pois os militares argentinos
vigiam de perto este presidente suspeito de ter pactuado com o peronismo inimigo. Receber Guevara, o "vermelho", pareceria uma provocação. Porém, o segredo em breve
é quebrado. Na manhã de 18 de Agosto, um pequeno avião civil larga o perigoso ministro-guerrilheiro num aeroporto discreto, nos arredores de Buenos Aires. Dois adidos
militares, que dissimulam mal a sua surpresa ao reconhecerem a personagem, conduzem-no à residência presidencial de Olivos. Quando Guevara atravessa San Isidro,
certamente lhe surgiram recordações, com sabor a "madalenas de Proust": foi ali que passou três anos da sua infância; foi ali, à beira-rio, que contraiu aquela maldita
asma, que nunca mais o deixou. Há oito anos que deixou a sua Argentina natal. Não sabe que esse primeiro regresso, fugaz, será também o último.
A reunião com Frondizi é suficientemente longa - uma hora e quinze minutos - para que sejam fixadas as posições de ambas as partes. Guevara exige que seja respeitado
o direito de Cuba a adoptar o regime político que escolheu. Cuba não exportará a sua revolução fornecendo armas aos movimentos de "libertação" - como afirmou na
Conferência -, mas isso não impedirá que o exemplo cubano se espalhe: "A Revolução é inevitável", afirma ele num tom calmo. Frondizi dirá mais tarde que "a tese
de Guevara sobre a violência correspondia a um estádio primitivo do pensamento revolucionário e não tinha em conta a situação mundial"31. Mas, no imediato, o presidente
argentino obtém sobretudo a garantia que Cuba não aderirá ao Pacto de Varsóvia, que estabelece uma solidariedade de defesa militar para o conjunto dos países socialistas.
Informação interessante a transmitir aos senhores do Pentágono.

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Partindo imediatamente para Montevideu, conforme combinado, Guevara consegue que seja feito um pequeno desvio para ir abraçar Maria Luisa, uma velha tia do lado
paterno, bastante doente. Desse modo, não se afastando dos bairros elegantes da capital, não terá o prazer, sempre emocionante, de rever Buenos Aires, a cidade que,
só por si, é um tango. Ao meio-dia, começaram a correr rumores sobre a presença do Che na Argentina. Os militares certamente falaram, ou então quaisquer outras testemunhas.
Quando volta a embarcar na avioneta, um fotógrafo escondido capta-o na teleobjectiva. A notícia enche os títulos dos jornais. O exército resmunga e irrita-se por
ter sido enganado. Frondizi conseguirá, durante sete meses ainda, acalmar a impaciência dos generais antes de ser derrubado.
O presidente brasileiro Jânio Quadros não precisará de esperar tanto tempo para ter igual sorte. Com efeito, no dia seguinte, a 19 de Agosto, a caminho de Cuba,
Guevara faz uma breve escala em Brasília, onde Quadros lhe dá um abraço cordial diante das câmaras de televisão, fazendo-o Cavaleiro da Cruzeiro do Sul. Quadros
é amigo de Cuba, e de Guevara em particular; conheceu-o no Egipto, quando ambos eram convidados de Nasser. No Brasil, este género de demonstração em relação a uma
figura que cheira tanto a pólvora também não agrada aos militares, forçados a prestarem-lhe honras. Em São Paulo e no Rio de Janeiro os manifestantes desceram à
rua para festejar a notícia, exibindo retratos do Che e bandeirinhas de Cuba. Mas, quatro dias apenas depois da visita de Guevara, Quadros, acusando "forças ocultas
de o impedirem de governar", não vê outra saída senão a demissão.

Um torrão de açúcar ou nenhum?

Desde o seu regresso a Cuba, Guevara é confrontado com as exigências da situação económica, que está longe de corresponder ao quadro edificante por ele traçado em
Punta del Este. Diagnostica uma crise da produção provocada pela confluência de "inúmeros factores negativos". Durante dois dias (26-27 de Agosto de 1961), no grande
Teatro Chaplin da capital, três mil e quinhentos quadros e responsáveis são convocados para fazerem o ponto da situação no que respeita à produção. A Revolução não
se encontra perante nenhuma crise de produção, afirma logo à partida Fidel Castro; trata-se apenas de uma explosão da procura, porque o poder de compra do povo aumentou.
Regino Boti, encarregado da planificação (Juceplan) e da economia, perora então sobre o milagre económico que deverá permitir que Cuba seja, dentro de cinco anos,
o país mais industrializado da América Latina.
Paradoxalmente, é Guevara, desta vez, que se recusa a redobrar de promessas e não tem papas na língua quando sublinha o que está a correr mal, Os efeitos do bloqueio
americano começam a fazer-se sentir. Há fábricas paralisadas por falta de peças sobresselentes, muitos artigos desapareceram das prateleiras das lojas e é necessário
estabelecer um princípio de racionamento

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para alguns produtos essenciais, como a manteiga e o óleo. Quanto à qualidade dos produtos feitos "à cubana", deixam muito a desejar: a pasta dentífrica endurece
tão depressa que é preciso ser usada imediatamente; a coca-cola sabe a xarope para a tosse e, quando há qualquer coisa para as encher são as garrafas que faltam
para a cerveja e para as bebidas gasosas, que têm, aliás, um gosto esquisito. É certo, afirma ele, que "só quando o povo é dono dos meios de produção é possível
organizar uma taxa de crescimento elevada"32, mas - e ele faz a sua autocrítica - "não nos preocupámos com os dados estatísticos indispensáveis [...] e, quando eles
existem, são pouco fiáveis"33*. A tudo isto vem somar-se a falta de coordenação entre os vários ministérios, a burocracia, o absentismo, que toma proporções alarmantes,
e uma grave carência de bons técnicos.
O que Guevara não diz, mas abordou o assunto noutras ocasiões, é que após a grande purga que acompanhou a tentativa de invasão da Baía dos Porcos, os comunistas
do PSP aproveitaram o estado de emergência para fazer alguns ajustes de contas. Não foram apenas os opositores, reais ou imaginários, que foram presos, mas também
inúmeros independentes que chegaram a participar na resistência contra Batista sem por isso aceitarem a "verdade" comunista. Alguns ficarão presos vários anos; a
maior parte é libertada ao fim de algumas semanas. Entre eles, milhares, traumatizados, perdidos para a Revolução, apressam-se a abandonar o país, entre os quais
inúmeros técnicos, engenheiros, médicos, professores, etc. A tradicional fuga de cérebros.
A franqueza um tanto rude de Guevara tem o condão de desagradar aos comunistas que pretendem, antes de mais, ser tranquilizadores e procuram diligentemente (e também
discretamente) colocar os seus homens nos postos-chave da administração, seja qual for a sua competência. A partir desse momento trava-se nas costas de Guevara uma
campanha surda contra o rigor exagerado daquele que eles consideram, no fundo, um esquerdista. Contudo, os comunistas deviam ter compreendido que as críticas do
Che eram apenas superficiais. Elas não iam ao fundo, isto é, não tocavam nas fontes reais das disfunções da máquina produtiva e nunca abordavam a questão essencial
da democracia de base: a participação operária ou camponesa nas decisões. Também não punham em causa - por enquanto - a má qualidade dos produtos importados dos
países socialistas (o ingrediente que tornava o dentífrico inutilizável vinha da Polónia). O verdadeiro problema, o da dependência "colonial" de Cuba, só é esboçado
pelo jovem Alberto Mora, ministro do Comércio Externo, ao assinalar que um terço dos recursos nacionais se destina apenas a pagar as importações. Mesmo o açúcar,
lembra ele, produto emblemático de Cuba, exige anualmente, para uma safra média de cinco milhões de toneladas, vinte milhões de dólares em equipamento e em fornecimentos
não cubanos.
"Um torrão de açúcar ou nenhum?", perguntava, segundo dizem, o marechal Lyautey aos convidados. Em Cuba, o dilema não se coloca em

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termos de tudo ou nada. Mas a questão da prioridade a atribuir ao açúcar é, todavia, decisiva na reorganização geral de uma economia que tem como ambição permitir
aos cubanos aceder finalmente a uma verdadeira autonomia.
Em 1961, a zafra atingiu 6,5 milhões de toneladas. Um número recorde. Toda a cana madura foi cortada, incluindo a que ainda não tinha crescido. René Dumont, que
sublinhou diante do Che o perigo de substituir as cooperativas por herdades do Estado incitando os camponeses a comportarem-se como funcionários, fornece, um tanto
maliciosamente, a explicação desse sucesso: "O pleno emprego não fora ainda atingido. Cada um temia perder o seu posto de trabalho, o que incitava ao esforço". E
observa: "foi o "canto do cisne" açucareiro, pois em 1962 o número desce para 4,8 e em 1963 para 3,8 milhões de toneladas"34.
A decisão de diversificar as culturas é a primeira causa dessa baixa. Não só se procura dar resposta à pressão do bloqueio económico, fazendo um esforço para substituir
as importações por uma produção made in Cuba, como sobretudo se tenta contrariar o ditado nacional da época colonial, segundo o qual "sin azúcar no hay país" (sem
açúcar o país não existe). O açúcar é o símbolo de uma submissão histórica ao império, símbolo de uma certa forma de escravatura. Cuba dependia do açúcar e o açúcar
dependia dos Estados Unidos. A ideia é então não se desembaraçar do açúcar - ele é necessário para obter divisas, fábricas, material "socialista" - mas diminuir
a sua parte relativa na produção agrícola. Fidel Castro vai ao ponto de exigir que se destruam canaverdes (canaviais) para aí se semearem legumes. Erro crasso. São
necessários anos para que um campo de cana de açúcar se torne produtivo. Franqui conta que estava presente no Conselho de Ministros no qual Castro anunciou a sua
intenção de dar no dia seguinte, pela televisão, uma directiva nesse sentido. Foi o Che, apesar de fazer parte dos que eram "antiaçúcar", que procurou dissuadi-lo.
"Cuidado, Fidel. Se fores tu, com a tua autoridade, a pedir isso, as pessoas, que odeiam a cana-de-açúcar, vão destruir muito mais do que tu julgas"35. Mas não houve
nada a fazer. Obedecendo à directiva, foram destruídos quase metade dos canaverdes. Será necessário tempo e muito dinheiro para os reconstruir.
O segundo motivo que faz passar o açúcar para segundo lugar é a prioridade atribuída às necessidades da indústria. Guevara, e com ele o governo, apostaram, como
se sabe, na indústria pesada: refinação de petróleo, electricidade, aço, níquel, cimento, meios de tracção, etc. É necessário abastecer também as indústrias de transformação:
as fábricas têxteis exigem uma cultura do algodão (e do sisal para os sacos). Amidos, cervejas, rações para o gado, conservas exigem tubérculos, milho, frutos e
legumes; a construção civil, a pasta de papel e a frota pesqueira necessitam de madeira e procede-se então a uma reflorestação do país. Tudo isso exige um plano
de produção rigoroso. O que é paradoxal é que, apesar dos hinos em louvor da planificação, não foi feita nenhuma.
No quadro bastante vago da "diversificação agrícola", palavra de ordem geral, "o estilo de trabalho dos novos administradores [...] era, no mínimo,

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anárquico; só faziam o que entendiam"36, escreve o agrónomo Michel Gutelman que passou vários anos "no terreno" e teve um trabalhão a fazer crescer palmeiras na
região de Sancti Spiritus. Quando os Estados Unidos decretaram o bloqueio económico, a produção nacional de óleos vegetais não ultrapassava, com efeito, dez por
cento do consumo. Tudo o resto era importado. "Em poucas semanas foi decidido desenvolver um programa de culturas que praticamente não eram conhecidas: soja, girassol,
rícino, milho, etc."37.
A falta de coordenação é notória: preparam-se simultaneamente colheitas que amadurecem ao mesmo tempo e entretanto falta a mão-de-obra. "Os casos mais espectaculares
foram os da cana-de-açúcar e do tomate, ou da cana-de-açúcar e do algodão"38. Apesar da ajuda, geralmente desastrada, prestada pelos voluntários da cidade, "foi
necessário abandonar grandes quantidades de produtos para se poder cortar a cana antes da época das chuvas"39. Por fim, saliente-se que os macheteros (cortadores
de cana) preferiam, sempre que possível, abandonar um trabalho penoso e sazonal, trocando-o por um salário fixo num dos inúmeros organismos criados pela reforma
agrária. Evocando "o ambiente de desorganização de uma economia que pretendiam dirigir inteiramente a partir da capital", René Dumont cita a estimativa de um "notável
economista soviético" - também os há -, que calculou que "por cada peso de riqueza produzida pelo operário cubano, esse mesmo operário recebe em média dois pesos
de salário"40. É certo que nada é demais para compensar os proletários rurais das suas vidas de miséria antes da Revolução, mas esse sistema corre o risco de se
revelar pouco rentável à escala nacional.
À frente da indústria, sector declarado prioritário, o Che está sobretudo preocupado com todos estes problemas de abastecimento. De facto, toda a questão agrícola
comporta uma dimensão industrial. A dificuldade, que não é pequena, consiste em harmonizar a agricultura com a indústria. Guevara critica amigavelmente os administradores
ou directores de cooperativas por quererem fazer tudo, resolver sozinhos inúmeros pequenos pormenores. É dar prova de uma "mentalidade guerrillera", porventura simpática,
mas os responsáveis têm outras tarefas a cumprir. O que é mais grave, declara ele, é "a grande descoordenação entre as várias unidades de produção"41. Multiplicada
à escala do país, essa falha provoca um caos generalizado. Gutelman cita o caso do tabaco, outra cultura emblemática, em que na "elaboração industrial, desarticulada
da procura, [cada um] se limita a tentar cumprir o seu plano unicamente sob o ponto de vista quantitativo, descurando os problemas de articulação, que pouco lhe
importam"42. O mesmo sucede com o açúcar que, apesar do anátema, não deixa de ser fundamental. Também aí existe uma desconexão flagrante entre um sector agrícola
que depende do INRA e um sector industrial em relação ao qual é o ministério confiado a Guevara que controla o trabalho das cento e cinquenta "fábricas de açúcar".
Reorganizando a sua economia, rompendo com a sacrossanta monocultura açucareira, diversificando as suas culturas "em crise", Cuba conseguiu

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não se deixar asfixiar pelo bloqueio norte-americano. Extensas áreas abandonadas pelo sistema latifundiário, savanas selvagens nunca abertas por um sulco de charrua
desde tempos imemoriais, foram cultivadas. Cerca de 900 000 hectares. Mas tudo isso feito à pressa, no meio do caos e da improvisação. A produção é caótica, a burocracia
absurda, as directivas são múltiplas e contraditórias. Gutelman observa que "um inquérito realizado em 1963 revelou que algumas herdades tinham de cumprir directivas
emanadas de mais de vinte entidades administrativas"43. Dispersão de esforços, atomização das culturas, elevados custos de transporte, má utilização dos meios técnicos
e humanos conduzem a uma distribuição irregular e a uma escassez "caprichosa". Nunca é o mesmo produto que falta. O fenómeno ainda não afecta o moral de uma população
que continua a comer o seu pão alvo; os antigos stocks ainda não se esgotaram.
García Márquez recorda: "Às vezes não havia carne nos restaurantes depois da meia-noite, mas não nos importávamos; podia haver frango. Às vezes não havia legumes,
mas não nos importávamos; podia haver batata doce. Os músicos dos clubes vizinhos, os gigolôs impassíveis que aguardavam a recolheita da noite diante de um copo
de cerveja pareciam tão alheados como nós face à erosão inexorável da vida quotidiana [...]. As primeiras bichas tinham surgido no centro comercial e um mercado
negro, recente mas muito activo, começava a afectar os artigos industriais. [...] Quase um ano depois de os Estados Unidos terem decretado o embargo total ao comércio
com Cuba, a vida continuava sem grandes alterações, mais no espírito das pessoas do que na realidade"44. A 12 de Março de 1962, 322 dias após o início do bloqueio
total, foi imposto um racionamento drástico da maior parte dos produtos de primeira necessidade, desde a carne e do leite até ao calçado, têxteis, sabão, etc. Ao
consumo habitual, em alta desde a revolução, sucedeu a espera diante dos armazéns para obter o que é atribuído a cada um através de uma caderneta especial, a libreta.
Os cubanos não resistem aos trocadilhos, mesmo quando eles são amargos. Já não se pode comprar por la libre; só por la libreta...

"Orientar os obscuros desejos das massas"

O compañero Guevara tem bastante dificuldade em dirigir o seu navio. O Ministério da Indústria é uma máquina pesada, que padece da enormidade da tarefa. K. S. Karol
indica um entrave suplementar ao seu bom funcionamento, cuja gravidade Guevara talvez não tenha pressentido. "O controlo do antigo PSP sobre o sector industrial
constituiu um grande obstáculo ao desenvolvimento de toda a investigação original sobre os modos de organização, sobre o papel dos sindicatos e as possibilidades
de participação das bases no controlo e na gestão da economia"45.
Em Outubro, o camarada-ministro reúne todo o pessoal do Ministério de Havana para um grande debate. Começa por fazer a sua autocrítica e, sem se queixar - não é
o seu estilo -, tenta explicar porque não convocou antes esta

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reunião: um trabalho "medonho" e mil e uma actividades paralelas quase não lhe deixam tempo para dormir, daí um "estado de tensão permanente que leva a esquecer
pouco a pouco a realidade quotidiana"... E, pela primeira vez, faz uma confissão de uma sinceridade espantosa, da qual subitamente parece emergir - revelar-se? -
o homem-Guevara: "Posso afirmar que não pus os pés num único cabaret, num único cinema, numa única praia. Nunca fui a casa de ninguém em Havana. Não sei como vive
o povo de Cuba. Só conheço números e gráficos. Mas descobrir o que faz o indivíduo e quais são os seus problemas pessoais, isso nunca fiz. Ora há momentos em que
nos apercebemos que isso é importante. [...] Só consigo ver as pessoas como soldados numa guerra renhida que é necessário ganhar. [...] É preciso fazer alguma coisa
para que [este Ministério] não seja tão desumanizado..."46.
Qualquer coisa, mas o quê? Chegar-se-á ao ponto de dar a palavra aos interessados? Será possível organizar um fluxo de mensagens nos dois sentidos, para cima e para
baixo, entre os que dirigem do alto da pirâmide, cheios de problemas a resolver, e aqueles que têm o nariz enfiado nas realidades que constantemente se fazem sentir?
Estes poderiam ter a sua palavra a dizer, sugestões a apresentar, críticas a formular, talvez, sobre os resultados, na ponta final, das decisões tomadas na cúpula.
Mas que o processo seja despersonalizado, sistematizado, que se vá ao ponto de utilizar um boletim de voto - tão vilipendiado, é verdade - para permitir que cada
um pondere as decisões, que se exprima livremente sem ser apelidado de contra-revolucionário em caso de discordância, isso é algo que nem lhe passa pela cabeça.
A mentalidade deste contestatário é, neste plano, de uma ortodoxia total. Em 1963 escreverá, ao apresentar aos leitores um manual sobre O Partido Marxista-Leninista:
"O marxista deve ser um orientador que traduz em directivas concretas os desejos por vezes obscuros das massas47 [sic]". Como é que o "marxista" adivinha e interpreta
esses "desejos obscuros", isso Guevara não explica. Continua a acreditar, como Fidel Castro, modelo absoluto, que existe diálogo com as ditas massas quando se trata
apenas do solilóquio público do "chefe". (Castro não suporta que lhe chamem caudillo, o que afinal ele é mais do que qualquer outro). Por isso, apesar de todos considerarem
o seu exemplo pessoal irrepreensível, Guevara não consegue fazer-se entender devido àquilo que ele julga ser uma "ausência de motivações interiores" que atribui
um tanto apressadamente, a uma "falta de clarificação política"48.
Uma manhã de Outubro, em 1961, decide ir dar uma volta pelos gabinetes do seu Ministério. Começa pelo andar abaixo do seu. Conta, com algum humor, como, antes de
"o tã-tã da floresta" - a expressão é dele - alertar o pessoal, tem tempo de verificar que há inúmeros ausentes, que alguns conversam tranquilamente, outros lêem
o jornal, outros foram tomar o pequeno-almoço. "Vi mesmo uma compañera, romanticamente inclinada à secretária, a ouvir uma música na rádio, às dez horas da manhã"49.
Há falta de vigilância, diz ele. "Não temos o direito de perder tempo. E, contudo, ele não perde o optimismo e sublinha que, em dois anos e meio, desde a vitória
da

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Revolução, ficou demonstrado que "é possível organizar o cubano, quando se pensava tal ser mais difícil que observar a face oculta da lua"50. Mas termina de uma
forma que revela bem a sua concepção vertical do poder: "Compete à vanguarda, a das Organizações Revolucionárias Integradas, organizar o resto dos camaradas"51.
Avancem sem receio, que nós traçamos o rumo.
Se Guevara não vai aos cabarets, nem à praia, nem ao cinema, acontece-lhe por vezes assistir a um jogo de futebol. É aí que se encontra com Fernando Barral, filho
de republicanos espanhóis, refugiado em 1939 em Alta Gracia e em Córdova. Barral que, como Ernesto, esteve apaixonado pela Negrita, Carmen Córdova, foi expulso da
Argentina em 1950, acusado de ser comunista, e partiu para a Hungria. Guevara escreveu-lhe: "Continuo a ser o aventureiro que conheceste, só que agora as minhas
aventuras têm um objectivo justo"52. E convidou-o a juntar-se à Revolução Cubana. Depois de tantos anos, os dois amigos voltam a encontrar-se no estádio latino-americano
onde se disputa um desafio contra uma equipa soviética. A descrição do encontro vale sobretudo pelo que revela do afecto popular em relação ao Che. "Fez-me sentar
ao seu lado durante o desafio e depois pediu-me que o acompanhasse ao Ministério. Partimos no carro dele, que ele próprio guiava. Atravessou as ruas, no meio da
multidão que o aclamava, gritando Che, Che, pegando-lhe na mão, tentando tocar na sua roupa. Ele sorria, simultaneamente irónico e bonacheirão..."53.
Mas o ídolo não perde a cabeça. Se alguns o atacam, não é o caso da equipa de incondicionais que reuniu à sua volta. Para além dos dias de trabalho "normais", isto
é, mais compridos do que para os outros, "propõe" ao seu estado-maior vários seminários e cursos especiais. Os quadros têm o dever de estudar mais do que ninguém,
de se aperfeiçoar constantemente, insiste ele. Anastasio Mancilla é um velho comunista espanhol refugiado na URSS após a vitória de Franco. Tornou-se lá "professor
de marxismo" e Moscovo enviou-o a Cuba, para divulgar a doutrina. Especialista de O Capital, dá aulas a todo o Conselho de Ministros. O Che pediu-lhe que alargasse
o seu seminário ao Ministério da Indústria. "Uma vez por semana, conta Orlando Borrego, nomeado vice-ministro, a partir das nove da noite, reuníamo-nos com Mancilla.
Cada um tinha de explicar o capítulo de Marx que lera (na edição mexicana, em três volumes, do Fondo de Cultura Económica). Isso dava até de madrugada. O Che e Oltuski
eram os mais polémicos. Queriam perceber como a teoria marxista podia ser posta em prática. Foi durante esse seminário que o Che começou a pôr em causa a praxis
do sistema socialista"54.
Para outros quadros do seu Ministério, Guevara organiza em 1961 um seminário intensivo de seis meses sobre a planificação socialista. O ano de
1962 é declarado "ano da planificação" e é necessário arranjar um pessoal que saiba do que está a falar. O chileno Alberto Martínez recorda: "Foram planificadores
checos que, ao rit^no de oito horas por dia, nos explicaram como organizar uma economia socialista"55.

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Edward Boorstein, um economista americano de esquerda que trabalhava com Guevara no Banco Nacional, o argentino Nestor Lavergne, outro economista, especializado
em modelos matemáticos, são requisitados pelo ministro para partilharem o seu saber com a comissão directiva do Ministério. "O Che era, de longe o melhor aluno,
o mais exigente, o mais rigoroso", comenta Lavergne. "Quando saiu de Cuba, tinha adquirido, em ciências exactas, conhecimentos superiores aos de um engenheiro. Era
capaz de dar aulas sobre os métodos matemáticos em economia"56. Raul Maldonado, o equatoriano comunista recrutado no Chile, que será vice-ministro cubano do Comércio
Externo, esclarece: "Era bom pedagogo, sabia analisar um problema, pero se moría en eso, [mas isso aborrecia-o]. Do que ele verdadeiramente gostava era de combater"57.
A partir de agora, a palavra de ordem é não perder um momento de descanso que não seja dedicado ao estudo, à leitura. Todo o "internacionalista" de boa vontade que
passa por Cuba é mobilizado para ajudar a formar os técnicos que irão rapidamente substituir os que preferiram o exílio.
Nomeado por razões políticas para a direcção de um vasto sector da economia nacional, Guevara parece fazer ponto de honra em dominar a matéria económica, para desmentir
a anedota nacional segundo a qual Castro o teria nomeado para esse cargo contundindo comunista com economista. Nunca anda sem um livro. O franco-chileno Carlos Romeo
conta que um dia, depois de uma visita a uma fábrica, consegue arrastar Guevara e a mãe para um passeio de barco de três horas, mas o Che mergulha logo na leitura
de uma obra de Mao. "O tempo estava magnífico, mas ele só interrompeu a leitura para fotografar a barracuda que eu consegui pescar. Deu-lhe então uma veneta e pôs-se
a nadar, em estilo mariposa. Era bom nadador. A mãe contemplava-o, enternecida e orgulhosa. Pressentia-se que existia, entre mãe e filho, uma bela relação de adoração
mútua, de ternura e de estima"58.
Estes momentos de descontracção são raros. Guevara gostaria que o rigor imposto a si mesmo fosse partilhado por todos, sobretudo pelo pequeno círculo daqueles que
o rodeiam. Lavergne não esqueceu a história dos cigarros Bock: "Eram cigarros castanhos muito fortes, de exportação cubana. Tinham deixado de os fabricar na época
da "racionalização". Mas Santiago Riera, responsável pelo consolidado do tabaco, tinha-me oferecido alguns maços que sobravam. [O consolidado é o agrupamento sob
uma única direcção, do sector que trabalha o mesmo produto]. Quando o Che me viu a fumar um Bock, perguntou-me onde o tinha arranjado. Eu contei-lhe. Ele então telefonou
a Riera, à minha frente: "São bens do Estado. Vais descontar do teu salário o valor equivalente aos maços que tão generosamente ofereceste a Lavergne""59.
O regime alimentar ultrafrugal imposto pela asma tornou-o indiferente às delícias gastronómicas. Diz ainda Lavergne, sorrindo: "A catástrofe era quando o Che nos
convidava para um almoço de trabalho, no Ministério, pois a ementa era de uma austeridade extrema. Consistia invariavelmente em arroz e massa cozida. Sem nenhum
condimento... Um dia, porém, chegou

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com uma garrafa de vinho francês, mas bebeu-a sozinho. "Lamento mas acabei de a roubar a alguém que a recebeu de presente. Vocês só tinham de fazer o mesmo!", declara
ele, trocista"60. Conclusão de Lavergne: "Ele não era muito "democrático"; era hipercentralizador, mas lidava-se com ele de igual para igual, sem ser necessário
fazer mesuras. Era um tipo fixe"61.
O "tipo fixe" também não tolera o estilo demasiado exibicionista na sua equipa. Borrego tem também uma recordação a esse respeito: "O mesmo Santiago Riera, dos tabacos,
quando chegou à fábrica, encontrou um belo Jaguar, abandonado pelos proprietários. Não sabendo o que fazer com o carro, ofereceu-mo, sabendo que eu adorava automóveis.
Um dia, arrumei-o ao lado do Chevrolet Impala do Che, um carro de categoria média para Cuba. "Pareces um gigolô com esse carro", disse-me ele. "Desfaz-te já dele
e pede a Omar Fernández que te dê um Impala como o meu". Tive direito a um modelo a duas cores, vermelho em cima e branco em baixo. Conservei-o durante seis anos"62.
E assim vai a Revolução.

Marx mais D. Quixote, menos os moinhos de vento

A partir de 1962, Guevara reúne-se de dois em dois meses com os directores de todos os sectores industriais, os consolidados, para fazer o ponto da situação, ver
como as coisas avançam, ou se atrasam e recuam. A discussão é livre. Apresenta-se exemplos. Fala-se de política internacional... "Um dia, pedimos-lhe que nos falasse
de moral", conta Alcides Bedoya, um dos participantes. "É a questão mais difícil que me colocaram", disse-nos ele"63. Ainda não elaborou a sua tese sobre "o homem
novo" que a Revolução irá produzir, mas tudo o que ele diz está subentendido numa ética elementar: tornar o homem mais humano, incitando-o a ultrapassar-se constantemente.
Ele pressente que "é necessário construir algo de novo".
Em vez de se render a Marx, sobretudo ao Marx dos textos da juventude, mais filosófico, que ainda não redigiu O Capital, ele procura extrair todo o sumo de um pensamento
que encara, antes de mais, como um humanismo. O que não impede o Che de reivindicar um grão de loucura romântica, fruto da necessidade de provocar no homem uma atitude
que o transforme "num trabalhador incansável [...], que dá à Revolução as suas horas de descanso, a sua tranquilidade pessoal, a sua família ou a sua vida, que nunca
se alheia do calor do contacto humano"64. Conciliando os dois heróis do panteão privado de Guevara, esse novo produto híbrido, a ser bem sucedido, seria o resultado
da fórmula: Marx + D. Quixote - os moinhos de vento, pois o inimigo é bem real. Porque, alega ele ao dirigir-se, a 20 de Outubro de 1962, à União das Juventudes
Comunistas, "quando dizem que somos uns românticos, uns idealistas inveterados, que sonhados com coisas impossíveis e que não é possível pedir às massas que sejam
uma espécie de arquétipo humano, devemos responder, com toda a segurança, que sim senhor, é possível, que o povo pode livrar-se da mesquinhez humana"65.

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Após a vitória da Playa Giron, um grupo de jovens veio informá-lo que iam organizar uma sessão de homenagem para lhe agradecer a excelente formação que ele tinha
dado às milícias. "Mas vocês não entenderam nada", diz-lhes ele. "O que o país precisa é de trabalho e não de homenagens. Quanto à vossa homenagem, muito obrigado,
mas, para não vos ofender, vou responder em francês, porque é mais fino: "Les honneurs, ça m' emmerde!"66. O Che vai exigir que os seus quadros regressem à base
uma vez por ano, para que as "honras" não lhes subam à cabeça e para que não se levem demasiado a sério esquecendo a dura realidade. Este estilo severo não provoca
nenhum ressentimento. Não tem o carácter cristão de purificação que poderia ser-lhe atribuído; tem mais a ver com Epicteto, o estóico, que dizia: "se passares por
ser uma personalidade aos olhos de alguém, desconfia de ti; não sejas ninguém para ti próprio; prefere seja quem for a ti mesmo"67.
"Porque gostavam tanto dele, se era tão duro?", pergunta Oltuski, que se tornou um dos seus colaboradores mais próximos. "Porque era justo e não manifestava nenhum
rancor, mesmo quando a sua linguagem era rude. [...] É claro que se alguém cometia um erro administrativo, havia castigos. O mais grave remetia o faltoso para Guanahacabibes,
um campo de trabalho no extremo ocidental da ilha. Mas quando se voltava, a coisa estava esquecida. Retomava-se o posto que se havia deixado"68.
Ele próprio se empenha em ir às fábricas, pelo menos duas vezes por mês. Um dia, está numa dessas visitas quando se desencadeia um incêndio numa fábrica de plásticos.
Os bombeiros não deixam entrar ninguém, pois os gases são tóxicos e o edifício ameaça ruir. Ter-se-á ele lembrado que, nas suas viagens de juventude, chegou a ser
bombeiro, uma noite, no Chile? Não hesita, esquece os conselhos de prudência que ele próprio teria dado aos outros e avança, "sem máscara, sem nada", conta uma testemunha.
Durante quatro dias, permanece ao lado dos trabalhadores. A sua "mentalidade guerrilheira" fê-lo agir. Quando uma vizinha lhe oferece um copo de leite, ele pergunta:
"Também há para os outros?". Não, não há. Então ele recusa. A sua asma está mais assanhada do que nunca, mas ele fica até ao fim69. Os exemplos deste comportamento
cavalheiresco são incontáveis. Quando chega a época do racionamento, zela para que as ementas do Ministério só incluam carne uma vez por semana, como estipula o
regulamento. Oltuski, que não tem papas na língua, observa-lhe que esse rigor não se aplica à própria família de Guevara. Este vai logo verificar e constata que,
sem ele saber, alguém, de facto, abastece Aleida com provisões que ultrapassam o autorizado pela libreta. Fica indignado, põe fim de imediato a esse escândalo e
castiga "aquele que pensava estar a fazer bem"70.
Durante esses anos agitados, de permanente efervescência, Guevara faz o seu trabalho de ministro com extremo rigor. O seu primeiro vice-ministro, Borrego, editou
em 1966 sete preciosos volumes de uma edição que inclui. ano por ano, não só a maior parte dos textos escritos por Che durante a sua estada em Cuba, mas também os
resumos estenografados das suas visitas âs

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fábricas, as suas intervenções semanais nos conselhos de direcção do Ministério, as actas das reuniões bimestrais com os directores dos sectores industriais (consolidados),
os textos sobre as metas a atingir e até os seus relatórios de actividade ao Conselho de Ministros, bem como uma abundante correspondência, onde chega a ser bastante
directo. Quando se lê esse extenso conjunto de documentos, por vezes técnicos e áridos, mas nunca desinteressantes, fica-se surpreendido com a extraordinária seriedade
que Guevara imprimiu ao seu trabalho com a sua minúcia e a que ele exigiu aos seus colaboradores para analisar pormenorizadamente os motivos que ditaram a paralisia
de uma determinada fábrica ou as dificuldades de uma outra em arranjar tubos de um certo diâmetro ou soldadura de certo tipo. Está tudo transcrito textualmente,
com as próprias falhas da linguagem falada; a impressão que transparece é a de se assistir aos debates in vivo. Ouve-se os "berros" de Guevara, considerando escandalosa
uma determinada situação, explicando que se um certo quadro em falta foi enviado durante um mês para o campo de trabalho de Guanahacabibes foi porque o mereceu,
mas que o visado pode recusar o castigo demitindo-se, se assim o desejar.
Quase sempre, porém, revela uma paciência notável; ouve, responde, interroga, consulta publicamente uns e outros, tenta exercer, ao seu nível de competência, essa
"democracia directa" cujo mérito atribui a Fidel Castro. Dá a palavra ao director dos Tabacos ou ao da Siderurgia, cita o exemplo do Açúcar; a Cerâmica protesta,
o Petróleo aprova, a Electricidade queixa-se... Está ali tudo, estão ali todos, com uma franqueza só possível no seio da "família" e que não encontramos nos discursos
públicos, mais convencionais. É, sem dúvida, essa liberdade de linguagem, transcrita quase no estado bruto, que explica o carácter confidencial e quase secreto desta
preciosa edição cartonada - El Che en la Revolución Cubana -, nunca traduzida nem posta à venda, com uma tiragem de duzentos ou trezentos exemplares, distribuídos
a conta-gotas unicamente aos membros do Comité Central e a alguns happy few. Quem tiver a curiosidade ou a coragem de mergulhar nesses milhares de páginas fica com
uma visão inédita de Cuba, certamente mais verdadeira do que a dos manuais. Mas é sobretudo a personalidade de Guevara que aí surge, numa verdade que permite corrigir
o retrato. Surpreendemo-lo agarrado às dificuldades do concreto, entre o acontecimento minúsculo e a perspectiva socialista que, em nenhum momento, deixa de pressupor
radiosa. Desfilam assim, numa abordagem inesperada, três anos - 1962, 1963, 1964 - da história de Cuba.
A questão dos estímulos, morais ou materiais, é abordada na primeira reunião de 20 de Janeiro de 1962. É a base a partir da qual poderá ser moldado um dia esse "homem
novo", mais sensível às alegrias do trabalho criado do que aos aumentos de salário. "O que sente o indivíduo revolucionário, motor de todas as coisas? Será ele mais
sensível ao dinheiro ou a trabalhar naquilo que gosta de fazer, reconhecido por aqueles que dirige, pelas massas e pelos dirigentes?..." Guevara responde, citando
o seu próprio caso: "Pela minha parte, nada me interessa mais do que ver como o país progride cada

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dia um pouco mais, e isto sem recorrer a todas as ideologias líricas segundo as quais "a vida do povo está melhor", "estamos a construir a pátria", "fazemos o nosso
dever", etc. [...] É necessário chegar onde ainda ninguém chegou, sempre um pouco mais longe, aproveitar essa tendência da natureza humana e não sentarmo-nos, dizendo:
"trabalhem, é uma obrigação da Revolução""71.
A isto, o director das Minas responde: "No nosso país, mesmo com estímulos materiais, ninguém "aperta um único parafuso", ninguém atinge os objectivos". O director
das Madeiras cita, pelo contrário, o caso de sete antigos patrões que trabalham com entusiasmo no consolidado sem esconder que mais tarde vão sair do país. E o director
dos Têxteis corrobora, afirmando: "Eu também tenho um técnico excelente que foi recompensado e que declarou sentir-se muito orgulhoso, mas sem esconder que já tinha
o passaporte pronto para partir. Quanto a mim, embora se insista no estímulo moral, não se deve pôr de lado o estímulo material"72. Outra pergunta recorrente de
todos os directores: "Porque não temos ainda o Plano para o ano em curso?" Resposta imediata do camarada-ministro: "Não vou alegar que foi por problemas de compatibilização
com isto ou com aquilo. A verdade é que ainda não fomos capazes de o fazer"73.
Ao longo das reuniões, percebe-se que a ORI, a fusão entre comunistas, M-26 e Directório, é já, para Guevara, muito mais do que o esboço de um partido. É o Partido.
Com as suas células, que em Cuba se chamam núcleos, "núcleos revolucionários activos". A esses núcleos, o Che pede (reunião de 10 de Março de 1962) para não ultrapassarem
o seu papel de mediadores políticos, para não se substituírem à Administração e, sobretudo, como pôde verificar no sector da Farinha - "são contos largos em Oriente"
- para "não se porem a fazer caça às bruxas. Não é essa a vossa função. [...] O espírito revolucionário não se obtém pela força"74. Reconhece haver uma quebra de
entusiasmo, ao passo que "a Revolução deve ser feita a toque de caixa". Mas a culpa é do imperialismo, diz ele. Segue-se então um discurso estranho, com um raciocínio
no mínimo incongruente:"Há cerca de um ano que não há tentativa de invasão. Ora, as pessoas reagem a esse género de estímulo. Nestas condições, conclui o nosso analista,
se já não há agressão, é cá dentro que devemos procurar o estímulo". Lobo, estás aí?"*

Nota: * Jogo de crianças, que provocam o "lobo" e fogem, até que este as apanha.

Grande parte dos debates é dedicada à questão dos salários. Um verdadeiro quebra-cabeças, pois a situação que a Revolução herdou é: a trabalho igual, salário desigual.
Mas se todos os salários forem nivelados por cima provocar-se-á uma inflação perigosa, observa o antigo presidente do Banco Nacional. Faz-se então cálculos complicados,
em relação aos quais ninguém está de acordo, sobretudo os sindicatos que, por muito tempo avessos à influência comunista, entretanto acertaram o passo. Resultado:
ninguém acredita neles. "Em Cuba foram criados sindicatos administrativos de forma mecânica, porque era o que existia na União Soviética. [...] Que triste papel
poderá desempenhar

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uma instituição decalcada da experiência histórica de um outro país? Isso não é marxista. Foi um dos muitos erros que cometemos", declara Guevara76.
Regressando à questão dos salários, o camarada Malmierca critica: "O sindicato resolveu o problema? Satisfez os operários? Nem por sombras. Eles diziam: "Pátria
ou morte", falavam de Fidel, do Che e disso tudo... Quando se disse aos operários: "Vamos falar com o sindicato", eles responderam: "Não vale a pena, o sindicato
está de acordo com a direcção""77.
Ideias mirabolantes também não faltam. Guevara reconhece que "a União Soviética, com todo o seu poder, está longe de ter o nível de vida de Havana, chico"78. Mas
mantém ainda toda a confiança nos peritos soviéticos que o rodeiam. Um deles propôs-lhe uma ideia de "racionalização", cujo lado insensato ele não detecta: fabricar
todo o pão que Cuba consome em apenas seis fábricas! "E ao mesmo tempo desembaraçamo-nos de todas essas pequenas lojas, de todas essas porcarias ineficazes", declara
Guevara, muito a sério. "E todas essas pessoas que vivem em condições desumanas, mandamo-las estudar. Isso não nos custará quase nada..." Quando alguém lhe observa,
por outro lado, que, para a "campanha de emulação nacional", os padrões de cálculo são de uma complexidade terrível, que isso obriga a reunir uma série de comissões,
etc., ele ilude a questão com uma pirueta e cita o argentino Sarmiento: "Mais vale fazer uma coisa mal do que não fazer nada"79. Mas quando lhe citam o caso das
toneladas de cimento abandonadas em sacos e que vão endurecer por falta de transporte, ele enfurece-se e, numa atitude oposta a todas as directivas por ele próprio
apresentadas, no sentido de obedecer à planificação, proclama: "Vou organizar um plano por la super-libre! (sublinhado meu)"80.
A reunião de 14 de Julho de 1962 é uma das mais interessantes desse ano. Primeiro, porque pela primeira vez, o Che parece despertar, sair dos seus sonhos insensatos,
nos quais só a planificação conta. Fala da construção de fábricas que não servem para nada: fiações, quando ainda não se produz algodão suficiente, sendo necessário
importá-lo; fábricas metalúrgicas, não tendo ainda sido extraído o minério. "Fizemos cálculos demasiado optimistas. [...] Mas esquecemos as questões do comércio
externo, as dificuldades práticas, e assim por diante. Previmos fábricas construídas em tempo recorde. Agora temos uma série de carcaças para as quais é necessário
importar produtos para lhes dar corpo"81. Ele, que tanto gabava a tecnologia dos países socialistas, chega ao ponto de se interrogar em voz alta: "Por que é que
uma fábrica de levedura, produzindo a mesma quantidade, só tem vinte e sete operários em França, enquanto na Polónia mobiliza duzentos? [...] Lembro-me que, quando
o camarada Abello, penso, me disse que a fábrica de engarrafamento fornecida pelos alemães [RDA] era uma porcaria, pensei ser uma manifestação de anticomunismo da
parte dele. A triste realidade é que a fábrica alemã não prestava para nada. A fábrica norte-americana era bem melhor, muito mais moderna. Fizemos, portanto, um
mau negócio"82.
A segunda lição a tirar dessa reunião é de ordem política: quando Guevara fala de "irresponsabilidade a todos os níveis do governo" descobre-se que foi

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identificado, pelo menos, um dos culpados desse caos, "o camarada Anibal, cujos métodos impuseram camaradas de uma irresponsabilidade total por razões de fidelidade
política"83. Surge a clássica infiltração do aparelho de Estado pelo Partido Comunista. A 2 de Dezembro de 1961, Castro declara: "Sou marxista-leninista e sê-lo-ei
até ao fim da vida"84. Essa declaração não melhora a sua imagem aos olhos dos Estados Unidos, mas vincula um pouco mais a URSS a defendê-lo do colosso americano.
Anibal Escalante, comunista de longa data, número dois do PSP a seguir a Blas Roca, nomeado secretário-geral da ORI, aproveitou a ocasião para colocar os seus homens
de confiança, e apenas eles, em todos os postos-chave, até na direcção da mais pequena quinta do Estado. Era de prever. Mas a manobra parece ter sido tentar afastar
gradualmente o M-26, incluindo Castro, para permitir que os comunistas tomassem as rédeas do país.
El Caballo, como é chamado familiarmente Castro, porque, tal como o cavalo, "tem-nos no sítio", é demasiado esperto para não ver o perigo de ser transformado em
"verbo de encher". Pediu a Guevara que integrasse uma comissão de inquérito secreta sobre as manobras de Escalante e dos quadros do PSP. Fidel aguarda o momento
propício e, a 26 de Março de 1962, pela televisão, denuncia dramaticamente o "sectarismo" daqueles que, em vez de formarem "um autêntico partido marxista", tentaram
preparar "um exército de revolucionários domesticados, aqueles que, em vez de integrar, desintegraram"85. Estarão todos os comunistas implicados nessa tentativa
de golpe de Estado silenciosa? Castro tem a habilidade de indicar apenas um bode expiatório, mas o aviso serve para todos. "Quem é esse tratante? [...] É o camarada
Anibal Escalante"86 declara ele, enfaticamente. A ovelha ranhosa é imediatamente enviada para a Checoslováquia e o embaixador da URSS, certamente cúmplice, prefere
regressar a Moscovo. "O caso de Anibal colocou na defensiva os velhos membros do PSP, autores de tudo isto" comenta Guevara87. Quanto aos Soviéticos, mostram que
entenderam a mensagem e dão-no a saber através de um editorial do Pravda de 11 de Abril de 1962. em honra de Castro. Este último, táctico inigualável, ganhou esta
partida. Os comunistas cubanos inclinam-se, reconhecem que ele é o chefe. Guevara-Lancelote, súbdito fiel do rei Artur, alinha com ele.

"Lo que se da no se quita"

Na cronologia dos factos e dos gestos do Che, há uma viagem bastante discreta. É a que ele efectua a 7 de Setembro de 1962 à URSS, a pretexto de uma missão económica.
O verdadeiro objectivo da missão era de ordem militar: estabelecer o protocolo para organizar a instalação de mísseis soviéticos em território cubano. Acompanhado
pelo chefe das milícias, o comandante Emilio Aragonés, um militante veterano do M-26 devotado aos irmãos Castro, visita Nikita Kruchtchev na sua datcha na Crimeia,
sem que nenhum comunicado assinale o encontro. É que o caso é grave.

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Desde o fiasco espectacular da tentativa de desembarque na Baía dos porcos, a CIA, humilhada, está morta por se vingar, e o governo de Fidel sabe-o. Cuba é uma ilha
sitiada, os Cubanos sentem-no todos os dias. Em meados de Janeiro de 1962, o general Edward Lansdale, especialista em "anti subversão", apresenta à Casa Branca as
várias fases de uma operação de envergadura destinada a varrer de vez o regime comunista cubano. Para esta operação designada "Mangusto" (nome de pequeno mamífero
que come ratazanas), são destacados 400 agentes da CIA, em full-time, em Washington e em Miami; e volta a pensar-se em utilizar os serviços da Mafia para suprimir
Castro e o seu grupo. A 31 de Janeiro de 1962, uma reunião de ministros dos Negócios Estrangeiros em Punta del Este, desta vez em pleno Verão austral, decide expulsar
Cuba da Organização dos Estados Americanos. Seis países, entre os mais importantes da América Latina, representando dois terços da sua área e quatro quintos da sua
população - Brasil, Argentina, México, Chile, Equador e Bolívia - recusaram juntar-se ao consenso exigido. Mas a medida não deixa de sublinhar o isolamento diplomático
do "primeiro território livre da América". Cuba, a rebelde, responde de imediato: a ilha do açúcar não é uma ilha feita de açúcar. A 4 de Fevereiro, na Praça José
Marti da capital, Castro faz aprovar por aclamação, como de costume, uma "Segunda Declaração de Havana", através da qual "a Assembleia Geral do Povo de Cuba" apela
aos "povos da América e do mundo" para que se ergam e façam a Revolução, sem esperar, "sentados à porta de casa, que passe o cadáver do imperialismo". Castro retoma
uma expressão de Guevara: "O dever de todo o revolucionário é fazer a Revolução"88, mas, se citou as palavras de Marti - "A minha fronda é a de David" -, decide
recorrer agora a armas de maior envergadura.
Foi Kruchtchev que propôs mísseis com ogivas nucleares? Foi Castro que os pediu? Tudo é muito confuso nesta aventura, sem dúvida a mais louca que o planeta viveu
desde o fim da Segunda Guerra Mundial e do bombardeamento atómico de Hiroshima. Harold Macmillan, na época primeiro-ministro britânico, escreverá, em 1969, num prefácio
à história dessa crise descrita por Robert Kennedy, irmão do presidente, que "o caso dos mísseis continua por esclarecer"89.
Embora um pouco fantasista, Juan Vives, trânsfuga dos serviços secretos cubanos, defende uma tese verosímil: foram os soviéticos, sobretudo os homens do KGB, que,
incentivando o clima de histeria reinante em Cuba em torno de uma invasão incessantemente anunciada como iminente, "desinformaram" os serviços cubanos e levaram
Castro a pedir à URSS uma protecção militar séria. O senhor "K" aproveitou então para colocar os seus mísseis debaixo do nariz dos Estados Unidos. O seu objectivo
é duplo: em primeiro lugar, neutralizar mísseis do mesmo tipo instalados pelos americanos em torno da União Soviética; e depois surpreender os "duros" do Pentágono
e da CIA e os "moles" da Casa Branca. Está convencido que John Kennedy faz parte destes últimos e que não tem maturidade política, apesar de ter recusado categoricamente
ceder Berlim à RDA90. A construção do Muro em Agosto

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de 1961, cortando Berlim ao meio, veio teatralizar ainda mais a partilha do mundo em zonas de influência entre as duas superpotências.
Em Janeiro de 1962, o genro de Kruchtchev, o coronel do KGB Adjubei, além disso chefe de Redacção do Izvestia, teve um encontro com o primeiro-ministro cubano, antes
de se avistar com o presidente Kennedy. Castro que, convém não esquecer, acabara de se declarar marxista-leninista, contou a Jean Daniel, nessa altura repórter do
semanário parisiense L'Express, como as coisas se passaram: "Uma semana após esse encontro, recebemos em Havana uma cópia do relatório de Adjubei a Kruchtchev. Foi
esse documento que desencadeou tudo. [...] Kennedy declara que a nova situação de Cuba era "intolerável". E, sobretudo, lembra aos russos que os Estados Unidos não
tinham intervindo na Hungria* o que era, manifestamente, uma forma de exigir uma não-intervenção russa por ocasião da invasão projectada. [...] [Kruchtchev] perguntou-nos
o que nós queríamos. E nós respondemos: agir de forma a que os Estados Unidos percebam que atacar Cuba é atacar a União Soviética"91. Os soviéticos explicaram então
que as armas convencionais já não eram suficientes para intimidar um adversário, que era necessário uma ameaça nuclear. Daí os mísseis.
Raul Castro, ministro da Defesa, parte em Julho para Moscovo, para discutir a questão com os seus homólogos soviéticos e com Kruchtchev. Em Agosto começam a chegar
a Cuba as primeiras unidades de combate do Exército Vermelho, a vanguarda de um importante contingente que atingirá os vinte mil homens. Muitos desembarcam com as
famílias. Os Cubanos, habituados à moda americana, descobrem, um pouco espantados, que aqueles russos, que lançaram um Gagarine no espaço, se vestem como camponeses,
que as suas mulheres usam sapatos antiquados, não sabem o que são saltos altos, que existem enormes diferenças de tratamento entre os chefes, os engenheiros e a
soldadesca - a arraia-miúda dos operários e pedreiros trazidos para construir as bases militares e os Bunkers resguardados dos olhares cubanos. "Eram fixes, esses
russos", escreve Franqui. "Mas tudo mudava de figura quando estavam bêbados. Eram capazes de vender a camisa, o jipe ou o rádio por mais uma garrafa de rum... Até
que a sua própria polícia os viesse buscar"92.

Nota: * Em Novembro de 1956, as tropas soviéticas entraram na Hungria para reprimir um movimento insurreccional antiestalinista.

Entretanto, uma série de cargueiros traz 80 baterias de mísseis antiaéreos terra-ar, com um alcance de quarenta quilómetros, bem como 50 bombardeiros Iliuchine-18,
transportados em contentores (!), para serem montados no local. Guevara estava ainda a assinar os acordos militares em Moscovo e já chegavam, ao porto cubano de
Mariel, os primeiros mísseis nucleares de médio alcance, podendo atingir uma boa parte do território dos Estados Unidos. Enormes caravanas, de faróis apagados, atravessam
de noite ou de madrugada as aldeias onde a electricidade foi previamente cortada, para proteger de olhares curiosos os longos camiões com estranhas formas alongadas,

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cobertas de oleados. Em Washington, por muito que o embaixador soviético garanta que a URSS só entrega a Cuba "armas defensivas", Kennedy, preocupado, obtém do Senado
autorização para convocar cento e cinquenta mil militares na reserva. Os Estados Unidos estão em plena campanha eleitoral para substituir metade da Câmara dos Deputados,
por isso ele precisa de mostrar que é enérgico.
É a 15 de Outubro que a Casa Branca toma conhecimento das fotografias trazidas na véspera por um avião especial U-2, pilotado por um certo major Anderson. Elas revelam,
sem margem para dúvidas, que foram instaladas rampas de lançamento para trinta e nove mísseis, espalhadas por todo o território cubano, mas maioritariamente situadas
na província ocidental de Pinar del Rio, a menos de cem quilómetros de Havana, mesmo em frente à Florida. Os mísseis parecem não terem ainda ogivas nucleares, mas
podem recebê-las de um dia para o outro. Kennedy hesita alguns dias antes de escolher a resposta que considera mais adequada: um bloqueio total proibindo o acesso
à ilha a todo o navio suspeito de transportar armas para Cuba. Dá conhecimento desta medida aos seus aliados europeus (NATO) e americanos (OEA), que a aprovam. E
na noite de 22 de Outubro, através da rádio e da televisão, num discurso em tom dramático, o presidente explica à nação a razão do bloqueio, designado eufemisticamente
por "quarentena". A partir daí começa um braço de ferro entre os dois "K", que vai durar seis dias. Seis dias durante os quais muitos politólogos consideram que
o mundo esteve à beira da guerra nuclear.
O primeiro recuo de Kruchtchev data de 24 de Outubro. Uma frota de vinte e quatro navios soviéticos, carregados de armas para Cuba, é detida no limite das 500 milhas
marítimas fixado pela marinha norte-americana, dotada de cento e oitenta vasos de guerra. Nas Nações Unidas, o delegado norte-americano Adlai Stevenson vinga-se
da humilhação sofrida no ano anterior, quando apresentara fotografias falsificadas de bombardeiros. Tem o prazer de mostrar a Valerian Zorine, representante da URSS
que garante não haver mísseis soviéticos em Cuba, fotografias que provam o contrário. Enquanto Kruchtchev faz, como Kennedy, grandes declarações para a galeria,
informa secretamente o outro senhor "K", o da Casa Branca, que a URSS poderia retirar os seus mísseis se os Estados Unidos se comprometessem a não invadir Cuba,
no presente e no futuro. Exige igualmente que sejam retirados os mísseis norte-americanos instalados na Turquia e na Itália. Kennedy aceita este ponto, numa cláusula
que durante muito tempo permaneceu secreta, o que lhe dá a imagem de um presidente que ganhou em toda a linha. Tanto mais que os mísseis em causa, os mísseis Júpiter,
estão já obsoletos.
Na pequena ilha das Caraíbas, objecto desta negociação que lhe passa por cima, o terceiro parceiro do conflito está furioso. Castro, num primeiro tempo encantado
com a ideia de ganhar protagonismo com os seus mísseis, enfurece-se ao verificar que, no momento da verdade, não passa de um peão que os "reis" movimentam a seu
bel-prazer num tabuleiro de xadrez. Põe Cuba inteira em estado de sítio. As praias voltam a ser zonas interditas. Todas

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as costas são vigiadas. É o alerta máximo. Mal teve tempo de se ocupar de um visitante ilustre, chegado a 16 de Outubro, Ben Bella. Todavia, todos os testemunhos
de amizade foram dispensados àquele que será o primeiro presidente de uma Argélia finalmente independente, após sete anos de guerra. Cuba nunca escondeu as suas
simpatias pelos militantes anticolonialistas.
O comandante Guevara foi encarregado da defesa da província mais rica em rampas de lançamento e mísseis, a de Pinar del Rio. Instalou o seu posto de comando numa
gruta transformada em Bunker. Faz parte do pequeno grupo de sete militares cubanos de alta patente, incluindo Fidel Castro, com acesso ao "santo dos santos", as
bases de mísseis, onde só circulam militares soviéticos sob o controlo do KGB. Contudo, no calor da tormenta, o Che não esquece o futuro. O seu optimismo parece
inquebrantável. A 20 de Outubro, arranja tempo para se dirigir às Juventudes Comunistas, fala-lhes da "sociedade perfeita" que será "a sociedade socialista, a sociedade
sem classes [...] de futuro luminoso [...]. Nessas horas de construção febril, de preparativos constantes para a defesa do país", recorda lucidamente que não basta
empunhar uma arma, mas que é preciso também sacrificar as férias de estudante para ir fazer a colheita do café em Oriente. É claro que os jovens que conseguiram
abater um avião ianque na Playa Giron devem ter considerado esse "o mais belo dia da sua vida!", mas isso não deverá permitir que ninguém se esqueça de que o primeiro
dever é "lutar contra a injustiça" e "purificar o homem através do trabalho"93.
Não foi pela rádio, como afirmou Arthur Schlesinger, conselheiro de Kennedy, que Castro soube que a URSS ia retirar os seus mísseis de Cuba, mas por um flash da
Associated Press que Carlos Franqui se apressou a ler-lhe ao telefone, no domingo, 28 de Outubro de 1962. "Pendejo, hijo de puta, cabrón!" O Caballo está fulo de
raiva94. Fazer-lhe isto a ele, traí-lo assim! Na sua excelente biografia de Castro, Jean-Pierre Clerc cita Guevara, que conta que, ao saber da notícia, Fidel bateu
com o punho na parede e partiu um par de óculos95. Quatro meses depois, perante Claude Julien, do jornal Le Monde, que relatará a conversa, Castro confessará que
se Kruchtchev tivesse aparecido ali o teria esmurrado"96. A sua humilhação é ainda mais intensa porque, numa carta dirigida na antevéspera, 26 de Outubro, ao referido
Kruchtchev, Castro garantia-lhe a determinação cubana e fora ao ponto de lhe sugerir um ataque nuclear contra os Estados Unidos em caso de desembarque norte-americano
em Cuba: "Não deixe que sejam os imperialistas a dar o primeiro passo numa guerra nuclear"97. Toda a loucura orgulhosa do Líder Máximo cubano está contida nesta
recomendação delirante. Antes o apocalipse nuclear do que ceder. Que o meu povo pereça e eu com ele, que o planeta seja destruído mas que eu não perca a face. Nesta
interpretação paroxística de "pátria ou morte", nesta forma exacerbada do "machismo-leninismo", há um comportamento quase patológico que já não corresponde ao senso-comum.
Em matéria de radicalismo, Guevara não lhe fica atrás e a sua posição, mais uma vez, cola-se à de Castro (a não ser que seja o contrário). Num artigo

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escrito no auge da crise, mas que só será publicado em Verde Olivo a 6 de Outubro de 1968, seis anos mais tarde, o Che ataca sarcasticamente os países da OEA que
têm medo do perigo que representa o exemplo da "subversão cubana". "Têm razão" diz ele. "É o exemplo aterrador de um povo que está disposto a imolar-se pelas armas
atómicas para que as suas cinzas sirvam de cimento às sociedades novas e que, quando se faz um acordo sobre a retirada de mísseis atómicos sem ele ser consultado,
não dá um suspiro de alívio, não acolhe a trégua com gratidão. Lança-se na arena para [...] afirmar [...] a sua determinação de lutar, mesmo sozinho, contra todos
os perigos e contra a própria ameaça atómica do imperialismo ianque"98.
Só em 1990, cerca de trinta anos mais tarde, o jornal Le Monde publica pela primeira vez na íntegra as cinco cartas trocadas quase taco-a-taco no espaço de uma semana
(26-31 de Outubro de 1962), entre os dirigentes cubanos e soviéticos. Não seja irresponsável, pede-lhe em suma Kruchtchev a 28 de Outubro. "Não se deixe arrastar
pelo seu sentimento de revolta. [...] A resposta de Kennedy dá a garantia de que os Estados Unidos não invadirão Cuba". E critica Castro por ter respondido aos voos
provocatórios dos aviões norte-americanos: "Ontem, vocês abateram um deles. [Eles] vão servir-se disso para atingirem o seu objectivo"99. De facto, um avião espião
U-2 fora abatido na véspera e aconteceu que o piloto morto, Anderson, era precisamente aquele que levara as fotografias reveladoras da existência dos mísseis. Será
o único morto do conflito. Quanto à identificação do disparo mortal, as versões diferem. É possível que não tenham sido cubanos mas soviéticos que largaram o míssil
terra-ar que acertou no alvo. Mas, em privado, Franqui teima numa versão bastante engraçada, segundo a qual foi Fidel que, a 27 de Outubro, ignorando ainda o abandono
soviético, foi, impaciente, dar uma volta pelas bandas das bases soviéticas. E lá, justamente, mostraram-lhe nos radares os sinais de aviões espiões a sobrevoar
Cuba. "Como é que fazem para os abater?" perguntou ele. Mostram-lhe o botão. "Fidel carregou com o dedo e paf! Para estupefacção dos russos, o míssil partiu e foi
atingir o U-2!"100 Viva o macho! Se non è vero...
Colocado perante o facto consumado do acordo entre os dois "K", Castro reage como pode. Finge acreditar que as negociações ainda não terminaram e apresenta cinco
condições para aceitar o referido acordo: os Estados Unidos deverão pôr termo ao bloqueio económico, à subversão, às actividades dos emigrantes cubanos, aos sobrevoos
do território e, finalmente, restituir a base de Guantánamo. É claro que não tem nenhuma ilusão, mas quer fazer lembrar que existe. "Decidimos não cruzar os braços"101
garante ele nesse mesmo 28 de Outubro a Kruchtchev. A 30 de Outubro, o chefe do Kremlin explica ao seu aliado ofendido que o risco nuclear não pode ser partilhado.
"Considero a sua posição incorrecta. [...] Seria a guerra mundial termonuclear. [...] Consideramos que o agressor sofreu uma derrota. Preparava-se para atacar Cuba,
nós impedimo-lo"102. Mas Castro persiste. O seu orgulho é desmedido. A sua cegueira total: "Não ignorávamos que seríamos exterminados em caso

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de guerra nuclear", repete ele ainda a 31 de Outubro. "Muitos cubanos e soviéticos choraram quando souberam da decisão surpreendente, inesperada e praticamente incondicional
de retirar as armas"103.
Para milhares de cubanos, para Castro, para Guevara, é a partir deste momento que o sonho soviético se desfaz. Para além dos discursos esperados, só irão subsistir
relações de negócios um pouco cínicas, nas quais cada um procurará, antes de mais, o seu interesse. Os Chineses comparam o abandono soviético ao dos Europeus em
Munique, perante Hitler. Outros ao Pacto Germano-Soviético assinado nas costas dos Aliados, na Segunda Guerra Mundial. A reviravolta do grande irmão socialista traz
em si o germe das críticas que Guevara fará à URSS, no famoso discurso de Argel de 1965. O Estado-Maior cubano não se apercebe que, em última análise, quem ficou
verdadeiramente a ganhar neste megaconflito foi Cuba, uma vez que obteve a garantia de nunca ver os marines a desembarcarem no seu território. A CIA e o exército
norte-americano, que se preparavam para organizar uma invasão muito mais séria e perigosa do que a operação-fiasco da Baía dos Porcos, foram contidos. Essas duas
instituições ficarão ressentidas com Kennedy, por este as ter frustrado nas suas tentativas de vingança, mas não o manifestarão, pois os media saúdam a coragem do
presidente. A partir de então, os Estados Unidos tentaram mil e uma manobras contra Castro e o seu regime, mas a verdade é que nunca violaram o compromisso verbal
de JFK.
Castro demorará muito tempo a acalmar-se. Opor-se-á tenazmente à inspecção internacional do desmantelamento das bases de mísseis. Ao fazê-lo esperar deliberadamente,
humilhará durante três semanas o vice-primeiro-ministro da URSS, Mikoyan, o "grande amigo", emissário especial, antes de o autorizar a retirar também os bombardeiros
Iliuchine, como Kennedy exigira. Quanto a Kruchtchev, apesar de todas as argumentações a favor da "defesa da paz", o seu passo em falso cubano irá marcar o início
do seu declínio e uma perda de crédito internacional. Os seus não lhe perdoarão a humilhação de ter de retirar ordeiramente, no alto-mar, os oleados que cobriam
os mísseis colocados na ponte dos navios que os traziam de volta à URSS, para que os helicópteros norte-americanos pudessem verificar, a baixa altitude, se estavam
lá todos. "Vergonhoso strip-tease", ironizar-se-á, tanto em Cuba como em Moscovo. Em Havana, desde o anúncio da retirada dos mísseis, uma multidão bem orquestrada
desceu à rua, protestando contra a afronta e gritando uma frase pouco simpática para o poderoso aliado com pés-de-barro: "Nikita, mariquita, lo que se da no se quita!"

A guerrilha fantasma da Argentina

O balde de água fria da crise dos mísseis veio despertar os Cubanos, embalados na adoração soviética preconizada pelos comunistas. Mas, embora para Castro e para
Guevara não exista solução alternativa - sobrevivência

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económica oblige -, vai ser dada uma maior atenção à pátria grande americana, e sobretudo aos movimentos revolucionários dessa "grande pátria" da América Latina.
A Segunda Declaração de Havana incitava já, vigorosamente, às sublevações populares em todo o continente. Internacionalista desde a primeira hora, o Che pôs um empenho
particular no acompanhamento da "preparação especial das tropas irregulares" (PETI). Essas "tropas irregulares" compõem-se de jovens combatentes estrangeiros a quem
os Cubanos ensinam a forma de organizar a luta armada nos seus próprios países. É a época em que o ambiente se torna cada vez mais cubano na América Latina. A vitória
de Castro provou que a Revolução é possível, que o inimigo pode ser derrotado. Uma extrema-esquerda dita "castrista" - mais tarde chamar-se-á "guevarista" - adopta
posições cada vez mais afastadas dos partidos comunistas tradicionais, que alinham pelas palavras de ordem de Moscovo: coexistência pacífica, defesa da paz, etc.
Contra esses "tigres de papel" já se erguera, mais radical ainda, a diatribe chinesa.
A leste de Havana, não muito longe da capital, escondido da carretera central por colinas semeadas de palmeiras, situa-se um campo de treino bastante misterioso:
Punto Cero. Da América Latina, de África, de toda a parte, milhares de aprendizes de guerrilheiro vêm aí frequentar o seu curso: manejo de armas, explosivos, munições;
técnicas de informação, verificação dos planos de operação e contra-verificação... Cada movimento revolucionário é "compartimentado", acantonado numa das trinta
e seis zonas do campo, para não se misturar com o vizinho. Por vezes, Guevara conversa com alguns militantes que deram provas da sua combatividade. Como, por exemplo,
os peruanos Hector Bejar e Javier Heraud que animam, com Hugo Blanco, uma luta camponesa, perto da fronteira boliviana. No dia-a-dia, é o vice-ministro do Interior,
o temível Barbarroja, que controla essas actividades bem camufladas de espionagem e de subversão.
Nesse reajustamento da distância focal sobre as Américas, o Che não negligencia os seus compatriotas argentinos. Em relação a eles, tem uma atitude moderada. O afastamento
permitiu-lhe perceber melhor os seus tiques, sobretudo essa arrogância (prepotência) que às vezes os torna insuportáveis, principalmente quando a exibem fora da
sua terra. O jornalista chileno Carlos Jorquera recorda uma reunião, em Janeiro de 1961, na qual Guevara - que viera saudar as delegações de vários países latino-americanos
- fora bombardeado com perguntas "arrogantes" por parte do grupo argentino, propenso a dar lições, sobre as questões do comércio internacional e da economia. "Nesse
plano", acaba por dizer o presidente do Banco Nacional, citando uma piada conhecida, "o "negócio da China" seria comprar os argentinos por aquilo que eles valem
e vendê-los por aquilo que eles julgam valer"104
Apesar da sua azáfama permanente, Guevara procura arranjar tempo para receber alguns antigos "amigos" argentinos. Muitos gabam-se de ser seus amigos. Muito poucos
o são de facto. Na realidade, desde o desaparecimento

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de Camilo Cienfuegos, com o qual tinha a cumplicidade das amizades profundas, já não tem "verdadeiros amigos" à sua volta. Granado, o amigo fiel foi trabalhar para
Oriente. Masetti, demitido, foi alistar-se na FNL, na Argélia. Gustavo Roca e Ricardo Rojo poucas vezes aparecem. Raras vezes vê Barral que, aliás, nunca foi muito
íntimo. Pepe Aguilar e a mulher, Marita Lamarca, vêm às vezes comer esparguete a casa dele. O Che não se coíbe de criticar o lado pituco (snobe) de Marita, que não
tem papas na língua. (Ela conta, com malícia, uma história trivial sobre Guevara: estava há tanto tempo fechado na retrete que os convivas começaram a ficar preocupados.
A explicação era simples. Tinha encontrado aí Le Petit Prince, de Saint-Exupéry. "Lo leí de una cagada", declarou ele, na sua linguagem muito directa)105.
Resta o núcleo duro, Fidel e Raul, mas tanto um como o outro estão sempre atarefados, como ele, com mil e um assuntos urgentes e, além disso, os "serviços" recomendaram
aos três homens mais importantes do regime que evitassem andar juntos, por razões de segurança. Quanto aos seus colaboradores no Ministério, são apenas companheiros
de trabalho. Não são propriamente amigos. Em relação a eles, mantém uma certa reserva. Um dia, o seu vice-ministro Oltuski toma a liberdade de lhe pôr a mão no ombro,
num gesto de amizade. Guevara reage: "Que familiaridade é essa?"
No dia 25 de Maio de 1962 - festa nacional argentina -, Guevara aceitou participar no asado criollo, o churrasco tradicional organizado pela pequena colónia de trezentos
ou quatrocentos argentinos em Havana. Tamara Bunke, a jovem comunista argentina conhecida na RDA e que em seguida veio colocar-se ao dispor da Revolução, quis dar
à festa um carácter folclórico: mate, guitarra, zumbas e chacareras (danças da Pampa), laços nacionais azuis e brancos, etc. John William Cooke fala em nome dos
argentinos. Cooke é aquele peronista de esquerda que Ernesto uma vez defendeu, numa praia de Mar del Plata, contra uns jovens burgueses que o agrediam. El Gordo,
como lhe chamam, tornou-se um intelectual boémio, simpático, grande apreciador de Sartre e de tangos de Discépolo. Com a sua companheira Alicia Eguren, uma mulher
elegante, inteligente, muito militante, forma um casal com o qual Guevara tem prazer em discutir. Cooke foi encarregado por ele de transmitir a Perón, refugiado
em Madrid, um convite de Fidel para vir a Cuba, quando o desejasse106. Opta-se por esquecer a demagogia e as prevaricações do general argentino e recordar apenas
o seu "anti-imperialismo".
Quando chega a sua vez de responder aos discursos, o Che define-se como "um argentino de voz estrangeira" e explica que fala em nome do governo cubano. Tem nessa
altura trinta e quatro anos. No auge da sua glória nesse país de adopção, continua belo e sedutor. Ministro, combatente, disposto a voltar à luta quando for preciso,
diplomata brilhante e incisivo, como o revelou em Punta del Este, é, além do mais um babado pai de família: Aleida acaba de dar à luz, a 20 de Maio, um rapaz, imediatamente
baptizado de Camilo, homenagem inequívoca a Cienfuegos. Guevara evoca a luta armada que já existe na República Dominicana, na Nicarágua, no Peru, na Venezuela.

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E exprime o voto de "celebrar um próximo 25 de Maio, não nesta terra generosa [Cuba] mas na nossa própria terra, sob o símbolo da construção do socialismo"107. Estas
palavras não são meras palavras de circunstância. Exprimem verdadeiramente o que pensa aquele que as pronuncia. Por muito cubanizado que possa estar, Guevara não
voltou costas à sua identidade argentina. A sua perspectiva é continental, é certo, mas acalenta a ideia de travar também, como Fidel, um combate revolucionário
na sua terra natal. Mesmo que, para tal, seja necessário recorrer a subterfúgios.
O seu exemplo incitará dois amigos íntimos a irem, por seu turno, criar focos de guerra nos seus países respectivos. El Patojo na Guatemala, Masetti na Argentina.
Ambos encontrarão lá a morte. O seu fracasso afectará Guevara, mas não o desencorajará.
El PaTojo é aquele jovem comunista guatemalteco, um pouco tímido, que Ernesto conhecera na viagem de comboio para o México, quando ambos fugiram da Guatemala, onde
a CIA conseguira derrubar Arbenz. Castro não quisera aceitá-lo no Granma, mas o rapaz juntara-se mais tarde a Guevara e trabalhara com ele no INRA. Até ao momento
de, também ele, ir fazer a guerrilha na sua terra. O Che lembrara-lhe então os três princípios fundamentais retirados da experiência da Sierra Maestra: mobilidade
permanente, desconfiança permanente, vigilância permanente. Por não ter seguido à risca estes princípios básicos, El Patojo será derrotado com o seu grupo e morto
em combate. Guevara incluirá um artigo especial dedicado ao amigo abatido na sua colectânea Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire.
O outro desaparecimento, o de Masetti, em 1964, tocá-lo-á mais, porque a sua cumplicidade é ainda maior com um homem que iniciou a luta que ele próprio pretende
travar um dia no país onde nasceu. A história da guerrilha de Masetti é talvez uma das mais loucas aventuras sem futuro levadas a cabo no continente americano, no
século XX. É o exemplo, quase caricatural, de como uma verdadeira alucinação revolucionária pode apoderar-se de certas pessoas, levando-as a um completo desfasamento
da realidade da sua época. O dramático fracasso do "homem que queria ser como o Che" merece que nos detenhamos nele, porque é premonitório. Prefigura, sem que dele
seja tirada a lição, o fracasso que terá na Bolívia a acção que um denominado "Ramón" irá desenvolver.
Depois do seu afastamento da Prensa Latina e de uma breve experiência de fraternidade combatente com os fellaghas argelinos, em breve vitoriosos, Jorge Ricardo Masetti
regressa a Cuba (voltou a casar, com uma cubana) e volta para a Argentina em fins de 1962. Está impaciente por organizar aí o foco em torno do qual se constituirá
a rebelião nacional, conduzida pelo EGP - Exército de Guerrilha do Povo. Peronista convicto nos anos de juventude, impregnou-se do castrismo insuflado por Guevara,
seu amigo, seu modelo.
De facto, não há dúvida de que foi o Che que incitou Masetti a optar pela luta armada na Argentina, porque sempre acalentou o projecto de ver reproduzir-se aí uma
revolução análoga à que tão bem resultou em Cuba, com

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Fidel. Recorde-se que, ao escrever a Ernesto Sábato, Guevara reivindicava "apesar de tudo", a sua raiz argentina. Oferecendo um exemplar da sua Guerra de Guerrilha
ao compatriota romancista, ele esclarecia: "Para Cuba, este manual já quase não tem razão de ser. Em contrapartida, pode ser útil no nosso país, desde que se sirvam
dele com pertinência, sem precipitação e sem se deixarem enganar"108.
Guevara, que recebe nova visita da mãe no início de 1963, prefere escutar o seu amigo Rojo, que faz o ponto da situação na Argentina. O peronismo, movimento popular,
apesar das suas escórias, continua ilegal. Apesar de um simulacro de governo civil, são os militares que ditam a lei, embora tenham prometido eleições para breve.
Em Junho de 1963, Masetti, munido do breviário guevarista, instala-se primeiro na Bolívia, com cinco combatentes cubanos "oferecidos" por Guevara. Entre eles, o
capitão Hermes Peña, um robusto mestiço, de sangue índio e mulato, que fazia parte da sua segurança pessoal. O pequeno grupo estabelece-se junto da fronteira argentina.
Mas em Julho sucede algo de fatal para uma guerrilha, que necessita do descontentamento popular e de um clima social agitado: as eleições conduzem à presidência
um radical "à moda antiga", Arturo Illia, simpático médico de província, de Córdova. Será criticado pela lentidão das suas decisões e pela ausência de brilho, mas
consegue pôr fim a trinta anos de estado de sítio e restabelece um Estado de direito que se torna quase insólito. A Argentina volta a ser um país calmo e "democrático",
cujo clima não é nada propício à luta violenta. Masetti, persistindo no seu sonho de combate, não tem em conta a mudança de situação. Entra em território argentino,
instala-se a partir de Outubro na região mais inóspita da província fronteiriça de Salta, perto de Tartagal. E dirige ao novo presidente eleito uma carta aberta,
em tom inflamado, intimando-o a demitir-se. Assina "comandante Segundo", não por referência ao "número um", Ernesto Guevara, autor intelectual da operação, como
se chegou a pensar, mas por identificação simbólica com uma figura de gaúcho muito representativo do povo da Pampa, Dom Segundo Sombra, que o romancista Güiraldes
transformou em arquétipo da argentina rural. Quanto a Guevara, "membro honorário" da guerrilha de Masetti, é baptizado de "Martín Fierro", símbolo do gaúcho rebelde
e sentencioso109. A carta é publicada num folheto peronista de esquerda, Compañero. A minúscula guerrilha compõe-se de uns vinte voluntários jovens, quase todos
provenientes de uma fracção dissidente do Partido Comunista Argentino. Nesse pequeno núcleo, a polícia conseguiu, ao que parece, infiltrar um dos seus agentes.
Em breve o pequeno grupo começa a andar à deriva numa vegetação espinhosa e árida, sem encontrar vivalma, sem contacto com Havana, nem com ninguém: o rádio não funciona.
Os víveres são tão escassos como a água. Alguns vão-se arrastando, não aguentam mais, descobrem a insensatez do projecto, querem desistir. Masetti é intransigente.
O primeiro, quando se dispõe a desertar, é punido com a morte. Tinha vinte anos. Outro, de dezanove

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anos, sofre o mesmo destino por negligências veniais. O desencorajamento alastra. Nesse universo fechado ao ar livre, não conseguindo defrontar-se com um inimigo
tão difícil de encontrar como no Désert des Tartares de Buzzati, os guerrilheiros viram as armas contra si próprios. Peña é o responsável pelo treino militar do
grupo. Está cheio de boa-vontade, mas não prima pela inteligência, a acreditar no que dele dizia o Che: "tão tolo que nem tem a noção do perigo"110. Um dia, encontrando
por acaso um posto avançado da guarda, o cubano dispara e mata um guarda. Será o único confronto dessa guerrilha-fantasma. Os guardas reagem, cercam Peña e o companheiro
e matam-nos. Rojo, que, com Gustavo Roca e outros advogados, se ocupou da defesa de alguns sobreviventes, afirma que, segundo os testemunhos destes últimos, três
membros do grupo morreram de inanição. Outros, roídos pela fome, renderam-se à guarda (que os matará impiedosamente). Dois deles, Méndez e Jouvé, contestarão, na
prisão de Salta, a descrição da sua triste epopeia feita por Rojo, em 1968, em Mi Amigo el Che. Considerá-la-ão "muito exagerada"111. Um cubano, Alberto Castellano,
antigo motorista do Che, consegue salvar-se, afirmando-se peruano. Quanto a Masetti, o seu fim permanece envolto em mistério. Ao que parece, mergulha no inferno
de matagal e de animais selvagens dessa região perdida do Norte da Argentina. A floresta engoliu-o. Nunca mais se ouviu falar dele. Morte de um guerrilheiro sem
guerrilha!

Um lobby anti-Che

Um editorial do jornal comunista de Havana, Hoy, assinala orgulhosamente, a 9 de Dezembro de 1962, que, durante a crise dos mísseis, muitas fábricas não só conseguiram
manter como ultrapassaram os seus planos de produção, tendo até desaparecido os problemas de baixo rendimento e de absentismo, quando um terço ou até metade do seu
pessoal fora mobilizado para a defesa do país. Trata-se, evidentemente, do "aumento de adrenalina" que o doutor Guevara julgava necessário para espevitar a participação
popular e fazer arrancar a economia nacional. Um remédio deste tipo deve ser manejado com precaução. Erguer-se, com mísseis, contra o inimigo não pode constituir
senão uma terapia excepcional para um mal económico endémico, o do subdesenvolvimento. O que o ministro da Indústria pretende, para tirar Cuba da sua situação neo-colonial,
é poder fabricar no país o essencial daquilo que ele necessita, em vez de o importar pagando em preciosas divisas. Mais fácil dizer do que fazer.
Em Janeiro de 1963, Anne Philipe, viúva do actor Gérard Philipe, dá conta, no Le Monde, de uma longa conversa em que o Che lhe explicara que "os quatro anos actuais"
(1959-1962) constituíram apenas "o período probatório do desenvolvimento industrial; só depois começará a verdadeira industrialização". Pegando num charuto, faz,
perante a interlocutora, uma demonstração

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figurada da dependência económica: "Tira o primeiro invólucro: importação; em seguida o segundo invólucro: importação; separa as folhas de tabaco e explica-me que
se utiliza um produto para as fazer aderir umas às outras: importação. Aí tem, diz ele, tudo isto para um produto tipicamente cubano. Acende-o e conserva o fósforo
na mão: importação; o produto químico de onde sai a chama: importação; a lixa: importação; a cola para a fixar à caixa: importação! Está a ver os problemas que esta
pequena caixa de fósforos coloca..."112
O drama, para o nosso fumador de charutos, é que ele parece não se dar conta de que a solução desses problemas é quase uma missão impossível, pois exige a industrialização
acelerada de um país que assenta numa tranquila monocultura de dependência, com uma infra-estrutura industrial quase inexistente. A mão-de-obra, num estilo de vida
"tropical", habituou-se a um certo langor provocado pelo clima, e o seu nível de formação não ultrapassa, em média, o do ensino primário. O que explica que, apesar
de todos os apelos à produção e à mobilização operária, os directores de sectores "consolidados", falem constantemente em falhas recorrentes, nas reuniões bimestrais:
falta de quadros especializados, incoerência no abastecimento de matérias-primas, absentismo, burocracia, dados estatísticos fantasistas, autoritarismo ligado a
uma centralização excessiva e mesmo uma certa anarquia... Guevara não é poupado: censuram-lhe o seu temperamento exaltado e a brusquidão de algumas decisões demasiado
severas. Durante a sessão de 10 de Março de
1962, ele próprio refere os rumores que circulam a seu respeito: "Há aqui um papão terrível, que é o Che; é o tipo que te manda para Guanahacabibes, que castiga,
que fuzila, que se imiscui em tudo"113.
E isto é só uma caricatura. Porque é verdade que tem grandes ataques de fúria e que as suas descomposturas são temidas. Sempre que se trata de faltas em relação
à moral do trabalho, a sua intransigência leva-o a criticar o culpado chamando-lhe todos os nomes possíveis. Às vezes não tem outro recurso senão o de se citar a
si próprio como exemplo. Utiliza então o "nós", tão desagradável, do discurso oficial, não tanto para dissimular como para evitar, talvez por modéstia, de ter o
ar de se gabar dizendo "eu": "Quando dissemos que íamos fazer um certo número de coisas de ordem ética, fizemo-lo, e retirámos daí um certo prestígio", declara ele114.
Um ano depois (reunião de 10 de Agosto de 1963), a questão volta a surgir por ocasião de uma discussão com um compañero chamado Edison que criticava os colegas na
sala por se comportarem "como um rebanho de carneiros" diante do ministro. O ministro em causa protesta: "Sempre defendi a liberdade de dizer de mim o que quisessem.
Pouco me importa, desde que façam o vosso trabalho". Mas admite que o seu feitio apresenta algumas "falhas". "Sempre as reconheci, mesmo em Conselho de Ministros.
Tenho um carácter explosivo. É um defeito que tenho vindo a corrigir com a Revolução, mas não é fácil"115. Quando verifica, numa determinada fábrica, que a negligência
é flagrante, que ninguém leva as coisas a peito, "explode" realmente, considera esse comportamento escandaloso. "Porque é que eu me apercebo disso e vocês não? Porque
é que,

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perante este estado de coisas, não há todos os dias vinte, sessenta, cem Che a indignar-se e a protestar?"116 E declara ao francês David Rousset: "O Partido que
queremos construir será o Partido do Sacrifício"117.
Há uma palavra que surge como um leitmotiv nas suas intervenções, nos seus artigos, nas suas conversas televisivas para a universidade popular, nas suas discussões
com os directores de fábricas e com o pessoal em geral, uma palavra-chave que não desperta o entusiasmo: a palavra "sacrifício". Incansavelmente, insiste na ideia
de o socialismo só se construir à custa de sacrifícios, de a Revolução precisar do sacrifício de cada um, de ninguém se poder esquivar. Seria possível, evidentemente,
especular em termos metafísicos sobre a importância desse conceito para um asmático que pressente a morte por asfixia a cada crise, ou sobre a dimensão mística dessa
necessidade de se ultrapassar. Mas o seu discurso evoca não tanto o sacrifício supremo mas sim a necessidade de cada um renunciar a uma parte dos prazeres da vida
para que sejam repartidas por todos, com equidade, as dificuldades inevitáveis da passagem ao socialismo. Os dirigentes, é claro, devem ser exemplares. Não se trata
de fazer parte de uma Nomenklatura, tal como ela foi mais tarde descoberta, entre os soviéticos. Está fora de causa, no seu caso, por exemplo, trazer das suas viagens
os brinquedos que privilegiariam os seus filhos em relação aos outros, ou permitir que Aleida utilize o carro de serviço para fazer compras. Na nova vivenda que
lhe foi atribuída no bairro sossegado e burguês de Nuevo Vedado, a mobília é escassa, o conforto espartano. Os livros estão colocados no chão, em cima dos ladrilhos,
ao longo das paredes nuas.
Quando, em 1964, os estudantes da universidade de Havana têm o mau gosto de lhe propor uma remuneração para ele ir fazer uma conferência, toma a coisa como uma "ofensa
gratuita" e recusa, indignado: "É inconcebível que se ofereça uma recompensa monetária a um membro do governo ou do partido por um trabalho, seja de que natureza
for. A recompensa mais importante para mim é fazer parte do povo cubano. Isso não se contabiliza em pesos"118.
Desde que foi decretado o racionamento, entende que uma certa austeridade deve ser a medida comum, a começar por aqueles que governam o país. Refere, numa reunião
(10 de Março de 1962), as recriminações que vai ouvindo aqui e ali: "Para os chefes da Revolução há um tratamento especial, recebem uma série de presentes, de pequenas
coisas. [...] É assim que se vai criando um divórcio em relação aos problemas do povo. Depois é fácil fazer apelo ao sacrifício dos outros [...]. Ao passo que quando
a barriga não está tão cheia, vê-se que as coisas já não são tão fáceis. É assim que podemos impor-nos com mais autoridade"119.
Duas semanas depois (24 de Março), desta vez em público, na mais importante fábrica têxtil do país, alerta os trabalhadores que foram seleccionados para serem membros
daquilo que veio substituir o ORI, mas que se lhe assemelha muito, o Partido Unido para a Revolução Socialista Cubana (PURSC): "É preciso acabar com a ideia de que
ser eleito membro de uma organização de massas ou do partido dá a mínima ocasião para se ser mais do

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que os outros"120. A sua fama de integridade irrepreensível espalha-se no país. O comandante Guevara é o "Senhor Mãos-Limpas" de Cuba.
A partir de 1962 começa a manifestar-se nas "esferas do poder" uma certa irritação em relação ao Che. Comentários sibilinos, piadas nem sempre muito subtis, relutância
em seguir o seu raciocínio no radicalismo das suas opções vão desenhando uma corrente de opinião ainda informal que, ao longo dos meses, acabará por tomar o aspecto
de um autêntico lobby anti-Che. Nele se revêem todos aqueles que se sentem incomodados pelo comportamento exemplar desse revolucionário demasiado perfeito que acaba
por provocar má consciência, quase que um sentimento de culpa. O jansenismo das suas exigências é considerado demasiado severo, demasiado contrário à "idiossincrasia
nacional". (Na América Latina gostam muito deste termo). Alega-se que o temperamento típico cubano predispõe a população à sensualidade, à música e à festa, à alegria
ruidosa, ao gosto pela vida e pelo farniente. E, quando é mesmo necessário trabalhar, os resultados satisfazem-se com um más o menos, ao qual se opõe decididamente
o rigor guevarista. Nada é dito abertamente. Mas, para os alérgicos aos encantos do Che, não deixa de ser uma maneira de o remeter para a sua "estranheza". Não há
dúvida de que esse Guevara demonstrou uma adesão admirável à nossa causa, uma solidariedade formidável em relação a Cuba, mas a sua cultura não é a nossa, há muitas
coisas que ele não compreende, subtilezas, pulsões que ele não consegue adivinhar.
René Depestre conta, a propósito disto, uma história interessante. "Estávamos em fins de 1962, talvez por altura da crise dos mísseis. Eu morava em Nuevo Vedado,
num casarão que o Che me atribuíra e que eu dividia com o cineasta holandês Joris Ivens que, nessa época, organizava o serviço cinematográfico do exército rebelde.
Joris falava francês, mas espanhol não. De maneira que era eu a traduzir as aulas dele. Vinha gente importante a nossa casa, comandantes. Um dia, recebi a visita
de Efigenio Ameijeiras, um veterano do Granma, chefe da polícia revolucionária, e de René Rodríguez, um veterano de Moncada, figuras que eram já designadas por "combatentes
históricos". No escritório, onde tínhamos colocado uma grande fotografia do Che, eles estacaram, surpreendidos. E, num tom depreciativo, perguntaram-me: O que faz
este aqui? Fiquei estupefacto. Fazerem-me uma pergunta daquelas, e naquele tom! Aquilo deu-me que pensar... A partir desse momento, comecei a notar que a Nomenklatura
cubana já não o apreciava tanto. Parece-me que ao princípio, até 1963, o Che os impressionou. Era muito diferente deles, muito rigoroso. O seu temperamento era diferente.
Gostava da pontualidade. Não são qualidades tropicais da zona das Caraíbas [...]. Mas o povo cubano sim, gostava muito de Guevara"121.
Tudo isso não teria tido muita importância e certamente se dissiparia com o tempo se a situação económica fosse razoável, se as fábricas, compradas de olhos fechados
aos países socialistas, tivessem funcionado. Infelizmente, a desorganização era evidente. Os equipamentos novos não podiam ser utilizados

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por não haver infra-estruturas para eles. Começam a amontoar-se no cais máquinas sofisticadas que o clima tropical e a humidade do mar ameaçam de enferrujamento.
A situação económica nunca esteve tão má como nesse ano de 1963; e é sobretudo Guevara que alguns, tanto no governo como no partido, começam a responsabilizar por
esse caos.

"O socialismo económico sem moral comunista não me interessa"

Nem tudo é culpa do Ministério da Indústria, longe disso. Mas há que reconhecer que ele tem alguma responsabilidade nisso. A sua teimosia em querer centralizar o
conjunto do sector industrial, ainda mais do que nos países socialistas, provinha de uma lógica teórica: quanto mais centralizado fosse o sistema, mais fácil seria
geri-lo a partir de uma única torre de controlo. No boletim interno do Ministério (Março de 1963), Guevara explica: "Somos um pequeno país, com boas comunicações,
terrestres, aéreas, telefónicas, radiofónicas, o que permite um controlo contínuo, diário. E acrescenta: "Havemos de conseguir que a gestão administrativa se transforme
num perfeito maquinismo de relojoaria."122 [!] Mas a realidade cubana não se deixa controlar com tanta facilidade quanto se supunha, e o mecanismo de relojoaria
está constantemente a gripar. Como vimos, os sectores "consolidados" não param de lançar mensagens de alerta e de assinalar distorções a todos os níveis. Chamado
em socorro por Fidel Castro, o agrónomo René Dumont declara de imediato: "Só mesmo um economista de gabinete, sem qualquer noção prática de gestão de uma empresa
industrial pode pensar ser possível atingir, sobretudo através de gestão telefónica, a "perfeição do cronómetro"". E, para corroborar esta opinião, cita uma frase
de Castro, extraída de um discurso de 10 de Abril de 1963: "Antes de mais, apoiarmo-nos na realidade, nunca a esquecer. Não viver nas nuvens"123.
Terá o Che dirigido as grandes linhas da industrialização de Cuba do alto de uma nuvem? Seria injusto afirmá-lo de forma tão categórica. Contudo, talvez ele tenha
negligenciado as realidades do possível, as do meio-termo, fixando o olhar ou muito longe ou muito perto. O longo prazo é, disse ele, "o estabelecimento definitivo
do comunismo, a sociedade perfeita"124. O curto prazo são as questões permanentes que o solicitam constantemente e às quais ele tem a fraqueza de dar resposta, com
aquele espírito guerrilheiro que nunca o abandonou. Perde um tempo precioso, segundo as suas próprias palavras, a "tapar buracos" ou a "apagar fogos". Lamenta que
assim seja, mas não consegue corrigir-se. Chega ao ponto de fazer questionários aos directores de fábrica (reunião de 9 de Março de 1963) com "proibição de copiar
pelo vizinho!" Estes expedientes de mestre-escola são pouco propícios à elaboração, pelo ministro e respectiva equipa, do vasto Plan perspectivo - o plano•quadro
que nunca mais aparece e toda a gente aguarda, porquanto deve

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determinar as prioridades, indicar o que se vai produzir, fixar finalmente a política industrial do país. O ano de 1962, suposto ser o da planificação acabou por
ser o da desorganização industrial. Incapaz de controlar eficazmente o funcionamento das fábricas, a ultra centralização conduz a um misto de anarquia na base e
de "organizacionismo" formal, no qual os preguiçosos encontram terreno para se protegerem atrás das instruções múltiplas e contraditórias vindas de "cima". "A garantia
de um salário diário, qualquer que seja o trabalho prestado, conduziu ao desleixo da disciplina do trabalho. Sobretudo com a sensação, a partir de agora dominante,
de, por pouco que se faça, nunca se ser despedido, [...] exemplo desastroso", observa ainda Dumont125.
Talvez se imponha uma revisão profunda? Talvez seja necessário repensar a prioridade atribuída à indústria, num país de tradição agrícola? A parada é forte, pois
põe em causa todo o combate pela independência nacional. Todavia, é Guevara, conhecido pelas suas posições "antiaçúcar", que parece ter sido um dos primeiros a admitir
que, uma vez que são necessárias divisas para comprar as matérias-primas para as fábricas, mais vale reabilitar a fonte de divisas mais segura: o açúcar, símbolo
de todas as servidões. A 19 de Dezembro de 1962, num discurso aos trabalhadores que vão fazer a safra de 1963 (que será a mais fraca em trinta anos: 3,8 milhões
de toneladas), o Che faz uma auto-crítica geral que anuncia a mudança de tendência: "Qual foi a primeira reacção da Revolução? Afastar-se do "espírito açucareiro",
que significava a escravidão da cana-deaçúcar. Era uma atitude lógica [...] mas [que] não era justa nem lúcida. [...] Vivíamos um período de desarticulação total
entre a indústria e a agricultura. [...] Ora, Cuba ainda hoje depende, para o seu desenvolvimento, de uma produção de açúcar eficaz. [...] Não podemos esquecer que
é a nossa primeira indústria. Temos de manter a nossa especialização na cana-de-açúcar"126.
Este importante discurso, muito pouco conhecido e nunca traduzido, só foi publicado na edição "confidencial" de 1966, El Che en la Revolución Cubana (tomo IV). Ele
revela que Guevara anticipa o que Castro anunciará seis meses depois (27 de Junho de 1963) perante os mesmos operários do açúcar, após a lastimável zafra, proclamando
"a importância vital do açúcar para o nosso país" e lembrando que "o açúcar é a base da nossa economia, ele é indispensável"127. Como sempre, a cronologia é importante,
pois esta reviravolta "histórica" na estrutura geral da economia cubana poderia levar a crer que o "regresso ao açúcar" significa, ipso facto, uma condenação de
Guevara por parte de Castro. Muitos observadores fizeram essa interpretação.
Ricardo Rojo conta que Guevara lhe teria dito (em Fevereiro-Março de
1963): "Uma Cuba agrícola, uma Cuba de novo "açucareiro do mundo" poria em causa a própria sobrevivência do socialismo. Além disso, Cuba ficaria tão enfraquecida
no plano internacional que passaria a depender inteiramente da protecção soviética. Não fizemos a Revolução para chegar a esse ponto"128. Conversas privadas, talvez
verosímeis, mas que nenhum texto posterior vem confirmar. Se Castro não associa Guevara aos acordos que vai firmar com a URSS não é, ao que parece, por desconfiar
dele ou por o querer afastar.

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É sobretudo porque o Líder Máximo não deseja ter nenhuma personalidade importante perto de si na sua primeira viagem a um país socialista. Nada nem ninguém que possa
fazer-lhe sombra.
"Após a crise dos mísseis, Fidel Castro ficara vários meses sem conseguir acalmar-se com a "traição" de Kruchtchev; depois acabou por aceitar o convite de Moscovo.
Os soviéticos estão conscientes que devem desculpar-se por um comportamento desairoso em relação a Cuba, ferida na sua "dignidade". Por outro lado, mostrar que ajudam
a pequena ilha revolucionária é um argumento contra os chineses, que os criticam violentamente pelo seu reformismo, pelo seu revisionismo, pela pusilanimidade que
se esconde por detrás do seu lema de "coexistência pacífica".
Quando o Le Monde de 22 de Março de 1963 publica a entrevista de sete horas concedida a Claude Julien, na qual Castro afirma que foi a URSS que propôs os mísseis,
que Kruchtchev não devia tê-los retirado sem o consultar, que "nós não somos um satélite" e que "ninguém tem o direito de dispor da soberania cubana", Moscovo mostra-se
ainda mais solícita para com o dirigente cubano. Ao fim de quarenta dias de digressão triunfal (Abril-Maio de
1963), o primeiro-ministro da ilha do açúcar regressa com o compromisso dos soviéticos de comprarem uma quota de açúcar que garanta a sobrevivência económica da
ilha e de fornecerem, para a próxima zafra, máquinas de cortar cana que permitam melhorar o rendimento. Deste modo, o objectivo industrial que Guevara anunciara
passa para segunda prioridade. Desvanece-se assim o sonho da indústria pesada, uma panaceia. Já só se fala em desenvolvimento "agro-industrial". Assim, o Ministério
da Indústria, peça-chave do sistema económico, perde grande parte da sua importância. Mas isso não implica que Guevara, o primeiro a defender essa opção, seja marginalizado.
Pelo menos por enquanto.
De facto, seja qual for o objectivo económico considerado prioritário, há meses que o Che está mergulhado numa reflexão de fundo, que abala o homem intelectual que,
no fundo, ele é. Põe em causa a filosofia geral da acção política a conduzir, tenta encontrar o fundamento humanista do marxismo. Interroga-se sobre a atitude do
homem perante o trabalho, sobre o fundamento das relações mercantis numa economia socializada no seio de um sistema de trocas entre países socialistas, O debate
radical que irá animar cobre os anos de 1963 e
1964, antes de estalar de forma polémica em 1965. E provocar a ruptura.
Para já, Guevara redobra de interesse tudo o que, no plano internacional, permite reforçar a frente anti-imperialista. A 14 de Junho de 1963, no dia em que faz trinta
e cinco anos, nasce o seu quarto filho - terceiro para Aleida. É uma menina. Chama-lhe Célia, como a mãe de Ernesto, tão próxima desse filho adorado. "Quis dar-lhe
esse presente de aniversário. Pedi que me fizessem uma cesariana nesse dia", diz Aleida129. Mas o pai mal tem tempo de pegar na filha. O tempo urge, como sempre.
Corre de reuniões para conferências nas fábricas com problemas e, ao domingo, participa nos trabalhos voluntários. Há documentos filmados que no-lo mostram a rebobinar
fios

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numa fábrica têxtil, ou então numa fábrica de moagem, a transportar sacos de farinha. Quando chega a época da zafra, vemo-lo a cortar cana com um machete, mas também
a guiar as primeiras máquinas cubano-soviéticas que irão substituir em parte a mão-de-obra nesse esforço esgotante (quando não avariam). Gutelman recorda-se dos
domingos de trabalho voluntário: "Havia uma forte pressão social para que todos participassem na zafra. Partíamos de madrugada, em camiões russos de três toneladas
e meia, com bandeiras vermelhas e cubanas ao vento. A jornada de trabalho era longa. Era penoso, o sol escaldava. Às vezes, alguns não se empenhavam muito. Quando
o Che, inalando o seu remédio para a asma, se apercebia disso, não encontrava melhor castigo que obrigar os molengões a permanecer sentados à beira da estrada a
ver os outros trabalhar. Era a vergonha"130. Em Fevereiro de 1963, na província Ciego de Ávila, Guevara faz quinze dias consecutivos de trabalho voluntário para
a zafra. Uma proeza.
Nas fotografias, aparece de tronco nu, peito inchado, o rosto enegrecido pela fuligem (porque muitas vezes queima-se a cana antes de a cortar). Com o tradicional
chapéu de palha dos macheteros, parece ter engordado bastante, mas é ilusório: o corpo está inchado pela cortisona que toma contra a asma (sem resultado). Esta imagem
exemplar de um ministro a trabalhar no campo ilustrará mais tarde as notas de três pesos.
Em Julho de 1963, "de uma forma inopinada", como afirmará no regresso, pedem-lhe para ir representar Cuba nas cerimónias do primeiro aniversário da independência
argelina. "Em Cuba, as viagens eram já um sinal de desgraça", observa Carlos Franqui que, tentando organizar uma exposição fotográfica sobre Cuba, encontra o ministro
em Argel131. Mas para o Che essa viagem é uma alegria. Mais tarde dirá como ficou seduzido por essa Argélia de clima quente e seco, que sem dúvida lhe recorda a
vegetação e os aromas da Serra de Córdova da sua infância. Além disso, trata-se de um país que, após sete anos de uma intensa guerra de guerrilha, conseguiu vergar
o colonialismo francês, o que é significativo. Fala francês com os seus interlocutores e confirma energicamente a solidariedade total de Cuba, já manifestada aos
emissários da FLN e ao próprio Ben Bella. Tendo chegado a 4 de Julho para uma estadia de quatro dias, acabará por permanecer três semanas. Jean Daniel, enviado do
UExpress a Argel, far-lhe-á uma entrevista memorável, publicada a 25 de Julho de 1963. Observa que se Guevara considera apaixonante "esse país onde tudo, até mesmo
o caos, é revolucionário", os argelinos também o aceitaram com o mesmo entusiasmo. "Pude comprová-lo num estádio de futebol, onde os argelinos jogavam, contra os
egípcios, a sua honra, a sua imagem, o seu direito de reintegrar a família árabe. [...] Nessa altura, vinte mil argelinos conseguiram distrair-se, arrancar-se à
sua mais intensa paixão, para aclamarem Guevara. Ele ficou extremamente comovido"132.
Mas, mais importante ainda que esse fervor popular demonstrativo que o Che começa a tornar-se uma figura lendária, são as declarações do argentino-cubano ao jornalista
francês. Quando Daniel o interroga sobre as dificuldades

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provocadas pelo bloqueio dos Estados Unidos e sobre a questão das quintas do Estado, que se arriscam a transformar os camponeses em funcionários, o comandante reage
como economista e filósofo político: "As nossas dificuldades provêm sobretudo dos nossos erros. O que mais danos nos trouxe foi a subexploração da cana-de-açúcar".
Quanto à questão do comportamento dos trabalhadores nas quintas do Estado, a resposta - enunciada num "tom de Saitl-Just", como indica o jornalista - merece ser
transcrita na íntegra, pois resume o que pode já ser considerado como a sua doutrina: "Para mim, o socialismo económico sem a moral comunista não me interessa. Lutamos
contra a miséria, mas também contra a alienação. Um dos objectivos fundamentais do marxismo é acabar não só com o lucro mas também com a mais-valia, o factor "mais-valia
individual"; Marx preocupava-se com os factos económicos mas também com a sua tradução no espírito. Chamava a isso "factos de consciência". Se o comunismo negligenciar
os "factos de consciência", pode tornar-se num método de repartição da produção, mas deixa de ser uma moral revolucionária. Aliás, se se trata de produzir mais ou
até de comer melhor, então os capitalistas são melhores do que nós. Basta deixá-los agir"133. Jean Daniel observa: "Guevara dizia-me aquilo numa altura em que o
comunismo soviético, pela voz dos seus dirigentes, se gabava de bater o imperialismo no terreno da produção. [...] O marxismo de Guevara era exactamente aquele que
Gide sonhara em 1936 e que não encontrara na URSS"134.
Os argelinos acarinham bastante esse dirigente cubano tão ardente, tão brilhante nas suas explicações sobre os obstáculos a evitar quando uma revolução triunfa.
Ben Bella só será eleito para a presidência em Outubro, mas é já a primeira figura do Estado. Conversa por várias vezes com o Che, e põe à sua disposição a sua assistente
pessoal, Miriam Merzouga, uma militante de 26 anos, fresca e sedutora. Também ela fala do "olhar extraordinário" do Che, do seu aspecto juvenil, e reconhece que
poderia ter existido uma amizade amorosa entre ambos, mas que nunca passou do estádio de brincadeira: "Sinto-me com alma de muçulmano, porque sou polígamo e penso
ser possível amar várias mulheres ao mesmo tempo", dizia-lhe ele135.
Guevara percorre a Cabília, visita a willaya onde se instalara o estado-maior, vai a Orão, assiste à desminagem da fronteira com Marrocos por técnicos vindos dos
países socialistas. Nessa fronteira vai estalar em breve um conflito entre argelinos e marroquinos. Chamada a intervir, Cuba virá em socorro de Argel e enviará prontamente
um cargueiro transportando, além de açúcar, evidentemente, vinte e dois tanques, artilharia pesada e ligeira, bem como um batalhão - várias centenas de homens -
chefiado por Ameijeiras, o tal que troçava do Che em casa de Depestre. Entre eles, o guajiro Dariel Alarcón, descoberto na Sierra Maestra. A sua trajectória confundir-se-á
com a do Che nos próximos anos. Os cubanos infringiram alegremente a directiva dos soviéticos de não colocarem ao serviço de um país terceiro esse sofisticado material
blindado, dotado de raios infravermelhos, permitindo operar de noite. O conflito com Marrocos será rapidamente resolvido e os Argelinos,

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como agradecimento reenviarão o navio carregado de produtos locais oferecidos a Cuba e, como brinde, alguns cavalos árabes.
Com o primeiro embaixador na Argélia, Jorge Serguera, aliás Papito, o Che disputa algumas partidas de xadrez, tal como fazia em Havana. Ambos adoram esse jogo. Quase
sempre é Papito que ganha. Apesar da sua inteligência, Guevara é pouco flexível; nunca tem tempo de estudar convenientemente as estratégias dos grandes mestres.
Serguera é uma figura simpática e sagaz, tendo compreendido cedo que a sua missão ia mais além do que se espera de um simples embaixador. Tem acesso aos dirigentes
da nova Argélia e conhece já bastante gente. Deixa-se cortejar por alguns jovens franceses de esquerda, que vieram da antiga metrópole travar junto das juventudes
da FLN a luta pela independência. Dois deles - Tiennot Grumbach e Jean-Paul Ribes, ambos com vinte e quatro anos - serão contratados por Guevara para traduzir uma
comunicação que tem de fazer. (Como paga, ganharão uma estadia de duas semanas em Cuba). A Serguera, o Che confia uma missão delicada, provando que não esqueceu
a sua Argentina, na qual Masetti irá lançar-se na aventura já referida. Pede ao embaixador para entregar uma carta pessoal ao general Perón, refugiado em Madrid.
Sugere ao presidente deposto, mas ainda popular no seu país, que saia de Espanha, onde Franco dita a lei, e se instale na Argélia, pronta a acolhê-lo, ou em Cuba,
que lhe estende os braços. A mensagem é acompanhada de uma quantia de cem mil dólares, oferecida pela Revolução Cubana. Perón arrecada os dólares, mas continua a
viver em Madrid. O franquismo não o incomoda absolutamente nada.
No seu regresso a Cuba - troca de cortesias - Guevara traz consigo, para assistir aos festejos do 26 de Julho, o enigmático chefe das forças armadas, Huari Bumediene,
de olhar glacial, que o próprio Castro não consegue animar. Antes, a 16 de Julho de 1963, num seminário sobre a planificação, o Che fez, em Argel, uma intervenção
que é mais ou menos o discurso oposto de Punta del Este. Alice cai da cama, desperta do seu sonho no "continente das maravilhas". Já não se trata de delinear um
país onírico onde tudo correrá pelo melhor graças ao apoio dos Estados socialistas. Esse discurso justificava-se perante os representantes dos Estados Unidos e os
seus aliados da OEA. Agora, entre amigos, pode confessar-se a verdade: "Fizemos duas coisas contraditórias: copiar as técnicas de planificação de um país irmão cujos
especialistas tinham vindo ajudar-nos, conservando a espontaneidade e a ausência de análise em decisões políticas que tinham implicações económicas. Em vez de nos
apoiarmos nas estatísticas e na experiência histórica, tratámos a natureza com subjectividade, como se, falando com ela, pudéssemos convencê-la [...] Se voltássemos
atrás, a socialização dos meios de produção seria feita de acordo com as disponibilidades dos quadros [técnicos] e de acordo com a organização geral do aparelho
de Estado. Traçaríamos um plano flexível com abundantes reservas para os imprevistos". Bela autocrítica, mas que não impede o arrependido

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de entoar, em conclusão, um hino prudente à planificação, "centro político de toda a acção" e libertadora do povo que poderá assim "consagrar o seu tempo ao estudo,
ao aperfeiçoamento cultural, a tudo o que torna a vida digna de ser vivida"136.

"É preciso transformar o Homem"

Em 1963, quinto ano da Revolução, as luzes da festa ainda não se extinguiram porque o temperamento nacional é de um optimismo danado, porque o entusiasmo por uma
sociedade nova continua vivo e porque a música e o riso parecem ser consubstanciais a esse país. As dificuldades do momento são atribuídas unicamente ao imperialismo,
sem se pensar que o governo possa ter a sua parte de responsabilidade.
Contudo, na vida quotidiana começam a surgir sinais exteriores da degradação provocada pelo bloqueio dos Estados Unidos. Por falta de tinta, produto importado que
se torna raro, as fachadas alegres das casas começam a descascar-se com a humidade do clima e do mar. O parque automóvel não foi renovado e, em Havana, a paisagem
da rua transformou-se: os carros americanos, cheios de cromados, continuam a circular, mas vão acusando a idade. Parecem veículos do Terceiro Mundo: carroçarias
amolgadas, remendadas, pintadas aos bocados. Os transportes públicos, chamados guaguas, arrastam-se guinchando, puxados por motores velhos. "Tentámos colocar motores
soviéticos nos autocarros da General Motors", explica Regino Boti, ministro da Economia, a K. S. Karol. "Inútil. Era preciso também mudar as caixas de velocidade
automáticas, que pura e simplesmente não existiam na URSS"137. Daí o recurso à imaginação e ao desenbaraço. No campo, os tractores norte-americanos só funcionam
graças ao contigente dos que, avariados, servem para fornecer peças sobresselentes.
O racionamento passou a fazer parte do quotidiano, mas muitos economistas observaram que a dieta alimentar, seguindo toda a gente o mesmo regime, continuava ainda
superior à que uma certa categoria de pessoas se podia permitir na época de Batista. Logo que chega um fornecimento, o povo habitua-se a fazer bicha diante de lojas
quase vazias e, como sempre sucede em situações de escassez, surge um mercado negro discreto, ligado a múltiplos esquemas. Observador das coisas da vida, o jornalista
García Márquez nota que "o país produzia nessa altura calçado suficiente para que cada habitante pudesse comprar um par de sapatos por ano, de forma que a distribuição
foi canalizada através das escolas e dos centros de trabalho"138. Mas Carlos Franqui, mais crítico, retoma esse mesmo exemplo dos sapatos para mostrar a incoerência
da política, excessivamente centralizadora, de Guevara: o consolidado do calçado, instalado no Ministério da Indústria, nacionalizou não só as fábricas mas também
os pequenos sapateiros. De forma que é necessário enviar os sapatos usados para a capital provincial para pôr meias-solas,

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fazendo com que levem meses para voltar, quando não se perdem pelo caminho139.
A um correspondente esclarecido, José Medero Mestre, que lhe escreve fazendo sem dúvida o elogio dos métodos socialistas de administração das fábricas (não conhecemos
o texto da carta), Guevara responde, mais ácido que nunca: "Opor a ineficácia capitalista à eficácia socialista na gestão das fábricas é tomar os desejos por realidade".
Mas acrescenta, e, desta vez é ele que manifesta a sua cegueira: "É na distribuição que o socialismo apresenta vantagens incontestáveis, é na planificação centralizada
que ele pode eliminar os inconvenientes [...] do capitalismo"140. E prossegue falando de um tema que o toca mais do que qualquer outro: é preciso substituir o "homem-lobo"
por um outro tipo de homem que já não sentirá "o impulso desesperado de roubar o seu semelhante, visto que a exploração do homem pelo homem terá desaparecido. [...]
[Se] a alavanca do interesse material se tornar o árbitro do bem-estar do indivíduo ou da pequena colectividade (a fábrica, por exemplo), é aí que eu vejo a raiz
do mal. Vencer o capitalismo com os seus próprios fetiches, aos quais se terá retirado a sua virtude mágica mais eficaz, o lucro, parece-me uma tarefa difícil"141.
Esta carta data de 26 de Fevereiro de 1964. Nesta fase da vida, depois de cinco anos de "gestão" da Revolução, chegado a este ponto de uma reflexão filosófica e
política que há anos o atormenta por a considerar essencial, o camarada Guevara pede-nos que sigamos atentamente uma pequena aula de economia política, elementar
mas essencial. Sem o que, de facto, se torna impossível compreender o significado da sua posição, nem porque motivo, coerente consigo mesmo, vai decidir-se em breve
a tomar a atitude que o levará a sair de Cuba.
Ele disse-o e repetiu-o, e explicitou-o ainda, com argumentação abundante, num artigo da revista do seu Ministério, Nuestra Industria, em Fevereiro de 1964, sobre
um tema aparentemente técnico, "O sistema orçamental de financiamento": o objectivo último é o comunismo, que não surgirá apenas através do jogo das contradições
de classe, tão bem descrito por Marx, mas também - ele teria tendência a dizer sobretudo - graças à acção revolucionária consciente dos homens (o sublinhado é de
Guevara). Ele acredita na marcha da história e na aceleração que os homens podem dar a essa história. Antes de alcançar esse Graal, horizonte longínquo, existe contudo
uma fase de transição do capitalismo para o socialismo, durante a qual dois métodos se opõem no que respeita à lei do valor.
O que é a lei do valor? E o fenómeno económico, mais complexo do que parece, que engloba moeda, preço, comércio, crédito, etc., e que atribui a cada coisa um "valor"
mercantil. Os soviéticos partem do princípio que a lei do valor só desaparecerá na fase superior do comunismo. Entretanto, é possível avaliar a produção de uma determinada
fábrica e compará-la com a de uma outra fábrica. Cada centro de produção tem uma rentabilidade separada. O sistema, que assenta, numa planificação geral, implica
que, para incitar a produzir

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mais e melhor, é legítimo levar os trabalhadores a empenharem-se mais no trabalho propondo-lhes prémios, aumentos de salários, estímulos materiais.
Guevara (e outros economistas da sua equipa) recusa esse procedimento que, segundo ele, desvirtua o sentido da luta dos trabalhadores para se libertarem das antigas
categorias legadas pela sociedade capitalista. Partidário resoluto de uma planificação total e centralizada da economia, afirma que a lei do valor não pode aplicar-se
numa economia socializada em que o Estado já só é concebido como uma única grande empresa, no seio da qual não tem cabimento existir lucro, uma vez que tudo pertence
à comunidade nacional. Assim, deixa de ser legítimo recorrer a estímulos materiais para aumentar ou melhorar a produção. "Não negamos a necessidade objectiva do
estímulo material", escreve Guevara, que admite continuar a ser, infelizmente, necessário recorrer a ele durante um certo tempo. "Mas discordamos quando se trata
de o utilizar como alavanca essencial [pois] acaba por impor a sua própria força às relações entre os homens. Convém não esquecer que ele vem do capitalismo e está
condenado a desaparecer com o socialismo. [...] Lutamos contra o seu predomínio, pois ele equivaleria ao recuo do desenvolvimento da moral socialista"142. Eis, de
novo, a palavra "moral"; moral que, na sua entrevista ao L'Express, o Che dizia que, sem ela, o socialismo económico não lhe interessava.
Reintegrando a ética na reflexão política, introduzindo-a no interior do mecanismo das trocas, o nosso moralista põe em causa não só as relações entre as empresas
estatizadas e o próprio Estado, mas também a filosofia das trocas entre Estados socialistas. Tal como não pode haver lucro nas trocas entre dois sectores industriais,
servindo ambos o interesse comum do país, também, no plano internacional, não é concebível que, nas suas transacções, um país socialista obtenha lucros à custa de
outro país socialista ou "em transição para o socialismo". Deve apenas ser aplicada a regra de uma solidariedade desinteressada, visto que, no fundo, é o campo socialista
no seu conjunto que vai sair reforçado.
"Defendemos a necessidade de esse comércio passar a formas mais elevadas", diz Guevara. Delicado eufemismo, quando se compreende ser às potências socialistas que
ele se dirige. "É preciso encontrar formas de comércio que permitam o financiamento dos investimentos industriais nos países em vias de desenvolvimento, mesmo transgredindo
os sistemas dos preços existentes no mercado capitalista, o que permitirá um progresso mais igualitário em todo o campo socialista, atenuará as dificuldades e dará
uma coesão ao espírito do internacionalismo proletário"143, insiste ele. Como estas coisas são ditas em termos delicados! Trata-se, nada mais, nada menos, do que
a definição de uma nova ordem internacional que regule, com uma generosidade "proletária", as relações entre países socialistas ricos e países socialistas pobres.
Quanto às "dificuldades", não é preciso ser muito sagaz para Adivinhar que elas existem de facto nas trocas de Cuba com os seus aliados de Leste, a começar pela
URSS.

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Guevara condena, portanto, as relações mercantis no seio do mundo socialista. A "atitude nova" que ele exige a cada indivíduo é de recusar todo o estímulo material
e obedecer apenas aos incitamentos de ordem moral ao serviço do bem geral. Ao dirigir-se a operários convidados a tornarem-se membros do partido (25 de Março de
1963), o próprio Che conta uma história, que considera "contra-revolucionária", mas que, segundo ele, revela bem o caminho ainda por percorrer para surgir em Cuba
esse "homem novo" que ele tanto procura. Explica-se a um candidato ao partido quais são os deveres de um bom comunista: fazer horas extraordinárias, dar bom exemplo,
passar o tempo a estudar, fazer trabalho voluntário ao domingo, esquecer a vaidade, só pensar em trabalhar, participar em todos os movimentos de massas, etc. Por
fim perguntam-lhe se está disposto a dar a vida pela Revolução. E o homem responde: "Bom, se a vida que tenho para viver é como vocês a descrevem, de que me serve
viver? Ofereço-a de bom grado"144. Perante a risota na sala, Guevara sublinha que a anedota exprime "a concepção antiga", ao passo que o trabalho, pelo contrário,
não deveria representar um dever imposto, um sacrifício, mas corresponder a um impulso consciente da vontade. "É não fazer sacrifício que, para um revolucionário,
deve representar o verdadeiro sacrifício"145. Insiste neste ponto obsessivamente.
Num fundo de ética laica, correspondendo unicamente a estímulos morais, vemos perfilar-se essa nova categoria humana que irá garantir a redenção revolucionária.
Compreende-se que essa perspectiva, considerada idealista, tenha provocado algum atrito entre os cépticos. Porque, para além das questões por vezes bizantinas sobre
o valor mercantil na fase de transição para o socialismo, é um verdadeiro debate sobre a natureza e a estrutura do poder político que o Che inaugura. Condenando
o estímulo material e a exaltação do individualismo egoísta que ele acarreta, situa-se no oposto do modelo soviético de organização da sociedade: um tal modelo,
rígido, não permitiria que o homem novo surgisse e ainda menos que pudesse intervir nas decisões. Além disso, a questão dos modelos de construção do socialismo constitui
a pedra de toque do conflito sino-soviético.
Apesar de declarar que Cuba permanece neutra nesse conflito, Guevara destaca o lugar fundamental que atribui ao homem, "liberto das cadeias da alienação", na transformação
das estruturas, o que é, ao fim e ao cabo, uma forma de tomar posição. "É necessário acentuar a sua posição consciente, individual e colectiva, em todos os mecanismos
de direcção e produção", escreve ele num texto-chave, um tanto genérico mas importante, Le Socialisme et l'Homme à Cuba. "Se insistirmos na quimera de instaurar
o socialismo através das armas envenenadas que o capitalismo nos legou (a mercadoria tomada como unidade económica, a rentabilidade, o lucro individual como estímulo,
a mais-valia, etc.), arriscamo-nos a chegar a um impasse. [...] Para construir o comunismo, é necessário transformar o homem e, ao mesmo tempo, a base económica"146.

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Há aqui uma carga de dinamite, que explica que o debate tenha sido agitado, mesmo que apenas nos bastidores, e dissimulado sob a capa de questões de ordem aparentemente
técnica e rodeadas de uma terminologia rebarbativa, apoiada em citações dos oráculos: Marx, Engels, Lénine, Estaline (ainda presente, apesar do descrédito do relatório
Kruchtchev). Impertinente, Guevara chegará mesmo a citar Trotsky.
O primeiro a reagir é o jovem comandante Alberto Mora, ministro do Comércio Externo, que, numa revista editada pelo seu próprio Ministério exprime posições próximas
das do antigo Partido Comunista Cubano. Segundo ele, Cuba não pode negar a lei do valor, sobretudo quando ela se aplica às suas transacções com o exterior. Lealmente,
Guevara transcreve o artigo de Mora no Nuestra Industria de Outubro de 1963 e responde. Intervêm em seguida alguns "peritos" europeus. O professor francês Charles
Bettelheim, marxista ortodoxo, especialista da planificação socialista, afirma, na revista Cuba Socialista de Abril de 1964, que a lei do valor e os prémios de rendimento
são justificáveis em regime socialista. No número seguinte dessa revista, em Julho, o Che refuta a refutação. Se os investimentos socialistas devessem guiar-se pela
lei do valor, isso representaria o fim de toda a planificação, pois só se atenderia ao mais rentável, sem que houvesse a preocupação de desenvolver os sectores "pesados"
da economia. Ignora, sem dúvida, que, em 1956, um economista polaco (Bienkowski), num artigo sobre "a economia da lua", mostrou as aberrações planificadoras da época
estalinista147. Mas, provocador até ao fim, convida a participar no debate um trotskista conhecido, Ernest Mandel, dirigente da IV Internacional.

Guevara sabe que o trotskismo é condenado pelo comunismo "oficial". Mas não se importa. Sempre defendeu o direito e mesmo o dever de cada um seguir livremente a
sua reflexão, sem se agarrar a nenhum dogma. Na sua última reunião de direcção no Ministério, a 5 de Dezembro de 1964, ironizou dizendo: "infelizmente, a Bíblia
aqui não é o Capital mas o Manual [de marxismo]"; e, a propósito de revisionismo e de Trotsky, precisou: "É preciso que sejamos sempre capazes de refutar a opinião
dos outros graças à nossa argumentação. Mas, para isso, é preciso deixar que as opiniões se exprimam. [...] Uma opinião que nos obriga a recorrer à força para a
destruir é uma opinião que é já mais forte do que nós. [...] Penso que Trotsky se baseou em fundamentos erróneos mas que há aspectos positivos no seu pensamento"148.
No Nuestra Industria de Junho de 1964, o camarada Mandel destrói ponto por ponto as posições do camarada Bettelheim: rejeita a lei do valor na fase de transição
para o socialismo permitindo, assim, que desapareçam "os resquícios do homem antigo que ainda não ultrapassou o reino animal", o que, no fundo, significa o anúncio
do homem novo sonhado pelo Che149.
Muito mais tarde, em Outubro de 1977, num artigo do Rouge, jornal trotskista francês, Mandel observará que "retrospectivamente, podemos dizer que esse debate constituiu
o grande ponto de viragem da Revolução Cubana", e sublinhará que "fundamentalmente, a problemática era política. Era uma

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questão de estrutura de poder na lógica da posição do Che. Isso, ele nunca o disse, nem o percebeu com clareza, mas não havia outra alternativa senão os conselhos
operários, os conselhos populares"150. É empurrar apressadamente Guevara para posições que ele nunca defendeu. Mas mais interessante é a última observação do velho
militante, que afirma que nessa época um "debate secreto" agitou a direcção comunista151.
Secreta ou não, a convicção dos comunistas é já evidente: aceite por uns tempos como o enfant terrible da Revolução, o argentino está em vias de se transformar num
"electrão livre", cujos desvios se podem tornar perigosos. Numa altura em que, já atacados pela China, a União Soviética e os seus aliados, que-tão-generosamente-nos-ajudam,
reabilitam parcialmente a lei do mercado na sua economia esgotada, eis que o "senhor professor" se põe a proclamar que "isso é reintroduzir o capitalismo em contrabando"152.
Esta liberdade de pensamento e de linguagem causa muito má impressão entre os novos privilegiados de uma burocracia cubana instalada. Quanto às preocupações igualitárias
- para não dizer igualitaristas - do Che, irão elas ao ponto de pôr em causa o estatuto de quadro do partido beneficiando de um certo número de privilégios legítimos?
Por muito ministro e "combatente histórico" que seja, o camarada Guevara está a tornar-se imprevisível. A vigiar. A afastar, murmuram alguns com os seus botões.

"Não nasci para morrer avô"

Enquanto Guevara dispuser da confiança de Fidel, a burocracia não pode atingi-lo; está protegido das caneladas dos "privilegiados". Ora, Castro não se envolve na
polémica. Pragmático e prudente, apoia, pelo menos inicialmente, o radicalismo das posições de Guevara, nas quais vislumbra, para além do seu aspecto moral, o partido
que delas pode tirar para fazer aceitar as múltiplas humilhações da vida quotidiana. Afinal, não é asneira fazer apelo às melhores virtudes dos trabalhadores para
que eles aceitem que a semana de trabalho se prolongue e a abundância prometida pela Revolução seja remetida para um futuro mais distante.
Guevara continua a manifestar uma confiança inquebrantável em Castro que, para ele, continua a ser "o gigante", como nos tempos da Sierra Maestra. Quando tem conhecimento
de certas entorses à moral revolucionária, às vezes até vilanias, cometidas por quadros dirigentes, deplora-as, indigna-se, condena, mas não pode ir muito além dos
discursos. Não está encarregado da polícia. Quando o Príncipe começa a comportar-se como Monarca, nem sequer dá por isso. Tem uma confiança cega. Nunca será um Maquiavel.
Mais Antígona do que Creonte. A Revolução não foi apenas uma máquina para fabricar sacrificados. Também produziu amizade. O Che acredita na de Fidel. No sentimento
de fraternidade que ele próprio nutre pelo Líder incontestado há um misto de admiração e estima. Nenhuma duplicidade. Por volta de 1963, vai surgindo

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em Cuba um raciocínio simples, para não dizer simplista: é Fidel que está encarregado de governar o Estado. Tem de gerir uma combinatória complicada e tem-se saído
bastante bem. Se o Che se quer dar ao luxo de filosofar, isso, pensa-se, não tem muita importância.
Pelo contrário, pode ter imensa! Coerente, Guevara decide assumir as suas posições teóricas. Já que é uma maior centralização que pode permitir uma planificação
rigorosa, garantido uma distribuição equitativa, então centralize-se ainda mais, transfira-se para o Estado o sector rural, que escapou à primeira reforma agrária!
Os médios proprietários, que possuem entre 67 e
400 hectares, continuam a ocupar 56% da área cultivável. Opõem-se à reestruturação agrária e, para cúmulo, servem de "base objectiva" a todas as figuras dos movimentos
contra-revolucionários que uma repressão severa não conseguiu aniquilar. O Che incita então a uma segunda reforma agrária que, pela lei de 13 de Outubro de 1963,
limita a área máxima das propriedades privadas a cinco caballerias, isto é, sessenta e sete hectares. Com 60% da área cultivável, o Estado passa a ser o sector dominante,
o que permite uma melhor especialização de certas herdades na monocultura açucareira.
No campo, só restam como independentes, agindo por la libre, autonomamente, os pequenos camponeses, aos quais a ANAP (Associação dos Pequenos Agricultores) tenta
incutir uma mentalidade socialista. Mas mesmo em relação a eles, Guevara é de um radicalismo total. Afirma, categórico: "É certo que o pequeno camponês foi um ponto
de apoio da Revolução, como disse Fidel, mas, embora a pequena escala, não deixa de ser uma fonte de capitalismo. [...] Transforma-se pouco a pouco em explorador,
atrasando o desenvolvimento da sociedade. É preciso liquidá-lo"153. Sem transigências.
Em Janeiro de 1964, o acordo assinado com a URSS oficializa o "regresso ao açúcar", que volta a ser o pilar da economia cubana. Graças a um preço garantido de seis
cents a libra (peso), Cuba fica protegida das flutuações dos câmbios mundiais até 1970. Para essa data, Castro prevê já uma zafra gigantesca de dez milhões de toneladas,
destinadas a garantir os meios necessários a um "arranque" da indústria. Convém notar que não há uma generosidade "proletária" excessiva no negócio proposto pela
URSS. René Dumont calculou que a produção da mesma quantidade de açúcar a partir da beterraba teria custado dez vezes mais aos soviéticos154. Exceptuando o interesse
geopolítico de garantir a sobrevivência da ilha turbulenta às portas dos Estados Unidos, Moscovo acaba por não fazer um mau negócio. Tanto mais que Cuba só conseguiu
que uma parte da produção lhe fosse paga em divisas. O que significa que, para toda uma parte técnica que a cultura do açúcar exige, tem de investir em dólares para
vender em rublos! Mas Castro passa por cima disso. Não está em condições de regatear.
O fio vermelho que permite seguir a evolução de um pensamento que vai como que endurecendo são as reuniões no Ministério, nas quais Guevara Participa regularmente.
As discussões com os directores dos vários ramos industriais não são, sem dúvida, tão românticas como as operações brilhantes

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dos guerrilheiros, mas transmitem-nos, bimestralmente, o ambiente geral quotidiano do país, a descrição dos êxitos e dos fracassos que não são revelados em público.
Apercebemo-nos que, se está mais à vontade em macro-economia, no horizonte do século XXI, o século do comunismo finalmente atingido, o Che não deixa de examinar
detalhadamente os pontos fracos da planificação em termos de microeconomia. Tivesse ele conhecido as maravilhas da gestão informática! Por várias vezes, surpreendem-no
a profetizar que a electrónica, disciplina ainda balbuciante, vai ajudar a resolver todos os problemas administrativos. Entretanto, vai roubando horas ao sono para
completar os seus conhecimentos de matemática e para aprender a dominar a "programação em linha".
A reunião de 12 de Outubro de 1963 é efectuada uma semana após a passagem do furacão Flora, que destruiu pontes e estradas, inundou fábricas e arrastou vias férreas
"açucareiras", afogou gado e arrancou o tecto de alguns edifícios. "Notei que, tal como em Outubro (Outubro de 1962, na altura da crise dos mísseis), houve uma grande
colaboração, foram resolvidos problemas, as acções foram bem coordenadas. [...] Agora vai ser necessário trabalhar o dobro, para reconstruir toda a central e as
vias férreas antes da zafra"155, observa ele.
Perante cinquenta dos seus colaboradores, vai polindo e pondo à prova a argumentação que irá desenvolver nos seus artigos teóricos para defender as suas teses sobre
os perigos da lei do valor e dos estímulos materiais, sobre as condições favoráveis ao aparecimento do "homem novo", etc. Essas questões surgem repetidamente, por
vezes com algumas beliscaduras ao modelo soviético, suspeito de revisionismo reformista. Cuba, declara ele, tem algumas circunstâncias atenuantes: o país está em
fase de transição e acaba de sofrer os estragos de um furacão devastador. Mas porque é que na URSS há "catástrofe agrícola", pergunta ele. "Há qualquer coisa que
não funciona naquele sistema. Não se pode dizer que a culpa é das calamidades naturais. Quanto a mim, acho que tem qualquer coisa a ver com a descentralização, com
os estímulos materiais, com a autogestão financeira, com as terras privadas concedidas aos kolkozes, com a pouca atenção prestada aos estímulos morais..."156-\ Ora
aqui está uma opinião bastante impertinente em relação ao "irmão mais velho".
A 17 de Março de 1964, parte para Genebra para representar Cuba na primeira Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (CNUCED). A seu lado,
no avião, senta-se o jovem embaixador - de 28 anos - de Cuba no Brasil, filho do ministro cubano dos Negócios Estrangeiros, Raul Roa. Chamam-lhe "Raúlito" para o
distinguir do pai. Fidel encarregou-o de uma missão precisa: repetir palavra por palavra a Guevara o que acabara de lhe expor, confidencialmente, em Varadero. Trata-se
do projecto do deputado brasileiro Leonel Brizzola, cunhado do presidente Goulart, de organizar no Brasil uma guerrilha "à cubana" e, nesse sentido, recorrer à ajuda
dos cubanos. O Che escuta-o atentamente e confia-lhe então uma

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mensagem cheia de significado: "Diz ao Brizzola que, se precisar de um bom chefe de guerrilha, pode contar comigo!"157
A resposta é para ser levada a sério. É sabido que o nosso guerrilheiro nunca morreu de amores pelo trabalho de "funcionário" que Castro lhe pediu para assegurar,
como um serviço a prestar à Revolução. É sabido também que, após a vitória, o objectivo do argentino era partir de imediato, e ir atear alguns fogos noutro lado.
Mas surgiu o pedido de Fidel Castro, ao qual era impossível recusar. Tinha havido aquele casamento cubano, aquela segunda pátria em perigo que tinha de defender.
Passaram meses e anos, que não acalmaram a sua ânsia de cavalgar o Rocinante, de lança em riste. Até agora, não fez mais do que encorajar amigos, com resultados
pouco animadores: El Patojo, que fracassou na Guatemala, Masetti, cuja aventura argentina, segundo acabou de saber, redundou em desastre - morrer sem combater! Desabafa
então, um pouco abatido, ao fiel Granado: "Olha só para mim, aqui sentado à secretária, enquanto outros lutam pelos seus ideais. [...] Não nasci para dirigir ministérios
nem para morrer avô". E quando Granado lhe confessa também ter vontade de ir embora, ele responde: "Eu também gostava de me pôr a caminho, mas de metralhadora na
mão e a ouvir o grito de guerra dos povos".
Para já, como grito de guerra, só lhe arranjam Genebra, com o seu lago tranquilo e os seus jardins geométricos. Lojas a transbordar de artigos necessários e supérfluos,
uma sociedade de abundância onde tudo funciona normalmente, vitrina próspera do capitalismo bancário. É a segunda vez que Guevara participa numa reunião internacional
de envergadura. Ao contrário da de Punta del Este, onde só estavam presentes representantes do continente americano, esta conferência é organizada à escala mundial.
O seu discurso é aguardado. O Che não perdeu a sua mordacidade. Ataca de novo o presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson, a quem chamam "rancheiro de Dálias",
mais agressivo e menos distinto (florido) que Kennedy, assassinado cinco meses antes, e zurze a famosa "aliança para o progresso" que, como era de prever, está a
revelar-se um fracasso, incapaz de cumprir as suas promessas. Mas insiste sobretudo na contradição essencial de uma conferência daquele género, na qual se proclama
a intenção de reduzir a desigualdade das trocas comerciais quando essa própria desigualdade é a razão de ser do imperialismo. "Não é apresentando um requerimento
que se obterá uma decisão favorável, mas lançando-se à sua conquista"159.
Para que as coisas fiquem claras para a opinião pública, explica, numa entrevista à France-Observateur, a 16 de Abril de 1964: "Na América Latina, a linha geral
é a da luta armada; ela é-nos imposta pelos imperialistas e pelos seus fantoches". No Brasil, o presidente João Goulart, que substituirá Jânio Quadros, suspeito
de simpatias pró-cubanas, é, por seu turno, destituído por um golpe de Estado militar, um golpe que impôs um marechal, Castelo Branco. É o início de uma série de
golpes na América Latina, efectuados por figuras designadas como gorilas, isto é, militares de direita. Guevara termina

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a entrevista com uma ameaça: "Quem semeia ventos colhe tempestades". Compreende que o projecto de guerrilha brasileira de Brizzola tem de ser retomado da estaca
zero. Quem lhe dera estar a combater, em vez de se arrastar por aqueles palácios dourados!
Um jovem secretário de embaixada, Jorge Edwards, convidado como "tapa-buracos" para um jantar de "personalidades" em casa do embaixador do Chile junto da ONU - Genebra,
Ramón Huidobro, conta como, pelo seu comportamento Guevara se situava, numa noite de Março de 1964, nos antípodas da diplomacia aveludada e das conversas de meias-tintas,
que são o habitual nesses meios. Está lá o vice-presidente do Peru, um futuro presidente da Colômbia, personalidades eminentes. Tendo chegado atrasado, o Che não
destoa apenas pela sua farda verde-azeitona no meio de um areópago vestido de azul-escuro, mas pelas afirmações cuja franqueza é considerada chocante. Diante do
argentino Raul Prebisch, organizador da Conferência, que ele saudou oportunamente no seu discurso por estar "claramente alinhado com os desertores", declara abertamente
que aquela CNUCED é uma perda de tempo, que não se sente lá à vontade e que admira mais dirigentes como os do Vietname, que vivem em cabanas, sem se diferenciarem
da população que os rodeia. E, deixando os convivas com um riso amarelo nos lábios, é o primeiro a retirar-se160.
Esta personagem chama a atenção dos media. Não só porque a sua farda de combatente é fotogénica, nesses salões alcatifados, mas porque representa uma revolução insolente,
na qual os contestatários do Tio Sam parecem simpáticos, e sobretudo porque o encanto que ele transmite e o humor um pouco sardónico das suas réplicas destoam nesse
ambiente circunspecto. Quando ele surge, de olhar brilhante, transmite ao interlocutor uma onda de calor. Na sua conferência de imprensa, os jornalistas acotovelam-se.
Aliás, ele próprio é suficientemente perspicaz para perceber que muitas mulheres estão prontas a entregar-se ao mais pequeno sinal de encorajamento da sua parte.
O que ele evita a todo o custo. Mas, de regresso a Havana, confessa a Oltuski: "Sabes, às vezes custa muito ser revolucionário"161. É austero, incorruptível. O que
não quer dizer puritano.
Na viagem de regresso, faz duas breves escalas, que não lhe desagradam nada, uma em Paris, a outra em Argel. Sonhou tanto com França e com Paris desde a adolescência
mergulhada em histórias da Revolução Francesa, desde o tempo da sua vagabundagem durante a qual, em 1955, escrevia do México à mãe, pedindo-lhe que largasse tudo
em Buenos Aires e viesse, como uma namorada, encontrar-se com ele em Paris, onde esperava arranjar uma bolsa. Precisava, dizia-lhe ele, dessa cidade como uma "necessidade
biológica". Desde então, a mãe ultrapassou o filho, demasiado ocupado, e redescobriu a "cidade-luz", sozinha, albergada pelo escritor peruano Mario Vargas Llosa,
no seu pequeno apartamento de Saint-Germain-des-Prés. Quando o Che chega à capital francesa, ela já partiu para Buenos Aires, onde a polícia não a deixará em paz.

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Eis Ernesto Guevara em Paris, na pátria dos seus heróis, Baudelaire ou Júlio Verne. Sente simpatia por esse país cujo colonialismo acaba de ser derrotado na Argélia,
que acalmou as críticas formuladas por Cuba, solidária dos combatentes argelinos. Além disso, a viagem triunfal que De Gaulle fez recentemente, em Março, ao México,
mano en la mano com esses irmãos latino-americanos, pareceu-lhe um excelente desafio lançado aos Estados Unidos.
Os seus dois dias parisienses, a 14 e 15 de Abril, foram intensos. Descobre o Quartier Latin, almoça calmamente no primeiro andar de uma pizzaria no boulevard Saint-Michel,
com o seu estimável opositor, Charles Bettelheim, professor na Escola Prática de Altos Estudos. Passeia junto da Sorbonne, na rua Soufflot, e provoca, na rua das
Écoles, um ajuntamento diante da livraria Présence Africaine, onde alguns estudantes o reconheceram, vestido com um impermeável de caqui e com a sua boina preta.
A visita a este santuário da africanidade intelectual em Paris não é inocente. A sua ida à Argélia, no ano anterior, mais ainda do que a sua primeira viagem ao Egipto,
convenceu-o - ele afirmá-lo-á alguns meses depois - que "a África representa um dos mais importantes terrenos de luta contra todas as formas de exploração"162.
Guevara ficou fascinado com a leitura de Os Condenados da Terra de Frantz Fanon, revolucionário anticolonialista radical, voltando contra o opressor a violência-parteira-da-históri

a. É nela que o colonizado baseia a sua própria humanidade. Depestre, seu admirador haitiano em Havana, recomendara-lhe esse texto fundamental, brilhantemente prefaciado
por Jean-Paul Sartre. Sem nada alterar, o Che poderia subscrever as últimas palavras: "Camaradas, é necessário mudar radicalmente, tentar criar um homem novo"163.
Psiquiatra da Martinica, expulso da Argélia em 1957 por ter aderido à causa da rebelião, Fanon morreu em 1961, poucos meses depois dessa tentativa de "recomeçar
uma história do homem". Na tarde de 15 de Abril de 1964, na imensa cozinha da Embaixada de Cuba, na avenida Foch, herança da época de Batista, o Che expõe a François
Maspero, editor da versão francesa da sua Guerra de Guerrilha, o seu projecto de publicar em Cuba essa obra de Frantz Fanon, com um prefácio da sua autoria.
Em seguida, o comandante-ministro vai ao Théatre des Nations, na Place du Châtelet, assistir a um espectáculo dos Ballets Cubanos. Em 1959, Raul Castro, de passagem
por Paris por ocasião de uma viagem a Moscovo, fora delicadamente expulso pelo Quai d'Orsay. Viera sondar as possibilidades de uma cooperação económica da França
que permitisse à Revolução resistir às primeiras birras comerciais dos Estados Unidos. Paris consultara Washington, que aconselhara a recusa de qualquer apoio, e
a iniciativa morrera ali164. Agora, De Gaulle não recebe Guevara, número dois de um pequeno país rebelde que se ergue contra Golias. Bifurcações da história.
Em Argel, pelo contrário, o Che é recebido já como um irmão pelo presidente Ben Bella, que é seu amigo e ouve atentamente os seus comentários

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sobre a Conferência de Genebra. Guevara admira a forma como está a ser criada a jovem República "popular e democrática", dá inúmeras entrevistas e regressa a Havana,
via Praga. Ponto de chegada e de partida de todas as ligações aéreas da Cubana de Aviación, a capital checa situa-se, juntamente com Moscovo, no começo e no fim
de um circuito acrobático que passa pelo Canadá, desde que, depois da crise dos mísseis, foram suspensos os voos para Miami e Nova Iorque, que permitiam irradiar
pelo mundo.

Era um homem

Aparentemente, o bloco monolítico da equipa dirigente permanece ancorado em torno de Fidel, figura altamente carismática, mas, aos olhos dos observadores experientes,
a partir de 1964 e da mudança de tendência económica expressa no regresso à "prioridade do açúcar", o Che e Fidel começam a dar sinais de não acertar o passo um
com o outro. Tanto pelo seu temperamento calculista como pela força das circunstâncias, Castro faz da política a arte do possível, atitude clássica. Guevara, mais
inclinado a subverter a fórmula, diria antes que é aceitando o que parece impossível hoje mas será realizável amanhã, que a política conserva a sua nobreza e salvaguarda
a Revolução. Isto não é ser utópico, defende-se ele. Mas é talvez ter um certo avanço sobre a história. Nem um nem outro tem talvez consciência de que não estão
de acordo quanto ao "projecto de sociedade", como mais tarde se dirá. Mas terá Castro realmente tido algum? Se existe uma fractura, em todo o caso ela é ainda invisível
para a generalidade das pessoas. O Che continua a ser a figura mais popular do regime, mas é o Caballo, a autoridade incontestada, que magnetiza. Todavia, cada um
circula já numa órbita diferente.
Ao regressar de Genebra, o Che retoma a direcção do seu Ministério. Até prova em contrário, é essa a tarefa que lhe foi confiada e, como um bom soldado, procura
assegurar o melhor possível o seu trabalho de ministro. Mas, para quem observou atentamente o que ele diz e o que ele escreve nesse ano de 1964, e que é às vezes
um pouco ignorado, sendo só destacadas as suas viagens, nota-se um endurecimento de tom, uma espécie de ferocidade mais marcante nos seus sarcasmos. E também uma
maior liberdade de comportamento.
Na reunião ministerial de 9 de Maio de 1964, tem uma explosão de fúria contra a falta de qualidade daquilo que é produzido em Cuba, sem a mínima comparação, afirma
ele, com o que se encontra na Suíça ou na Checoslováquia. "A qualidade significa respeito pelo público. É esse o princípio que deverá de futuro reger a produção
deste Ministério". Faz então um "show" digno de ser filmado. Vai brandindo, um após outro, para que a assembleia os contemple, uma série de artigos que não passam
de "porcarias": fechos-éclair baptizados de Camilo que não funcionam - de cada vez que encravam, o utilizador barafusta contra Camilo -, em seguida um triciclo que
classifica de geringonça, um par de sapatos cujo tacão, fixado com dois pregos, salta

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de imediato, um champô que não faz espuma, rolhas que não vedam, pó-de-arroz demasiado escuro, bonecas que parecem bruxas... Tudo isso desacredita a Revolução. Em
suma, "é inadmissível"165.
A 14 de Julho desse ano, volta a insistir na necessidade do trabalho voluntário; mas, nesse dia, perante os seus directores reunidos, faz uma confissão espantosa,
porque se apercebeu, com espanto, que esse trabalho voluntário, ao qual ele se submeteu como toda a gente, ou quase, passou a ser uma coisa vazia de sentido, "sem
conteúdo", sublinha ele. Ora, "não há sensação mais desagradável que a de perder tempo. No domingo passado aconteceu-me o que nunca me sucede (a não ser quando corto
cana). Dei por mim a olhar para o relógio de quarto em quarto de hora, morto por me ir embora, porque o meu trabalho me parecia sem sentido"166. É um sintoma, e
um sintoma grave. Há seis meses (Dezembro de 1963), fizera uma declaração importante: o "batalhão vermelho", criado para fazer, ao domingo, duzentas e quarenta horas
de trabalho voluntário nesse semestre, não sabe para onde ir! Foi preciso "inventar-lhe" trabalho. O INRA não queria aceitar aqueles voluntários, que lhe saíam caro
e cortavam a cana muito mal. "Está bem", dissera Guevara, "mas o objectivo essencial é pedagógico. Primeiro é preciso educar"167. Se, agora, o próprio objectivo
dessa pedagogia se desvanece, como será possível criar uma nova mentalidade?
A reunião ministerial de 12 de Setembro de 1964 reveste-se de particular interesse porque o Che, cujo rigor é conhecido, é levado a pronunciar-se sobre uma questão
de moral sexual. O director de um consolidado foi surpreendido numa atitude galante com a secretária, dentro do seu carro, no Malecón em Havana; o que provocou a
sua substituição, porque o compañero é casado e pai de família... O que pensa o comandante? Não façamos disso um drama, é em substância a posição de Guevara. "Nunca
ninguém disse que um homem deve viver a vida inteira com uma [mesma] mulher. [...] É necessário encarar a questão de um ponto de vista político, não permitir que
haja favoritismo em relação à mulher e também que não haja escândalo. [...] Pode acontecer a qualquer um. Aliás, considerar que o único culpado é o homem é uma forma
de não ter em conta a mulher, enquanto tal. [...] Se puséssemos a mão na consciência, veríamos quem tem o direito de atirar a primeira pedra. [...] O marxismo não
é puritanismo". E depois de ter citado o caso de Engels, que vivia com a criada, e de ter observado que, no fundo, todo "o homem é um animal fisiológico como os
outros", o Che convida a assembleia a não cair num "puritanismo socialista" ou em "extremismos estalinistas". E conclui:" Vamos agora elaborar um tratado filosófico
sobre as relações entre o administrador e a secretária? Há problemas mais sérios"168.
Este liberalismo pode parecer surpreendente da parte de um homem conhecido pela sua intransigência e pelo seu apego aos princípios. Talvez seja de referir aqui um
boato insólito mas persistente que circula em Cuba a partir de 1990, segundo o qual o próprio Che teria tido uma ligação amorosa de que nascera um filho. Um rapaz,
nascido a 19 de Fevereiro de 1964, em Havana,

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chamado Omar Pérez. Intelectual rebelde, colaborador de El Caimán Barbudo uma revista de vanguarda, o rapaz animava um movimento de oposição Tercera Opción. Teria
sido para o desestabilizar que os serviços secretos cubanos, a par da história, teriam deixado passar a notícia de modo deliberado. Omar interroga então a mãe, Lilia
Rosa López, casada na época com um senhor Pérez, do qual se separara após o nascimento do bebé. Ela confirma. Nessa época, era jornalista da Radio Progresso e foi
em casa de amigos que conheceu o pai, o comandante. É esta a versão do interessado e de dois amigos dele, Rolando Prats169 e Norma Guevara170. Testemunhos plausíveis,
mas não confirmados, ou aldrabice de gosto duvidoso? "Não quis saber mais", declara Omar Pérez, de passagem por Paris, em 1996. "Mas isso não me fez mudar de ideias,
nem de comportamento, nem de nome. Não procurei tirar daí nenhum privilégio. Pelo contrário. Tive de cumprir um serviço militar muito duro na província de Pinar
del Rio e o grupo Tercera Opción desmembrou-se. Mas continuei a ser amigo da minha meia-irmã Hildita e a escrever poemas"171. Sorri, um pouco tímido. O seu olhar
brilha com uma ironia discreta, a sua segurança desconcerta. É um pouco mais baixo e gordo do que o seu pai putativo, o cabelo escuro está atado num rabo-de-cavalo.
O rosto, bem desenhado, poderia ter algumas parecenças com o de Guevara. Mas estes frágeis elementos bastarão para dar crédito ao boato?
"Que posso eu dizer do Che que não tenha já sido dito" interroga-se Oltuski, velho companheiro, amigo conquistado à força de uma longa estima. "Que, a princípio,
ele era muito rigoroso sobre a questão das mulheres, mas que depois acabou por dizer que não andava a vigiar a braguilha de ninguém"172. O seu chefe de segurança,
Dariel Alarcón, o guajiro, admite, como uma coisa normal, que às vezes o comandante mandava chamar uma das duas "amigas" que tinha em Havana - "uma delas era mulata"
- e então dava ordens de não o incomodarem, sob nenhum pretexto, no seu gabinete"173. Três anos antes, a 9 de Agosto de 1961, em Montevideu, respondendo a um jornalista
numa conferência de imprensa, declarava: "Não seria um homem se não gostasse de mulheres. Mas não seria um revolucionário se, por causa das mulheres, deixasse de
cumprir um único dos meus deveres, bem como os meus deveres conjugais"174. Estas aventuras não se coadunam muito com o espírito de cavaleiro puro das hagiografias,
mas a revelação que trazem é, no fundo, reconfortante: Guevara não era o Superhomem! Possuía qualidades excepcionais, é certo, mas esse modelo de virtude era um
homem. Não apenas "súmula de todos os homens, valendo mais do que qualquer deles", mas também, como dirá também Sartre, "o homem mais completo da nossa época"175.
Cuja verdadeira namorada era a Revolução.
Seja como for, em vez de perder tempo nestas discussões, que considera inúteis, o Che tenta combater outro flagelo, muito mais devastador que, esse sim, põe em perigo
a sobrevivência do regime e a sua integridade: a burocracia, ou seja, o aparecimento de uma casta de privilegiados da Revolução. O artigo que escreveu sobre este
tema na revista oficial do Partido, Cubo Socialista, em Fevereiro de 1963, deu brado. Nele afirma que "é a direcção

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económica da Revolução que é responsável por grande parte dos males burocráticos [...] uma acumulação de decisões menores fez perder de vista os verdadeiros problemas
[...]. Os organismos afectados são esmagados pela papelada"176. Há uma pequena história, contada por um jornalista italiano, Roberto Savio, sobre a antipatia do
comandante pela dita papelada. Durante a entrevista, o soldado que servia o café, de metralhadora ao ombro, dá sem querer um encontrão a Savio, que entorna a chávena
na secretária do ministro. O qual, com um sentido de oportunidade humorístico, exclama: "Até que enfim alguém me livra desta papelada!"177
Embora ele próprio tenha denunciado o perigo de uma "centralização excessiva", Guevara parece não se dar conta de que o centralismo absoluto que preconizava para
gerir a economia cubana era a causa principal dessa burocracia crescente, fonte de todos os "privilégios". Em 1965, no Cairo, confessará a Nasser: "Encontrámos pessoas
capazes de dirigir empresas nacionalizadas, [...] pensámos que elas representavam a Revolução, mas descobrimos que pertenciam ao partido "administrativo". Esqueceram
o seu fervor revolucionário nos braços de encantadoras secretárias, nos seus automóveis luxuosos, com os seus privilégios e o seu ar condicionado. Começaram a fechar
as portas dos seus gabinetes para conservar o ar fresco, em vez de as abrirem aos trabalhadores"178.
Durante o Verão cubano de 1964, o Ministério da Indústria vê-se amputado de todo o sector açucareiro - sessenta mil trabalhadores em cerca de cento e cinquenta mil
que ele controla. Mais de um terço. É então criado um Ministério do Açúcar, cuja direcção Guevara sugere que seja confiada a Orlando Borrego, o seu melhor adjunto,
o que é aceite. Vem ainda juntar-se a decisão de Castro de confiar a responsabilidade global da economia do país ao presidente Dorticós, próximo dos comunistas.
É o próprio Dorticós que, no início de Outubro, vai representar Cuba na segunda Cimeira dos Não-Alinhados, no Cairo. E não Guevara, apesar da sensibilidade particular
deste último em relação aos problemas do Terceiro Mundo. No entanto, foi ele que, da "varanda afro-asiática", revelou aos cubanos a existência dessa face oculta
do mundo, após a sua digressão de 1959. Há, pois, embora não transpareça publicamente, um certo afastamento de Guevara, discreto mas real.
Contudo, a partir de 1964, Fidel Castro vai passear o seu amigo através do mundo. É nesse contexto que ganha sentido a observação de Franqui: "Partir para o estrangeiro
é sinal de desgraça". Talvez não seja desgraça, mas antes uma certa provocação enviar a Moscovo uma figura conhecida pelo seu espírito crítico, pouco amigo da linguagem
oficial e que exige incansavelmente um melhor equilíbrio das forças comerciais com os países de Leste. Em Março, em Genebra, foi ele que apresentou a questão perante
uma assembleia maioritariamente composta por representantes dos países pobres. De discurso em discurso, a tese do Che foi ganhando precisão: não é normal que os
países socialistas façam acordos comerciais com os países em vias de desenvolvimento com base em preços fixados pelo mercado capitalista.

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Porém, em Moscovo, de 4 a 8 de Novembro de 1964, Guevara não provoca nenhum escândalo, procurando defender apenas a posição oficial cubana. Nikita Kruchtchev, o
"homenzinho alarve e exaltado, de nuca pregueada", tão bem descrito por Jean Lacouture, acaba de ser despedido, a 15 de Outubro, expulso do Comité Central e substituído
por Leonid Brejnev. Terá Castro incumbido Guevara de ir apalpar terreno? É provável. O Che não parece ter ficado muito impressionado com o fervor revolucionário
da nova equipa. Com os economistas Trapeznikov e libermann, que defendem algo como um regresso prudente ao capitalismo, abstém-se de qualquer polémica. Mas não deixa
de ter a sua opinião. Num trabalho inédito que o seu irmão Roberto conseguiu transcrever em Havana, afirma: "A investigação marxista está a avançar por um caminho
perigoso. O dogmatismo intransigente da época de Estaline foi substituído por um pragmatismo inconsistente. E o trágico é que está a suceder o mesmo em todos os
aspectos da vida dos povos socialistas"179.
É a sua terceira viagem à "pátria do socialismo". Na Praça Vermelha, aplaude ordeiramente o desfile militar que tanto o impressionara da primeira vez, há quatro
anos, no mesmo aniversário da Revolução de Outubro. Mas, vindo da cimeira do Cairo, é o presidente Dorticos que, de acordo com o protocolo, chefia a delegação cubana.
Guevara, rotulado de contestatário, aceita, pois essa é a linha, a ideia retomada por Brejnev, de uma coexistência pacífica entre os dois blocos. Contudo, reivindica
para os países colonizados o direito de se sublevarem contra o opressor. Porque, afastando-se da vulgata marxista que continua a afirmar que a Revolução será obra
de um proletariado operário libertando-se da exploração capitalista, insiste mais do que nunca no que foi proclamado na Segunda Declaração de Havana: que, "apesar
da dureza das condições de vida dos operários nas cidades, a população rural vive em condições muito piores de exploração e de opressão". É nesse "sector maioritário
que, por vezes, ultrapassa 70% da população latino-americana", que se situam os verdadeiros "condenados da terra". É aí que nascerá a imensa vaga de fundo revolucionária
do século XX. Num ensaio de 1963, A Guerra de Guerrilha, um Método, tinha profetizado que a luta seria longa e sangrenta e que teria um carácter continental.180
Esse continente votado ao combate tanto poderia ser a América Latina como a África ou a Ásia.
De regresso, numa entrevista ao jornal uruguaio La Época, Guevara retoma o tom combativo e não esconde que "as nossas relações com os Estados Unidos vão-se agravando
fatalmente à medida que se agrava a situação na América Latina"181. Apenas com excepção do México, os últimos Estados-membros da OEA ainda recalcitrantes - Chile,
Bolívia, Uruguai - acabam por ceder às imposições dos Estados Unidos e rompem as suas relações diplomáticas com Cuba. O Che não se deixa intimidar. Pelo contrário.
"O melhor que pode acontecer é que as coisas piorem"182. A digressão retumbante do general De Gaulle por dez países da América Latina faz germinar, por algum tempo,
a esperança de uma "terceira força latina" sob a influência de Paris - Castro já aplaude. Mas não passa de uma ilusão. A França não dispõe de meios para essa ambição.

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Em Santiago de Cuba, em Oriente, numa homenagem ao levantamento da cidade, desencadeado pelo "heróico Frank País", para apoiar o desembarque rebelde no encontro
falhado de 30 de Novembro de 1956, Guevara dá uma série de conselhos práticos aos jovens. "Faço parte da juventude", precisa ele. Tem trinta e seis anos e meio e,
embora esteja mais corpulento agora, tem bastante bom aspecto. É certo que não tem tempo para praticar desporto; uma partida ocasional de golfe, com Fidel, há tempos,
foi sobretudo pretexto para fazer fotografias, uma forma de mostrar que a burguesia cubana fora desapropriada até do seu símbolo aristocrático. Outra ocasião, aceitou
disputar uma partida de basebol, jogo tipicamente gringo que os cubanos adoptaram, mas não percebe nada da modalidade. Mais uma vez, é para agradar a Fidel.
Mas o verdadeiro prazer físico a que às vezes acede - para manter a forma - é uma boa caminhada a pé, ou de mula, nas vertentes escarpadas e húmidas da Sierra Maestra,
"montanha mágica", onde se revelou a si mesmo e aos outros. O pobre Granado, desafiado para um desses passeios, não o esquecerá tão cedo. Esgotante! Em Santiago,
o discurso do comandante, um pouco confuso, aborda uma série de temas. Entre eles, o da "divisão internacional do trabalho, que estabelece a necessidade de alguns
países se dedicarem a um certo tipo de actividade"183. A alusão ao papel "açucareiro" de Cuba é claro, mas não adianta mais. E como o embaixador da Checoslováquia
está presente, o Che resolve dizer uma piada, que traduz, sem que ele dê por isso, a frustração do pobre em relação ao rico. Porque não imaginar que possa ser Cuba
a ir um dia dar o seu apoio técnico à Checoslováquia?, pergunta ele. Porque não, de facto? Não faz mal sonhar.
Poucos dias depois, a 5 de Dezembro de 1964, fiel ao seu posto, convoca a reunião bimestral do Ministério. Não desarmou. "Acabo de chegar de viagem, diz ele, e tenho
de partir para outra viagem". E explica, conscienciosamente. quais vão ser as tarefas para 1965. A sua exposição é simultaneamente crítica e autocrítica, com um
ligeiro tom de amargura e, por vezes, insólita e comovente, a manifestação, logo reprimida, de um estado de espírito natural. Alude primeiro aos rótulos de "pró-chinês"
e de "trotskista" que lhe apuseram. "Exprimi opiniões que podem estar mais próximas das posições chinesas - guerra de guerrilha, guerra popular, trabalho voluntário,
hostilidade perante os estímulos materiais, todas coisas que preocupam também os chineses. [...] E como dizem que eles são "fraccionistas" e trotskistas, pintam-me
com essas cores!"184 Reconhece que o trabalho voluntário já não é digno desse nome, que esse tipo de actividade actualmente é imposto: "Não fomos capazes de lhe
dar um carácter desinteressado"185. Compare-se esta constatação de fracasso com as suas palavras de esperança, seis meses atrás, quando, felicitando operários comunistas
recompensados pela sua dedicação, a 15 de Agosto de 1964, citara, de sorriso nos lábios, alguns versos do poeta espanhol que encontrara no México, León Felipe, contemporâneo
de Machado e de Lorca: ""O homem é uma criança laboriosa e estúpida, / Que converteu o trabalho numa estopada penosa" [...]. Poderíamos convidar esse

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grande poeta desesperado a vir ver como, em Cuba, o trabalho adquiriu um significado novo, como ele é efectuado com uma alegria nova"186. Ainda bem que o poeta não
aceitou o convite, pois agora Guevara, sincero até à medula, admite perante os seus colaboradores: "As falhas do nosso sistema tendem a transformar o homem numa
máquina"187.
E, subitamente, reagindo à intervenção de uma especialista da psicologia do trabalho, tem um desabafo patético, raiando o desânimo: "A vida de um dirigente revolucionário
seria absolutamente decepcionante se não encontrasse alguma compensação na obra para cuja construção contribuiu [...]. É como se não tivéssemos vida familiar. Os
meus filhos chamam "papá" aos soldados que entram e saem de nossa casa, porque os vêem todos os dias; a mim não me vêem nunca. [...] A vida que levamos é degradante.
O organismo humano está mais ou menos equilibrado segundo um certo ritmo de trabalho. [...] Um esforço prolongado rouba-lhe anos de vida. [...] O sacrifício exigido
é enorme. [...] [Mas] esse dever social faz parte daquilo a que eu poderia chamar a mística do socialismo, se essa palavra não fosse um pouco perigosa"188.

"Toda essa gente disse Basta!

Quando, a 9 de Dezembro de 1964, o comandante Guevara chega a Nova Iorque para falar em nome de Cuba na 19ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, a sua glória
mediática está no auge. Em Cuba, as subtilezas da polémica sobre a melhor maneira de conduzir o país ao socialismo não são perceptíveis pelo cidadão comum. No plano
internacional, a imagem do ministro de farda de caqui tornou-se tão famosa como as críticas a seu respeito. Depois de Punta del Este, depois de Genebra, a sua presença
junto da mais alta instância mundial parece testemunhar o papel de primeiro plano que lhe está confiado para exprimir as posições da ilha rebelde, que tanto irritam
os Estados Unidos. Ele próprio anunciou aos seus colaboradores que partia para "un viaje de esos con una bronca" ("uma viagem onde é necessário lutar")189.
O discurso que profere, a 11 de Dezembro, no salão das reuniões plenárias do arranha-céus da ONU, assemelha-se a uma declaração de guerra lançada pelo Terceiro Mundo
contra aquilo a que chama "a internacional do crime" constituída pelo imperialismo. Depois de ter exigido uma coerência interna no campo socialista "para lutar até
à morte pela defesa da Revolução", passa em revista todos os pontos quentes do planeta, sublinhando aqueles (incontáveis) em que os Estados Unidos estão envolvidos.
Esses conflitos constituem um desmentido dessa apregoada coexistência pacífica que, segundo afirma, não pode ser reservada exclusivamente às superpotências. A sua
indignação é manifesta em relação ao Vietname e ao "invasor" norte-americano. Em Cuba, teve uma longa conversa com o vietnamita Dinh Nup e saudou o carácter camponês
da luta vietnamita num ardente prefácio ao

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livro Guerra do Povo, Exército do Povo, do general Giap, que derrotara os franceses em Dien Bien Phu.
Mas é um autêntico grito de raiva que deixa escapar quando evoca "a completa impunidade, o cinismo descarado" manifestados no antigo Congo belga por ocasião do assassínio
do primeiro-ministro Patrice Lumumba, com a cobertura dos Estados Unidos. Retoma o estilo de Frantz Fanon para denunciar "o que dantes a nossa condição de escravos
coloniais nos impedia de ver, isto é, que a "civilização ocidental" esconde, atrás da sua brilhante fachada, um bando de hienas e de chacais. [...] Todos os homens
livres do mundo devem vingar o crime do Congo". E conclui com a profissão de fé, muito lírica, da Segunda Declaração de Havana, à qual imprime um tom universal:
"Toda essa gente disse Basta! E pôs-se em marcha. E essa marcha só terminará quando for conquistada a verdadeira independência"190. Enquanto ele discursa, um grupo
de emigrantes anticastristas, desafiando o frio polar, provocam incidentes diante do edifício de vidro da ONU. Uma manifestante que queria trazer a bandeira de Cuba,
desfraldada em frente do edifício, é presa, na posse de uma faca com a qual, reconhece, gostaria de matar Guevara. Informado da questão, este perdoa sob a forma
de gracejo: "Mais vale morrer com uma facada de uma mulher do que com um tiro de um homem". Mais grave do que isso, um obus de bazuca, disparado da outra margem
de East River, a cerca de mil e quinhentos metros, cai no rio, a escassos trinta metros do edifício, deslocando uma grande massa de água191.
Dois dias depois, interrogado em directo perante as câmaras de televisão da CBS, Guevara ilude as questões relativas ao diferendo entre Cuba e a URSS e entre a URSS
e a China. Mas adianta que só concebe a libertação da América "através das balas. [...] Se esperam ver-nos de joelhos para obter a paz [com Washington], então os
americanos terão de nos matar"192. E como não lhe concedem mais do que dez segundos para dizer que percentagem da população apoia a Revolução em Cuba, apenas tem
tempo de responder que, embora por enquanto (em este momento) não haja eleições em Cuba, a esmagadora maioria da população apoia o governo. Banalidade de base. À
saída do estúdio, novas manifestações de hostilidade, contidas pela polícia, novo sorriso trocista do visado. Dirigindo-se aos gusanos (vermes), repete, em tom de
desafio, o gesto clássico de Perón, erguendo os dois braços, como um pugilista, a saudar a multidão.
No dia seguinte, aceita ir a uma recepção privada, que lhe parece de um anticonformismo digno de ser encorajado. Só três anos mais tarde o semanário em voga de Nova
Iorque, The Village Voice, dará a notícia. Trata-se de uma recepção em sua homenagem organizada por "Bobo" Rockefeller, membro herético da dinastia emblemática do
capitalismo triunfante, parente de Nelson Rockefeller, governador do Estado de Nova Iorque. Envergando um uniforme impecável (o que nem sempre acontece), o Che encontra
aí uma amiga da sua irmã, dos tempos de Córdova, Magda Moyano, bem como uma jornalista da Look, que já o entrevistara, Laura Bergquist. Quando ele

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entra, silêncio geral; depois o gelo desfaz-se, e um dirigente estudantil chega até a pedir-lhe conselho para fazer uma guerrilha nos Estados Unidos! Reunião um
pouco surrealista, observa a revista, mas muito smart, ninguém duvida.
Após estas futilidades, Guevara não regressa a Havana. Segue directamente para Argel, numa longa digressão que o manterá afastado de Cuba por três meses. Voltar
à capital argelina é sempre um prazer para ele. Argel "a Branca", com as suas ruas animadas e ruidosas descendo até ao Mediterrâneo, como os cerros de Valparaíso
no Pacífico, não é apenas a cidade luminosa de uma revolução que lhe parece fraterna e audaciosa; é também - só mais tarde o saberemos - uma base discreta de apoio
dos movimentos de libertação latino-americanos e africanos.
Ben Bella não lhe regateia o apoio. Estabeleceu-se uma sólida amizade entre os dois homens, que conversam tanto em francês como em espanhol (o presidente argelino
nasceu em Mamia, na Orânia penetrada de influências hispânicas). O Che transmite-lhe um pedido em nome de Fidel. Aceitaria ele acolher no seu território quadros
revolucionários latino-americanos treinados em Cuba? Poderia a Argélia servir de ponto de ligação para encaminhar armas para a América Latina? De facto, a vigilância
dos Estados Unidos complicava um pouco essa tarefa de apoio indispensável para Cuba. "A minha resposta foi, evidentemente, imediata e positiva", afirma Ben Bella.
"Foram criadas estruturas para receber os representantes dos movimentos revolucionários latino-americanos, colocados sob a direcção do Che. [...] Instalou-se um
estado-maior nas colinas de Argel, numa grande vivenda rodeada de jardins, que decidimos oferecer-lhe como um símbolo. Essa Villa Susini fora já célebre, na época
das lutas de libertação, como centro de tortura. Muitos dos nossos tinham morrido lá. [...] Um dia, o Che disse-me: "Ahmed, tivemos um azar; um grupo de homens treinados
na Villa Susini foi preso na fronteira entre este e aquele país - já não me lembro quais eram - e receio que falem se forem torturados". [...] Estava com medo que
se descobrisse a verdadeira natureza das "sociedades de import-export" que tínhamos criado na América Latina para apoiar a luta armada"193.
O universitário venezuelano Oswaldo Barreto, que nessa altura estava em Argel, confirma em todos os pontos esse papel pouco conhecido da Argélia. O Partido Comunista
Venezuelano era então o mais importante na luta armada, "frente" que incluía os castristas do MIR (Movimento da Esquerda Revolucionária). Militante comunista nessa
época, Barreto fora encarregado de "montar um dispositivo" para receber nesse longínquo território norte-africano, e em seguida encaminhar devidamente, armas gratuitamente
cedidas pelos chineses e coreanos. "Eram armas americanas (explica ele) sacadas ao inimigo, e não Kalachnikovs, pois os cubanos, autores da criação dessa rede, não
queriam ser acusados de fornecer material soviético". Cuba pedira aos argelinos que fizessem seguir para a China dez mil toneladas de açúcar a troco de vinte toneladas
de armas. Era Papito Serguera, a coberto da sua qualidade de embaixador, que servia de intermediário. "Tornei-me então

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argelino, e montei uma sociedade-fantasma de exportação de azeite; escondíamos as armas nos barris", conta Barreto194.
Nesse mês de Dezembro de 1964, enquanto Guevara corre mundo, Fidel convoca secretamente, em Havana, uma conferência de dirigentes dos partidos comunistas da América
Latina. Seria uma tentativa para apresentar uma linha comum latino-americana antes da reunião comunista internacional marcada por Moscovo para 1 de Março de 1965?
Desde o abandono soviético na crise dos mísseis, em 1962, e apesar da reconciliação de Abril de 1963 entre Castro e Kruchtchev, foi-se cavando o fosso entre os simpatizantes
pró-castristas e os PC ortodoxos do continente, alinhados pela tese moscovita de uma "coexistência pacífica" mais tranquila, inclusivamente no plano internacional.
Apesar dos talentos oratórios do camarada Castro, que lhes pede uma solidariedade activa em relação às guerrilhas, muitos há que hesitam. Os comunistas argentinos
e uruguaios são os mais reticentes. Contudo, a conferência acaba por aprovar um apoio à luta armada em apenas seis países: Venezuela, Colômbia, Guatemala, Honduras,
Paraguai e Haiti. De salientar que não está presente o PC Boliviano.
A este respeito, Barreto conta uma história que lhe chega em primeira mão e tem bastante interesse, pois marca um ponto cronológico essencial quanto à escolha do
teatro de operações para o qual Guevara se irá orientar e quanto ao momento da sua decisão. De facto, os mais próximos dele já não têm qualquer dúvida de que ele
está ansioso por se lançar na luta armada. Desta vez, já não é o Brasil que ele traz debaixo de olho, mas a Venezuela. Uma guerrilha armada conseguiu implantar-se
aí em seis províncias para combater o regime reformista do presidente Betancourt. Desde que, na Costa Rica, esse Betancourt tinha respondido "Estados Unidos" à questão
de confiança: - "URSS ou EUA?" - que o jovem Guevara lhe colocara à queima-roupa em 1953, o político fora incluído na categoria dos traidores potenciais. À frente
do movimento armado venezuelano está um antigo capitão da marinha, Medina Silva, o qual está, por acaso, de passagem em Paris, na mesma semana de 18 a 25 de Dezembro
de 1964 em que o Che está em Argel. Pedem-lhe então que dê um salto à capital argelina para um encontro que Guevara deseja ter com ele, em privado. "O que Guevara
me propôs", dirá depois Medina Silva a Barreto, "era vir combater ao nosso lado. Respondi-lhe que seria bem-vindo, mas que ficaria sob o meu comando"195. O Che acabou
por renunciar ao projecto. "Achava que os venezuelanos não estavam dispostos a ir até ao fim, que faziam chantagem com a sua guerrilha. Mas o que era indiscutível,
é que Guevara queria voltar a combater. Previa já a sovietização de Cuba", afirma Barreto. O que também parece certo é que em Dezembro de 1964, o Che ainda não decidira
em que "parte no mundo" iria contribuir com os seus "modestos esforços". Irá a sua viagem africana ajudá-lo a escolher o rumo?
Com efeito, Argel é muito mais do que uma base logística de apoio às revoluções latino-americanas. Sempre com o acordo de Ben Bella, é também

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uma plataforma ideal para montar, à escala africana, uma rede de solidariedade revolucionária entre Cuba e os países "progressistas" do continente acabados de se
libertar do colonialismo. Em Nova Iorque, quando o soviético Gromyko reunira, no quadro da ONU, os chefes de delegação dos países socialistas, a ausência dos representantes
africanos fora flagrante. Contudo, o Che aproveitara a sua estadia na Big Apple norte-americana para se encontrar com um dirigente negro americano de raízes africanas,
Malcolm X - que seria assassinado algumas semanas depois. Embora, a conselho de Castro que temia um atentado, Guevara tivesse renunciado a participar num comício
em Harlem, com um ministro tanzaniano, para denunciar a intervenção belgo-americana do Congo, fez questão, apesar de tudo, de dirigir uma mensagem de simpatia para
com os seus "irmãos e irmãs" de Harlem, através de Malcolm X197.
Desde o triunfo dos rebeldes sobre Batista, Guevara nunca deixou de se interessar por todos os movimentos de libertação estimulados pelo exemplo vitorioso de Castro.
Não se trata de "exportar" a Revolução, isso ele nunca fez, mas sim, o que é diferente, de dar um apoio real, técnico, financeiro, militar, aos revolucionários corajosos
decididos a passar à acção nos seus respectivos países. Como atrás referimos, é ele que dirige toda a solidariedade concreta que Cuba pode dar aos combatentes latinos
ou africanos em centros adaptados a essa tarefa precisa. O Che pressentiu rapidamente que o sentido profundo do século XX seria, não tanto a revolução do proletariado
anunciada por Marx, mas sim a imensa vaga de libertação das "neocolónias" na América Latina, na África e na Ásia. No fundo, prepara concretamente, em 1966, o grande
levantamento do Terceiro Mundo que vai ter lugar em Cuba: a Conferência Tricontinental. Durante as suas estadias na Argélia, teve conversas apaixonadas sobre essa
questão com um trotskista herético de origem egípcia, de cultura grega e língua francesa, Michel Raptis, aliás "Pablo", conselheiro de Ben Bella. Nessa época, Argel
fervilha de toda uma fauna de "internacionalistas" que querem inflamar o continente, despertar o Terceiro Mundo no seu conjunto. Entre eles há uma personagem generosa,
um tanto misteriosa, Henri Curiel, rodeado de inúmeros pieds-rouges - nome dado aos franceses de esquerda que, depois de terem militado pela independência da Argélia,
decidiram continuar a ajudar os seus "irmãos". Serge Michel, pitoresco pied-rouge, antigo adido de imprensa de Lumumba no Congo, recorda-se de uma noite inteira
passada com o Che e com Papito a preparar uma entrevista-manifesto para Alger, Ce Soir, com muito rum e charutos cubanos à mistura.
Guevara está convencido de que esse continente está carregado de esperanças, que representa - disse-o a Ben Bella - "o elo fraco do imperialismo. Devem concentrar
nele todas as vossas forças"198. Para verificar essa hipótese e levar a esperança subversiva cubana junto dos novos governantes mais predispostos a aceitá-la, faz,
a partir de 25 de Dezembro de 1964 e acompanhado do embaixador Serguera, uma grande digressão por sete países africanos que recentemente haviam conquistado a independência.

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Não foram escolhidos ao acaso. Foram aqueles que manifestaram, de forma evidente ou velada, uma ideologia de ruptura com o "Ocidente". O objectivo desse périplo
continental de cerca de dois meses revelou-o ele generosamente a Josie Fanon, viúva de Frantz Fanon, para a Révolution Africaine de 23 de Dezembro de 1964: "Uma
luta revolucionária internacional dos proletários e dos camponeses. [...] Uma frente continental". Em privado, Papito Serguera é mais explícito: "Aquilo com que
sonhávamos era criar nada menos do que uma União das Repúblicas Socialistas de África. Já tínhamos escolhido a sigla: URSA. Isso, nunca o dissemos, muito menos aos
países socialistas. Nós, isto é, o Che, Fidel, Raul, alguns membros da direcção e do governo. Mas nem todos. Era compartimentado. O projecto rasgava horizontes199..."

A África negra, uma descoberta interrompida

"Tínhamos à nossa disposição um avião Iliuchine 18, previsto para 80 pessoas, de fabrico soviético. Mas o aparelho era cubano. Para além da tripulação, também cubana,
íamos só quatro ao avião. A nossa primeira etapa foi o Mali". Instalado na sua cadeira de baloiço, à sombra da varanda da sua vivenda em Miramar, em Havana, Jorge
Papito Serguera recorda cada uma das peripécias dessa viagem "que é necessário conhecer para se compreender como o projecto do Congo surgiu no espírito do Che"200.
Para este último, a missão é, antes de mais, política, evidentemente. Mas é também a descoberta física de um continente "exótico" que ele conhece apenas através
dos ecos do seu combate anticolonialista. Ao chegar ao Mali, a 26 de Dezembro de 1964, Guevara tem o primeiro contacto com uma África muito diferente da África do
litoral mediterrânico, já ocidentalizada: a verdadeira África negra, subsariana, a da savana seca e do mato, marcada pelo deserto e pelo Islão, por uma visão do
mundo e por um tipo de raciocínio que escapa ao racionalismo cartesiano. Antigo Sudão Francês conquistado por Gallieni no fim do século XIX, o Mali formou com o
limítrofe Senegal uma federação que se desfaz quando o país acedeu à independência, em 1960. Ficou sem acesso ao mar. Foi em Bamako, a capital, que em 1946 foi criado
o Rassemblement Démocratique Africain, de onde surgirão quase todos os movimentos de libertação contra o colonialismo francês. Foi aí que fez a sua primeira campanha
aquele que está agora à frente do país, Modibo Keita. Acaba de sair de uma rebelião tuaregue no Norte, mas ouve com interesse o discurso de Guevara e garante-lhe
as suas simpatias socialistas.
A vantagem de ter um avião à disposição é poder descolar quando se quer. O problema é que, à chegada, nem sempre se é aguardado como convém. Depois do Mali, Guevara
vai directamente para Brazzaville (2 de •Janeiro de 1965), capital do Congo ex-Francês, a não confundir com o Congo ex-Belga, cuja capital é Leopoldville, do outro
lado do rio. É domingo. Ninguém parece ter sido avisado, a torre de controle não responde, mas o

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avião consegue aterrar. Serguera explica: "Eu já tinha estado com o presidente Massemba-Débat. Fidel entregara-me uma carta para ele. Pretendia estabelecer relações
diplomáticas. [...] Nunca falámos de uma participação directa de Cuba numa luta armada, mas íamos apalpando terreno para saber até que ponto os governos estavam
dispostos a empenhar-se"201. Guevara faz, pois, as suas tentativas de aproximação e, mais uma vez, a resposta foi bastante positiva. Massemba-Débat, cujo Movimento
Nacional Revolucionário proclamou um "socialismo africano", está preocupado com a situação neocolonialista que reina no antigo Congo Belga, demasiado próximo. Manifesta
o seu acordo total em "ajudar os cubanos a ajudar os congoleses". E outros irmãos africanos. Foi em Brazzaville, por exemplo, que o Che encontrou Agostinho Neto,
dirigente da revolução angolana; cede-lhe instrutores cubanos, peritos na guerrilha. A 7 de Janeiro, parte para Conakry.
Com Seku Turé, presidente da Guiné, o contacto é ainda melhor. Foi o único chefe de Estado da África Ocidental a optar pela independência total em 1958, respondendo
com um "não" ao referendo do general De Gaulle que propunha a "comunidade francesa". Com o Gana e o Mali, também eles hostis (embora de modo desigual) ao "Ocidente",
a Guiné formou, desde 1961, uma Entente dos Estados Africanos. O país recebe o apoio da URSS, da Checoslováquia e da China. Guevara encontra-se, pois, em terreno
propício para se referir à experiência cubana e sublinhar diante do seu interlocutor as vantagens e os perigos de tal cooperação. "Seku Turé convidou-nos a ir até
à fronteira com o Senegal para assistirmos à representação de uma peça de teatro, em francês, de Leopold Sedar Senghor. Presidente do Senegal, Senghor também se
deslocara. A sua peça falava da negritude. Seguiu-se uma conversa alegre e animada entre Sekou Touré, Senghor e Guevara. Quem mais ria era o próprio Senghor", conta
Serguera202. Em Conakry, Guevara fala também com Amílcar Cabral, dirigente marxista da Frente de Libertação da Guiné-Bissau, conhecido em Havana. Com o acordo de
Seku Turé, os cubanos enviarão a Cabral um navio inteiro carregado de armas. "Eu próprio assisti, uns meses depois, ao descarregamento e ao depósito das armas em
Conakry. São coisas que nunca dissemos", prossegue Serguera203.
No Gana, antiga colónia da coroa britânica (antiga Costa do Ouro), independente desde 1957, o cacau é mais ou menos o que o açúcar é para Cuba, uma fonte de receita
essencial. Desde que os preços baixaram, provocando uma crise económica, o presidente Nkrumah aproximou-se dos países socialistas, sobretudo da China, cujo sistema
de planificação pretende imitar. Ninguém está melhor colocado que Guevara para fazer algumas sugestões de prudência, tiradas da experiência. Ainda em Dezembro passado
confessara que o presidente Dorticós e ele próprio sentiam uma espécie de angústia sempre que assinavam uma directiva de planificação. "Nunca sabemos se acabámos
de fazer uma coisa inteligente ou uma grande asneira"204.
Dá uma entrevista ao jornal francófono de Acra, L'Étincelle, na qual sublinha os pontos de semelhança com Cuba, sobretudo no plano musical,

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amável banalidade, cujo humor só pode ser apreciado por aqueles que sabem que, em música, ele é um zero205. Mais sério, evoca - leitmotiv - a unidade de acção necessária
entre a América Latina e África. E como no Gana existe também um partido único, e ele sabe que um jornalista da Prensa Latina vai logo transmitir as suas afirmações
(Revolución de 19 de Janeiro de 1965), permite-se uma "indirecta", como se diz na Argentina (e em Portugal também), referindo-se a Cuba: "A nossa organização será
diferente da de todos os outros partidos irmãos. Hoje, depois da crise do sectarismo de 1962, todos os membros do partido devem ser eleitos pelas massas ou, pelo
menos [prudente variante] por elas aceites". E acrescenta, exaltando o espírito de liberdade de opinião: "Temos de pensar com a nossa cabeça, não copiar ninguém
e meter mãos à obra"206. Colocadas no contexto nacional e internacional da época, estas evidências não são tão banais como parecem.
Tecendo conscientemente a sua teia africana, Guevara dá um salto ao Daomé (500 quilómetros ida-e-volta pela estrada, atravessando o Togo). Bem escolarizado pelas
missões religiosas francesas: o país era considerado o "Quartier Latin" da antiga AOF (África Ocidental Francesa). O Che prossegue o seu trabalho de representante
revolucionário junto do presidente Apithy, ignorando que este seria derrubado poucos meses depois. "De Acra a Porto-Novo, viajámos de carro", conta Serguera. "Tivemos
de atravessar o rio Volta numa espécie de balsa. Apithy mostrou-nos uma cidade lacustre: paisagens maravilhosas, mas uma miséria inacreditável"207. O Che arranja
tempo para escrever um postal "pedagógico" à sua filha mais velha, Hildita (8 anos): "Querida, procura no mapa o Daomé..."208. Não esquece que lhe ensinou a ler
e a escrever, como aos seus seguranças, quando a traziam ao seu gabinete de ministro, depois da escola. E, subitamente, mudança de programa inesperada. Partindo
de Acra, a
25 de Janeiro, no seu grande avião vazio, o comandante Guevara interrompe a sua viagem africana. Regressa a Argel e parte imediatamente para Paris. O seu próximo
destino, insólito, será a China. Que motivos teriam ditado tal decisão?
Em Paris, tem de aguardar a chegada de dois emissários de confiança de Castro - Emilio Aragonés e Osmany Cienfuegos, acompanhados de Manresa, o secretário fiel que,
conscienciosamente, veio pôr o comandante a par das últimas novidades de Cuba. Esses dois dias de Paris, 28 e 29 de Janeiro de 1965, por breves que sejam, constituem
umas férias forçadas, caídas do céu, para o homem apressado. Prefere instalar-se no hotel Vernet, perto dos Campos Elíseos, em vez de ficar na Embaixada ali próximo,
de modo a evitar as mundanidades que o embaixador Antonio Carillo, um "funcionário", preparou em sua honra. No hotel, conversa com um jovem médico cubano, José Luis
Llovio-Menéndez, com quem simpatizou, e que vive em França, casado com uma francesa.209 Encontra também o seu velho amigo Gustavo Roca, que viaja muito entre a Argentina,
Cuba e a Europa. Roca lembra-se da tristeza de Ernesto quando, nesse dia, evocam o fim trágico de Masetti na Argentina.
Sempre ávido de leitura, Guevara aproveita para ir meter o nariz nas livrarias da margem esquerda. Traz uma boa colheita. À noite, cancela um

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jantar e mergulha na leitura, em vez de sair com o resto da delegação, que entretanto chegou. Algumas revistas e jornais publicaram já fotografias suas. Mostraram-no
em Genebra, em Nova Iorque, por isso não passa completamente despercebido. Serguera afirma que, "na rua, alguns olhavam para ele com o seu casacão de caqui, botas
e boina, de charuto espetado num rosto barbudo, e comentavam: "Aquele vestiu-se à Che Guevara". Aliás, isso já acontecera no avião. Os passageiros observavam-no,
intrigados, quando ele planava, em peúgas, pelo corredor. Alguns interrogavam-no. Aquilo divertia-nos. Ele respondia de modo evasivo"210.
Porquê a China? E porquê naquele preciso momento? No seu regresso a Cuba, em conversa com o pessoal do seu Ministério, Guevara falará de forma não menos evasiva
desse estranho desvio de mais de vinte mil quilómetros entre o Gana e a Tanzânia. "A viagem à China foi uma viagem-relâmpago para uma troca de opiniões com o partido
chinês. Falei com Liu Chao-Chi e praticamente com todo o secretariado do partido. Expressámos os nossos pontos de vista respectivos, de modo a analisar a forma de
desenvolver a nossa ajuda recíproca"211. Ora, isto é bastante vago. Um telegrama da AFP refere que foi "o próprio Deng Xiau-Ping, secretário-geral do PC Chinês,
[que] recebeu em Pequim, a 3 de Fevereiro de 1965, Guevara e os seus dois companheiros". Osmany Cienfuegos, irmão de Camilo, é um antigo membro das Juventudes Comunista
da época de Batista, um dos vinte e cinco dirigentes do Partido Comunista em formação, "protegido" dos dois irmãos Castro; o capitão Emilio Aragonés é um dirigente
do ex-M-26, e agora chefe das milícias.
A missão inesperada do Che inscreve-se, obviamente, no conflito sino-soviético. Porque Cuba, pela sua determinação em lutar por todos os meios contra o imperialismo,
pelo seu exemplo contagioso na América Latina, mas também pelas suas ligações económicas e políticas específicas com a URSS e os seus aliados, tornou-se uma peça
importante no diferendo entre os dois irmãos inimigos do campo socialista. Oswaldo Barreto contará que depois da sua conferência clandestina de Havana, em Dezembro
de 1964, uma representação de vários dirigentes dos partidos comunistas latino-americanos, não desconfiando de nada, achou oportuno pregar a reconciliação entre
os dois gigantes da revolução marxista. Segundo o testemunho do venezuelano Eduardo Gallegos Mancera, Moscovo aceitara receber e prestar alguma atenção a essa delegação,
ao passo que em Pequim, Mao, acompanhado de Liu Chao-Chi, manifestara em relação a ela uma ironia desdenhosa, evocando "os três tigres de papel" que assustam a Revolução:
o imperialismo, o revisionismo e o povo212.
Ora, o Che é encarregado de uma missão análoga. Não comenta a política interna chinesa. Ignora, sem dúvida, como quase toda a gente na época, as loucuras da política
económica chinesa, os trinta milhões de mortos - trinta milhões! - provocados pela grande fome nos campos, entre 1959 e 1961. E o período designado como o "grande
salto em frente". Guevara é portador do texto "neutralista" do discurso que Fidel irá pronunciar no mês seguinte na

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reunião de Moscovo, convocada por Brejnev para fazer com que a China seja condenada pelo conjunto dos Partidos Comunistas. Cuba considera importante dar conhecimento
dele a Pequim. Mas os chineses não apreciam o simples facto de Cuba participar nessa farsa destinada a excomungá-los da família comunista internacional. O próprio
Che insiste no enfraquecimento que o conflito sino-soviético representa na luta contra o imperialismo, único objectivo da sua revolta.
Pois o tempo urge. No Vietname do Norte, os Norte-Americanos dão início aos bombardeamentos intensivos, mas a China pode servir de base de apoio aos Vietnamitas.
Em contrapartida, em Cuba, apesar da promessa verbal de Kennedy a Kruchtchev - ambos já mortos -, o perigo de um ataque militar por parte dos Estados Unidos não
pode ser totalmente posto de parte. Os cubanos foram informados, com a amargura que se imagina, que não podiam contar com uma resposta imediata da URSS, nem talvez
sequer com a sua ajuda material se os Estados Unidos endurecessem ainda mais o seu bloqueio. Portanto, é urgente abrir outras frentes. Que Cuba está disposta a tomar
a iniciativa para ajudar "patriotas" a abrir outras frentes no mundo, é um ponto que não oferece dúvida. Que, nessa altura, Guevara tenha decidido combater ao lado
desses patriotas, é bastante possível. Que, para tal, tenha pedido o apoio da China, é plausível.
Em todo o caso, desta vez Mao não recebe o Che, e o acolhimento que os chineses dispensam à delegação cubana é um pouco frio213. K. S. Karol, que em Março de 1965
se encontra em Pequim, informa que os "maoístas" latino-americanos que lá encontrara eram bastante sarcásticos em relação a Castro, que consideravam muito longe
de ter "o estômago em Moscovo e o coração em Pequim", como ele pretendia fazer crer. Segundo eles, "Castro estava unha com carne com os Soviéticos porque não passava
de um pequeno-burguês, do estilo dos novos-ricos da URSS"214. Se se excluir a referência a Castro, intocável, esta crítica do comportamento soviético não deixa de
ter um certo tom guevarista.

Os países socialistas devem pagar

A última parte da longa viagem do Che pelo mundo apresenta alguns factos marcantes que vão influir na sua carreira e na sua imagem internacional. Após o interlúdio
chinês, regressa a África. Uma breve escala em Paris, entre dois voos, permite-lhe visitar o museu do Louvre, admirar alguns quadros bastante afastados do realismo
socialista, El Greco, Rubens, a inevitável Gioconda, a Nave dos Loucos de Hieronymus Bosch215. Em seguida é a Tanzânia, aonde chega a 11 de Fevereiro. A escolha
não é inocente. Foi em Cuba que, no maior secretismo e apesar das recomendações soviéticas de "coexistência pacífica", foram treinados e formados os revolucionários
negros e africanos que derrubaram a aristocracia árabe em Zanzibar, tendo

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criado, há um ano, um novo Estado, a Tanzânia, país dos grandes lagos, até então sob tutela britânica. Em Dar es-Salaam, a capital, aberta ao Oceano Índico, o Che
avista-se com o presidente Julius Nyerere, originário da região do lago Vitória, um católico formado em Edimburgo, de inspiração socialista, que em breve se inclinará
para a cooperação proposta pelos camaradas chineses. Tem também encontros separados com dirigentes congoleses, partidários de Lumumba: Gaston Soumialot e Laurent
Kabila.
Um telegrama da Prensa Latina de 18 de Fevereiro de 1965 informa que "o ministro Guevara veio trazer aos movimentos de libertação nacional, instalados na Tanzânia,
todo o apoio moral de Cuba"216. Esse apoio não será apenas moral, apesar de Guevara não ter ilusões sobre as pomposas declarações de certos revolucionários de salão,
que arranjam sempre mil pretextos para explicar que é preciso esperar. "A visita a Dar es-Salaam revelou-se bastante instrutiva", escreve ele nos seus apontamentos
pessoais. "Há muitos freedom fighters a residir lá, a maioria comodamente instalada em hotéis, tendo feito da sua situação uma autêntica profissão, uma ocupação
por vezes lucrativa e quase sempre cómoda. [...] Quase todos pediram um treino militar em Cuba e uma ajuda financeira; era esse geralmente o seu leitmotiv. E acrescenta,
esclarecendo o que irá suceder posteriormente: "Conheci também o grupo dos combatentes congoleses. Desde o primeiro encontro, pudemos verificar a quantidade extraordinária
de tendências e de opiniões opostas que reinavam nesse grupo dirigente da revolução congolesa"128. Mas o essencial é que Nyerere consentiu que a Tanzânia servisse
de base de apoio. A situação desse país é ideal, separado apenas do antigo Congo Belga pelo lago Tanganhica, enorme, é certo. Apesar das múltiplas preocupações,
o Che não abandona o "optimismo da [sua] bondade". "Depois da minha digressão por sete países africanos, estou convencido que é possível criar uma frente comum contra
o colonialismo, o imperialismo e o neocolonialismo"219, afirma numa conferência de imprensa. E esclarece à revista Jeune Afrique, de 21 de Março de 1965: "Encontrei
povos inteiros sob uma tal pressão que pareciam água a ferver"220.
A 19 de Fevereiro, acompanhado de Pablo Rivalta, professor comunista negro, corpulento, antigo membro do PSP promovido a embaixador na Tanzânia, vai ao Cairo, onde
fica três dias. Guitart, outro embaixador cubano, aguarda-os lá. Juntamente com Serguera, é o terceiro homem do dispositivo de apoio de Cuba em África: Argel - Cairo
- Dar es-Salaam. Os Cubanos sabem que podem contar também com a cumplicidade activa da rede diplomática argelina em África, instruída nesse sentido por Ben Bella.
Nasser recebe Guevara logo no dia seguinte à sua chegada. É quase um amigo de longa data. Estabeleceram-se ligações de confiança entre os dois homens. Guevara admira
esse militar excepcional que restituiu o Egipto aos egípcios, chefe de Estado competente e também hábil diplomata. Por seu turno, Nasser sente uma simpatia viril
pelas ideias generosas desse irmão mais novo de um outro continente, cuja intransigência tenta abrandar. "Nasser sentiu logo que Guevara estava abatido," conta Mohamed
Heikal. "Interrogou-o, mas

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Guevara não quis abrir-se. Permaneceu pouco comunicativo"221. O Che tem de regressar a Argel. Promete voltar logo a seguir. É então que se abrirá a Nasser, como
a um confidente. Com uma sinceridade tocante.
A nova estadia de Guevara em Argel é marcada pela sua intervenção, a
24 de Fevereiro de 1965, num seminário económico de solidariedade afro-asiática, para o qual Cuba fora convidada apenas na qualidade de observadora. Trata-se apenas
de um seminário de trabalho, no qual Ben Bella pediu, a abrir, que se traçassem "linhas de acção comum à escala afro-asiática". Mas estão presentes trinta e cinco
delegações, entre as quais as da URSS e da China, bem como representantes revolucionários do Vietname do Sul, da África do Sul, de Angola, etc.
O que, nos escritos do Che, ficará conhecido como o "discurso de Argel" retoma o essencial do que o Guevara defendeu nos seus artigos, conferências, reuniões ministeriais
e outros debates, a saber, que a lei do valor é contrária à ética quando rege as trocas entre os países igualmente empenhados na via do socialismo222. Contudo, nunca
o tom foi tão duro. O ministro cubano não cita nomeadamente a URSS, mas é a ela que se refere quando declara que a "prática do internacionalismo proletário" é "um
dever" contra o inimigo imperialista comum. "O desenvolvimento dos países que lutam pela libertação deve ser pago pelos países socialistas", martela ele sem cessar.
Na transcrição prévia do texto, Oswaldo Barreto, o comunista venezuelano que traduziu o discurso - pronunciado em francês - deteve-o neste ponto, um tanto abalado:
"Queres mesmo dizer que eles devem pagar? - Evidentemente, respondeu ele, com uma espécie de raiva. Têm de pagar, carago [que paguen, carajo!]"223. A indignação
de Guevara aumentou ainda quando Serguera, Pedro Duno e outros camaradas latinos que gravitam em torno da Embaixada lhe observaram que os países de Leste não hesitavam
em apresentar a factura à Argélia, até para a cooperação médica, ao passo que Cuba assumia todos os encargos com os médicos que, por solidariedade, colocava ao serviço
dos camaradas argelinos.
O discurso do Che sobe de tom, transforma-se em requisitório. Lança críticas severas, certeiras, que incomodarão. "Em certa medida, os países socialistas são cúmplices
da exploração imperialista [...]. Têm o dever moral de pôr termo à sua cumplicidade tácita com os países exploradores do ocidente"224. Apresentando-se como o arauto
dos países pobres contra os países ricos, Guevara exige uma "concepção inteiramente nova das relações internacionais". Invoca três temas fundamentais que, nas duas
décadas seguintes, se tornarão reivindicações clássicas, recorrentes, dos países do Terceiro Mundo. Antes de mais, uma transferência equitativa dos conhecimentos
("colocar ao alcance dos países subdesenvolvidos toda a tecnologia dos países avançados sem utilizar o método actual das patentes"). Depois, o respeito pela identidade
cultural ("Os técnicos que vêm para os nossos países devem ser exemplares"; devem ter em conta o meio, a língua e costumes diferentes). Finalmente, renegociação
da dívida ("Chegou a hora de sacudir o jugo e de

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impor a renegociação das dívidas externas, que nos arruinam"). Mas, sobretudo, insiste ele ainda, a concluir, é preciso ajudar os povos ainda oprimidos a libertarem-se
"sem estar a verificar a sua solvibilidade. As armas não são uma mercadoria; devem ser entregues gratuitamente [...] aos povos que as pedem para disparar contra
o inimigo comum". Pode imaginar-se o impacto deste discurso, sobretudo no mundo socialista. Foi enorme. "Nunca um dirigente comunista no poder usou de tal linguagem
com os soviéticos sem que o seu país rompesse com a URSS ou fosse excomungado", afirma K. S. Karol225. No microcosmo parisiense dos estudantes de esquerda, a diatribe
guevarista é imediatamente difundida, policopiada. Os ortodoxos do PC ficam consternados. Os "esquerdistas", pelo contrário, ficam encantados com esta crítica violenta
ao revisionismo soviético. Philippe Robrieux, jovem dirigente comunista, propõe à direcção da UEC (União dos Estudantes Comunistas) que organize um amplo debate
sobre o estalinismo, durante um comício na sala da Mutualité, em Paris, para o qual seria convidado Che Guevara, já bastante popular entre a juventude. Membro do
secretariado nacional da UEC, a camarada Jeannette Pienkny, que, desde 1962, faz ligação permanente entre Paris e Cuba, onde envergou a farda das milícias, põe Robrieux
em contacto com a Embaixada cubana em Paris. A qual, telefonando para Argel, transmite o convite ao interessado. Que pede para reflectir. Mas Robrieux é, entretanto,
desautorizado pela hierarquia, e o projecto cai por terra226.
Em Havana, Castro confirma a participação de Cuba na conferência comunista internacional convocada por Moscovo para condenar a China. Envia o seu próprio irmão,
acompanhado de Osmany Cienfuegos, precisamente o mesmo que acompanhou recentemente Guevara a Pequim. Significaria isso que Castro se demarca das críticas do Che?
Sim, sem dúvida, se nos limitarmos às contingências da Realpolitik, uma vez que a economia de Cuba só sobrevive com o apoio soviético. Não, se se admitir que, na
distribuição dos papéis, Guevara proclamou bem alto o que Castro pensa em voz baixa mas que a sua função de chefe de Estado não lhe permite reconhecer. Além disso,
é bom ter sempre dois ferros ao lume, sobretudo quando se é, como Castro, mais pragmático do que doutrinário. Em todo o caso, a partir desse momento Guevara é considerado
"herético", tanto em Moscovo como nos meios comunistas "tradicionais" latino-americanos. Em contrapartida, a sua franqueza brutal não pára de entusiasmar todo o
conjunto dos movimentos revolucionários.
No próprio dia desse discurso, Aleida, a esposa cubana, dá à luz, em Havana, o seu quarto filho. É um rapaz. Chamar-se-á Ernesto, como o pai. Ausente há mais de
dois meses, entusiasmado com uma gestação de outro tipo, a de uma guerra de libertação do continente africano, Guevara esta já distanciado dessas aventuras familiares.
"Os dirigentes da Revolução têm filhos que, nos seus primeiros balbuceios, não aprendem os nomes deles e mulheres que, também elas, são sacrificadas ao triunfo da
Revolução. [•••] A nossa família deve compreender isto"227, diz ele num texto-chave que começou a redigir durante essas deambulações africanas.

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"Fora da Revolução, não há vida"

Quando regressa por oito dias ao Cairo, a 2 de Março de 1965, como prometera, o Che procede a uma reflexão pessoal e a uma montagem logística antes de voltar para
Havana. De facto, parece ter tomado a decisão de acabar com o conforto ingrato do trabalho de ministro e reencontrar a voluptuosidade rude da luta de guerrilha,
em contacto directo com o inimigo. Não será a América Latina, como se poderia pensar - ele não a esquecerá -, mas sim o Congo-Léopoldville, onde "o neocolonialismo
mostrou as suas garras", como denunciou em Argel, no seu discurso. A actualidade quase impõe essa escolha. Há três meses, em Novembro de 1964, comandos paraquedistas
intervieram em Stanleyville, no Norte do país, alegadamente para libertar dois mil brancos reféns dos rebeldes congoleses. Para cúmulo, os paraquedistas foram transportados
por aviões norte-americanos pilotados por cubanos anticastristas, provavelmente os mesmos que tão tristemente se haviam distinguido no fiasco da Baía dos Porcos,
há quatro anos. Em Nova Iorque, Malcolm X falara ao Che do seu projecto de criar uma brigada de voluntários negros afro-americanos para dar apoio aos Congoleses.
Para Guevara, isso já não basta. É preciso ir mais longe. Numa entrevista ao semanário marroquino Libération (17-23 de Março de 1965), é mais explícito: "A vitória
no Congo mostrará aos Africanos que a libertação nacional abre caminho ao socialismo; uma derrota conduzirá ao neocolonialismo. [...] É isto que está em jogo"228.
No seu primeiro encontro com Nasser, Guevara põe-no a par do segredo e revela-lhe que decidiu tomar ele próprio o comando de um destacamento de cubanos negros que
vêm dar apoio aos rebeldes congoleses. Tem o acordo de princípio de Ben Bella para que a Argélia participe nessa operação e solicita uma participação egípcia. "Passei
a noite inteira a andar de um lado para o outro no meu quarto do hotel Shepheards, tentando decidir se devia ou não falar-lhe nisto"229, confessa ele.
O testemunho de Heikal, que relata essa conversa nos seus Documentos do Cairo, é de extrema importância, apesar de por vezes hesitar na cronologia. Confidente e
conselheiro do Rais, assistiu à conversa, ou ouviu-a da boca do próprio Nasser. Ao tomar conhecimento do projecto do amigo, o presidente egípcio não esconde o seu
cepticismo. Também ele fala sem rodeios: "Estou surpreendido consigo. Quer transformar-se num novo Tarzan, um branco que vem para o meio dos negros para os guiar
e proteger? [...] É impossível. [...] Não vai dar certo. Como branco, será rapidamente detectado e, se mais brancos quiserem segui-lo, dará um pretexto aos imperialistas
para afirmarem que não há diferença entre vós e os mercenários. [...] Se for para o Congo com dois batalhões cubanos e se eu enviar um batalhão egípcio chamarão
a isso ingerência, o que será mais prejudicial do que benéfico".
A conversa prossegue noutro dia, na residência pessoal de Nasser. O Che explica porque criticou as práticas egoístas dos países socialistas, sublinha de novo o papel
de Cuba na América Latina, fala da Argentina. Afirma que,

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antes de Castro, só Perón conseguira desencadear um movimento popular verdadeiramente significativo; "mas Perón portou-se como um cobarde. Não teve a coragem de
enfrentar a morte e fugiu". E Guevara acrescenta ainda"O momento crítico da vida de um homem é aquele em que toma a decisão de enfrentar a morte. Se decide enfrentá-la,
é um herói, quer a sua acção se salde num sucesso ou num fracasso. Pode ser bom ou mau político mas, se não for capaz de enfrentar a morte, não passará de um político!"
Mais uma vez, Nasser reage como um irmão mais velho. Critica-o por ter, como diria Montaigne, "continuamente a morte na boca". "Porque fala constantemente da morte?
Você é novo. Se for necessário, morreremos pela Revolução, mas é preferível viver para ela".
Como Eros nunca anda longe de Thanatos, Guevara, estimulado pelo epicurismo egípcio, consente em experimentar um pedaço de vida. Aceita o convite de um colaborador
de Nasser, Lofti El Kholi, jornalista do grande diário Al Ahram, para admirar as belezas do Cairo by night. No "Auberge des Pyramides", cabaret elegante, o Che descobre
uma rapariga que lhe faz olhinhos. Propõe-lhe que vá mais tarde ao seu hotel. A cortesã cumpre o prometido mas, no hotel Shepheards, os guardas egípcios, postados
diante do quarto, interpõem-se. El Kholi conta que, vendo isto, o respeitável comandante surge à porta, puxa a rapariga para dentro e manda os guardas passear230.
Por seu turno, Nasser convida o Che a visitar a monumental barragem de Assuão, construída no Sul do país com o apoio dos países socialistas. Guevara fica deslumbrado.
O Rais, que disputa um segundo mandato, leva o amigo em campanha eleitoral para a inauguração de uma fábrica. "Nasser teve um acolhimento entusiástico", escreve
Heikal, honesto zelador, como se impõe. "Todos os habitantes da aldeia corriam ao encontro do carro, apinhavam-se à frente dele, procurando detê-lo. Guevara mostrou-se
muito comovido: "É isto que eu quero; é isto, o fermento revolucionário". "Certo", responde Nasser. "Mas não se pode ter isto - e apontava para multidão - sem aquilo
e apontava para a fábrica. [...] O dia da Revolução é a apoteose do romantismo, a noite de núpcias. Mas depois é preciso fazer com que o casamento resulte, realizar
a difícil tarefa de construir fábricas e desbravar a terra"". Resposta desiludida do comandante: "Depois da Revolução já não são os revolucionários que fazem o trabalho;
são os tecnocratas, os burocratas. E esses são contra-revolucionários"231.
Foi sem dúvida durante a sua estadia no Egipto que Guevara terminou uma longa carta que há muito prometera a Carlos Quijano, intelectual uruguaio de esquerda, director
de um importante semanário de Montevideu, Marcha. Mais do que uma carta, trata-se de um breve ensaio de quinze páginas intitulado: O Socialismo e o Homem em Cuba.
Muitos viram nele uma bíblia do pensamento guevarista, outros o seu testamento. Não é nem uma coisa nem outra, mas a verdade é que esse "barril de pólvora" um tanto
alucinado fascinou várias gerações pelos seus exageros e fulgurâncias, e em França, por exemplo, forneceu argumentos às Juventudes Comunistas dissidentes.

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A maior parte das questões que preocupam o Che são abordadas - mais enunciadas do que desenvolvidas - nesse memento da temática guevariana. Mais no estilo Chants
de Maldoror da "pátria ou morte" do que quimera de um revolucionário solitário, esse texto, simultaneamente estranho e terrível, merece que nos detenhamos um pouco
nele232. Sente-se aí como que uma febre, uma pressa de dizer o essencial, um radicalismo ainda maior do que em qualquer outro escrito do Che. E, pairando sobre o
conjunto, o ânimo permanente de dar a vida pela Revolução, amante suprema.
A ideia-chave é clara e participa de um marxismo clássico: só a Revolução pode engendrar o "homem novo" que construirá o socialismo. Em Cuba, "vanguarda do povo
e da América Latina", surgiu um processo que permitirá um dia ao homem novo, o do século XXI, liberto da alienação imposta pelo trabalho, desenvolver-se através
da cultura e da arte (de passagem, critica a arte realista). Terá faltado tempo a Guevara para reler o texto? Ter-se-á deixado arrastar pelo ardor das suas pulsões
combativas? O facto é que a sua proposta, no fundo bastante aceitável, está atafulhada de uma série de fórmulas que podem fazer-nos sorrir algumas décadas depois,
mas que, mesmo naquela época, manifestam já um forte dogmatismo.
As tautologias que serão debitadas em 1966, no Pequeno Livro Vermelho chinês, são mais ou menos evitadas. Mas, enquanto o texto pretende ser a exaltação do indivíduo,
"ser único com um nome e apelido", que dizer do hino à elite revolucionária saída da ditadura do proletariado e das instituições "que permitirão a selecção natural*
dos que estão destinados" a caminhar na vanguarda"? Para além deste finalismo insólito, que dizer do êxtase que transparece quando se lê: "No regime socialista,
apesar da sua aparente estandardização, o homem é mais completo; apesar da ausência de um mecanismo perfeitamente adaptado, a possibilidade de se exprimir e de influir
no aparelho social é infinitamente maior"? Parece estar-se a sonhar, evidentemente, quando é sabido como o homem, domesticado, foi incapaz de "influir" sobre o que
quer que fosse em regime socialista. Guevara ignorava-o? Onde está o libertário? E o igualitário? Onde está o contestatário herético? Onde encontrar a explicação
para uma tal cegueira a não ser na abstracção onde o nosso pensador parece mergulhado?

Nota: * Sublinhado por nós. (Nota da ed. original).

Sobre a participação do indivíduo nas decisões, Guevara sublinha que o povo não é um "rebanho de carneiros" (alguns regimes reduzem-no a isso). Sim senhor. Mas a
análise pára aí. Levar mais longe o raciocínio seria beliscar a imagem do chefe. Atacar Castro? Impensável. "À primeira vista, poderíamos pensar que aqueles que
falam de sujeição do indivíduo ao Estado têm razão", diz ele. Muito interessante. Espera-se o resto. Mas não há mais nada, pois, detendo-se bruscamente, a demonstração
enreda-se no irracional e no emocional. "A iniciativa parte, em geral, de Fidel ou do alto-comando da Revolução, e é explicada ao povo, que a aceita como sua. [...]
Por enquanto,

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utilizamos o método quase intuitivo* que consiste em auscultar1 as reacções gerais face aos problemas apresentados. Fidel é mestre nisso. [...] Fidel e o povo começam
a vibrar num diálogo de intensidade crescente até alcançarem o clímax num final abrupto rematado com o nosso grito de luta e de vitória". O orgasmo como mecanismo
inédito de democracia directa?
Todavia, surgem algumas fórmulas naquilo que o signatário reconhece ser "uma carta balbuciante", a exigência de "criar novos valores nas consciências", "grandes
sentimentos de generosidade" que devem guiar "o verdadeiro revolucionário", a necessidade de "um grande sentido de justiça e de verdade, para não cairmos num dogmatismo
extremo, numa fria escolástica, para não nos isolarmos das massas". Tudo isto, que soará como uma bofetada para os privilegiados da Revolução - porque os há -, será
contudo neutralizado por outros aforismos não menos evidentes que defendem, pelo contrário, uma visão verticalista, autoritária e elitista do poder, reservada unicamente
aos membros do partido. É a esta fina-flor que compete "educar o povo", "massa adormecida", pois, segundo o Che, "os revolucionários de vanguarda [...] não podem
exercer a sua sensibilidade ao mesmo nível dos outros homens [!]". Guevara não se apercebe da gravidade destas afirmações, nem de como elas favoreceriam todos os
totalitarismos. É certo que utiliza palavras - "justiça", "liberdade", "verdade", até mesmo "revolução"... - que não estão ainda gastas; não suspeita dos horrores
que, em nome desses princípios, os guardas vermelhos, "homens novos", poderão cometer na China Popular, no ano seguinte, durante a chamada "revolução cultural".

Nota: * Sublinhado por nós. (Nota da ed. original).

Pouco a pouco, o que se pretendia um hino exemplar ao homem libertado pelo socialismo transforma-se num apelo quase desesperado a amanhãs que deveriam cantar. "Fora
da Revolução, não há vida", escreve o ensaísta. Esta convicção, a que ele se agarra, justifica as mais extremas abnegações. Alertando que "o caminho é longo e incerto",
conclui com um imperativo categórico tão absconso como os do presidente Mao: "Nós, socialistas, somos mais livres porque somos mais ricos; somos mais ricos porque
somos mais livres". Finalmente, para terminar a carta, regressa ao tropismo fatal que Nasser lhe criticava: "A nossa liberdade e o pão de cada dia têm a cor do sangue
e estão cheios de sacrifícios. [...] O revolucionário [...] consagra-se totalmente a essa tarefa ininterrupta que só termina com a morte...". A morte, mais uma vez
reiterada.

A porta fechada

O dia 14 de Março de 1965 é uma data importante na história da vida de Ernesto Che Guevara. É a última vez que aparece em público, aparição de facto fugaz. Após
"uma tão longa ausência", quando desembarca do avião que o traz de Praga, ao cabo da sua volta ao mundo em noventa e seis dias

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através de quatro continentes, ninguém tem consciência, nem mesmo ele, que em breve irá desaparecer para sempre da cena pública.
Em Cuba, apesar do clima pacato, caraíba, no qual se passam as coisas, o protocolo já adquiriu, como na URSS, um significado preciso. Nessa medida, é significativo
que, no aeroporto de Havana, para o receber, estejam os mais importantes dirigentes do país - Fidel Castro, o presidente Dorticós, Carlos Rafael Rodríguez, o mais
fidelista dos comunistas "históricos", Aragonés e Osmany Cienfuegos, os companheiros da missão chinesa, vários ministros, entre os quais o fiel Borrego, e também
Aleida, esposa-Penélope que, ao longo destes anos, em vez de tecer deu à luz quatro filhos, o mais novo dos quais com apenas três semanas. Até a mais velha, Hildita,
a "mexicana", foi trazida ali para beijar o papá, que lhe enviou postais tão bonitos. A recepção é digna do "número dois", que ele ainda é, para o povo cubano. Que
se passa depois? Os testemunhos são fragmentários, imprecisos, duvidosos. Parece que Castro meteu Guevara num automóvel e desapareceu rapidamente. Direcção: a casa
na encosta, em Cojimar, perto da de Hemingway, a vinte quilómetros de Havana.
Segundo Ricardo Rojo, quando, dois dias depois, o amigo comum, o advogado Gustavo Roca, se encontra com o Che, este diz-lhe que acaba de sair de "uma reunião de
quarenta horas seguidas" com Fidel233. Seria essa reunião assim tão urgente, para fazer um relatório da viagem e tirar conclusões? É provável que a reunião tenha
ido além desses aspectos. Terá sido tempestuosa? Terá havido discussão acesa? O Che não menciona nada disso ao amigo. Mas um pequeno indício revela que Castro se
exaltou, que a discussão subiu um pouco de tom, num país onde toda a gente fala alto. É o agrónomo Dumont que, incidentalmente, o refere. Em 1969, chamado a emitir
o seu parecer técnico por ocasião da grande zafra dos dez milhões de toneladas de cana, vê, no final da refeição, Castro rebentar numa fúria, acusando-o de ter contactos
com homens que o traem. "Desatou aos berros e o meu intérprete (dos serviços secretos) disse-me: "Já não estou a perceber nada". Mais tarde, confidenciou-me: "Fez-me
lembrar os berros que ouvi no dia em que o Che se reuniu com ele. Eu estava na sala ao lado""234.
Nada transpirou do que os dois homens poderão ter dito nessa reunião à porta fechada; Castro não se abriu com ninguém. Quanto muito, terá dito algumas banalidades.
Esse mistério ciosamente guardado, que representa um "buraco negro" na biografia de Castro e de Guevara, intrigou os jornalistas, excitou a sua curiosidade e provocou
as mais loucas fantasias. Cada qual construiu o seu próprio romance sobre a disputa entre as duas figuras mais carismáticas da Revolução Cubana. No Paris Match,
Jean Lartéguy, campeão no género, exagera, construindo a partir do nada uma ficção inverosímil, segundo a qual, perante Castro, impassível, "o presidente Dorticós
puxa da Pistola, aponta-a a Guevara [...] e o tiro parte"235. Um disparate!
A verdade só pode ser reconstituída a partir das hipóteses mais verosímeis. Guevara não acredita na "coexistência pacífica". Pelo contrário.

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Ora, os Soviéticos fizeram dela a pedra de toque da sua política internacional. Precisam dela e pediram aos seus aliados que se abstivessem de lançar gasolina no
fogo fosse em que parte do mundo fosse. Mas, para o Che, o imperialismo é um só. É preciso atacá-lo em toda a parte, e essa luta é sem tréguas.
Em Cuba, há quem tenha a mesma opinião, aplaudindo as críticas formuladas em Argel. Mas não são muitos. Quando Raul Roa filho, o embaixador, lhe telefonou para o
felicitar por esse memorável discurso, Guevara respondeu com uma amargura desabrida: "És um dos raros comemierdas a pensar assim"236 O próprio Castro talvez não
esteja muito longe dessa linha. Mas, de facto, raros são os que estão dispostos a ir até às últimas consequências e a seguir o Che num radicalismo, admirável, sem
dúvida, mas que consideram suicidário.
Cuba depende demasiado da URSS e do fluxo alimentar dos países socialistas para subsistir e defender-se. É bonito, sim senhor, exigir mais generosidade ao campo
socialista e armas gratuitas para os pobres que se revoltam, mas é um luxo um tanto irresponsável fazer tais reivindicações, por muito generosas que sejam. Primum
vivere, deinde filosofare; é necessário viver antes de filosofar, isto é, submeter-se às tarefas ingratas da zafra, vender açúcar, receber em troca petróleo, máquinas,
mais de um milhão de dólares de produtos por dia. Teria sido oportuno, nas vésperas da conferência comunista internacional, declarar que esses países são objectivamente
cúmplices do imperialismo? Essas acusações ofenderam os camaradas soviéticos e, sem dúvida, agradaram bastante aos chineses. Raul Castro e os cubanos presentes no
conclave do 1° de Maio em Moscovo ouviram duras críticas e ameaças mal disfarçadas provocadas pelo requisitório de Argel. Pelo seu cargo de ministro, pela sua posição
de dirigente do partido e pelo lugar que ocupa na direcção revolucionária do país, foi todo o governo cubano no seu conjunto que ele implicou na sua diatribe. Não
estava mandatado para ir tão longe.
Terá Castro berrado ao proferir tais críticas? Terá Guevara tirado daí as conclusões que se impunham? Meras hipóteses. Seja como for, a "política do real" já não
tem os contornos do sonho. Derrotado no plano político, desautorizado no plano económico, o Che não tem outra saída senão uma fuga para a frente que, aliás, satisfaz
o seu desejo latente de retomar a luta armada. Quando se viveu a guerra, já não se pode passar sem ela, confessara ele a Neruda. Além disso, desde os primeiros tempos
do seu encontro, desde a época mexicana das ilusões líricas, o jovem médico argentino comunicara ao gigante que tanto o fascinara que participaria resolutamente
na expedição do desembarque mas que depois, a seguir à vitória, voltaria a partir. Para a América Latina, para a Argentina, para um algures cada vez mais distante...
Ao aceitar a pasta da Indústria declarara ao seu secretário Manresa que só lá ficariam cinco anos, que nessa altura ainda serviria para a guerrilha. Chegou o momento,
apenas um pouco antes do previsto. Castro não foi propriamente apanhado de surpresa. Sabia que, cedo ou tarde, teria de abrir mão desse colaborador excepcional.
Não fora ele que, há um ano, em Março de 1964, lhe fizera chegar a proposta brasileira de ajudar a montar uma guerrilha? O Che tinha logo mordido o isco.

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Nesse momento, excluindo o Vietname, a frente anti-imperialista mais "quente" para Guevara é a do ex-Congo Belga. Uma vez que Cuba já começou a preparar tropas exclusivamente
constituídas por negros para irem, com a maior discrição, apoiar os rebeldes congoleses, é ele próprio, apesar da cor branca da sua pele, que reivindica o privilégio
de comandar esse continente (a não ser que tenha sido Castro a antecipar-se ao pedido...). O Che promete limitar-se a aconselhar os congoleses no seu combate contra
os paraquedistas e mercenários ocidentais - excepto, evidentemente, em caso de força maior. Se, auxiliada por Cuba, a África conseguisse sacudir o jugo do neocolonialismo,
talvez mais perigoso do que o antigo colonialismo, o próprio Terceiro Mundo no seu conjunto seria abalado e encaminhar-se-ia para um levantamento armado. Vislumbram-se
assim os prolegómenos da política africana de Cuba. Já não se trata, por conseguinte, de uma questão moral "internacionalista", mas de uma estratégia geopolítica
à escala mundial, que deveria aliviar Castro tanto da tutela soviética como da pressão norte-americana. É evidente que a operação deverá ser conduzida com a maior
discrição. O Che sabe que é demasiado conhecido para que possa transpirar a mínima informação sobre a sua participação directa nesse conflito.
Terá Castro tentado reter o amigo? Ou, pelo contrário, ter-se-á rendido aos seus argumentos? Tê-lo-á ele próprio incitado a lançar-se nessa nova aventura? No fundo,
deixar partir o Che não seria uma má jogada. Seria uma forma de acalmar as queixas contra esse contestatário que irrita o movimento comunista internacional e os
novos apparatchiks, alguns deles agora instalados no conforto da burocracia revolucionária. Entre Fidel e o Che existiu sempre uma ligação especial. Oswaldo Barreto
conta que, em privado, ouviu Castro dizer o pior possível da URSS, coisas muito piores que as ditas por Guevara em Argel. E acrescenta: "Fidel ouvia homens que estavam
próximo dele, como o seu irmão Raul, Armando Hart, Dorticós, etc., mas no fundo estava-se nas tintas para o que eles pensavam. Ao passo que com o Che era diferente.
Prestava atenção ao que ele dizia"237.
Seja como for, Castro recusa-se obstinadamente a falar das circunstâncias que rodearam a partida do Che. Vinte anos mais tarde, em 1985, numa conversa com Frei Betto,
um dominicano instalado no Brasil, entreabre apenas uns milímetros dessa famosa reunião à porta fechada, e em termos bastante convencionais: "Quando ele [o Che]
me disse: "Desta vez faço questão em partir, para cumprir a minha missão de revolucionário", eu respondi: "Está certo, fica prometido""238. Não diz mais do que isso
ao jornalista italiano Gianni Mina, sublinhando, contudo, que tentara contemporizar: "Estava convencido que era possível criar melhores condições para o que ele
pretendia fazer e pedimos-lhe que não fosse tão impaciente, que era necessário tempo. [•••] Preferíamos que outros quadros, menos conhecidos do que ele, fizessem
Primeiro as etapas iniciais. [...] Ele via o tempo passar, sabia que era preciso estar em condições físicas especiais. [...] Estava impaciente"239.

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Falar de gentlemen's agreement seria exagerado. Existem divergências inegáveis entre os dois homens, e elas são graves. Mas seria um erro pensar que o diferendo
se transformou em ruptura. Castro, como é sabido, não suporta que o deixem. Abandoná-lo é traí-lo. Huber Matos pagou esse tipo de atrevimento com vinte anos de cadeia.
Se alguns companheiros se afastarem da moral revolucionária, como Efigenio Ameijeiras, chefe da polícia, chafurdando na dolce vita - mulheres, droga e outros divertimentos
-, a condenação será indulgente, porque a fidelidade ao suserano nunca foi posta em causa. Com o Che, Castro compreende que não há traição mas ultrapassagem revolucionária.
E depois há esse pacto antigo, que ele respeita porque essa partida lhe convém, apesar de também o comprometer. "Um vizir faz sempre sombra ao sultão", resmungava
Racine. Todo o resto da história prova que, sem a luz verde do Caballo, o Che, apesar da sua autoridade, não teria podido forçar as coisas, o que, aliás, não desejava.
Se fizermos fé em Rojo, que cita Gustavo Roca, entretanto falecido, Guevara, após a reunião interminável com Castro - quando será que eles dormem? - escreve à mãe
uma carta de duas páginas, com data de 16 de Março de 1965. Confia-a ao seu amigo Roca, que regressa a Buenos Aires, depois de uma nova viagem pela Europa. A carta
só será entregue à destinatária a 13 de Abril. Nessa mesma noite, Célia telefona a Rojo e pede-lhe que passe imediatamente lá por casa. "Fui a correr, porque ela
já estava doente com o cancro que a mataria", conta ele. "Vivia sozinha, na velha casa da rua Araoz, há muito separada de Ernesto pai. Disse-me: "Lê isto". A carta
de Ernesto deixou-me perplexo. Dizia que se retirava, que ia cortar cana, trabalhar numa fábrica. Pedia-lhe que não viesse a Cuba sob nenhum pretexto. [...] Já em
1963, o Che me dissera que tencionava voltar a combater. Naquela altura, convenci-me que iria para a Venezuela"240. O texto exacto dessa carta, importante, nunca
chegou ao conhecimento do público nem foi reproduzido. O documento deve estar trancado no cofre-forte de Buenos Aires onde, de acordo com a segunda mulher de Ernesto
pai, Ana Maria Erra, estão ainda guardados inéditos de Ernesto filho241.
A carta de resposta de Célia, a 15 de Abril de 1965, tende a confirmar o conteúdo provável da carta do filho. Inteligente e perspicaz, apesar da doença que a mina,
a mãe indigna-se com a decisão "absurda" do filho. Cortar cana ou dirigir uma fábrica não faz avançar o socialismo, diz-lhe ela. "Se, por qualquer razão, o caminho
estiver barrado em Cuba", pede-lhe que pense nos serviços que poderia prestar a homens como Ben Bella, na Argélia, ou Nkrumah, no Gana. (O que revela que o filho
tinha informado a mãe das peripécias da sua viagem). "Parece que o teu destino é o de seres um estrangeiro"242. Há duas alusões misteriosas nessa carta, onde transparece
a angústia da mãe que adivinha os pensamentos do filho como que através de um sexto sentido. Em primeiro lugar o "amor secreto" de Guevara, muito gozado por "G"
e "J" (provavelmente Gustavo Roca e John William Cooke, ambos na órbita guevarista). A mãe Célia gaba o "seu tipo exótico, o seu

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encanto, a sua doçura oriental"... Eis um bom quebra-cabeças para a imprensa sensacionalista. Talvez um Lartéguy pudesse fornecer-nos a chave do mistério. No entanto,
a resposta é simples. Trata-se apenas de Hildita, a menina nascida no México, de sangue peruano e chinês misturado com sangue argentino hispano-irlandês, sendo o
tipo índio bastante acentuado. A avó quer uma fotografia. Há uma outra expressão sibilina: a que se refere ao "palhaço cósmico" (payaso cósmico). Estará a referir-se
a Fidel, de quem nunca gostou e que, segundo Rojo, lhe provoca desconfiança, uma espécie de rejeição?243 Ou então, hipótese mais provável, tratar-se-á de Perón,
outro caudillo cordialmente detestado? O facto é que essa carta terá um destino aziago que, todavia, nos permite conhecer o seu conteúdo. Confiada a um sindicalista,
amigo de Rojo, que ia embarcar para Cuba, nunca chegará ao destinatário, o filho tão admirado. O referido sindicalista, demasiado peronista para o gosto do Partido
Comunista Cubano, previamente consultado por Havana, será impedido de viajar para Cuba, e a carta é devolvida a Rojo, a 19 de Maio de 1965. Nessa data Ernesto Guevara
já está longe. Ninguém sabe onde.

A cerimónia do adeus

Guevara não entra de imediato na clandestinidade, como é hábito, antes de se envolver numa operação secreta. Pelo contrário, dá as cartas até ao fim e procede a
uma cerimónia do adeus segundo um ritual cuja simbólica só ele conhece.
A 22 de Março de 1965, oito dias após o seu regresso, despede-se dos seus colaboradores no grande salão do Ministério da Indústria, sem que ninguém pressinta trata-se
de uma última reunião. O pretexto é fácil: dar conta da sua longa viagem. A conversa processa-se num clima de descontracção. O ministro, sereno, mostra que não perdeu
o sentido de humor. Há quem tome o Pireu por um homem. Quanto a ele, pôde constatar uma ignorância análoga num camarada que, ouvindo-o falar do Malawi, lhe perguntou
se esse Malawi, já tinha vindo a Cuba! Seguiu-se uma pequena lição de geografia elementar sobre África, apoiada por um mapa e introduzida por algumas observações
oportunas sobre a extraordinária afinidade biológica que existe entre a África e Cuba - onde vinte a trinta por cento da população tem sangue negro, sublinha ele
-, duplicada por uma afinidade cultural - vejam a música. Quando, recentemente, a orquestra cubana de Jorrin, o "inventor" do cha-cha-cha, fez uma digressão por
África, teve um sucesso retumbante.
É preciso estar atento para adivinhar o que se prepara nos bastidores e notar que, por cinco vezes numa hora, ele insiste no antigo Congo Belga, "o único país, além
da Guiné Portuguesa, onde se trava uma verdadeira luta de libertação. [...] É no Congo, insiste ele, que se situa a fronteira do colonialismo. Esse país, o mais
rico de África, corre o risco de se transformar numa colónia dos Estados Unidos, pois os belgas não são mais que os seus

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agentes. [...] A luta do Congo triunfará se for bem dirigida". E, retomando uma fórmula já utilizada por ocasião da crise dos mísseis: "É necessário criar setenta
mil frentes contra o imperialismo, [...] dividir as forças norte-americanas; será uma ajuda aos patriotas vietnamitas"244. Nunca uma estratégia foi anunciada com
tanta clareza. "Até breve, nos campos de cana-de-açúcar" diz ele, no entanto, à laia de despedida.
É esta a última manifestação semipública de Guevara em Cuba. A partir daí, black out total. O comandante não aparece mais em parte nenhuma. Alguns, a título pessoal,
garantem tê-lo visto nos dias imediatamente a seguir sempre de modo fugaz. De regresso a Cuba após a sua estadia em Paris Llovio-Menéndez alude a uma discussão acesa
perto da estrada de Pinar del Rio, "numa noite de Abril de 1965"245. Pouco relevante. Hilda Gadea, a primeira mulher, afirma que, depois de ter anunciado várias
vezes que a iria visitar para ver a filha, Hildita, acaba por não aparecer. O escritor Roberto Fernández Retamar, que foi, por acaso, seu companheiro de viagem entre
Praga e Havana, encontra-o, no fim de Março, à porta do gabinete, no sétimo andar do Ministério da Indústria, despedindo-se de Regino Boti. Uma avaria no avião retivera-os
dois dias em Shanon (Irlanda), possibilitando um maior convívio entre ambos. Nessa noite, o romancista vem buscar uma antologia de poesia em língua espanhola que
emprestara ao ministro. De pé, no corredor, trocam algumas palavras banais. Surpreendido com o aspecto "limpo" do Che, que cortara o cabelo, Retamar mete-se com
ele: "Eu continuo guedelhudo e desempregado...". "Pois, eu também estou a mais neste ministério", responde Guevara246. Antes de devolver a antologia, copiou um poema
de que gosta muito, Farewell, um símbolo, no qual Neruda, que ainda não tinha vinte anos, declara à mulher amada imaginária desejar "que nada nos amarre, / Que nada
nos ligue / [...] amo o amor dos marinheiros / Que dão um beijo e se afastam / [...] Vou partir. Estou triste: mas estou sempre triste"247. Ambiência...
Pede ao jovem Miguel Angel Figueras, encarregado do secretariado da redacção da revista Nuestra Industria, que inclua no sumário do próximo número a sua extensa
carta ao Marcha, O Socialismo e o Homem em Cuba, um artigo de Alberto Mora defendendo os estímulos materiais, um outro artigo do trotskista Mandel defendendo o contrário,
um artigo de um psicólogo argentino sobre a forma como o homem responde aos estímulos e também... um artigo sobre os métodos de formação de quadros do vice-presidente
da Ford, Lee lacocca!248 Este ecletismo fará com que o camarada Figueras receba algumas reprimendas do partido. Quando se enfia no carro, estão a transmitir um programa
de tangos na rádio. "Não, deixa, não baixes o som", diz ele ao motorista. "Pelo contrário, põe mais alto". Adios Muchachos, esse tango, que ele adora e nunca saberá
cantar, parece-lhe de circunstância249.
As palavras de despedida que rabisca nos livros que estão mais a jeito são reveladoras do seu estado de espírito. A Alberto Granado, primeiro cúmplice, envia um
clássico da história do açúcar em Cuba, El Ingenio, de Moreno

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Fraginals: "Não sei o que deixar-te como recordação. [...] O meu carro volta a ter duas patas e os meus sonhos não conhecerão fronteiras, a menos que as balas decidam
outra coisa [...]. Esperarei por ti, cigano sedentário, até que o cheiro a pólvora diminua..."250. A um outro amigo, José Aguilar, escreve na primeira página das
suas Memórias da Guerra Revolucionária: "Chegou a hora de partir [...] Deixo-te isto, que não será, espero, uma memória póstuma. Não é vaidade intelectualóide. Apenas
um gesto de amizade. Até breve, se possível"251. A Orlando Borrego, seu fiel colaborador nos anos difíceis da aposta da industrialização, deixa, "como testemunho
de uma amizade que nem sempre foi expressa em palavras", os três volumes de O Capital de Marx, numa edição do Fondo de Cultura Económica: "Borrego, é aqui que está
a raiz. Foi aqui que ambos aprendemos, procurando o que não passa ainda de uma intuição. Parto hoje para cumprir o meu dever e realizar um desejo. Obrigado pela
tua lealdade"252.
Uma noite, Raul Maldonado, o economista equatoriano que faz parte do apupo dos "chilenos", pede-lhe que o receba com urgência. É actualmente vice-ministro do Comércio
Externo, mas acusam-no de simpatias pró-chinesas e há quem exija a sua demissão. Encontra Guevara entretido a fazer abdominais no gabinete, deitado no chão: "Um
revolucionário nunca se demite", declara o Che. O chico Maldonado segue o conselho. "Mas "eles" acabaram por me demitir, conta ele com um meio-sorriso. Alguns dias
depois. Soube pelo Jornal Oficial..."253
Guevara limpa a biblioteca, arruma a papelada, esvazia o gabinete. Ao seu piloto pessoal, o fiel Eliseo de la Campa, lega o Vol de Nuit de Saint-Exupéry. Terá sido
durante essa arrumação que ele entrega a Castro o último número da revista francesa Les Temps Modernes, que inclui um artigo interessante, de um certo Régis Debray
"O castrismo, a longa marcha da América Latina?" Nele é feito um elogio racional do castrismo, "uma acção empírica e consequente que, pelo caminho, encontrou o marxismo
como a sua verdade". Também aí se diz que, entre os "focos" revolucionários potenciais, a Bolívia é o país que reúne mais condições subjectivas e objectivas, o único
país da América do Sul onde a revolução socialista está na ordem do dia..."254. Num brilhante romance, Les Masques (As Máscaras), Debray expõe, numa escrita ágil,
a sua versão do périplo um tanto complicado desse texto, para si próprio fundador, pois fará com que ele, jovem professor de filosofia, vá cruzar, dois anos mais
tarde, os caminhos do "guerrilheiro heróico" no Altiplano andino. "Oswaldo [Barreto] entregou ao Che [...] um exemplar da revista de Jean-Paul Sartre. Guevara interessou-se
bastante por esse texto [...] para de regresso a Havana, o mostrar a Fidel, que o mandou traduzir e distribuir"255. Diferente é a versão de René Depestre, mas mais
plausível, pois, no seu regresso, o Che devia ter mais que fazer do que ocupar-se da prosa, por muito interessante que fosse, de um desses intelectuais franceses,
sempre suspeitos de se armarem em teóricos: "Em 1965, estava em Paris e ouço: "Depestre!" Era Debray. Reconheci-o. Ele disse-me:

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"Recebeste-me bem em Cuba... Tenho um longo artigo que gostava de mandar para lá. Posso entregar-to? Vai sair em Les Temps Modernes, mas gostaria que os cubanos
o lessem primeiro." No avião, de regresso a Havana, li essa "Longa Marcha" que foi imediatamente traduzida e publicada, e entreguei um exemplar a Fidel. Foi assim
que o Régis alcançou a sua glória"256.
Sobre as circunstâncias e a cronologia exacta da partida clandestina de Cuba do Che e sobre as peripécias da aventura congolesa de Guevara, foi publicado em 1994
um livro - O Ano em que Estivemos em Parte Nenhuma* - de um romancista mexicano, Paco Ignacio Taibo II, e de dois jornalistas cubanos, Felix Guerra e Froilán Escobar.
Os autores garantem ter tido o apoio de um "membro importante do aparelho de Estado cubano [...] que preferiu a modéstia do anonimato"257 [sic]. A generosidade desse
senhor "importante" dá que pensar, quando se sabe ter sido ele a fazer chegar aos referidos autores nada menos que o manuscrito de Guevara dedicado à sua experiência
de guerrilha no Congo,** intitulado, por analogia com a epopeia da Sierra Maestra, Memórias da Guerra Revolucionária: o Congo. Há quem garanta que foi a generosidade
(em dólares) dos autores que lhes permitiu ter acesso a esses documentos.

Nota 1: * Edição portuguesa: Campo das Letras, 1996.

Nota 2: * Não sabemos se se trata do duplo manuscrito, o das notas do dia-a-dia redigidas por Guevara, ou do texto elaborado a partir dessas notas.

O facto de o aparelho de Estado cubano, ferozmente cioso de todo o arquivo respeitante ao Che, aceitar por fim, passados trinta anos, colocar à disposição do público
inéditos de enorme interesse sobre a intervenção de Cuba em África seria excelente se o acesso a esses inéditos fosse possível, se fosse permitido verificar a sua
autenticidade e avaliar a sua integralidade. Infelizmente, não é esse o caso. Que, apesar de tudo, as autoridades cubanas tenham consentido em revelar alguns "trechos
escolhidos", que tenham autorizado alguns dos protagonistas a falar (mesmo sob controlo), é, todavia, um sinal positivo que é necessário encarar, evidentemente,
com a maior prudência, uma vez que nada é inocente num regime em que tudo é vigiado, só é aceite a versão oficial da história e o símbolo de Guevara está fixado
para a eternidade.
Mesmo assim, apesar do "retalhamento" dos escritos, por vezes cortados em fatias finas - uma frase, algumas palavras -, apesar da falta de rigor do livro - ausência
total de indicação de datas, locais, condições em que os testemunhos foram recolhidos -, esse texto, "mais do que mutilado, assassinado" (segundo François Maspero),
continua a ser, apesar de tudo, o que ainda existe de mais completo sobre um período que, por muito tempo, permaneceu como terra incógnita. Pelo seu estilo inconfundível,
Guevara subtrai-se, aliás - jogada póstuma -, aos artifícios dos seus manipuladores. Mesmo sabendo que certos "pormenores" de ordem cronológica ou factual podem
ter sido fabricados posteriormente em benefício da causa, é, essencialmente, a partir

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deste documento truncado que é possível reconstituir os episódios desse ano misterioso em que Guevara não esteve em parte nenhuma.*

Nota: * Agosto de 1997. Surpresa. As agências noticiosas informam que, após 32 anos de proibição, é finalmente autorizada a publicação da totalidade do diário do
Che no Congo. É um membro do Comité Central do Partido Comunista de Cuba, Jorge Risquet, que ratifica a decisão, apresentando esse diário, acompanhado de comentários,
num livro do general cubano William Galvez, intitulado: O Sonho Africano do Che. Que aconteceu na Guerrilha Congolesa? Se o texto é autêntico, convém desde logo
verificar, para além da perspectiva oficial, aquilo que ele traz, na sua integralidade, de elementos novos.

Segundo o capitão Victor Dreke, foi a 1 ou a 2 de Abril de 1965 que se teria dado a partida para o Congo. Nessa época, Dreke era um negro alto, de 27 anos, um dos
raros oficiais de cor do exército rebelde, a quem fora confiada a responsabilidade desse pequeno exército de uma centena de soldados, também negros, seleccionados
em toda a ilha. A 28 ou 29 de Março, em Havana, no bairro residencial altamente vigiado de Laguito, Osmany Cienfuegos apresenta-lhe, conta ele, um desconhecido de
nome "Ramón". "Vejo sair da casa camarada branco, de cabelo rapado, e com óculos"258. Dreke não conhecia o tipo "de parte nenhuma". Sentam-se à volta de uma mesa
e começam a falar. Mas o negro ergue-se de um salto, electrizado, quando lhe dizem que é o Che... Este primeiro testemunho enganou-se num ano. De facto, é o mesmo
disfarce, o mesmo procedimento o mesmo pseudónimo que, um ano depois, vão ser postos em cena num acampamento militar, na província de Pinar del Rio, quando um certo
Ramón retomará o treino para se lançar na sua última aventura. Mas em 1965, se o Che cortou a barba, manteve o cabelo comprido.
Ficou provado que Guevara redigiu três cartas de despedida antes de deixar Cuba, uma dirigida aos filhos, outra aos pais e a última a Fidel Castro. Se nos fiarmos
em Dreke, desta vez interrogado por Juana Carrasco, foi a 30 ou 31 de Março que foi redigida a carta destinada a Fidel: "O Che levou tempo a escrever, rasgando as
páginas, que ia queimando"259.
Aos seus cinco filhos - "Hildita, Aleidita, Camilo, Célia e Ernesto" - o pai, tantas vezes ausente, diz esperar voltar a vê-los, mas também que, se algum dia lerem
essa carta, é porque ele já terá morrido. "Vocês já quase não se recordarão de mim e os mais pequenos já me terão esquecido. [...] Sejam sobretudo capazes de sentir
bem no fundo toda a injustiça cometida contra alguém, em qualquer parte do mundo. Essa é a mais bela qualidade de um revolucionário..."260.
Na carta comum aos pais separados - "queridos viejos" - transparece mais o jovem sonhador que eles conheceram, impaciente por se lançar agora à conquista de novos
moinhos de vento: "Mais uma vez, sinto sob os calcanhares o lombo do Rocinante". Mas já não é exactamente o mesmo D. Quixote. Referindo-se à sua carta de despedida
de 1956, antes de embarcar no Granma, "há quase dez anos", observa: "Fundamentalmente, nada mudou, a não ser que agora estou muito mais consciente, o meu marxismo
aprofundou-se.

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e decantou-se" e proclama - o que arrepiaria os soviéticos, que têm boas razões para desconfiarem deste fogo-fátuo incontrolável: "acredito na luta armada como única
solução. [...] Muitos chamar-me-ão aventureiro, e de facto sou; mas de um tipo diferente: daqueles que arriscam a pele para defender a sua verdade". O pudor leva-o
a não se abrir, mas, sempre pronto à autocrítica, reconhece: "Não soube exprimir a minha ternura; sou extremamente rígido nos meus actos". A conclusão é esclarecedora,
revelando a verdade, o segredo e o drama de um homem excepcional: "Agora, uma força de vontade que apurei com um deleite de artista sustentará umas pernas frouxas
e uns pulmões cansados. Sigo em frente. Lembrem-se de vez em quando deste pequeno condottiere do século XX..."
A morte, a nostalgia, uma certa amargura, uma fé de vigário em relação ao seu pontífice pairam na carta lancinante que o condottiere escreve a Castro261. É simultaneamente
uma mensagem pessoal para Fidel e um importante documento político. Nostalgia do "recordo-me", quando evoca o primeiro encontro no México, "quando te conheci na
casa de Maria Antónia". Revelação da morte possível quando lhe perguntaram quem prevenir em caso de morte. "Numa revolução, ou se vence ou se morre". Balanço rápido
desses anos intensos, "magníficos", onde sobressaem "os dias luminosos e tristes da crise das Caraíbas" (a crise dos mísseis). "Outras terras do mundo reclamam o
contributo dos meus modestos esforços [...], anuncia ele. [...] Chegou a hora de nos separarmos. [...] Faço-o com um misto de alegria e de dor". Mas para que não
se pense ter havido qualquer divergência entre eles, explicita: "Posso fazer o que tu não podes, devido às tuas responsabilidades à frente de Cuba". Segue-se o despojamento
total, classificado de "cristão", precaução política indispensável, sem a qual é provável que Castro não tivesse dado luz verde à partida do Che: "Renuncio formalmente
aos meus cargos na direcção do Partido, ao meu cargo de ministro, ao meu grau de comandante, à minha condição de cubano. Nada de legal me liga a Cuba...". Insiste
neste ponto: "Repito que liberto Cuba de toda a responsabilidade, [...] que sempre me identifiquei em todos os aspectos com a política externa* da nossa Revolução.
Cumpri a parte do meu dever que me ligava à Revolução Cubana no seu território**. Não deixo nenhuns bens materiais aos meus filhos nem à minha mulher, e não o lamento;
agrada-me que seja assim. Não peço nada para eles, pois o Estado dar-lhes-á o suficiente para viverem e para se educarem".

Nota 1: * Sublinhado por nós. Apenas na política externa? Esta restrição, que não é gratuita, significará que Guevara nem sempre se identificou com a política interna
de Cuba?

Nota 2: ** Sublinhado por nós. Esta precisão implica, obviamente, que Guevara considera ter ainda uma missão a cumprir fora do território cubano.

O que incomodou muitos admiradores de Guevara foram os louvores, rasgados, sem reservas, que ele dirige nesta última carta ao conductor exemplar. Muitos afirmaram
que tais ditirambos nunca poderiam sair da pena de Guevara, que isso era incompatível com o seu espírito sarcástico, contestatário, por vezes provocador, que se
tratava sem dúvida de uma carta fabricada

390.

ou "adaptada pelos serviços" ad majorem gloriam do Líder supremo. Embora finja recusar todo o culto da personalidade, Castro reina já como senhor absoluto no país
e castiga severamente aqueles que têm a ousadia de o desafiar. "O meu único erro de alguma gravidade", escreve Guevara, "foi não ter tido mais confiança em ti desde
os primeiros momentos da Sierra Maestra e não ter compreendido logo as tuas qualidades de dirigente e de revolucionário. [...] Levarei a novos campos de batalha
a fé que me incutiste. [...] Isso compensa mil vezes qualquer sofrimento. [...] Estou-te grato pelos teus ensinamentos e pelo teu exemplo...". Não estamos longe
das directivas militares que em breve Raul Castro dará e que escandalizarão também René Dumont em 1969: "Para o que quer que seja, onde quer que seja e seja em que
circunstâncias for, meu comandante, às suas ordens!"262
Mas os admiradores do Che terão que se conformar. O nosso herói pode ser contestatário contra a terra inteira, excepto contra "essa estátua equestre que desceu do
seu pedestal" (Debray), que é tratada pelo nome próprio, Fidel, como os reis e os imperadores. Desde o primeiro instante, Guevara ficou como que alucinado pelo poder
de sedução absoluto, pelo carisma desse "gigante" que não precisa de proclamar na sua voz aflautada: "A Revolução sou eu" para nos convencer disso. O Che é, portanto,
sincero na sua admiração. Basta lembrarmo-nos do hino, composto no México, ao "ardente profeta da aurora". Permanece fiel ao seu deslumbramento inicial. Em todo
o caso, esta carta será lida mais tarde em todas as escolas de Cuba.
Se, como é provável, o documento é autêntico, as circunstâncias em que foi entregue ao destinatário permanecem controversas. Carlos Franqui afirma que Guevara deixou
Cuba sem voltar a ver Castro, sem ter com ele uma longa conversa. Declara que essa afirmação lhe foi fornecida por Celia Sánchez, conselheira secreta de Fidel, depositária
das três cartas do Che, e muito contristada por o Líder se ter recusado a despedir-se do amigo, por estar "todavia bravo com Guevara" ("ainda zangado com Guevara")263.
Mas Victor Dreke conta-nos uma história diferente: "Na véspera da nossa partida de Cuba, o comandante supremo veio despedir-se do Che e foi então que ele [o Che]
lhe entregou a carta de despedida que seria tornada pública em Outubro"264. Em quem acreditar? Esta versão inscreve-se tão bem na historiografia oficial que se torna
suspeita.
Se houve manipulação, ela não pode dissimular o essencial: que o casal mágico da Revolução Cubana se desfaz aí, que invitus, invitum, Aquiles se separa de Pátroclo,
e que isso custa. Embora Guevara tenha começado a ler Freud aos catorze anos, certamente não teve tempo de reflectir no que havia de fascinante e de misterioso numa
amizade entre dois homens, nem de analisar o que pôde "ligá-lo totalmente à sua vítima". Porque estes dois seres amaram-se. Porque se estimaram. Depois veio o dia
em que o monarca compreendeu que tinha de se desfazer do seu anti-Maquiavel. Jean-Pierre Clerc, biógrafo de Castro, evoca, a propósito das relações Guevara-Castro,
o casal shakespeareano Thomas Beckett-Henrique II da Inglaterra, "a comovente

391

amizade, a maravilhosa cumplicidade que, por uma oposição política, derrapam. E o rei nunca mais encontrará felicidade nem sossego"265. Num dia de 1963, dentro de
um automóvel em circulação - é assim que Castro funciona quando quer falar a sério -, o velho senhor faz uma confidência surpreendente a Max Marambio, um chileno
que conheceu quando era pequeno e que entretanto se tornou responsável pela segurança do presidente Allende"Desde que ele morreu, não há um mês, uma semana, sem
que a presença do Che venha povoar o meu sono e os meus sonhos"266.

Notas:

1 Gabriel García Márquez, artigo in Juventud Rebelde, reproduzido in Autrement, Paris, Cuba, 30 Ans de Révolution, Janeiro de 1989, pp. 28-29.
2 Ania Francos, La Fête Cubaine, op. cit., p. 236 e seg.
3 Gabriel García Márquez, in Cuba, 30 Ans de Révolution, op. cit., p. 26.
4 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. III, p. 165.
5 Régis Debray, Les Masques, Paris, Gallimard, 1987, p. 48-49.
6 René Depestre, entrevista com o autor, Paris, 1991.
7 Régis Debray, Les Masques, op. cit., pp. 48-49.
8 Plinio Mendoza, La Llama y el Hielo, Barcelona, Planeta, 1984.
9 Ibid., p. 88.
10 Ibid., p. 99.
11 Fidel Castro, "Adresse aux Intellectuels", in Partisans, Paris, François Maspero, Nov.-Dez. 1961, p. 173.
12 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. III, p. 394.
13 Ernesto Che Guevara, Le Socialisme et l'Homme, Paris, François Maspero, 1967, p. 103.
14 Carlos Franqui, Retrato de Familia con Fidel, op. cit., p. 264.
15 Ernesto Che Guevara, OEuvres V, Textes Inédits, op. cit., p. 60.
16 K. S. Karol, Les Guérrilleros au Pouvoir, op. cit., p. 56.
17 Ibid., pp. 55-56.
18 Ibid.
19 Ricardo Rojo, Che Guevara, Vie et Mort d'un Ami, op. cit., p. 114.
20 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. III, p. 251 e seg.
21 Ibid., p. 268.
22 Ibid., p. 216.
23 Ibid., p. 269.
24 Ibid., pp. 301-302.
25 Ibid., pp. 311 e seg.
26 Ibid., p. 324.
27 Ibid., p. 304.
28 Régis Debray, Entretiens avec Allende Sur la Situation au Chili, Paris, François Maspero, 1971, p. 77.
29 Ibid., p. 81.

392

30 Hugo Gambini, El Che Guevara, op. cit., p. 363.
31 Ibid., p. 371.
32 El che en la Revolución Cubana, op. cit., t. III, p. 373 e seg.
33 Ibid., p. 403.
34 René Dumont, Cuba, Socialisme et Développement, op. cit., p. 62.
35 Carlos Franqui, Retrato de Familia con Fidel, op. cit., p. 339.
36 Michel Gutelman, entrevista com o autor, Paris, 1995
37 Michel Gutelman, L'Agriculture Socialisée à Cuba, op. cit., p. 156.
38 Ibid., P. 166.
39 Ibid.
40 René Dumont, Cuba, Socialisme et Développement, op. cit., p. 67.
41 El Che en la Revolución Cubana, t. III, op. cit., p. 449.
42 Michel Gutelman, L'Agriculture Socialisée à Cuba, op. cit., p. 85.
43 Ibid., p. 89.
44 Gabriel García Márquez, in Autrement Cuba, 30 Ans de Révolution, op. cit., p. 29.
45 K. S. Karol, Les Guérrilleros au Pouvoir, op. cit., p. 237.
46 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. III, p. 465.
47 Ernesto Che Guevara, Textes Politiques, op. cit., p. 136.
48 Ibid., p. 125.
49 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. III, p. 468.
50 Ibid., p. 474.
51 Ibid., p. 475.
52 Granma, edição em língua francesa, 29 de Outubro de 1967, p. 11.
53 Ibid.
54 Orlando Borrego, entrevista com o autor, Havana, 1992.
55 Alberto Martínez, entrevista com o autor, Paris, 1992.
56 Nestor Lavergne, entrevista com o autor, Buenos Aires, 1994.
57 Raúl Maldonado, entrevista com o autor, Santiago do Chile, 1993.
58 Carlos Romeo, entrevista com o autor, Paris, 1991.
59 Nestor Lavergne, entrevista com o autor, Buenos Aires, 1994.
60 Ibid.
61 Ibid.
62 Orlando Borrego, entrevista com o autor, Havana, 1992.
63 In Cuba, número especial, Havana, Nov. 1967, p. 59.
64 Ernesto Che Guevara, Textes Politiques, op. cit., p. 136.
65 Ibid., p. 118.
66 Hugo Gambini, El Che Guevara, op. cit., p. 341.
67 Citado por Bertrand Poirot-Delpech, Le Monde, Paris, 16/11/94.
68 Enrique Oltuski, entrevista com o autor, Havana, 1992.
69 Osvaldo Rodríguez, in Cuba, número especial, Havana, Novembro 1967, p. 60.
70 Enrique Oltuski, entrevista com o autor, Havana, 1992.
71 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. VI, pp. 151-152.
72 Ibid., pp. 158-159.
73 Ibid., p. 170.

393

74 Ibid., pp. 179-180.
75 Ibid., p. 176.
76 Ibid., p. 272.
77 Ibid., p. 197.
78 Ibid., p. 214.
79 Ibid., p. 234.
80 Ibid., p. 240.
81 Ibid., p. 287.
82 Ibid.,pp. 288-291.
83 Ibid., p. 257.
84 Fidel Castro, Révolution Cubaine, op. cit., t. I, p. 210.
85 Ibid., p. 237.
86 Ibid., p. 238.
87 El Che en la Revolucion Cubana, op. cit., t. VI, p. 268.
88 Fidel Castro, Révolution Cubaine, op. cit., t. I, p. 210.
89 Harold Macmillan, prefácio Robert Kennedy, 13 Days. The Cuban Missile Crisis, Londres, Macmillan, 1969.
90 Juan Vivés, Les Maîtres de Cuba, op. cit., p. 131 e seg.
91 Jean Daniel, in L'Express, Paris, Dezembro, 1963.
92 Carlos Franqui, Retrato de Familia con Fidel, op. cit., p. 391.
93 Ernesto Che Guevara, Textes Politiques, op. cit., p. 108 e seg.
94 Carlos Franqui, Retrato de Familia con Fidel, op. cit., p. 405.
95 Jean-Pierre Clerc, Fidel de Cuba, op. cit., p. 283.
96 Claude Julien, in Le Monde, Paris, 22-23 de Março de 1963.
97 Ibid., 24 de Novembro de 1990.
98 Ernesto Che Guevara, Textes Politiques, op. cit., p. 80 e seg.
99 Le Monde, Paris, 24 de Novembro de 1990.
100 Carlos Franqui, Retrato de Familia con Fidel, op. cit., p. 402.
101 Le Monde, Paris, 24 de Novembro de 1990.
102 Ibid.
103 Ibid.
104 Carlos Jorquera, entrevista com o autor, Santiago do Chile, 1993.
105 Marita Lamarca, entrevista com o autor, Santiago do Chile, 1994.
106 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., p. 127 e seg.
107 Ibid.
108 Ernesto Che Guevara, Escritos y Discursos, t. IX, op. cit., p. 379.
109 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., p. 127 e seg.
110 Carlos Romeo, entrevista com o autor, Paris, 1991.
111 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., p. 179.
112 Le Monde, Paris, 2 de Janeiro de 1963.
113 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. VI, p. 212.
114 Ibid., p. 203.
115 Ibid., p. 371.
116 Ibid., p. 238.

394

117 David Rousset, Une Vie dans le Siècle, Paris, Plon, 1991.
118 Ernesto Che Guevara, Cartas Inéditas, Editora, 1967, p. 35.
119 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. VI, p. 215.
120 Ernesto Che Guevara, Textes Politiques, op. cit., p. 102 e seg.
121 René Depestre, entrevista com o autor, Paris, 1991.
122 Citado em René Dumont, Cuba, Socialisme et Développement, op. cit., p. 103.
123 Ibid., p. 104.
124 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. IV, p. 464.
125 René Dumont, Cuba, Socialisme et Développement, op. cit., p. 108.
126 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. IV, p. 295 e seg.
127 Fidel Castro, Révolution Cubaine, op. cit., t. II, pp. 56-57.
128 Ricardo Rojo, Che Guevara. Vie et Mort d'un Ami, op. cit., p. 162.
129 Aleida March, entrevista com o autor, Havana, 1992.
130 Michel Gutelman, entrevista com o autor, Paris, 1996.
131 Carlos Franqui, Retrato de Familia con Fidel, op. cit., p. 447.
132 Jean Daniel, Le Temps Qui Reste, Paris, Stock, 1973, p. 154.
133 Ibid.
134 Ibid., p. 155.
135 Míriam Merzouga, entrevista com o autor, Paris, 1996.
136 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. IV, pp. 455 e 463.
137 K. S. Karol, Les Guérrilleros au Pouvoir, op. cit., p. 226.
138 Gabriel García Márquez, "La Havana au Temps du Blocus", Autrement, Cuba, Trente Ans de Révolution, op. cit., p. 31.
139 Carlos Franqui, Vida, Aventura y Desastre de un Hombre Llamado Castro, 1988, op. cit., p. 326.
140 Ernesto Che Guevara, Cartas Inéditas, op. cit., p. 30.
141 Ibid.
142 Id. Textes Politiques, op. cit., p. 170.
143 Ibid., p. 178.
144 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. IV, p. 387.
145 Ibid.
146 Ernesto Che Guevara, Le Socialisme et L'Homme, op. cit., pp. 92-93.
147 K. S. Karol, Les Guérrilleros au Pouvoir, op. cit., p. 318.
148 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. VI, p. 566.
149 Ernesto Che Guevara, Écrits d'un Révolutionnaire, Paris, La Brèche, 1987, p. 132.
150 Rouge, Paris, 11 de Outubro de 1977.
151 Ibid.
152 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. VI, p. 577.
153 Ibid., p. 581.
154 René Dumont, Cuba, Socialisme et Développement, op. cit., p. 126.
155 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. VI, p. 385.
156 Ibid., p. 390.
157 Raul Roa Kouri, entrevista com o autor, Paris, 1996.
158 Claudia Korol, El Che y los Argentinos, op. cit., p. 176.
159 Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. I, p. 80.

395

160 Jorge Edwards, Persona Non Grata, Barcelona, Barral, 1975, pp. 83-84.
161 Enrique Oltuski, entrevista com o autor, Havana, 1992.
162 Ernesto Che Guevara, (OEuvres VI, Textes Inédits, op. cit., p. 192. Trata-se de uma entrevista conduzida por Josie Fanon, viúva de Frantz Fanon, para o jornal
Révolution Africaine e incluída no diário Revolución, Havana, 23 de Dezembro de 1964.
163 Frantz Fanon, Les Damnés de la Terre, Paris, François Maspero, 1966, p. 242. Edição portuguesa da Ulmeiro, colecção Terceiro Mundo e Revolução, 1976.
164 Léon Bouvier, entrevista com o autor, Paris, 1992. Nessa época, Léon Bouvier era redactor encarregado de Cuba no Ministério dos Negócios Estrangeiros.
165 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. VI, pp. 470-472.
166 Ibid., p. 508.
167 Ibid., p. 429.
168 Ibid., pp. 524 e seg.
169 Rolando Prats, entrevista com o autor, Paris, 1996.
170 Norma Guevara, entrevista com o autor, Paris, 1996.
171 Omar Pérez, entrevista com o autor, Paris, 1996.
172 Enrique Oltuski, "Que puedo decir?", Casa de las Americas, número especial, Che, editado na Argentina e reunindo artigos publicados nos números 46 e 104, Buenos
Aires, Ediciones Latinas, 1986, p. 39.
173 Dariel Alarcón, entrevista com o autor, Paris, 1996.
174 Paco Ignacio Taibo II, Ernesto Guevara Tambíen Conocido Como El Che, México, Planeta-Joaquin Mortiz, 1966, p. 429.
175 Jean-Paul Sartre, in Granma (em francês), La Havana, 24 de Dezembro de 1967.
176 Ernesto Che Guevara, Textes Politiques, op. cit., p. 122 e seg.
177 Roberto Savio, entrevista com o autor, Roma, 1992.
178 Mohamed H. Heikal, Les Documents du Caire, op. cit., p. 225.
179 Roberto Guevara, entrevista com o autor, Buenos Aires, 1994.
180 Ernesto Che Guevara, Le Socialisme et L'Homme, op. cit., p. 49 e seg.
181 Jean-Jacques Nattiez, Che Guevara, Paris, Seghers, 1970, p. 169.
182 Ibid.
183 Ernesto Che Guevara, Escritos y Discursos, op. cit., t. 8, p. 228.
184 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., T. VI, p. 567.
185 Ibid.
186 Ernesto Che Guevara, Escritos y Discursos, tomo 8, op. cit., p. 149 e seg.
187 El Che en la Revolución Cubana, t. VI, op. cit., p. 562.
188 Ibid., p. 571 e seg.
189 Ibid.
190 Ernesto Che Guevara, Oeuvres III, Textes Politiques, op. cit., p. 235 e seg.
191 Le Monde, 14 de Dezembro de 1964.
192 Le Monde, 16 de Dezembro de 1964.
193 Ahmed Ben Bella, discurso lido em Atenas a 9 de Outubro de 1987, por Zohra Ben Bella. in Conoscere il Che, Roma, Data News. 1988, p. 138.
194 Oswaldo Barreto, entrevista com o autor, Paris, 1992.
195 Ibid.

396

196 Ibid.
197 Carlos Moore, Le Castrisme et L'Afrique Noire, 1959-1972, tese de etnologia, inédita, Paris, Universidade de Paris VII, 1983, pp. 608-609.
198 Ahmed Ben Bella, in Conoscere il Che, op. cit., p. 136.
199 "Papito" Serguera, entrevista com o autor, Havana, 1992.
200 ibid.
201 ibid.
202 Ibid.
203 Ibid.
204 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. VI, p. 549.
205 Ibid., t. V, p. 349 e seg.
206 Ibid.
207 Citado por Carlos Moore, Le Castrisme et L'Afrique Noire, 1959-1972, op. cit., p. 624.
208 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 211.
209 José Luis Llovio Menendez, La Vie Secrète d'un Révolutionnaire à Cuba, op. cit., p. 138.
210 "Papito" Serguera, entrevista com o autor, Havana, 1992.
211 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. V, p. 392.
212 Oswaldo Barreto, entrevista com o autor, Paris, 1992.
213 K. S. Karol, Les Guérrilleros au Pouvoir, op. cit., p. 370.
214 Ibid., p. 303.
215 Luis Alberto Lavandeyra, entrevista com o autor, Paris, 1991.
216 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. VI, p. 356.
217 Paco Ignacio Taibo II, Ernesto Guevara Tambíen Conocido Como El Che, op. cit., p. 429.
218 Ibid.
219 El Che en la Revolución Cubana, op. cit., t. V, p. 355.
220 Jeune Afrique, 21 de Março de 1965.
221 Mohamed H. Heikal, Les Documents du Caire, op. cit., p. 223.
222 Ernesto Che Guevara, Le Socialisme et L'Homme, op. cit., p. 70 e seg.
223 Oswaldo Barreto, entrevista com o autor, Paris, 1992.
224 Ernesto Che Guevara, "Discurso de Argel", in Le Socialisme et L'Homme, op. cit., p. 73 e seg.
225 K. S. Karol, Les Guérrilleros au Pouvoir, op. cit., p. 298.
226 Philippe Robrieux, Noire Génération Communiste, 1953-1968, Paris, Robert Laffont, 1977, pp. 316-317.
227 Ernesto Che Guevara, Le Socialisme et L'Homme, op. cit., p. 70 e seg.
228 Citado em Jean-Jacques Nattiez, Che Guevara, op. cit,, pp. 175-176.
229 Mohamed Hassancin Heikal, Les Documents du Caire, op. cit., p. 223 e seg.
230 Lofti El Kholi, entrevista com o autor, Cairo, 1996.
231 Mohamed Hassancin Heikal, Les Documents du Caire, op. cit., p. 223 e seg.
232 Ernesto Che Guevara, Le Socialisme et L'Homme, op. cit., p. 86 e seg. As citações seguintes são todas extraídas destas páginas.
233 Ricardo Rojo, Che Guevara, Vie et Mort d'un Ami, op. cit., p. 167.
234 René Dumont, in Autrement, Cuba, Trente Ans de Révolution, op. cit., p. 56.
235 Jean Lartéguy, Paris-Match, nº 958, 19 de Agosto de 1967.
236 Raúl Roa-Kouri, entrevista com o autor, Paris, 1996.

397

237 Oswaldo Barreto, entrevista com o autor, Paris, 1992.
238 Fidel Castro, Entretiens sur la Religion avec Frei Betto, op. cit., p. 263.
239 Gianni Mina, Habla Fidel, Madrid, Mondadori, 1988, p. 312.
240 Ricardo Rojo, entrevista com o autor, Paris, 1992.
241 Ana Maria Erra, entrevista com o autor, Havana, 1992.
242 Ricardo Rojo, Che Guevara. Vie et Mort d'un Ami, op. cit., p. 170.
243 Ricardo Rojo, entrevista com o autor, Paris, 1992.
244 El Che en la Revolución Cubana, op. cit, t. V, p. 377 e seg.
245 José Luis Llovio-Menéndez, La Vie Secrète d'un Révolutionnaire à Cuba, op. cit., p. ]150 e seg.
246 Roberto Fernández Retamar, "Aquel Poema", Casa de las Americas, Che, op. cit., p. 45
247 Pablo Neruda, Crepusculario, Barcelona, Planeta, 1990, p. 29.
248 paco Ignacio Taibo II, Ernesto Guevara, Tambíen Conocido como El Che, op. cit., p. 525.
249 Ibid.
250 Alberto Granado, entrevista com o autor, Havana, 1992.
251 In Granma, Havana, 29 de Outubro de 1967.
252 Orlando Borrego, entrevista com o autor, Havana, 1992.
253 Raul Maldonado, entrevista com o autor, Santiago do Chile, 1993.
254 Régis Debray, Révolution dans la Révolution?, op. cit., p. 18.
255 Id., Les Masques, op. cit, p. 54.
256 René Depestre, entrevista com o autor, Paris, 1992. •
257 Paco Ignacio Taibo II, Froilán Escobar e Felix Guerra, L'année où nous n'étions nulle part,

Paris, Métailié, 1995, p. 10.
258 Ibid., p. 32.
259 Juana Carrasco, "Che in Africa", Cuba International (versão inglesa), nº 3, Março, 1989.
260 Ernesto Che Guevara, Obras, op. cit., t. II, p. 696.
261 Id., Textes Politiques, op. cit., pp. 319-320.
262 René Dumont, Cuba est-il Socialiste?, Paris, Seuil, 1970, p. 181.
263 Carlos Franqui, Vida, Aventura y Desastre de un Hombre Llamado Castro, op. cit., pp. 330-331.
264 Juana Carrasco, "Che in Africa", art, cit.
265 Jean-Pierre Clerc, Fidel de Cuba, op. cit., pp. 312-313.
266 Max Marambio, entrevista com o autor, Santiago do Chile, 1993.

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Terceira Parte

OUTRAS TERRAS DO MUNDO.

VII

"TATU" NO CONGO

"Porque combatemos?"

Não é o Tintim no Congo, mas parece. No seu álbum de 1930, período ainda colonial, o desenhador belga Hergé conseguiu reunir, com uma tranquila boa consciência,
as mais odiosas banalidades do racismo colonialista vulgar. Quando o vapor onde viaja o jovem repórter e o seu cão se aproxima do que é ainda uma possessão do reino
da Bélgica, na margem, um negro de tanga e zagaia na mão, diz para outro: "Tás a ver, Bola de Neve, é o Tintim e o Milu..."1. Surgem então ilustrações de uma outra
época, variações sobre o tema do branco astucioso que se diverte com a credulidade dos negros analfabetos. Guevara situa-se, evidentemente, nos antípodas desta caricatura
complacente. Para ele, o imperialismo revelou no Congo o seu rosto mais odioso, e é dever de todo o revolucionário "internacionalista" combatê-lo sem tréguas. Acontece
que, nesse combate justo e nobre, a sua visão continua, como é natural, marcada por um racionalismo cartesiano "branco", que entra totalmente em choque com um universo
mental e cultural ligado ao fetichismo e ao pensamento mágico. Tintim, como Peter Pan, não quer crescer. Tal como Tintim, o Che quer permanecer fiel a uma certa
ideia, juvenil e generosa, da luta contra os maus. Retomando o caminho da guerrilha, Guevara reconcilia-se com Ernesto, o rapaz com ar de garoto que se distinguiu
na Sierra Maestra.
A 1 de Abril de 1965, de madrugada, no aeroporto de Havana, três passageiros sem nada de comum com os outros entraram no último minuto no avião soviético da companhia
aérea Cubana, que descola de imediato para Moscovo. No meio de uma fila de três lugares, instalou-se um senhor anónimo, de fato cinzento, gravata, cabelo curto bem
penteado, rosto escanhoado e com óculos de armação escura. À sua direita, junto à janela, um negro alto,
à esquerda um tipo de pele mate, corpulento. Ninguém desconfia sequer que se trata do comandante Guevara e dos seus guarda-costas. Victor Dreke e

401

José Maria Martínez Tamayo, de vinte e nove anos, aliás "Papi". Este último co-fundador dos serviços de segurança cubanos, já em 1963 realizou para o Che, que adora,
uma missão especial na Bolívia: instalar aí uma base de apoio à guerrilha de Masetti na Argentina.
Após um longo périplo em ziguezague - Europa de Leste, África, Argel, Cairo, Nairobi - onde, em cada etapa, são aguardados por gente amiga, os três homens chegam,
a 19 de Abril, a Dar es-Salaam, término provisório. São recebidos por Pablo Rivalta, embaixador de Cuba na Tanzânia. Apesar de Rivalta ter acompanhado o Che durante
uma parte da sua digressão por África, há algumas semanas apenas, não reconhece de imediato o número dois cubano nesse tipo apagado, já entradote, um tanto rechonchudo,
de cachimbo na mão. A iconografia deste período de Guevara é escassíssima. Só em Outubro de 1987, o Granma, jornal do Partido Comunista Cubano, publica pela primeira
vez, deformadas pela má qualidade do papel, as primeiras fotografias do Che disfarçado.2 Aí ele surge com o cabelo puxado para trás, tendo-lhe sido rapada "uma barba
de oito anos". Em Dar es-Salaam, a presença do Che deve permanecer secreta. Nem o presidente Nyerere, que é favorável à "cooperação", deve saber por enquanto do
assunto.
Ao mesmo tempo, no outro lado do antigo Congo Belga, em Brazzaville, chegam soldados e oficiais cubanos que, por seu turno, se dirigem para Dar es-Salaam, ponto
de encontro. Nos próximos meses, em pequenas unidades, irão desembarcar uma centena de homens, todos negros, com raríssimas excepções. "Desde que chegou, o Che começou
a dirigir tudo", declara Dreke. "Procurou um dicionário e decidiu escolher nomes em suaíli*. Depois, achou mais simples pôr números"**3. Rafael Zerquera, que será
o médico do grupo, explica: "Ele começou por ordem de chegada: "Ora bem, Dreke será Moja (o 1), Papi Martínez Tamayo será M'bili (o 2), eu serei Tatu (o 3)... e
tu, Zerquera, serás Kumi (o 10)"". O comandante Tatu não revelou logo a sua identidade, nem sequer aos membros da sua pequena tropa. "Foi então que ele disse: "Eu
sou o Che", conta o sargento Torres. "Senti uma emoção do caraças. De alegria". "Eu nunca tinha visto o Che de perto", declara Kumi, que ainda se lembra das instruções
de Tatu: "Estávamos ali para ajudar um movimento de libertação [...] para dar, não para receber. Era preciso sacrificarmo-nos. Os guerrilheiros locais deviam ser
servidos em primeiro lugar [...]. Devíamos ser seus assessores, permanecer modestos, termos bem presente que se tratava de um país com quatro séculos de atraso.
[...] Mostrou-nos um mapa." Guevara gosta de mapas.

Nota 1: * O suaíli é uma língua do grupo banto, penetrada de influências árabes, utilizada como idioma vernáculo em toda a África Oriental. A Tanzânia e o Quénia
fizeram dela a sua língua oficial.

Nota 2: **Todas as citações não referenciadas neste capítulo são extraídas da obra de Paco Ignacio Taibo II, Froilán Escobar e Felix Guerra, O Ano em que Estivemos
em Parte Nenhuma.

Tal como há um mês, no Ministério da Indústria, nova lição de geografia, desta vez acompanhada de uma informação histórica necessária. O Che

402

explica aos seus homens "porque combatemos" e em que contexto. O Congo é uma antiga colónia belga, limítrofe da Tanzânia, separada dela pelo lago Tanganhica, imenso.
É um país vastíssimo, habitado por duzentos e cinquenta etnias, vinte vezes maior do que Cuba, de grande importância para os colonialistas por ser rico em cobre,
cobalto e, sobretudo, em ouro, diamantes e rádio. Não confundir este Congo-Leopoldville* com o Congo-Brazzaville, amigo de Cuba, antiga possessão francesa, do outro
lado do rio Zaire, que faz fronteira a oeste.

Nota: * O Congo-Leopoldville passará a chamar-se Congo-Kinshasa em 1966, mais tarde Zaire, em 1971 e República Democrática do Congo em 1997. As suas fronteiras actuais
foram fixadas em 1885, numa conferência internacional das potências coloniais em Berlim.

A 30 de Junho de 1960, o "Congo-Léo", como se diz abreviando, obteve a independência, e um grande patriota, Patrice Lumumba, foi eleito chefe do governo. Na cerimónia
de proclamação da independência, diante do rei belga, lembrou corajosamente que foi através da luta que foi conquistada essa nova liberdade, "uma luta de lágrimas,
fogo e sangue [...] para pôr fim à humilhação da escravatura".
Mas Lumumba não teve tempo de governar. O exército congolês amotinou-se contra os oficiais belgas. A Bélgica, então, interveio, permitindo que um fantoche, MoYse
Tschombé, proclamasse a independência da região do Catanga, a sul do país. É aí que se encontra a Union Minière, que representa o essencial dos interesses belgas.
Os capacetes azuis das Nações Unidas, chamados a intervir, e comportando-se sobretudo como agentes dos Estados Unidos, protegeram os separatistas, em vez de os combaterem;
e, em Setembro de 1960, um antigo sargento promovido a coronel, Mobutu, mandou prender Lumumba, o que levou alguns dos seus ministros a formar em Stanleyville, no
Norte do país, um governo lealista.
Espancado, torturado, Lumumba foi entregue, em Janeiro de 1961, ao seu inimigo Tschombé, que o mandou executar logo que saiu do avião em Elisabethville, capital
do Catanga. Desde então, a luta não mais parou. Em 1963, um antigo ministro de Lumumba, Pierre Mulele, desencadeou uma guerra "revolucionária" no Kwilu, no Oeste,
e, em 1964, Gaston Soumialot assumiu o controlo do Leste do país. Em Stanleyville, constituiu o governo da República Popular do Congo. Tschombé, promovido a primeiro-ministro,
graças a Mobutu, mobilizou as suas tropas contra essa rebelião, com o apoio de aviões norte-americanos pilotados por gusanos, isto é, cubanos contrarevolucionários.
Em Novembro de 1964, comandos de paraquedistas belgas, acompanhados de mercenários brancos sul-africanos, rodesianos, franceses, ingleses, etc., ocuparam Stanleyville
e, a pretexto de evacuar a população branca, ajudaram os soldados de Mobutu a massacrar milhares de congoleses lealistas. Foi este escândalo que ele, Guevara, denunciou
veementemente em Dezembro, em Nova Iorque, perante as Nações Unidas. Trata-se então, agora, de apoiar os combatentes do Congo revolucionário...

403

Os camaradas escutam atentamente a exposição do comandante, que consideram elucidativa. No mapa, as coisas tornam-se ainda mais claras. Para irem combater em território
congolês precisam, antes de mais, de atravessar a Tanzânia, de Dar es-Salaam, no Oceano Índico, até ao lago Tanganhica fronteira com o Congo-Léo, no extremo ocidental
do país. Explicam-lhes que, à chegada a Kigoma, um pequeno porto na margem tanzaniana do lago estará gente à espera deles para os ajudar a passar para a outra margem.
Nesse ponto, o lago tem cinquenta quilómetros de largura. Todas essas explicações têm um sabor a aventura, inteiramente diferente da rotina da LCB (Luta Contra o
Banditismo), esse interminável combate contra a guerrilha anticastrista, em Cuba, de onde provém a maior parte dos efectivos seleccionados para o Congo. "Era uma
ideia bonita, o regresso aos locais de origem dos nossos antepassados, a África", dissera um deles, Marco Antonio Herrera Genge, quando lhe revelaram o local das
operações.
Guevara não esconde que anseia por entrar em acção; pouco importa a logística não ser perfeita, pouco importa que todos os que deviam chegar não tenham ainda aparecido.
Essa impaciência, frequentemente sublinhada por Castro, valer-lhe-á a acusação de "blanquismo". Ele afirma sem rebuço: "Queria chegar ao Congo o mais depressa possível
[...]. É sempre possível começar com dez". Quererá ele reproduzir aquele momento - já considerado simbólico pela historiografia oficial da gesta cubana - em que
Fidel, o profeta, se vira, durante alguns dias, rodeado apenas de uma dúzia de homens, promovidos a "doze apóstolos", na Sierra Maestra! Em todo o caso, o Che não
espera que cheguem a Dar es-Salaam os dirigentes congoleses - Laurent Kabila, Massengho, Soumialot - para montar a operação de infiltração; estão todos no Cairo,
explicaram-lhe, numa cimeira do Movimento de Libertação, e só regressarão dentro de "algum tempo". "Não faz mal; e, no fundo, ainda bem", confessará ele.
Nas praias de Dar es-Salaam, compram um barco de dez metros, põem-no sobre um camião e, numa estranha caravana - sete veículos: um Land Rover, dois jipes, três Mercedes
e o camião camuflado -, ei-los a caminho, numa estrada má, de mil e trezentos quilómetros, tão comprida como a carretera central de Cuba. Em direcção a Kigoma, à
beira do lago. Os cubanos são catorze. A ideia que a maior parte deles tem de África é estereotipada, uma floresta virgem, elefantes, leões, azagaias... Alguns viram
os pais participar numa santeria, um culto sincrético no qual as deusas iorubas, como Oxún, copiam os traços da figura da Virgem denominada "do Cobre", por exemplo.
Mas, nessa época, a Revolução não apreciava a santeria que, por isso, se refugiava numa semiclandestinidade. Não podia haver uma ideia plural de cubanidade, dizia-se.
A realidade africana que lhes salta aos olhos é diferente: terra batida, estradas más e poeirentas, lojas de libaneses que, ao longo da estrada, vendem toda a espécie
de artigos. "Passámos por caminhos estreitos, aldeias minúsculas, onde os homens pareciam animais" (Zerquera). Não podendo

404

contar com o apoio de dirigentes importantes, convenceram um delegado congolês de terceira categoria, chamado Chamaleso, a acompanhá-los. Este último, com os seus
amigos, ouve, um tanto pasmado o discurso desses espantosos "irmãos de raça", vindos do fim do mundo. O Che improvisou uma pequena encenação. Finge traduzir para
francês o espanhol de Dreke, apresentado como o chefe do grupo, mas é ele que, com as suas próprias palavras, explica a posição de Cuba: Fidel Castro enviou-os para
se colocarem ao serviço da Revolução, para ensinarem o manejo das armas aos guerrilheiros desse país e participarem com eles na luta anti-imperialista. A perspectiva
não parece entusiasmar os interessados. "Essa ideia não lhes agradou por aí além", afirma Dreke. "Explicaram-nos que estavam divididos em várias frentes, sendo a
frente do lago a mais importante. Tinham divergências com o movimento de Mulele. Os problemas ligados ao tribalismo pareciam omnipresentes." O señor Tatu, que de
forma nenhuma revela a sua identidade, consegue no entanto o acordo de princípio dos congoleses para receber um contingente de cento e trinta combatentes cubanos
negros.
A táctica do Che é simples: apanhando-se em situação vantajosa, colocar toda a gente perante o facto consumado. Ele reconhece, "era uma chantagem, na qual impunha
a minha presença [Estaba realizando un chantage de cuerpo presente]". É por isso que a ausência dos dirigentes lhe dava jeito, "pois estava empenhado em lutar no
Congo e receava que a minha proposta pudesse provocar reacções demasiado intempestivas e que alguns congoleses, ou mesmo o governo amigo, exigissem que me abstivesse
de intervir". Contudo, a sua verdadeira preocupação era a falta de combatividade dos congoleses, a falta de organização e o comportamento duvidoso dos dirigentes.
O embaixador Rivalta, que conhece estes últimos melhor do que Guevara, é bastante claro: "A minha impressão era muito negativa. Só pensavam em mulheres e bebida.
Sempre fora do Congo, entre Kigoma e Dar es-Salaam, levavam uma rica vida. Não estavam verdadeiramente motivados pela luta de libertação. O governo tanzaniano mostrara-me
a lista das despesas para todo o movimento de libertação. Era uma soma elevada, por causa do álcool e dos bordéis [...] Kabila era um fala-barato. E eu, pessoalmente,
tinha Soumialot na conta de um mentiroso..."

Um remake da Sierra Maestra?

A história repete-se, é sabido. E repete-se de forma burlesca. A travessia agitada do lago Tanganhica pela pequena tropa do Che parece um remake insignificante da
audaciosa expedição de Castro do Granma, a qual, por seu turno, se inspirava numa tentativa análoga por parte de José Marti... Estes jogos de espelhos não são gratuitos.
"As forças militares de Tschombé patrulham permanentemente o lago", observa Dreke, que situa o acontecimento na noite 23 de Abril. Em Kigoma, na altura do embarque,
há um "pequeno

405

problema com o barco. O Che enerva-se. Têm de ir, seja lá como for" (Dreke). Com Chamaleso, o responsável congolês, e mais um ou dois, são ao todo dezasseis ou dezassete
- já não se lembra bem - a embarcar de armas e bagagens, na lancha.
A travessia é feita de noite, para enganar a vigilância da guarda de Tschombé. A escuridão é profunda, a navegação difícil. Estão nas águas agitadas do lago, no
fim da estação das chuvas. E está precisamente a chover No meio da escuridão, o piloto perde-se, o motor avaria, tal como no Granma. Mas, à força de pragas (puteadas),
lá se põe em marcha. Levanta-se uma tempestade num mar agitado. "Éramos sacudidos como uma casca de noz", conta Dreke. O barco não é estanque. Tira-se a água com
baldes "A água continuava a entrar; tínhamos perdido o rumo. [...] O Che perguntou-me se eu sabia nadar, acrescenta Zerquera (Kumi). Quando lhe respondi que não,
fez troça de mim: "Coño, que maneira estúpida de morrer"" Contudo, nessa noite, Deus devia ser cubano, congolês ou revolucionário, pois, por volta das 5 ou 6 da
manhã, fim do pesadelo: a lancha acaba por aportar "do lado de Kibamba", na margem congolesa do lago. O Che termina a noite em plena crise de asma, mas pouco se
importa! Dariel Alarcón, o guajiro que Guevara ensinara a ler e escrever, afirma que já estava lá, em Kibamba, com algum pessoal da embaixada cubana de Dar es-Salaam,
para receber o primeiro contingente dos seus camaradas. Mas ninguém, dos testemunhos recolhidos, nem o Che, no que será publicado do seu diário, se refere à presença
de cubanos nessa manhã, em terra congolesa. Pelo contrário, Dreke afirma: "Não havia ninguém à nossa espera. Incerteza e tensão". Por fim, surgem, surpreendidos,
mais curiosos do que desconfiados, congoleses vestidos com a farda amarela fornecida pelos chineses, com slogans e cânticos. "Foi a única vez que eles nos pareceram
ter um ar marcial", ironiza Zerquera. Eis então, finalmente, Tatu no Congo!
Por muito informado que esteja, Guevara nem sonha que, ao pôr os pés nessa região do Congo, o Sul do Kiwu, onde especifica que a zona dos combates se situa entre
Albertville e Bukavu, se encontra à beira de uma região explosiva. Conflitos ancestrais, de ordem étnica, ateiam lutas entre os autóctones e as populações de origem
ruandesa, marcadas pelos seus antagonismos: pastores tutsis, que imigraram no século XIX para as terras altas dos planaltos, contra agricultores hutus, majoritários,
que se fixaram nos vales férteis. Essa região de colinas e vulcões extintos pertence geograficamente à bacia dos grandes lagos africanos situados na grande fenda
geológica continental, enquanto politicamente faz parte do Congo, orientado para a bacia do Zaire desde que os ocidentais assim o decidiram, traçando, em 1885, fronteiras
artificiais. O comandante Tatu não se apercebe que, nesse contexto de violentos antagonismos locais, os conceitos de revolução e imperialismo não têm o mesmo significado
para os seus interlocutores e para ele. Está, evidentemente, muito longe de imaginar que as lutas de libertação que defende serão substituídas, trinta anos depois,
por sangrentas operações de

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"purificação étnica", nas quais se sucederão genocídios e contra-genocídios, provocando intermináveis tragédias que encherão as primeiras páginas dos jornais.
O Che descreve bastante bem, como militar, "o quadro geográfico onde vamos viver", porque, quando o caminho mergulha nas montanhas que se erguem sobre o lago, a
uma altitude média de mil e quinhentos metros, "é o cenário que convém à guerra de emboscadas".
Todavia, emboscadas é coisa que o Che não verá, e só participará nelas de uma forma episódica. "Estamos aqui para ficar, pelo menos, cinco anos", anunciara ele aos
seus homens. Mas a sua aventura congolesa não passará dos sete meses. Será, como ele irá escrever, "a história de um fracasso". Fracasso militar porque fracasso
cultural, isto é, contradição entre duas visões do mundo, dois tipos de racionalidade alheios um ao outro.
O primeiro sinal de alerta é mencionado pelo próprio Guevara: recusa-se a acreditar num chefe congolês que se apresenta como tenente-coronel e que explica que uma
poção mágica, a dawa, tem o poder, não de dar aos combatentes uma força prodigiosa - isso são coisas do Asterix! - mas os tornar invulneráveis às balas inimigas,
que "caem por terra, inúteis". "Não tardei em dar-me conta de ele estar a falar a sério", regista ele no seu diário. "Tive sempre receio que essa superstição se
virasse contra nós e nos tornasse responsáveis pelo fracasso de um combate. Tentei várias vezes discutir o assunto com vários responsáveis, para tentar convencê-los.
Impossível. A dawa é uma questão de fé".
O segundo mal-entendido, de ordem política, tem também uma base cultural. De facto, o universo mental dos dirigentes congoleses é o de uma sociedade que obedece
a uma hierarquia marcada pelos reis, pelas tribos, pelos clãs. Se entraram numa luta armada, não foi tanto para combater o imperialismo ou para criar um segundo
Vietname em África, mas mais para recuperar as posições de poder e de estatuto que lhes tinham sido retiradas por Tschombé, Mobutu e os seus mercenários. Esses dirigentes
cedo compreenderam que proclamar alto e bom som grandes objectivos revolucionários era o meio mais seguro de obter, no estrangeiro, prestígio, financiamento, convites
e outras vantagens materiais... Tudo isso é muito mais gratificante do que combates de guerrilha duros, perigosos e incertos. Daí o desespero do Che, a quem é infligido
o suplício mais atroz para um homem apressado: esperar! Esperar que os dirigentes congoleses que vêm apoiar se decidam a renunciar aos prazeres da cidade e se dignem
aparecer "no terreno", esperar que esses mesmos chefes-fantasmas lhe concedam autorização para combater. Durante quatro longos meses, o camarada Tatu não fará mais
do que esperar...
Logo que chegou, o Che decidiu revelar a sua identidade ao responsável congolês que os acompanhou e que lhe inspira confiança. Chamaleso fica estupefacto. "Ficou
siderado. Só repetia frases como: "Escândalo internacional!" "Que ninguém o saiba, que ninguém o saiba!"". O congolês não perde

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tempo a regressar à Tanzânia e a comunicar a novidade incrível ao chefe, Kabila. Antes de atravessar o lago, põe ao corrente um jovem de 17 anos, Freddy Ilanga que,
na sua ausência, servirá de tradutor. Como muitos dos seus camaradas Ilanga não sabe quem é o Che. Não compreende toda aquela agitação, "Ele ameaçou-me que se eu
não fosse discreto me mandava fuzilar. Eu disse cá para mim: "Quem é esse Che de merda para que ameacem fuzilar-me?"".
Aguardando que a Revolução produza o seu efeito, Tatu organiza o seu acampamento perto da pequena aldeia de Kibamba onde desembarcaram, na margem do lago. E propõe
de imediato aos congoleses que lá estão um programa de formação militar e de marchas de treino, com acções armadas conduzidas por pequenos grupos. Quanto ao recrutamento,
não tinha ilusões: "Era necessário ter em conta que só 20% dos homens eram aproveitáveis como soldados e, entre esses, dois ou três como futuros quadros dirigentes".
O activismo desse branco, sempre a dar conselhos, choca com a passividade dos seus interlocutores locais, que lhe pedem que apresente as suas propostas por escrito.
"Por enquanto, estamos em reunião", respondem-lhe eles. Quinze dias se passam assim, sem fazer nada. Os cubanos negros observam os congoleses negros, que também
os observam, e cada um adivinha, sem o exprimir claramente, que há qualquer coisa de estranho no comportamento do outro.
No terreno, a verdade dos homens e das coisas ganha uma consistência diferente da das proclamações revolucionárias difundidas no exterior. Os recrutas de Kibamba
não parecem ter muita consideração pelos seus dirigentes: são ladrões, dizem eles aos cubanos, são oportunistas, o seu comportamento é suspeito, alguns andam em
comezainas na Embaixada dos Estados Unidos... Por seu turno, Guevara observa: "O lago estava pejado de uma série de mensageiros que possuíam uma capacidade fabulosa
de desvirtuar qualquer notícia". Está sobretudo preocupado por ver que os soldados de Kibamba, munidos de um qualquer salvo-conduto, se transformam em "ociosos",
atravessando o lago para irem a Kigoma, na Tanzânia, frequentar as prostitutas que aí abundam. A sida ainda não existe, mas contraem inúmeras doenças venéreas. "Quem
pagava essas mulheres? Para onde ia o dinheiro da Revolução?", perguntava o Che. Torna-se, segundo ele próprio afirma, "discípulo de Esculápio", para ajudar o médico
Zerquera a tratar um outro flagelo, a intoxicação alcoólica provocada por uma bebida perigosa, o pembe, fabricada a partir de farinhas fermentadas de milho e mandioca
destiladas de forma rudimentar; daí as rixas e ferimentos por tiroteios provocados por bebedeiras. Aliás, bastou que se soubesse que havia médicos na zona para que
acorressem os camponeses das redondezas, em busca de tratamento. Mas a prioridade vai para os "combatentes". "Participei pessoalmente na distribuição de um carregamento
de medicamentos soviéticos. Aquilo parecia um suk (mercado árabe). Cada representante de um grupo armado exibia números, [•••] apresentava efectivos miríficos, e
assim por diante...". Pablo Rivera explicita: "Os Chineses também davam apoio, sobretudo em armas. Os Soviéticos enviavam medicamentos e armamento inadequado, ao
qual faltavam peças".

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NHesta existe um mapa da zona do lago Tanganhica intitulado "Uma caricatura de guerrilha: O Congo-Zaire (1965)"

409

Apesar da sua impetuosidade, Guevara é um espírito metódico. Irrita-se ao ver a organização "desastrosa" daquele Exército de Libertação do Congo perguntando a si
próprio que raio de exército será. "As reservas alimentares e as armas empilhavam-se na praia, num caos alegre e fraterno. Várias vezes tentei que nos deixassem
organizar o armazém [...] mas durante muito tempo foi impossível organizar o que quer que fosse." É preciso, pois, armar-se de paciência e aguardar o regresso dos
dirigentes, que, na conferência do Cairo não hesitam em dar uma visão triunfalista do combate congolês. Para evitar que os seus homens caiam na ociosidade, perigo
máximo, o Che manda-os fazer patrulhas de reconhecimento. Pede a Dreke que estude as hipóteses de instalar uma base ali próximo, nos montes de Luluabourg, a três
mil metros de altitude. Os cubanos regressam gelados com a humidade, o nevoeiro, as temperaturas que descem aos seis ou sete graus. Essa África dos grandes lagos
é muito diferente das habituais imagens estereotipadas, que descrevem sobretudo savanas ensolaradas e boabás. Aqui tudo é verdejante e húmido, mesmo na chamada estação
"seca", de Junho a Setembro. Nas montanhas, aliás, chove durante todo o ano. Na margem do lago, um outro mal atinge os homens do Che: a febre - paludismo, outra
doença tropical - que provoca uma sensação de cansaço geral e, diz o Che, um princípio de pessimismo.
"A chegada, a 8 de Maio, de dezoito cubanos, acompanhados de um dirigente congolês, Mitudidi, faz subir o moral da companhia. Guevara, a quem Laurent Kabila recomenda
que permaneça incógnito, decide ir estabelecer a sua base num alto planalto de Luluabourg, onde se encontram já pastores tutsis, originários do Ruanda. "Essa comunidade
permitia-nos ter acesso à preciosa carne de vaca que cura tudo, até a nostalgia", comenta o argentino, carnívoro por definição, e nostálgico, como todos os apreciadores
de tango.
Cinco horas de subida, através de caminhos estreitos, ao longo de nove quilómetros e no meio de densa vegetação. Nova coincidência histórica? Esse acampamento no
alto de um monte faz lembrar o acampamento de Castro, quando decide instalar-se no pico Turquino, o ponto mais alto da Sierra Maestra. Em vez de se lançar, de olhos
fechados, ao assalto da cidade de Albertville, como ordenara Mitudidi, projecto irrealista, Guevara consegue que o deixem enviar primeiro patrulhas de reconhecimento.
É certo que os cubanos estão ali para obedecer e para apoiar os seus irmãos africanos na sua justa luta. Mas isso não impede que se conserve o bom-senso.
Nada é tão consolador como as informações dos "exploradores" cubanos sobre a quantidade real de efectivos e de armas. Os números exagerados fornecidos na Tanzânia
não correspondem de modo nenhum à realidade. "Contámos 80 homens armados, quando nos diziam serem milhares. Os chefes nunca estavam na frente. Não queriam saber
da guerra", dirá Dreke. Mesma opinião do sargento Torres, aliás "Nane". Levou com ele alguns autóctones, para espiar uma central hidroeléctrica, Force de Bendera,
a dois dias de marcha. "Os congoleses iam morrendo de medo quando viram as sentinelas. Fugiram a correr, gritando: "Askari Tschombé (os soldados de Tchombé)" [•••]

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Uns medricas." O desprezo que esta opinião exprime remete para o conceito espanhol de vergüenza ajena - sentir vergonha pelo comportamento do outro. Os congoleses
queriam que os instrutores cubanos fossem negros. E são-no, embora de etnias diferentes, pois a população negra de Cuba provém sobretudo das costas atlânticas da
África. Mas três séculos após o tráfico de escravos, os negros tornaram-se homens bem treinados, disciplinados, corajosos. Ei-los confrontados com uma imagem de
si mesmos atrasada em relação à História, e o espectáculo da debandada dos seus companheiros congoleses é como uma humilhação. Daí, talvez, a severidade da sua opinião.
Daí, também, a indulgência de Guevara, que relativiza o problema e explica que, na época das guerras de independência, "os cubanos também pareciam umas galinhas
tontas". Admitir que os congoleses eram uns medricas que se recusavam a combater significava que Cuba se enganara na sua política africana. O que estava fora de
questão.

O universo cultural do outro

"Eu explico-te o que é imperialismo e tu dás-me uma lição de suaíli", diz o Che. A melhor reportagem sobre o Che em campanha, na montanha congolesa, devemo-la ao
seu jovem professor, Ilanga, um rapaz desembaraçado e esperto, investido pelos seus do poder de distribuir a dawa mágica (e que, mais tarde, será médico em Cuba).
Ordenaram-lhe que não perdesse nunca de vista o camarada Tatu. O seu testemunho é semelhante às descrições feitas do argentino desde os tempos da Sierra Maestra:
sem galões, mas criando à sua volta um respeito que revela bem ser o chefe. O olhar continua penetrante: "Olhava para ti como se quisesse obrigar-te a dizer algo".
Juntos, na floresta húmida, fazem marchas que mais parecem escaladas. O sol não penetra a folhagem espessa, o ambiente é escuro e frio. A meia-encosta, o Che detém-se
para dar uma bombada de aerosol. Perante o espanto do rapaz, explica-lhe as manhas da asma e porque é que não se deve ceder ao pânico da asfixia. A sua mochila é
a mais pesada, porque está cheia de livros. Traz uns binóculos e um altímetro pendurados ao pescoço e tem os bolsos atafulhados de papéis. Mantém o termos de água
quente para fazer o mate amargo, a sua droga. Quando há café, servem-no em primeiro lugar, não por especial favor, que ele não consente, mas porque é o único a tomá-lo
sem Açúcar. À noite, sempre um pouco insone, escreve sentado à fogueira, no meio da cabana que partilha com Dreke e Ilanga, ou então lê, para além da meia-noite,
a biografia de Karl Marx, de Mehring, fumando cachimbo; os charutos são raros.
Por vezes pode pairar a dúvida sobre os testemunhos compilados pelos três autores da montagem efectuada a partir dos extractos do diário do Che, mas há uma observação
que confere um toque de verdade à descrição do professor de suaíli: "Não se lavava todos os dias. Isso não! Era raro ele ir tomar

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banho ao rio". Gosto inveterado do Chancho pela sujidade, cuja interpretação deixaremos ao cuidado do doutor Freud.
Passado um mês da sua chegada, tem uma forte crise de paludismo. "Paguei o meu tributo ao clima do Congo." Recusa os antibióticos, por causa da sua alergia. Ainda
por cima, declara Zerquera, o médico, "lá em cima no acampamento, fazia um frio de rachar". Mal a febre começa a baixar, à força de quinino, Guevara levanta-se:
um homem ferido numa escaramuça precisa de tratamento. Recaída. Febre ainda mais alta. "Comecei a delirar." Não é exactamente Rimbaud em Harare mas, na perseguição
da Quimera, parece existir a mesma decisão de dominar um corpo que nunca deve ser um obstáculo. Resultado: "Uma espantosa fraqueza geral. Já nem sequer conseguia
comer". Quando ouve alguém no grupo sugerir a sua evacuação arranja forças para gritar: "Não me mexo daqui. Antes morrer por cá!".
E então, a 22 de Maio, visita inesperada. Vêm informá-lo que um ministro cubano o espera lá em baixo, com todo o grupo. É Osmany Cienfuegos, braço direito de Barbarroja,
que conseguiu, com alguma dificuldade, que Dar es-Salaam o autorizasse a vir ver como estavam as coisas. Encarregado de acções internacionalistas, traz um terceiro
contingente de trinta e quatro cubanos. São mais de setenta. Outros irão chegar. Osmany informa o Che dos inúmeros boatos que circulam em Cuba e em todo o mundo
sobre o seu "desaparecimento". Diz-se que foi para o Vietname, para o Brasil, para a Argentina, que está preso em Cuba, encerrado num hospital psiquiátrico no México...
Quando, no mês passado, os Tanques invadiram a República Dominicana, temendo que essa metade da ilha Espanhola se tornasse numa segunda Cuba, tê-lo-iam mesmo visto
disparar contra os marines! A sua ausência nos festejos do 1.º de Maio fez renascer as mais desvairadas conjecturas, tanto mais que, a 20 de Abril, Fidel, assediado
pelos jornalistas estrangeiros, lhes respondeu: "O comandante Guevara está onde melhor serve a Revolução"4. Sendo assim, as notícias são boas, com uma excepção de
peso: "Para mim, pessoalmente, ele trouxe a notícia mais triste da guerra: a minha mãe estava muito doente e [...] era de prever o pior". Osmany saíra de Havana
antes de a notícia da morte de Celia de la Serna ser conhecida em Cuba. "Tive de passar um mês nessa terrível incerteza", escreve o filho que, no seu texto, se esforça
por não deixar transparecer o seu desgosto.
E Ricardo Rojo, que se tornara amigo e confidente de Célia em Buenos Aires, quem melhor contará como, tendo entrado a 10 de Maio na clínica Stapler, no elegante
Bairro Norte da capital Argentina, a aristocrata decadente foi obrigada a sair passados poucos dias, quando os proprietários do estabelecimento alegaram que a mãe
de um comunista tão perigoso iria dar má fama à clínica. A 16 de Maio, na nova clínica, Rojo consegue uma ligação telefónica para Aleida, em Havana. Passa o aparelho
a Célia, que insiste em falar com o filho. "Estou a morrer. Quero vê-lo. Ele tem de vir já." E, sentindo o embaraço da nora, diz a Rojo: "Passa-se qualquer coisa
com Ernesto"5. Dois dias depois, Aleida telefona a dizer que... é difícil. Mas o

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cancro não espera. A 19 de Maio de 1965, com cinquenta e oito anos, Celia de la Serna, a destemida, morre sem ter voltado a ver o filho.
O que é espantoso é que ninguém em Cuba informa logo o Che, nem que fosse através da embaixada de Dar es-Salaam. Só algumas semanas mais tarde, na floresta congolesa,
Zerquera toma conhecimento da notícia ao ler uma revista cubana. Pede ao comandante que desça ao acampamento de baixo. Para Ernesto, o golpe é duro, embora já o
esperasse. A mãe morreu sem ter lido a carta de despedida que ele escrevera aos pais, e ele nunca lerá a última carta que ela lhe enviou antes de morrer. A sua melhor
confidente, a sua verdadeira cúmplice, desapareceu. Ei-lo só, naquele ambiente longínquo. "Sentou-se na minha rede", recorda Zerquera. "[...] Começou a falar da
sua infância. Queria beber chá. Pedi-lhe que ficasse ali. Não disse sim nem não. [...] Partilhámos a refeição... Começou a cantar tangos." Cantar tangos argentinos
em pleno coração da África negra pode parecer incongruente. Mas a reacção não é absurda. Nenhum hino funerário se presta tanto à evocação da morte de uma mãe do
que o tango, "pensamento triste" por natureza. Mesmo desafinado, mesmo sem o bandoneón. Em Che Guevara, o canto profundo de uma argentinidade nunca negada ressurge
subitamente de uma outra idade, solilóquio da dor.
Com a chegada de Mitudidi, considerado como chefe do estado-maior da guerrilha congolesa, Tatu teve a esperança de poder recuperar o tempo perdido e de que em Junho
iriam finalmente entrar em combate. Esperança frustrada. Mitudidi tenta, é certo, impor alguma disciplina, castiga os que se embebedam, só distribui armas a quem
sabe servir-se delas, mas também ele fica à espera da chegada anunciada de Kabila para dar o sinal de partida para uma das frentes. Ora, Kabila não aparece, demasiado
ocupado, segundo parece, com a visita à Tanzânia do chinês Chu En-Lai. Paradoxo da situação: Guevara, outrora interlocutor oficial desse mesmo Chu En-Lai em Pequim,
fica agora a secar numa cabana perdida no Sul do Kiwu congolês, clandestino e inactivo. "Todas as manhãs era a mesma coisa", lê-se nos seus apontamentos. "Kabila
não vem hoje mas amanhã, sem falta, ou depois de amanhã." O Che lutou em Cuba contra os malefícios do mañana latino-americano. Tentou inculcar a todos os que trabalhavam
com ele as virtudes da pontualidade. E ei-lo agora a ter de se defrontar com um mañana elevado à décima potência, sem ter outro remédio senão aceitar. São as regras
do jogo. Dar tempo ao tempo é uma fórmula maravilhosa que não foi feita para ele. Esta moratória exaspera-o. Em volta, a paisagem é soberba, mas ele já não vê a
beleza. "Dias angustiantes, em que maldizia o ângulo formado pelas duas colinas que descem até ao lago, só me dando como horizonte a pequena extensão de água", escreve
ele.
Se ao menos tivesse um bom parceiro de xadrez. Mas nenhum tem um nível pelo menos médio. O xadrez é a sua paixão, talvez o único vício. A primeira vez que ouviu
falar de Cuba - ainda era um miúdo - foi porque o mestre Capablanca, que actuava na Argentina, era cubano. Mais tarde encontrou

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a personagem num campeonato organizado pelo Ministério da Indústria para incutir no pessoal e nos jovens o gosto por esse jogo antigo, proveniente da Pérsia, onde
são executadas as melhores estratégias. Aleida, em Havana tinha acabado por compreender que algumas das noitadas que retinham o seu ilustre marido fora de casa eram
dedicadas ao xadrez. Antes de partir para o Congo, torcera o nariz ao verificar que, entre o grupo, eram raros os que sabiam servir-se de um tabuleiro. Para aumentar
o prazer, joga por vezes de costas, às cegas, ditando a posição dos peões que devem mover-se. Uma vez, foi vencido pelo camarada Dogna, e como este último não está
muito disposto em conceder-lhe a desforra, ameaça... matá-lo. No fundo, é o tempo que ele tenta matar. Terá vindo de tão longe para jogar xadrez?
Guerrilheiro sem guerrilha, dá aulas de francês, organiza cursos de suaíli, tenta descobrir alguns congoleses para os ensinar a disparar, a marchar, a carregar mochilas.
Enfurece-se ao ver que eles, tendo armas excelentes, desperdiçam as munições e recusam-se a transportar a mínima carga, mesmo quando se trata de ir buscar comida
ao acampamento de baixo. "Não sou camião", ou, pior ainda: "Não sou cubano". O seu conceito de estratégia, inspirado na experiência da Sierra, é o de não dar tréguas
ao inimigo, atacando-o sem parar. Pelo contrário, os congoleses preferem, por aquilo que vê, permanecer nas suas posições. Montaram "barreiras", de difícil acesso,
nas colinas e não saem dali, "confiantes na passividade do inimigo e contando com os camponeses para se abastecerem". Um mês e meio após a chegada, o Che tem a sua
opinião formada. Escreve: "O exército popular de libertação caracterizava-se por ser um exército de parasitas que não trabalhava, não treinava, não combatia, exigia
dos habitantes que o abastecessem e trabalhassem para ele, às vezes com uma extrema dureza. [...] Se este estado de coisas não for alterado, o fracasso da revolução
congolesa será irremediável".
Haverá da sua parte cegueira de ocidental impermeável à especificidade do comportamento local? É verdade que Guevara é branco. Oriundo do cone sul latino-americano,
muito "europeu", o seu modo de pensamento, rígido, destoava já em Cuba, penetrada de indolência africana. Mas, para ele, essa diferença de mentalidade não constitui
problema. Recusa-se a todo o tipo de compaixão suspeita em relação a África, a toda a visão paternalista do Terceiro Mundo. Não há nenhum "remorso de branco" da
sua parte. A sua explicação marxista do mundo, definindo o imperialismo como o único inimigo, é suficiente para lhe dar boa consciência. Há os exploradores e os
outros. A cor da pele não conta nesta separação entre os bons e os maus. Se a atitude dos "irmãos" negros lhe parece estúpida ou condenável, di-lo sem rebuço.
Carlos Moore, um exilado cubano de origem jamaicana, apresentou em 1983, na Universidade de Paris-VII, uma tese de doutoramento defendendo que o racismo antinegro
não desaparecera em Cuba com o castrismo. E cita uma observação de Guevara, irritado com as questões "impertinentes e provocatórias" de um grupo de estudantes black
dos Estados Unidos, convidados a vir a Cuba para os festejos do 26 de Julho de 1963: "Porque não se

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ensinava em Cuba a história das culturas e civilizações africanas nas escolas? porque havia tão poucos negros na universidade? Porquê?..." Resposta ríspida do comandante:
"O que querem vocês dizer com "história africana"? A "história africana" não existe! Os cubanos negros não têm nada que estudar a "história africana", tal como os
meus filhos não têm que estudar a história da Argentina... O que os negros de Cuba precisam de estudar é o marxismo-leninismo...".6 O facto de, no Congo, o contingente
cubano ser constituído por negros é uma questão quase acessória, que Cuba aceitou para enganar o adversário. O verdadeiro combate define-se consoante o campo em
que nos encontramos. E dali não sai. Quando Tatu se interessa pelos costumes locais, quando ouve com interesse as explicações de Ilanga quando o interroga sobre
a poligamia, os hábitos culinários, as três maneiras de preparar a mandioca, as crenças fetichistas ou animistas, não o faz como um observador de passagem, mas como
camarada de armas desejoso de conhecer melhor o outro.
Este estado de espírito é importante porque talvez, no fundo, os dissabores e as atribulações dos cubanos no Congo possam derivar de um malentendido profundo, cultural
e político, da oposição de dois sistemas de pensamento antagónicos. Vindo apoiar um povo que consideram empenhado num combate anti-imperialista urgente, os cubanos
dão prova de um internacionalismo que pode e deve aliviar a pressão exercida sobre Cuba. Propõem um método que com eles deu certo: a guerra de desgaste. Os congoleses,
pelo menos os da "direcção revolucionária" (que recusam ser confundidos com as suas tropas, consideradas como um rebanho), apresentam-se, antes de mais, como nacionalistas,
para os quais a Revolução não é um abalar das estruturas sociais, mas um meio de alcançar posições de poder, e para tal todos os meios são bons: apoiarem-se nos
conflitos étnicos das populações ou receber alguns insólitos cubanos, cuja presença, no fundo, não pediram mas que, já que fazem questão disso, têm o bom gosto de
fornecer armas, mantimentos e medicamentos... "Ao contrário do que tem sido afirmado, eu nunca fui marxista"7, declara Laurent Kabila, ao ressurgir em 1996 proclamando-se
chefe da rebelião no Zaire.

As falhas da poção mágica

Quando Guevara começa a recobrar a esperança ao ver Mitudidi tentar "criar um esboço de organização nesse terrível caos que era a base de Kibamba", este afoga-se
no lago, num dia de temporal, a sessenta metros da margem. "Perdemos o único homem competente desta guerrilha", escreve o Che. Kabila limita-se a enviar os seus
pêsames. Como sempre, anuncia a sua chegada para breve e envia de Dar es-Salaam alguns delegados que, após alguns dias na base, se apressam a partir. Chega um novo
emissário, um ruandês, Léonard Mundandi, trazendo uma mensagem importante: Kabila dá

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finalmente a ordem para se entrar em acção. Trata-se de atacar o quartel de Bendera, chamado "Frente de Ataque", que defende uma central hidroeléctrica a cinquenta
quilómetros dali. Mundandi é encarregado de comandar a operação tendo sido pedido o apoio de cinquenta cubanos do Che. Estes acolhem a notícia com alívio, "tanto
mais que quase todos nós receávamos que nos pedissem que regressássemos a Cuba [...], com Tatu à frente", conta Mena.
Tatu tem dúvidas quanto à eficácia do plano de ataque, que considera atabalhoado e esquemático - duas tentativas de assalto ao quartel tinham já fracassado. Também
não confia muito na capacidade de comando de Mundandi. Este começou por causar boa impressão, falando de um estágio que fizera na China. Mas, interrogado sobre um
ataque que afirmava ter comandado recentemente, com bazucadas contra um camião de soldados inimigos, é apanhado em flagrante delito de mentira e forçado a admitir
atarantado, que ele próprio não estava presente quando se deu o confronto. O ruandês fica vexado e o Che reconhece que, "como o exagero é a norma habitual na região,
chamar abertamente mentira a uma mentira não é a melhor forma de estabelecer relações de amizade fraterna com os outros". Esta figura de estilo de Guevara talvez
nos forneça a chave do drama que os cubanos e o seu comandante irão viver em território africano. A forma como Mundandi encara a realidade, a sua maneira de contar
um acontecimento retocando-o e atribuindo a si próprio um papel imaginário, é totalmente oposta ao rigor do Che que, em Cuba, respondia a um jornalista: "O primeiro
dever de um revolucionário que escreve a História é a de se ajustar à verdade, como um dedo a uma luva"8. Mas a verdade de um ruandês será idêntica à de um argentino?
Mais uma vez, debate de ordem cultural.
Guevara disfarça mal o seu descontentamento por não ser autorizado a participar na operação. "Devo colocar-me incondicionalmente às vossas ordens", admite ele numa
carta a Kabila; mas acrescenta: "A minha impaciência é a de um homem de acção". Aos quarenta e três cubanos que se põem a caminho - não chegarão a ser cinquenta,
pois muitos estão doentes - explica: "Não me autorizam a ir convosco". A Dreke, seu ajudante, justifica: "Imagina que vou e que somos expulsos!? Afinal, eles estão
na terra deles..." A sua presença no Congo ainda é secreta, o governo tanzaniano ainda não foi informado. Contudo, insiste: "Peço um favor - deixem-me ir à "Frente
de Ataque" apenas sob o título de comissário político dos meus camaradas, sob as ordens do camarada Mundandi". Kabila nem sequer responde.
Enquanto ruandeses e cubanos, juntamente com alguns congoleses, se dirigirem para o quartel fortificado, um quarto grupo de trinta e nove cubanos, tão negros como
os anteriores, chega à base de Kibamba. Entre eles, homens que ficarão célebres: Harry Villegas, baptizado de "Pombo" (porque é maciço como um elefante), e Carlos
Coello, apelidado de "Tuma", ambos com vinte e cinco anos. São "veteranos" da coluna do Che. "Tuma" foi durante muito tempo seu guarda pessoal. Castro pediu-lhes
que se encarregassem da segurança de Guevara. Todos vieram por caminhos diferentes. Uns transitaram

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por Argel, onde Jorge Serguera, Papito, é ainda embaixador, mas não por muito tempo. Alertou discretamente Ben Bella contra as manobras de Boumedienne, chefe das
forças armadas. E o seu prognóstico acaba de se verificar. A 19 de Junho de 1965, Ben Bella é derrubado. Cuba, que fizera do chefe de Estado argelino um dos apoios
da sua estratégia africana, teme que Boumedienne não manifeste a mesma simpatia em relação a Havana. Papito é de imediato enviado a Brazzaville, para aí abrir uma
nova embaixada de Cuba. Na antiga capital do Congo Francês, ele e o Che tinham sido recebidos no início do ano pelo presidente Massemba-Débat. Vão aí afluir mais
de uma centena de cubanos, prontos a apoiar os que já estão instalados secretamente nas margens congolesas do lago Tanganhica. "A Embaixada de Brazzaville parecia
um quartel. Havia homens, armas e munições por todo o lado", recorda Élisabeth Lagache, uma francesa que Serguera descobrira em Argel.9 Gostaram um do outro e desde
então vivem juntos. O que irá abreviar a carreira do embaixador, pois o novo regime não aprecia que se case com estrangeiras quando se é detentor de informações
confidenciais.
Assim que desembarcam em Kibamba, os recém-chegados recebem o seu baptismo de fogo. Oito aviões despejam sobre eles napalm e bombardeiam os barcos que os transportaram,
afundando um deles. "Houve baixas entre os congoleses", assinala o chefe do grupo dos cubanos, Erasmo Videaux. A subida ao acampamento, em Luluabourg, denominado
"base", é extenuante. "Vegetação densa, frio. Tivemos de vestir os casacos". No ópido, várias cabanas, podendo albergar cinco a dez pessoas. No centro, a de Tatu.
Quando Videaux se apresenta ao Che, este liberta-o de um protocolo que já não faz sentido. "Estava sentado num banquinho de rotim, dentro da cabana [...]. A roupa
era a habitual, mas não tinha a estrela na boina". A imagem, singela, dá que pensar. Em que reflexões estaria mergulhado o Che, hiperactivo, sentado agora no seu
banco, no meio da cabana?... Videaux traz as encomendas pedidas: livros, medicamentos, duas metralhadoras pessoais, bem como enormes charutos, de quarenta centímetros.
A que Fidel acrescentara, como presente, um relógio Rolex. Desde a Sierra Maestra que se criou entre os "combatentes históricos" o fetichismo do relógio-pulseira,
que é oferecido como testemunho de amizade.
O ataque à Frente de Ataque será a mais importante das raras operações militares em que os cubanos são chamados a participar. E resulta num desastre completo - rico
de ensinamentos. Em princípio, os assaltantes são mais de cento e cinquenta, essencialmente ruandeses, com uniformes chineses e bem armados: bazucas, metralhadoras
de tripé e um canhão de 75 chinês. Mas apenas "em princípio", porque antes mesmo de começar o combate, conta Dreke, "um grupo de vinte e cinco a trinta ruandeses
avisou que não iria. Zacarias, o seu comandante, obrigou-os a despir a farda, distribuiu bofetadas e deixou-os em cuecas!..." A ideia não é tomarem o quartel, rodeado
de arame farpado e de trincheiras, e guardado por um batalhão de 500 a 700 homens. Parada demasiado alta. Mas sim obrigar os seus ocupantes a sair

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para lhes fazer emboscadas (mal preparadas). Falhanço absoluto. Nem mesmo o efeito de surpresa funciona. Um tiro disparado de madrugada por um ruandês basta para
desorientar os membros do grupo, que logo desaparecem, e põe o quartel em estado de alerta. Morteiros e artilharia respondem ao fogo contínuo desencadeado pelos
rebeldes. "Mas só os cubanos disparavam; os ruandeses, que não sabiam disparar em rajadas curtas, deixavam o dedo no gatilho e esvaziavam de uma vez os carregadores",
conta Dreke. Em seguida segundo o relato dos cubanos, fugiam, abandonando armas, material, feridos e mortos. "É certo que o baralho de calibre 30 a 50, em plena
escuridão da floresta, com nevoeiro e animais que correm espavoridos, é impressionante [...] Mas ficámos decepcionados. Esperávamos mais deles", conclui Dreke. O
mesmo cenário lamentável na emboscada, montada no sítio errado "os emboscadores acabam por cair na emboscada" - por falta de uma sincronização elementar. No total,
vinte e dois mortos, quatro deles cubanos, e cerca de sessenta feridos. "Debandada completa", resume Tatu.
Ao princípio, conta o sargento Torres, o Che não conseguia acreditar que aquela gente não quisesse combater. Depois, informado do fiasco, arvorou uma serenidade
espantosa: "A sua reacção surpreendeu todos os que o conheciam". (Dreke). Nos seus apontamentos, Guevara não deixa de ironizar sobre as falhas da dawa mágica e sobre
a ineficácia do feiticeiro que "passou um mau bocado: foi substituído". O que indigna o Che é o abandono vergonhoso dos feridos e das armas e o pânico dos fugitivos.
"Muitas vezes eram os oficiais que davam o mau exemplo, sobretudo os comissários políticos, um dos flagelos do exército de libertação", acrescenta ele. O comandante
Tatu não sabe ainda que, apesar das precauções, o combate irá revelar o que se pretendia esconder: a presença dos cubanos. Estes tiveram o cuidado de não trazer
consigo nenhum documento, mas numa mochila abandonada foi encontrado um diário, e nas cuecas de um dos mortos figurava a etiqueta made in Cuba...
"O Che sempre fora um ardente defensor dos Africanos. Tentava sempre explicar as suas fraquezas", diz Dreke. Todavia, ao fazer o balanço da derrota, ele não pode
deixar de reconhecer: "Grande desmoralização entre os congoleses e os ruandeses, mas também grande abatimento entre os cubanos". Contudo, Mundandi, o ruandês, tem
outra posição. Será apenas cegueira ou visão deformada da realidade? Envia a Tatu "uma longa carta repleta de feitos heróicos [...]. Essas cartas, eram apenas o
início da decomposição que iria posteriormente alastrar por todo o exército de libertação, contaminando a tropa cubana", escreve Guevara. Fenómeno grave, de facto.
Alguns cubanos desertam, assumem a classificação desonrosa de "rachados". Entre eles, três médicos que participaram nos combates. Mas, suprema vergonha e sintonia
preocupante, Sitaini, denominado "el Chino", assistente pessoal do Che. veterano de traços asiáticos que não o abandonava desde os tempos da Sierra Maestra, também
quer partir. Já não suporta aquele caos e, para cúmulo, tem uma hérnia. "Quem iria pensar que el Chino se atrevesse a declarar ao Che que se ia embora?", exclama
Dreke, sublinhando a autoridade de Guevara.

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mas revelando simultaneamente que o prestígio de Tatu começa a dissipar-se na humidade da floresta do Sul do Kiwu.
O Che confessará o seu humor pessimista e sombrio durante esses dias. Diante dos seus homens, não o deixa transparecer: "Disse-nos que ficaríamos [no Congo] entre
três a cinco anos, que a vitória estava praticamente garantida [!] e que quanto mais depressa começássemos a guerra, mais depressa a ganharíamos", declara Videaux.
Admirável voluntarismo, que rejeita toda a ideia de demissão e considera o fracasso da "Frente de Ataque" como um episódio infeliz que será ultrapassado com a "verdadeira"
guerra, que ele prevê longa e desgastante. Para acentuar o aspecto irreversível da situação, transmite a Rivalta a ordem de informar o governo tanzaniano da sua
presença no Congo, pedindo desculpa pelo método utilizado - o facto consumado -, que de forma alguma envolve a responsabilidade de Cuba.

Eu, fulo de raiva; eles perdidos de riso

Finalmente, Kabila chega... A 7 de Julho, ao lado de Massengho, seu chefe de estado-maior e do seu ministro dos Negócios Estrangeiros - não se regateiam títulos
-, acompanhado de um séquito de mulatas guineenses e de alguns caixotes de whisky, o esquivo Laurent-Désiré Kabila vem observar o andamento da revolução congolesa.
E, de súbito, do próprio relato que Guevara fará dessa visita, surge uma evidência. No alto do seu pico Turquino, e apesar dos seus esforços louváveis, o Che até
então nada compreendera do mundo em que está inserido. Ernesto Guevara não entende o continente negro. Tal como Tintim, Tutu, cartesiano rígido apesar de tudo, não
entende patavina do pensamento mágico, com raciocínios em espiral e hipérboles argumentativas, dos seus interlocutores africanos. Mas será que há interlocutores?
O termo implica a existência de dois locutores. Ora ele só pode comunicar em francês com alguns parceiros raros, que transmitem a mensagem em suaíli a um terceiro,
o qual, por seu turno, faz a tradução na linguagem da etnia, quando a conhece.
Quando, um dia, mais uma vez indignado com a deserção dos congoleses, o comandante Tatu tem uma daquelas fúrias que, geralmente, semeiam o terror entre os cubanos,
ele próprio relata "a impotência criada pela ausência de comunicação directa. [...] A deformação da tradução, e talvez a cor da pele, anulava tudo. [...] Dirigi-me
a eles em francês, fulo de raiva; no meu pobre vocabulário, dizia-lhes tudo o que me vinha à cabeça, no cúmulo do furor. E enquanto o tradutor lhes transmitia a
minha cólera em suaíli, todos eles me olhavam, perdidos de riso, com uma ingenuidade desconcertante". O ridículo destrói a imagem do militante macho. Duas culturas
se exprimem, frente a frente.
Mas a linguagem não é o único obstáculo. O que confunde Guevara são os comportamentos que escapam à sua lógica, o entrecruzar dos conflitos

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tribais e étnicos que, mais ou menos esmagados sob a férula do colonizador reacenderam, as bofetadas e os pontapés no rabo para se fazer obedecer, as sevícias para
castigar os recalcitrantes, o respeito exagerado ainda testemunhado para com o homem branco, considerado superior e perigoso. Nasser tinha-o avisado: o facto de
ele ser branco fá-lo-ia ser encarado como um estrangeiro, apesar de não ser o Tarzan. "Isto de os brancos virem lutar ao nosso lado era uma coisa que eu não conseguia
entender", confessará Tungiba um congolês com quem Tatu travou um breve diálogo a três, graças a Ilanga "Não sabíamos muito bem por que estávamos a combater. Não
pensávamos em libertar o nosso país, mas sim em lutar contra os brancos". No fundo, o que ninguém explicou ao Che e ele terá de aprender a decifrar sozinho, com
paciência e humildade, são as grelhas de leitura das mentalidades.
Quando Kabila, longamente esperado, se digna por fim aparecer, o Che fica fascinado com a facilidade com que o político astuto, hábil nesse tipo de jogos, toma o
controlo de uma situação que, até aí, lhe escapara como branco vindo de outro planeta. Em poucos instantes é organizado um comício. O Che não esconde o seu deslumbramento:
"A situação revelou-se verdadeiramente interessante. Kabila mostrou conhecer a mentalidade dos seus homens. Vivo e simpático, explicou em suaíli o que se passara
na reunião do Cairo. Deu a palavra aos camponeses, respondeu com frases curtas, que as pessoas podiam entender. Tudo terminou com uma festa...". De imediato, o acampamento
começou a funcionar. Reorganiza-se a defesa. Rapidamente, reúnem-se sessenta homens para cavar trincheiras, aprender a disparar graças a instrutores cubanos... Guevara
renova o seu pedido: "Repeti a minha velha arenga: quero ir para a frente de combate". Kabila permanece evasivo e, quanto a informar o governo tanzaniano sobre a
presença do comandante, recusa-se categoricamente a fazê-lo. E depois, sem mais nem menos, a pretexto de não deixar o seu sócio e rival Soumialot (do qual diz cobras
e lagartos) tirar partido da situação, parte quase em segredo, ao fim de cinco dias, sem se despedir.
O acampamento volta à apatia. Observação amarga do Che: "Os soldados encarregados das trincheiras declararam que não iam trabalhar, uma vez que o chefe se fora embora".
(Esta questão das trincheiras, aliás, sempre foi um bico-de-obra, pois, por superstição, os congoleses recusam-se a entrar em buracos cavados por si próprios).
Os cubanos começam a esmorecer. São já mais de cem, repartidos por quatro acampamentos, a que chamam "frentes", num raio de cinquenta a sessenta quilómetros, de
forma a articularem-se com os seus parceiros africanos. Os quatro mortos cubanos do ataque falhado à "Frente de Ataque" afectaram o moral de todo o contingente.
O desejo de regressar torna-se contagioso. Firme no seu desejo de guerra, Guevara continua a recusar-se a admitir o absurdo de uma situação que os seus homens captam,
no fundo, com mais lucidez que ele próprio. Sarcástico, atribui as suas reacções às "condições actuais da Revolução em Cuba". "Aliás", diz ele, "o contrário

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seria de espantar. Alguns anos de vida fácil mudam as pessoas, sem contar que, para a grande maioria, foi a Revolução que os tornou revolucionários".
Para não ficar com o amargo de boca da derrota, Guevara manda Dreke e Os seus cubanos ensinar os ruandeses a fazerem emboscadas na estrada de Albertville. Mais uma
vez, estes fogem ao primeiro tiro. A guerrilha adquire um tom de assalto à diligência. Conduzido por Martínez Tamayo (Papi), um grupo de cinquenta combatentes -
vinte e cinco cubanos, vinte e cinco ruandeses - consegue deter um camião carregado de mantimentos, cigarros e bebidas. Os cinco soldados (negros) são massacrados,
mas os ruandeses, que dispararam "correndo para trás", em breve regressam para apanharem uma bebedeira monumental, sob o olhar consternado dos cubanos, que estão
proibidos de beber. Posto ao corrente, o Che rectifica o seu prognóstico: "Cinco anos é um prazo optimista para a vitória da revolução congolesa".
Outra forma de combater a inacção e o mau ambiente provocado pelo pequeno grupo de inconscientes: a marcha. No primeiro dia, um quilómetro, no segundo dois, no outro
três... Os homens vão descobrindo pouco a pouco uma parcela da África exótica: "Encontrávamos muitos animais; leões não, porque eles sentem o cheiro do homem [...]
mas elefantes e macacos. A humidade era terrível para a asma de Tatu. [...] Mas só o imobilizava por uns momentos: uma bombada, duas malaguetas - havia muitas por
ali - uma golada de chá quente e uma pausa para contemplar o céu", conta Videaux. No acampamento, Guevara endurece a disciplina: três dias sem comer para o cozinheiro
que se serviu em primeiro lugar, seis ou oito horas de sentinela de seguida para um outro; um terceiro será mandado participar numa emboscada, mas sem arma... Dariel
Alarcón conta que um cubano que quebrara a regra de nunca se deitar com uma congolesa é condenado a casar e a regressar a Cuba com ela. Como já é casado, dá algum
dinheiro à mulher para que ela volte para a aldeia. Tatu manda que a tragam para o acampamento, insistindo no castigo. O homem então suicida-se, dando um tiro nos
miolos!10
Cubanos, ruandeses e congoleses vivem lado a lado, "juntos mas sem se misturarem". Assim, cada um faz o seu rancho. Os cubanos que já conseguem falar um pouco de
suaíli vão comprar mantimentos aos camponeses que não fugiram da zona. Aprenderam a aceitar o ritual dos salamaleques, código de uma civilização em que a palavra
e a medida do tempo fazem parte de um ritmo de vida diferente. "Em suaíli, dizer bom-dia levava tempo", conta Herrera. "Cinco minutos para: "Dormiu bem? Como está?
Como está a família? Onde é que vai?", etc". E assim a vida vai correndo. Apesar do seu ardor, Guevara tem de aceitar que as semanas vão passando sem que o imperialismo
seja minimamente afectado por algumas escaramuças esporádicas num Sul do Kiwu bastante marginal. Pormenor anedótico: o doutor Tatu adoptou um cachorrinho. Desde
pequeno, nos tempos da sua infância em Córdova, que Ernesto gosta de cães. Teve dois, sucessivamente, na Sierra Maestra (e contou num relato sóbrio, bastante comovente,
como, para impedir que os latidos do cachorro denunciassem a presença dos guerrilheiros perseguidos

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pela guarda de Batista, foi necessário estrangular o animal)11. No Ministério da Indústria, o cão mal-educado que assistia às reuniões ao lado do comandante-ministro,
chamava-se Muralla. Desta vez, a mascote do señor Tatu não é Milu nem Ideiafix, mas Simba, que significa "Leão" - é o nome que atribuem a si próprios os combatentes
autóctones, quando não fogem.
Quando os chefes das zonas rebeldes organizam uma reunião e, mais uma vez, recusam que Guevara tome parte no combate, uma ideia pérfida instala-se na mente do argentino;
pergunta a si próprio se a verdadeira razão dessa recusa não será a de querer evitar um contra-exemplo pernicioso: "O facto de o chefe dos cubanos participar na
frente de combate quando os responsáveis congoleses não o faziam poderia suscitar novos motivos de crítica". Única concessão: permitem-lhe que vá fazer alguns reconhecimentos.
Vai poder finalmente sair da sua prisão sem grades. Mas, em Julho, o seu balanço é sombrio: "Sinto-me mais na pele de um estudante bolseiro que na de um combatente".
Na realidade, desde o início que toda esta questão congolesa se parece mais com um mau jogo de escuteiros, com pistas confundidas e nomes-totem para cada um, do
que com uma verdadeira guerra de libertação. Mas o ambiente continua pouco agradável para os cubanos que, pelo seu lado, não são nenhuns escuteiros, e começam a
resmungar, a criticar a cobardia dos autóctones, não lhes poupando os remoques.
Para pôr as coisas nos eixos, o Che dirige aos seus homens, a 12 de Agosto, uma Mensagem aos Combatentes, que lhes pede que leiam, discutam e queimem. O seu apelo
para que compreendam o outro transforma-se num requisitório contra os camaradas africanos. É certo que invoca a "modéstia revolucionária que deve guiar o nosso trabalho
político"; recorda que "a nossa missão é ajudar a ganhar a guerra" e pede que se dê "o exemplo da nossa diferença sem atrair sobre nós a hostilidade dos quadros".
Mas, com a franqueza que o caracteriza, o panorama da situação que Guevara apresenta é de um rigor implacável: "Os chefes do movimento passam a maior parte do tempo
fora do território. [...] O trabalho de organização é praticamente inexistente, visto que os quadros intermédios não trabalham e, de resto, não sabem trabalhar,
e ninguém confia neles. [...] A indisciplina e a falta de espírito de sacrifício são a marca característica de todos os guerrilheiros. É impensável, evidentemente,
ganhar uma guerra com tropas deste género". Duro a valer.
Todavia, mesmo apercebendo-se que ele próprio, Fidel e outros foram enganados pelos belos discursos "revolucionários" dos dirigentes congoleses, está fora de questão
criticar a pertinência do envolvimento de Cuba neste conflito. Só resta, portanto, a fuga para a frente. Quatro meses depois de andar às voltas, já não aguentando
mais, o Che infringe todas as directivas e parte para a "frente" onde, a 21 de Agosto, é recebido pelos "seus" cubanos, que tentam organizar com os ruandeses um
novo ataque ao quartel. "Sentia-me um pouco como um delinquente em fuga, mas estava decidido a não regressar à base tão cedo", escreve Guevara. Assume a sua "desobediência":
"Se Kabila quiser falar comigo, só tem de vir até cá. Eu não volto para lá".

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Os cubanos estão encantados, mas Dreke fica preocupado e Zacarias, o chefe ruandês, não está muito satisfeito, pois vê o comando a fugir-lhe da mão.
Quanto a Guevara, nota que a sua "bolsa de estudo" chegou ao fim. Decide que os congoleses têm o dever de participar nos combates e dirige-se à sua zona para os
convencer que "afinal, são eles que em princípio devem libertar o Congo". Acolhimento brando. Entretanto, chega um grupo de estudantes congoleses treinados na China
e na Bulgária, que começam por exigir quinze dias de férias, "duração que iria revelar-se extensível". O Che não esconde a opinião negativa provocada por esses filhos
de cacique que falam francês: foram buscar o que há de pior na cultura europeia e parecem não ter outra ambição senão a de fazer parte do novo poder. "Não podiam
arriscar-se em combate", ironiza ele. "Chegaram com um verniz superficial de marxismo, imbuídos da sua importância de "quadros", e com um enorme desejo de comando,
quase mesmo de conspiração". O modelo perdura...
Deste modo, sendo os combatentes congoleses quase inoperantes, não vale a pena contar com eles para realizar operações de envergadura. Daí contentarem-se modestamente
com a técnica da emboscada. Neste caso, a estratégia transforma-se na espera interminável de camiões que nunca chegam. Tatu chega a ter tempo para ir e vir à margem
do lago para receber dois oficiais cubanos, Emilio Aragonés e Oscar Fernández Mell. Este último, capitão do exército rebelde e médico, fora convocado por Guevara.
Já se conhecem bem. Mas o facto de uma figura tão importante como Aragonés se ter deslocado em pessoa deixa-o perplexo: "Não conseguia entender por que é que o secretário
Geral do Partido abandonara o seu posto para fazer a viagem". Seria para lhe pedir que regressasse? Ou estaria encarregado de fazer com que não se cometesse nenhum
excesso que pudesse comprometer a política de coexistência pacífica dos camaradas soviéticos?
E então, a 11 de Setembro, surge finalmente uma fila de camiões, transportando o seu carregamento de marijuana e o pagamento de uma guarnição. A ordem é de só disparar
depois de terem passado quatro ou cinco veículos. Ordem não respeitada. Um ruandês dispara uma bazuca contra o segundo camião. E falha. Tiroteio geral. Os guardas
saltam dos camiões - são brancos - e espalham-se, ao passo que, cena já clássica, "os congoleses fogem a correr". Apesar da dezena de mortos nas fileiras dos mercenários
de Tschombé e de algumas espingardas recuperadas, é um novo fracasso. Na acção, Guevara revelou a que ponto o seu desejo de guerra é intenso. Em vez de ficar, como
é norma, no seu posto de comando, onde todos o procuram e pedem instruções, não conseguiu resistir a um frenesim de acção, mais forte que todos os princípios. Há
quatro meses que aguardava esse momento. Ou melhor, há cinco anos. Desde a entrada dos guerrilheiros em Havana, em 1959, nunca mais disparou um tiro; a Baía dos
Porcos e a crise dos mísseis não lhe forneceram nenhuma ocasião de carregar no gatilho. Levado pela impaciência, lançou-se no combate, de espingarda-metralhadora
na mão, ficando sozinho a disparar enquanto os outros recuam. Quando Dreke, encarregado da segurança, toma a

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liberdade de o criticar por isso, ele, tão arreigado à disciplina, tem esta resposta inesperada: "É necessário transgredir alguma coisa de vez em quando".
Aproveitando a sua liberdade de movimentos, percorre a região, vai pessoalmente ver o estado dos efectivos, fala com os responsáveis. Chega até à povoação de Fizi,
"a aldeia mais importante que vi no Congo", encontra lá um "coronel" Lambert e um "general" Maulana que se detestam por serem provenientes de tribos rivais; mas
têm uma aversão comum contra Massengo e Kabila, que apenas equiparam e colocaram em situação de combate as zonas tribais da sua preferência. Não basta ter uma arma
para se ser soldado repetia Guevara. A espingarda é mais um sinal de prestígio do que um instrumento de combate. Em Fizi, o Che assiste ao que classifica de um "show".
Reencontramos, numa óptica ocidental, imagens de banda desenhada. "O general Maulana envergou o uniforme de combate, que consistia num capacete de moto coberto com
pele de leopardo". Seguidamente, parada militar "à europeia", coroada de um discurso. "Aí, o ridículo atingiu uma dimensão chaplinesca; tinha a sensação de estar
a ver um mau filme cómico, maçador. Enquanto os chefes soltavam gritos, batiam violentamente no chão e efectuavam meias-voltas perigosas, os pobres soldados andavam
de um lado para o outro, [...] fazendo as suas manobras". Nas aldeias que atravessa, Tatu-Tintim vê soldados de arma a tiracolo mas "sem o menor sinal de disciplina,
de desejo de combate, de organização". Quanto aos chefes, estão comodamente em sua casa ou numa casa amiga, "geralmente bem bebidos". Como ganhar uma guerra com
gente tão pouco motivada? Mais tarde, relendo os seus apontamentos, Guevara escreverá: "O projecto de constituir um exército estava a esboroar-se. Mas, possuído
de não sei que optimismo cego, eu era incapaz de ver isso".

Um enterro político

Enquanto Guevara tenta formar novos recrutas congoleses em condições reais de combate - tentativa que também será mal sucedida, Soumialot e alguns dos seus amigos
do Conselho Revolucionário partem em nova digressão internacional, com escala em Pequim e Moscovo, para fazer subir a parada. Objectivo: recolha de fundos e, acessoriamente,
armas e homens. Os combates que descrevem e as futuras vitórias são tanto mais miríficas quanto ignoram tudo sobre a verdade no terreno. Apesar dos avisos do embaixador
Rivalta e do próprio Che, que recomendam ao governo de Cuba para ser prudente e não receber esses fantoches, Soumialot consegue arrancar a Cuba cem mil dólares e
a promessa de enviar cinquenta médicos. O ministro cubano da Saúde, José Ramón Machado, é enviado antecipadamente, para verificar o estado das carências. Chega acompanhado
de um oficial dos serviços de informações, Ulises Estrada, um mulato; mas é sobretudo portador de uma carta de Castro para Guevara, cuja mensagem é não

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perder a coragem. Machado partirá com uma resposta do Che, muito argumentativa, onde transparece alguma irritação.
Não estou pessimista nem desencorajado, defende-se Guevara, que tem a sensação de não se medir bem a especificidade da situação, como aqui, "segundo os que me rodeiam,
perdi a minha fama de objectividade por manter um optimismo sem fundamento. Se eu aqui não estivesse, este belo sonho já se teria desintegrado num caos generalizado".
O que o desespera, sublinha, é o laxismo dos que, em Havana, em nome do internacionalismo proletário, aceitaram financiar Soumialot e o seu bando. Guevara, como
se sabe, é parcimonioso. Não esconde que pode tornar-se avarento, sobretudo quando se trata do dinheiro da Revolução. Ei-lo quase na mesma situação dos países socialistas
que ele acusava de falta de generosidade revolucionária para com os países em luta de libertação. Há sempre quem seja mais pobre do que nós. Mas aqui a libertação
parece ainda tão distante que convém evitar todos os gastos inúteis. Calculou - "e isso custava-me" - que seriam necessários cerca de cinco mil dólares por mês para
abastecer uma das frentes onde pensa criar uma coluna mista sob o seu comando directo. "E venho agora a saber que os turistas receberam vinte vezes mais para viverem
à grande nas capitais do mundo inteiro! Nem um centavo chegará à frente [...] Soumialot e os seus capangas venderam-vos histórias da carochinha".
Quanto aos efectivos cubanos no Congo, embora afirme nos seus apontamentos que, por vezes, a disciplina deixa um pouco a desejar, ao dirigir-se a Castro não deixa
de sublinhar que, na maioria, os homens seleccionados são bons soldados. "Mas aqui não são bons que nos faltam, são super-homens". E resume a inutilidade da operação
congolesa numa frase brutal, mas franca: "Não podemos ser nós a libertar um povo que não quer combater. É necessário criar esse espírito de combate e procurar soldados
com a lanterna de Diógenes e a paciência de Job. O que é quase uma missão impossível, tendo em conta a merda existente".
Mesmo assim, recusa-se a admitir que está tudo perdido e pensa ainda que, apesar de tudo, vai conseguir formar um núcleo disciplinado de autóctones decididos a fazer
uma guerra de guerrilha com um enquadramento cubano. Apesar da sua teimosia em permanecer optimista, adivinha-se como esse empenhamento em recomeçar constantemente
um projecto que se esboroa pode ser desgastante. Tanto mais que a isso há a acrescentar as doenças endémicas. Ao paludismo, já debilitante, sucederam-se as gastroenterites.
Guevara não é poupado, tal como os seus camaradas. As diarreias duram mais de um mês. Nada é tão doloroso como aquilo. Esvazia-se literalmente e emagrece mais de
vinte quilos! No seu diário de campanha, anota com uma trivialidade de estudante de medicina: "Mais de trinta evacuações em vinte e quatro horas"; depois disso,
Perde a conta. Mas é nessas circunstâncias que essa determinação trabalhada "com uma perfeição de artista" lhe permite permanecer aferrado à sua guerra.
Enquanto o nosso homem luta simultaneamente contra as bactérias intestinais e a passividade dos autóctones, as mais descabeladas fantasias

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continuam a agitar as redacções dos meios de comunicação social de todo o mundo. A CIA procura-o por todo o lado e afirma que ele não saiu de Cuba Mas espalha também
uma série de boatos para tentar captar um fragmento de verdade onde procurar o rasto. A hipótese mais difundida é a da sua morte e enterro em vala comum, por ocasião
da invasão da República Dominicana pelas tropas ianques. Mas teria também sido visto nos quatro cantos da terra. Alguns dizem que se tornou conselheiro militar do
Vietcong. Outros, que teria sido preso em Cuzco. A agência France-Press dá conta do boato de tiroteio havido um entre ele e o próprio Fidel (e já não entre ele e
Dorticós). Os jornais retomam essas "notícias", substituindo um prudente condicional por um presente peremptório. Um documento apócrifo bastante estranho começou
também a circular em Cuba, um Memorandum R, do qual o romancista mexicano Taibo II e os seus amigos reproduzem alguns parágrafos citados por um denominado Hetman.
Aí surgem de novo as críticas até então formuladas veladamente pela velha guarda dos comunistas do PSP como Anibal Escalante, regressado de Praga após o seu afastamento
de 1962 e sempre ligado a Moscovo. Aí se afirma que, depois de ter instalado o caos na economia cubana, a ânsia pessoal de aventura de Guevara passou a constituir
uma ameaça para a política nacional e internacional. Também aí se lamenta que as ideias do ministro desaparecido se tenham orientado para os "hiper-intelectuais"
franceses e não para os peritos socialistas, etc. Asneiras viperinas. Num contexto deste género, Castro é, mais do que nunca, assediado pelos jornalistas. Todos
fazem a mesma pergunta: "Onde é que ele está? O que é que lhe fez?"
Terá o Líder tentado aliviar a pressão ou cumpre um objectivo mais maquiavélico? A 3 de Outubro de 1965, em Havana, perante as câmaras de televisão na abertura da
conferência de apresentação do Comité Central do novo Partido Comunista de Cuba (sucessor do PURSC), Castro sublinha a ausência nessa cerimónia de alguém que possui
"todos os méritos e todas as virtudes necessárias". E, no meio de um silêncio tenso, lê as folhas dactilografadas da carta de despedida que Guevara lhe dirigira,
manuscrita, antes de partir: "Chegou a hora de nos separarmos. [...] Liberto Cuba de toda a responsabilidade. [...] O meu último pensamento vai para esse povo e
sobretudo para ti...". O impacto dessa carta é enorme, apesar de ela só levantar uma ponta do véu sobre uma história que permanece misteriosa. Os jornais fazem-lhe
larga referência. (Raros são os que notam a presença, na tribuna, do marroquino Mehdi Ben Barka, encarregado de organizar a Conferência Tricontinental que irá ter
lugar em Havana, em Janeiro de 1966. Mas todos registam a presença de Aleida March, a esposa de Guevara - não se diz "a viúva" -, vestida de preto, sentada perto
de Fidel. Em Paris, o jornal Le Monde, sempre sóbrio, dedica uma parte da primeira página à notícia. Em Cuba, o músico Carlos Puebla compõe de imediato, num ritmo
de guajira, uma pungente canção de despedida, muito bela, lancinante, Hasta siempre que se tornará num hino popular ao comandante desaparecido: "Aprendemos

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a amar-te, / [...] Aqui permanece a clara, / A íntima transparência / da tua querida presença". De Havana, a 10 de Outubro, Michèle Firk, outra militante comunjsta
francesa fascinada pela Revolução Cubana, escreve à sua amiga em paris, a camarada Jeannette Pienkny: "Minha cara, toda a gente chora ao ler a carta do Che [...].
Falei disto com Michel Gutelman e Bettelheim que pensam, tal como eu, tratar-se da melhor saída possível, a mais bonita, provocada, todavia, por desentendimentos
políticos..."12.
Essa carta devia, obviamente, ter um carácter póstumo; não se destinava a ser tornada pública em vida de Guevara. Declarando que renunciava à nacionalidade cubana,
que renunciava a todos os cargos e funções oficiais, afirmando que considerava ter cumprido "a parte do seu dever que o ligava à Revolução", despedindo-se por fim
de um país que o acolhera, o Che facilitava a vida de Cuba, sobretudo as relações de Castro com Moscovo, mas, se essa carta fosse divulgada, ficava impossibilitado
de regressar enquanto estivesse vivo.
Castro demorará vinte e dois anos a tentar apresentar uma justificação. Em 1985, numa entrevista ao monge dominicano Frei Betto, aceita pela primeira vez falar do
assunto; mas manipulando a "cronologia africana", convencido que a verdade ficaria ainda por muito tempo enterrada no fundo dos arquivos. Diz ele: "Quando ele [o
Che] partiu, escreveu-me aquela carta de despedida. Mas, durante muitos meses, não quis torná-la pública pela simples razão de que o Che devia primeiro sair de África*"13.
A contra-verdade está aqui bem patente, porque a 3 de Outubro, Guevara ainda andava atascado na lama das encostas congolesas do Sul do Kiwu e nem por sombras pensava
"sair de África". Dois anos depois, em 1987, respondendo ao jornalista italiano Gianni Mina, retoca a sua "defesa", eliminando qualquer referência cronológica: "A
publicação dessa carta tornava-se indispensável. [...] Era prejudicial deixar prosseguir toda uma campanha [de imprensa]"14. O argumento é pertinente. Mas não totalmente
convincente. Conhecendo a sua habilidade, a sua capacidade de utilizar os media e de orientar a opinião pública, custa a crer que a única saída fosse dar a conhecer
essa carta testamentária. Publicitando-a de forma espectacular, Castro consegue aliviar a pressão, faz aumentar a consideração pelo signatário ausente, mas, simultaneamente
- a manobra é hábil - proíbe-o de facto de regressar a Cuba à luz do dia. E assim que Guevara o entende, lá longe no mato.

Nota: * Sublinhado por nós.

"Essa carta só deveria ser lida depois de eu morrer. Não é agradável ser enterrado vivo"15. É esta a primeira reacção a quente de Guevara diante dos companheiros.
É o capitão Dariel Alarcón Ramírez, aliás "Katenga Uno", que nos transmite estas palavras. Ouviu-as com os seus ouvidos, quando estava ali, ao lado do comandante
Tatu, com outros companheiros convocados para a base de Luluabourg, para ouvirem juntos, em torno do posto de rádio, o discurso do Líder máximo anunciado por Rádio
Havana Cuba. Alarcón, que

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numa outra aventura Guevara baptizará de "Benigno", devido ao seu bom feitio, romperá com o castrismo em 1966. Daí, sem dúvida, a sua abertura e o seu testemunho
franco, menos convencional que o dos seus camaradas. Segundo conta, "o Che acrescentou, como se falasse consigo mesmo, mas nós estávamos a ouvir: "Quer seja intencional
ou não, eis-me afastado da cena internacional" [Intencionalmente o no intencionalmente, me desapareció del ámbito internacional]".
Mais grave, Alarcón afirma que o seu comandante fez então um comentário até aí impensável na boca daquele que todos consideram como o mais incondicional dos fidelistas,
um comentário verdadeiramente iconoclasta ainda mais escandaloso pela sua carga sarcástica: "O culto da personalidade não morreu com Estaline!" O Che não adianta
mais. "Fez até um gesto com a mão, como que para negar o que acabara de dizer, e depois foi sentar-se, à parte, num tronco de árvore, e ficou muito tempo calado"16.
Se os comentários de Guevara são verídicos, e parecem sê-lo, considerando outros testemunhos verificados do mesmo Alarcón, trata-se de uma mudança de atitude mental
de Guevara em relação ao seu mentor. Terá Castor acabado de sacrificar Polux? A bela, a maravilhosa amizade entre o argentino e o cubano teria sido ferida de morte
nesse dia? A política levará vantagem sobre o político? A partir desse momento, a perspectiva geral das relações entre os dois homens exige uma revisão. Mesmo que
Castro não abandone Guevara, em sentido concreto, o caminho de Cuba está-lhe verdadeiramente vedado. Nesse dia, Polux deve ter-se sentido um pouco só. No fundo,
Guevara é um militar, um homem de guerra, um combatente revolucionário que adora a luta contra um inimigo bem identificado. Tem uma escrita fácil e talvez gostasse
de ser escritor. Certamente gostaria de acrescentar também alguns escólios teóricos à doxa marxista. Não é um homem político e ainda menos um político. Falta-lhe
a frieza do cinismo, quase indispensável. Prefere o cheiro da pólvora e o crepitar da espingarda-metralhadora. Mas, quanto a Fidel, esse tem todas as qualidades
do verdadeiro matador.

Voando sobre um ninho de rebeldes

Enquanto Guevara e os seus cubanos se debatem nesse recanto do Congo, lutando contra superstições e crenças mágicas, dificuldades de abastecimento, bombardeamentos
aéreos e doenças tropicais, sobre as suas cabeças vão-se desenrolando grandes manobras diplomáticas africanas, num panorama de rivalidade sino-soviética. De que
eles serão vítimas.
Pequim e Moscovo sabiam que tinham sido enviados alguns cubanos para apoiarem a rebelião congolesa. Se os Soviéticos fingem não dar grande importância a um conflito,
no fundo, de fraca intensidade, os Chineses, pelo contrário, parecem não gostar nada que Cuba, segundo eles ligada aos "revisionistas" dos países de Leste, intervenha
na sua zona de influência africana.

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O que explica que eles tenham sem dúvida influído na decisão do presidente Nyerere de suspender, em Setembro, a autorização de fazer transitar pela Tanzânia os fornecimentos
militares com destino ao Congo. No momento em que em Havana, Castro "enterra" o seu amigo Guevara, em Dar es-Salaam Nyerere acolhe uma conferência dos nacionalistas
das colónias portuguesas. Falando em nome de Cuba, Pablo Rivalta denuncia "os que fazem intrigas para lançar a confusão junto dos Estados Independentes de África".
A terceira cimeira da OUA (Organização de Unidade Africana) vai ter lugar a 22 de Outubro de 1965 em Acera, no Gana de Nkrumah, pan-africanista decidido. Alguns
sonhadores generosos, sensíveis à importância da presença africana na população cubana, admitiram que um dia Cuba pudesse vir a fazer parte da Organização Africana.
O projecto parece ainda demasiado extravagante para ser tomado a sério. Mas na OUA, criada em 1963 e reunindo trinta Estados finalmente independentes, o Congo tornou-se
objecto de um contencioso que opõe os "progressistas" aos "conservadores" - os quais exigem a solução negociada dessa guerra civil interminável que prejudica o resto
da África. O próprio Nasser, por muita simpatia que sinta por Guevara e pelos seus ideais de solidariedade anti-imperialista, gostaria de ver o país pacificado,
pois teme que o prolongamento da guerra desestabilize o Sudão que. também ele, tem os seus rebeldes. Ora, o Egipto sempre olhou atentamente para o seu vizinho do
Sul. Juntando-se a Nkrumah, Nasser e alguns outros pressionam o presidente congolês, Kasavubu. Este compreende a mensagem, que aliás vem na linha da das companhias
estrangeiras instaladas no país: a 13 de Outubro demite o primeiro-ministro litigioso, Tschombé, e exige que os mercenários brancos se retirem do país, "com honras
militares". Dias depois, e no mesmo sentido, declara perante a OUA opor-se a "toda a intervenção externa" nas questões dos Estados Africanos soberanos. Esta reprimenda
diz também respeito aos cubanos.
A proclamação, por Ian Smith, de uma Rodésia do Sul dominada por uma minoria branca, a 11 de Novembro de 1965, vem precipitar as coisas. Para contrabalançar essa
segunda África do Sul que acaba de ser constituída junto à sua fronteira, tão escandalosa como a dos africânderes, os nacionalistas reagem exigindo então para o
Congo um regime reunindo as diversas tendências provenientes da herança de Lumumba. De imediato, com o engodo do poder, Soumialot, esquecendo pedidos, promessas
e subsídios, exige, por seu turno, que Havana repatrie a sua tropa. Como podia ele adivinhar que um outro parceiro - o coronel Mobutu -, através de um golpe de Estado
clássico, a 24 de Novembro, iria empalmar a vitória e governar o país organizando a pilhagem durante mais de trinta anos?
Finalmente, nesta conjuntura complexa cujo alcance nem sempre foi bem medido pelas potências "ocidentais", vem inscrever-se a jogada pessoal de Castro. Quer obter
êxito com a grande Conferência Tricontinental de Janeiro de 1966, que deverá confirmar que ele é realmente, à semelhança de Tito, Nasser ou Nehru, um dos grandes
líderes do Terceiro Mundo. Os Chineses

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tudo fizeram para que se efectuasse, em Argel, uma segunda cimeira da OSPAA (Organização de Solidariedade dos Povos da África e da Ásia), o que lhes permitiria negar
à URSS, país branco e europeu, o direito de falar em nome dos países "pobres" do planeta. Mas a queda de Ben Bella e sobretudo o gigantesco massacre de comunistas
pró-chineses na Indonésia, em Setembro, põem termo a este projecto. Apesar do assassínio teleguiado de Ben Barka em Paris, a Tricontinental de Castro apresentar-se-á
realmente como um "encontro dos três continentes", pela presença da América Latina. Os movimentos pró-chineses ou não são convidados ou são tratados com bastante
frieza. Seja como for, em Outubro, é provável que o ressentimento chinês em relação a Cuba se traduza por uma mais forte pressão sobre a Tanzânia para que, também
ela, exija a retirada dos cubanos17.
No terreno, naquele pequeno perímetro do Extremo-Oriente congolês Guevara não pode avaliar concretamente esta macro-história que o ultrapassa e da qual não passa
de um peão. Para os camaradas cubanos, as coisas não estão a correr bem. Depois de ter ouvido a leitura da sua carta por Fidel, o Che ficou um pouco abalado. Mas,
ou por uma vontade férrea de provar que está vivo e bem vivo ou por simples efeito dos medicamentos, as cólicas pararam18. Em contrapartida, surgiram outros problemas.
A partir de Outubro, sente-se que está em marcha uma contra-ofensiva geral. Os mercenários dividem-se entre o sexto comando (dirigido por um coronel belga, Lamouline,
e pelo francês Bob Denard, com os seus "terríveis") e o quinto comando (sob as ordens de Mike Hoare, um desordeiro anglo-sul-africano a quem chamam "o Louco"). E
a WIGMO (Western International Ground Maintenance Operation), filial da CIA americana, que abastece esses comandos em material e homens - sul-africanos, ingleses,
irlandeses, belgas... e cubanos anticastristas. As vedetas Swift, de fibra de alumínio leve, dotadas de motores silenciosos, são idênticas às que os Estados Unidos
usam no Vietname. Quanto aos aviões, T-28 e B-56, não são propriamente do último modelo, mas servem muito bem para largar algumas bombas e assustar as populações.
A estratégia dos mercenários, secundados por soldados congoleses denominados askaris (um empréstimo do persa ao suaíli), parece ser barrar o acesso ao lago e encerrar
os rebeldes numa ratoeira. Partindo de Albertville, a sul, os homens de Mike Hoare tentam agarrar as "frentes" rebeldes em tenaz. Atravessam o lago e o interior
das terras, sobem a norte, apoderando-se, sem disparar, das pequenas localidades e do maciço de Fizi-Baraka, e descem até à zona onde Guevara e o grosso da sua tropa
se encontram.
"Para o inimigo, é um passeio triunfal", escreve o Che. Como não podem, ao recuar, transportar sozinhos as munições e as armas, os cubanos têm de se impor para que
os congoleses cooperem. Dreke tem uma séria discussão com o major congolês que "fazia a sesta, em vez de salvar o paiol". Emílio Mena, um dos seus ajudantes, confessa
que, para obrigar alguns a sair das cabanas onde dormiam, "foi preciso lançar-lhes baldes de água fria. Nem as armas nem a Revolução pareciam interessar-lhes". O
mal-entendido - sempre

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cultural - é mais trágico do que nunca. Os cubanos continuam a querer aplicar o seu modelo guerrilheiro revolucionário, testado na Sierra Maestra,a uma realidade
social, política e antropológica inteiramente diferente. Daí a rejeição e o fracasso. O comandante Tatu chega a uma triste conclusão: "Viemos com a ideia de criar
um núcleo exemplar, de viver todas as dificuldades ao lado dos congoleses, de lhes mostrar o caminho que o soldado revolucionário devia seguir, mas o resultado era
que os nossos homens estavam esfomeados, descalços, sem roupa, enquanto os congoleses repartiam entre si a roupa e o calçado que recebiam por outras vias. Tudo o
que ganhámos foi o descontentamento crescente dos cubanos".
Quando, ao reunir a sua tropa, o Che pergunta quem quer ficar para combater, exceptuando Dreke e Martínez Tamayo, ninguém se mexe! Vergonha para a tropa ou reflexo
de bom-senso? Guevara não possui, como Castro, o dom de galvanizar os homens através de um discurso envolvente. Não sabe seduzir; acredita demais na convicção revolucionária
de cada um e pensa que basta o seu exemplo para arrastar os indecisos. Nas condições do Congo, o método não resulta. Analisando posteriormente a questão, mais lúcido
do que nunca, encontra dois elementos para explicar a espantosa indulgência com que se resignou a um comportamento noutros tempos inadmissível.
Em primeiro lugar, dá conta da sua tendência exagerada para dar a vida num "sacrifício decisivo". Reconhece que não se pode exigir isso de toda a gente. Esta aceitação
da morte em combate, portanto heróica por definição - a não confundir com uma pulsão suicida -, deu-lhe uma maneira de ser de uma "leveza" particular, insustentável
para o comum das pessoas. A morte, velha companheira, tornou-se-lhe tão familiar, a cada ataque de asma, que já não a teme. Conseguiu dominá-la. Mas a outra razão
é mais subtil, mais trágica, e o nosso guerrilheiro-cronista tem a honestidade de precisar que a sua explicação é subjectiva. Mas não deixa de ser mais pertinente
e mordaz: decorre da divulgação pública, por Castro, da carta de despedida que ele lhe confiara como um documento póstumo para evitar a Cuba qualquer conflito diplomático.
Ora, ao ler essa carta perante uma enorme assembleia, diante das câmaras de cinema e televisão e dos microfones da Rádio Havana que transmitem a notícia até ao Congo,
Castro tomou uma iniciativa intempestiva que o transportou, a ele, o argentino, à estaca zero. Obrigou-o a dar um salto para trás que apaga quase dez anos de existência
cubana. "Nos tempos da Sierra Maestra", diz ele, "não passava de um estrangeiro recém-chegado; agora era aquele que se ia embora. Havia uma série de coisas que já
não partilhávamos, certos valores a que, de maneira tácita ou explícita, eu renunciara e que são os mais sagrados para qualquer indivíduo: a família, a terra, o
seu meio. A carta [...] separava-me dos combatentes". Para Guevara, pouco hábil na defesa contra manobras enviezadas, e ainda menos quando vêm de um homem que admira,
a ferida é profunda. E nunca cicatrizará por completo.

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Retirada marcial ou derrota absoluta?

A 24 de Outubro - há precisamente seis meses que os cubanos chegaram ao Congo -, chove a cântaros. Um grupo de congoleses vai ao acampamento de baixo buscar placas
de zinco para construir um abrigo. De súbito, uma rajada de metralhadora de tiro prolongado. É um destacamento de askaris e de mercenários que sobe para tomar de
assalto o acampamento. Dreke é surpreendido a fazer as suas necessidades (é ele que fornece esta indicação) o Che está entretido a ler [!] na sua cabana. Debandada
geral. Tatu tem de fugir a correr. "Se tiverem de retirar, façam-no de forma marcial, recomendara ele aos seus homens. Parem de vez em quando para disparar". Esta
"retirada marcial tinha sido objecto de chacota entre os cubanos, que troçavam do carácter hipócrita da expressão. Contudo, é esse género de retirada marcial que
Guevara executa, descendo a correr a colina, acompanhado de Martínez Tamayo. Já os mercenários entravam no acampamento. "O Che correu riscos. Combatia de pé", dirá
o cubano Herrera. A sua guarda pessoal, encarregada de o proteger, critica a sua imprudência. Resposta dele: "Sou eu que comando". Observação de Dreke: "Não lhe
acertaram por pouco". Munições, morteiros, uma metralhadora, um emissor de rádio chinês, tudo se perdeu. A coluna ficou desfeita. Durante vários dias, Tatu continuou
a vaguear na floresta, com treze homens. "Mais um que Fidel, em certo momento", observa ele. "Mas o chefe não era o mesmo". Rafael Pérez (Bahaza), um camponês negro
de Santiago de Cuba, sucumbe aos ferimentos. No enterro, "diante do nosso pequeno destacamento de vencidos, prestei-lhe uma última homenagem, uma espécie de solilóquio
carregado de censuras contra mim próprio".
Quando os cubanos conseguem reagrupar-se, é a vez de os congoleses criticarem os supermachos que fugiram. Os pequenos chefes locais chegam a espalhar o boato de
que foram esses estrangeiros amigos que colocaram as bombas que explodem sob os pés dos camponeses. Guevara não se indigna excessivamente com a reacção dos congoleses,
apesar de a acusação lhe parecer desprezível: "Tínhamos ferido a susceptibilidade deles. E talvez houvesse também a sensação desagradável de serem repreendidos por
um branco, como nos tempos malditos". A autocrítica, pertinente, não será um pouco tardia? De assinalar, também, um pequeno pormenor: uma rádio congolesa dá, por
essa altura, uma curiosa notícia que não é repescada pelas grandes agências, sem dúvida demasiado extraordinária ou muito pouco credível para ser levada a sério:
"Che Guevara e Laurent Kabila foram mortos no Congo". Sempre a mesma táctica da CIA: divulgar o falso para saber o verdadeiro. Desta vez, a atoarda não andou longe
da verdade.
Novembro de 1965 é o mês da derrota e do recuo das tropas. Os sinais negativos multiplicam-se. Desafiando as vedetas que patrulham o lago Tanganhica, um mensageiro,
enviado por Rivalta, vem trazer a notícia a Tatu que, de regresso da cimeira da OUÀ, Nyerere pede aos cubanos que se retirem! Golpe duro para um movimento de libertação
já moribundo. Castro,

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também alertado por Rivalta, envia um telegrama engenhoso. "Ninguém é frisado ao absurdo". Guevara fica com inteira liberdade para ficar ou sair do Congo. Só a ele
compete decidir. Seja qual for a decisão, "apoiar-vos-emos".
Mas, diabólico, Fidel acrescenta uma pequena frase cujo alcance se verá o futuro: "Se decidirem vir embora, Tatu é livre de manter o statu quo da sua situação actual,
quer regressando, quer indo para outro lado". Eis, pois, Guevara dispondo de uma estranha liberdade, a de manter o statu quo, isto é, permanecer clandestino - em
Cuba ou no resto do mundo. Depois da leitura da sua carta de despedida, não tem, de facto, outra opção. O camarada argentino é, assim, remetido para os seus brinquedos
de guerra - gosta tanto deles -, e será apoiado, se necessário. Mas, a partir de agora, está fora de questão envolver-se na política interna de Cuba, nem aparecer
à luz do dia, nem, sobretudo, importunar a Nomenklatura cubana com o exemplo do seu jansenismo culpabilizador.
A partir daí, a aventura congolesa não passará de uma série de episódios confrangedores. Como é óbvio, o Che recusa-se a partir. Pede a Havana que envie à Tanzânia
"uma delegação de alto nível" para evitar "uma fuga vergonhosa abandonando os nossos irmãos à mercê dos mercenários". Propõe ao congolês Massengho (que recusa) a
redução do estado-maior, "não como o actual, que parece o do exército soviético antes da conquista de Berlim". De Lubonja, onde se encontra, a dois dias de marcha,
Martínez Tamayo refere que "a desmoralização é enorme". Guevara ordena o reagrupamento dos cubanos dispersos pelas diversas "frentes". O tenente Cárdenas tenta conter,
tanto quanto possível, o avanço dos mercenários. Alerta Fernández Mell. O seu relatório é lúgubre. "A retirada é muito difícil e a nossa posição está muito a descoberto.
Não é possível escondermo-nos da aviação. Não há nada para comer. Chove todos os dias e não há nenhum lugar onde nos abrigarmos. Os congoleses pedem autorização
para partir. [...] Temos de obrigar a combater homens que se recusam a fazê-lo e parece-me que isso não é lógico". Quanto ao ruandês Mundandi, anuncia que vai retirar-se
com os seus homens: "Se os congoleses não quiserem combater, prefiro morrer na minha terra". O grotesco aproxima-se do sublime e, em vez de Kabila que, instalado
na Tanzânia, nem pensa em se aproximar, desembarca inesperadamente um segundo grupo de jovens congoleses acabados de sair de um estágio na URSS. Queixam-se de não
saber "onde pousar as malas" e exigem imediatamente... quinze dias de férias. "Poderíamos achar isso tudo muito cómico, se não fosse bastante triste ver o estado
de espírito de rapazes em quem a Revolução depositava a sua fé".
A dar crédito a Rivalta, foi durante esses dias de ansiedade, em que o círculo se aperta, que Guevara fez uma tentativa inesperada, sem dúvida reveladora do seu
desespero. "O Che enviou uma carta a Chu En-Lai, pedindo-lhe ajuda. [...] Chu En-Lai pediu-lhe que não fosse embora, que formasse grupos de resistência, evitando
os combates". Será que a garantia de Castro - "Apoiar-te-emos" - não chega para Tatu? Ou será a maneira de dar a volta

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ao veto de Nyerere quanto ao encaminhamento de material para o Congo? A menos que seja uma forma subtil de os chineses separarem Guevara do aparelho cubano. São
tudo questões para as quais só a abertura dos arquivos poderá fornecer uma resposta.
Mas essas tentativas de última oportunidade são já vãs. "Os belgas continuavam a avançar por outros lados. Não havia forma de os deter", declara Videaux. Tatu volta
à base de Luluabourg mas, por toda a parte, a defesa esboroa-se. A 18 de Novembro, quando os chefes congoleses, Chamaleso Massengho, Bemba, etc., o informam da sua
decisão de parar os combates e bater em retirada, Guevara tem uma reacção insólita, que revela o preço que atribui à imagem que a posteridade guardará dessa operação.
Exige que Massengho lhe comunique essa posição "por escrito": "Disse-lhe que havia uma coisa que se chama História e [que] pode ser deformada".
Apesar de todas as evidências, o Che agarra-se a uma última ideia louca, a de atravessar o Congo de lés a lés, de leste a oeste, para atingir a zona onde segundo
consta, Mulele, antigo ministro de Lumumba, anima um movimento de resistência, na região de Kasai, em torno da capital, Leopoldville. Mais de mil e quinhentos quilómetros
a pé, em território desconhecido, no coração da floresta equatorial! Ainda mais delirante do que a guerrilha alucinada de Masetti, na Argentina. Mas já nem sequer
a ideia de permanecer um pequeno grupo "como símbolo do prestígio de Cuba" encontra eco. "Ninguém estava disposto a prosseguir...". O dia 19 de Novembro parece uma
cena em cinemascópio. De manhã cedo, Guevara larga fogo à cabana, a casa que "nos albergara durante sete meses". Depois, ao paiol. Da encosta, enquanto espera pelos
retardatários, observa, com a angústia que se adivinha, "o fogo de artifício, os incêndios e as explosões dessas matérias preciosas que se transformam em fumo".
Os mercenários descem de comboio até ao lago, fechando cubanos e rebeldes congoleses num círculo cada vez mais estreito. A sua táctica parece ter mudado. Em vez
de travarem um combate provavelmente ainda arriscado, preferem empurrar toda aquela gente para a Tanzânia, do outro lado do lago. Na noite de 21 de Dezembro de 1965,
sete meses após a chegada dos primeiros cubanos com o doutor Tatu, voltam a atravessar em sentido contrário o lago Tanganhica. Sentem que foram vítimas de uma impostura.
Abandonam sem mágoa essa pequena parcela de território congolês onde até os camponeses começavam a olhá-los de lado, como o próprio Guevara reconhece.
Nunca puderam ultrapassar um perímetro - irrisório - de menos de cem quilómetros e não têm a sensação de terem conseguido transmitir a ideia de revolução. São cerca
de cento e vinte e cinco. Com eles, vêm seis ou sete ruandeses e congoleses que, "excepcionalmente", se revelaram corajosos e fiáveis. Muitos outros queriam vir
também para a Tanzânia. Impossível. O camarada Bartelemi, aliás, "Lawton" (o nome do seu bairro em Havana), só encontrou duas lanchas, onde se enfiam como podem,
e uma barcaça para onde, no último momento, o Che se resigna a subir. "A ideia de ficar

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continuava a dar-me volta à cabeça, até ao fim do dia", confessará ele. Receando justamente isso, a guarda pessoal encaminha o seu comandante para bordo com uma
insistência firme. Videaux garantirá que a evacuação se processe ordenadamente, segundo as instruções de Tatu: "Não foi uma Debandada, como poderia parecer". Pelo
contrário, o referido Tatu, mais masoquista do que nunca na vergonha que sente, sublinha "o espectáculo doloroso, lamentável, ruidoso e sem glória" dessa retirada
onde "não houve um único gesto de grandeza. [...] Tinha de empurrar homens que pediam, numa súplica, que os trouxéssemos".
Desde o amanhecer, vedetas e aviões inimigos vigiam atentamente o regresso desses soldados extraviados. Ao chegar a Kigoma, o Che despede-se dos seus homens com
laconismo. "Foi a decisão da direcção congolesa que nos forçou a retirar", sublinha ele. "Quando chegarem a Cuba e, a 24 de Dezembro, comerem o leitão de Natal,
lembrem-se deste povo humilde e dos camaradas que deixámos no Congo". Todos choram. De tristeza, de emoção, de alegria. "Parecia que tinha acabado de saltar a tampa
de uma panela. A exaltação dos cubanos e dos congoleses extravasava das pequenas lanchas como um líquido quente, que me queimava sem que eu cedesse ao contágio".
Porque aquilo que é para todos um enorme alívio depois da tensão extrema das últimas semanas representa, para Guevara, a marca da derrota. Fica-lhe a impressão que,
faça ele o que fizer, será sempre um estrangeiro, apesar de tudo, um ser à parte: "Durante estas últimas horas no Congo, senti-me só como nunca o estivera, nem em
Cuba, nem em nenhum outro sítio ao longo da minha peregrinação pelo mundo. Poderia acrescentar: nunca como hoje sentira a que ponto o meu percurso era solitário".
Já não é Tatu - a personagem já não tem razão de ser -, já não é Tintim, desaparecendo no nevoeiro da floresta. É Lucky Luke, D. Quixote melancólico no seu Rocinante
esquelético: "I'm a poor lonesome cow-boy...".

Catão autocensor

Que fazer? Para onde ir? Os camaradas cubanos estão impacientes. Querem lavar-se, tratar das feridas, voltar para casa, por muito ziguezagueantes que sejam os caminhos
de regresso. Mas... e ele? Terá ele uma terra que lhe pertença? Não proclamaram bem alto que ele saíra de Cuba para ir para outras terras?... O statu quo amavelmente
facultado por Castro é o de fora-da-lei revolucionário. A partir de agora, é esse o seu único habitat. Para já, regressa a Dar es-Salaam e fecha-se na Embaixada,
onde Rivalta lhe preparou o primeiro andar. Viverá aí uma vida de recluso voluntário durante mais de três meses. O seu aspecto físico não é famoso. Pesa menos de
50 quilos, medindo mais de um metro e setenta. Está magro e sujo; tosse, mas não larga o charuto. Os cabelos revoltos voltam a tocar nos ombros. Tem novamente o
aspecto de galgo de olhos grandes, como na época do combate de Santa

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Clara, em 1958, quando a tuberculose o ameaçava. Tantas coisas sucederam desde então. Os dias que ele vive, nessas últimas semanas de 1965, desterrado em Dar es-Salaam,
são dos mais dramáticos da sua vida. Está, sobretudo bastante deprimido. Só manteve a seu lado alguns incondicionais: Coello Martínez, Tamayo, Harry Villegas (Pombo).
Rumina o porquê e o como da derrota. Porque ele atribui a si próprio erros, imprudências, falhas. Tudo é culpa sua. E então, como a sua raiva de compreender é intensa,
e porque presta muita atenção à História, para ultrapassar o traumatismo do fracasso, recorre à escrita, a melhor terapia.
A partir dos apontamentos registados, dia após dia, nos seus cadernos constrói uma narrativa, como que um espelho, semelhante ao que outrora escrevera sobre a epopeia
da Sierra Maestra.. A analogia, deliberada, está expressa no título, idêntico: Pasajes de la Guerra Revolucionaria (Episódios da Guerra Revolucionária), ao qual
apenas acrescenta, como para um tomo 2: El Congo. Contudo, a diferença é enorme. Já não se trata da crónica de uma marcha até à vitória final, mas sim a de uma derrota.
Aliás, o título desta vez é abusivo. Essa "guerra" não chegou a ser uma guerra, nem sequer uma verdadeira guerrilha e, muito menos, revolucionária. "No fundo, não
sabíamos o que estávamos a fazer no Congo, e isso enervava-nos"19, escreverá Alarcón, o guajiro ingénuo da Sierra Maestra que o Che continuou a alfabetizar em África,
controlando os seus deveres três vezes por semana.
Para ganhar tempo, Guevara não escreve; dita. Ao longo de três semanas, um funcionário do Ministério do Interior (Colman) que trabalhava com a cifra na Embaixada,
regista um texto de cento e sessenta e sete páginas batidas à máquina. O autor anota e corrige à mão. Aproveitando o regresso a Cuba de Fernández Mell, o Che entrega-lhe
dois exemplares, um para a mulher - Aleida -, o outro para o próprio Fidel. Mais do que um relatório, é uma espécie de mensagem codificada para Castro, que este
último saberá descodificar melhor do que ninguém. É evidente que sabe - escreve-o - que "estes apontamentos só serão publicados muito tempo depois de terem sido
ditados e talvez o autor não possa assumir [hacerse responsable] por aquilo que é dito". Mas, passados mais de trinta anos, é lamentável que ainda não tenha surgido
nenhuma edição completa do texto. Muito provavelmente, o manuscrito está enterrado nos arquivos do departamento histórico do Conselho de Estado em Havana, inacessível.
Entretanto espalhou-se o boato segundo o qual a edição truncada do documento, publicada pelo mexicano Taibo e os seus parceiros cubanos, provém do fundo documental
que Aleida March teria começado a vender.
Régis Debray e Elisabeth Burgos recordam-se da sua ida ao Ministério da Indústria, em 1966, com o escritor Fernández Retamar. O sucessor de Guevara fora nomeado
em 1965 (Joel Domenech, membro do Comité Central), mas o gabinete do Che foi deixado como estava. Até agora. ninguém se atreveu a ocupá-lo. "Abri maquinalmente a
gaveta da secretaria e encontrei o seu diário do Congo. Era o mesmo tipo de caderno que ele usou

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mais tarde na Bolívia, um modelo de agenda alemão. Tinham-nos deixado sozinhos. Comecei a ler e parei logo, para o mostrar a Régis e a Retamar. Mas eles nem sequer
se atreveram a ler o que vinha nos cadernos. Voltaram a pôr os documentos no mesmo sítio..."20, conta Elisabeth Burgos. Por seu turno, Carlos Franqui dá um testemunho
não menos interessante. Caído em desgraça quando fecharam o jornal que dirigia, Revolución (substituído pelo Granma), fora posto na prateleira e colocado nos Arquivos
Históricos, chefiados por Celia Sánchez, eminência parda de Castro. "Em 1967, perto do fim do ano, chegaram cinco ou seis grandes sacos de pano lacrados, "secreto";
sacos parecidos com os que se usa nos correios. "São os documentos e os cadernos de viagem do Che", disse-me Fidel. "Mas é proibido abri-los. Nem tu, nem eu, nem
ninguém pode lê-los. É Aleida March quem irá guardá-los""21.
Desde então, a casa onde o Che vivia, Calle 47, no bairro do Nuevo Vedado de Havana, transformou-se, em princípio, num centro de estudos guevaristas, centro bastante
discreto, diga-se de passagem. Raros são os investigadores e historiadores autorizados a frequentá-lo; a consulta da crónica congolesa não é permitida, nem a dos
cadernos de apontamentos e outros documentos africanos. Não há frustração maior para um biógrafo do que ter pegado por instantes num desses cadernos, antes de Aleida
March o recolher de imediato para o encerrar na gaveta de um pesado classificador metálico. Porque, para uma biografia, não há texto mais esclarecedor do que a autocrítica
escalpelizada a que Guevara se entrega, analisando com uma espécie de prazer mórbido as falhas da operação, para se autocensurar.
Nada escapa: "O facto de me isolar para ler, evitando desse modo problemas quotidianos, acaba por me afastar do contacto com as pessoas, para já não falar de alguns
aspectos do meu feitio, que dificultam uma certa intimidade. Fui duro [...] Quis impor regras morais, e falhei. Quis que os meus homens tivessem o mesmo ponto de
vista sobre a situação, e falhei. [...] Não ousei exigir o sacrifício máximo no momento decisivo. Isso constituiu um bloqueio interior, psíquico". Declara: "Aprendi
com o Congo. [...] Saí de lá a acreditar mais do que nunca na guerrilha." Mas continua a repetir: "Falhámos. A minha responsabilidade é grande."
Terá aprendido tanto com o Congo como pensa? É pouco evidente. Parece não se ter libertado do lado um tanto iluminado que manifestam aqueles que acreditam estar
na posse da verdade. É evidente que não vai ao ponto de afirmar, como certos "Grandes Mongóis" que, se o povo não compreende as virtudes da Revolução, há que mudar
o povo. É autoritário sem ser autocrata. Não é um caudillo. Mas está tão convicto da justa luta anti-imperialista, a única que vale a pena, que, comparativamente,
a micro-realidade imediata das crenças, dos rituais, dos comportamentos irracionais permaneceu opaca aos seus olhos abertos, por muito que se tenha esforçado por
entendê-la. No fundo, se a sua autocrítica revela alguma miopia é porque nessa época-charneira da sua vida, Propícia a todas as análises, não consegue fazer a sua
própria revolução cultural e mental. Não percebe a dimensão nacional, por vezes nacionalista, que se

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esconde por trás dos conflitos tribais. Não faz, como reivindicava Sartre ao prefaciar Fanon, o "strip-tease de um humanismo racista" e, sobretudo, não abandona
essa "abstracta postulação de universalidade" que o leva a explicar aos seus homens, eles próprios descendentes do tráfico negreiro, que os congoleses têm "quatro
séculos de atraso", de atraso em relação aos esquemas ocidentais que, pressupõe-se, modelaram os espíritos dos cubanos negros, descendentes de escravos. Esses esquemas
de comportamento começaram a falhar passados poucos meses de experiência africana...
Oswaldo Barreto faz, a propósito, uma observação que reflecte bem a posição de Guevara. Uma noite, em Havana, ele, Pedro Duno e alguns outros têm o privilégio de
ouvir Fidel Castro ler-lhes algumas passagens da crónica africana do Che. Barreto não esquecerá a expressão: "Tínhamos vindo cubanizar os congoleses e, pelo contrário,
foram os congoleses que nos congolizaram"22. Nada pode resumir melhor o contra-senso da aventura. O fenómeno dialéctico senhor/escravo do comedor que é comido é
tão clássico que no Brasil deu origem a um movimento literário de "antropologia cultural" no qual o colonizado absorve, digere e por fim cospe, transformado, enriquecido
de enzimas, a mensagem do colonizador.
Se Tatu, apesar do subterfúgio um tanto cómico do seu nome cifrado em suaíli, não conseguiu ser aceite pelos congoleses, não foi apenas por ser branco, portanto
a priori inimigo, mas também por ser Guevara. Imigrado clandestino camuflado em professor de francês, em nome da boa causa, abusou da confiança dos seus hospedeiros
utilizando uma "chantagem" do facto consumado, que não funcionou. "Fiquei bloqueado pela forma um pouco anormal como entrei no Congo, e não consegui ultrapassar
essa desvantagem [...]. Durante muito tempo mantive uma atitude [...] excessivamente condescendente mas por vezes explodi de forma agressiva". A essa atitude incoerente,
de altos e baixos, veio juntar-se a arma de dois gumes do seu conhecimento do francês, que só lhe permitia comunicar com os chefes: "Não aprendi suficientemente
o suaíli de forma a poder dominá-lo. [Isso] afastava-me da base". Finalmente, outra desvantagem importante: "A minha situação particular transformava-me em representante
de um poder estrangeiro, [...] em político de altos voos num cenário desconhecido. E num Catão censor, desmancha-prazeres e maçador..." É antes um Catão autocensor
que se zurze assim, numa pena acerada.
No seu primeiro andar de Dar es-Salaam, Guevara começa a comer, a tratar o melhor que pode a amibíase contraída nas florestas do Kiwu. Dita, lê, reflecte, fuma enormes
charutos, dá voltas ao quarto. Mesmo quando joga xadrez com Pablo Rivalta, embaixador dedicado, está distraído, a ponto de perder. Rivalta vê aí um sinal de avançada
melancolia. Pensa então que a presença da mulher, Aleida, poderia ajudar o comandante a sacudir o seu tédio. Tendo recebido luz verde de Havana, Aleida vem passar
umas semanas com Ernesto, no mais completo anonimato. O efeito é benéfico, pois Guevara recupera um (fraco) sorriso, afirma Rivalta.

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Entretanto, em Cuba, todas as energias se mobilizam para que a Conferência Tricontinental seja um sucesso. Que de facto é. E Fidel Castro, a quem já ninguém faz
sombra, é a vedeta incontestada. De 3 a 13 de Janeiro de 1966, quatrocentos e trinta delegados da Ásia, África e América Latina concentraram-se em Havana, escolhendo
os mais estranhos itinerários aéreos. Representam, com todas as tendências, tanto a fina-flor da esquerda (legal ou clandestina) dos três continentes como os movimentos
nacionalistas mais intransigentes. Apenas os maoistas não são muito bem vistos, mas permite-se a alguns o estatuto de observadores. Os vietnamitas são os heróis
dessa conferência, que tem o interesse de pôr pela primeira vez em contacto directo homens que lutam "na mesma trincheira". "Moscovitas" dirigem a palavra a "pró-chineses".
quanto mais não seja para se defenderem; católicos de esquerda brasileiros conversam com dissidentes peruanos. O deputado chileno Salvador Allende anuncia, premonitório,
que se ganhar as eleições presidenciais será necessário defender essa vitória pelas armas. Vieram alguns artistas e intelectuais de esquerda: o escritor Alberto
Moravia, Joséphine Baker, cantora do Deep South norte-americano, o jovem romancista peruano Mario Vargas Llosa... Professor de Filosofia no liceu de Nancy. Régis
Debray também compareceu, a pretexto de um júri literário organizado pela Casa de las Americas. O seu artigo no Temps Modernes valeu-lhe a simpatia do comandante
supremo, sésamo que lhe vai abrir todas as portas e modificar o seu destino.
Alguns dias antes de ser raptado em Paris (29 de Outubro de 1965) e em seguida assassinado numa operação vergonhosa, teleguiada pelo general marroquino Ufkir e pelos
seus esbirros, com o apoio dos serviços secretos franceses, Ben Barka, organizador da conferência, desejara que o acontecimento fosse "histórico". Via nele "o confronto
de duas grandes correntes revolucionárias do século XX: a que surgira da Revolução de Outubro e a da revolução nacional libertadora"24. O pequeno milagre produz-se.
Apesar dos chineses denunciarem a presença da URSS, país "revisionista" e "europeu", surge um consenso numa base mais alargada - e mais vaga: lutar contra o único
inimigo comum, o imperialismo. É exactamente o discurso habitual de Guevara. E se a sua sombra paira nessa conferência, a sua ausência é tanto mais extraordinária
porquanto ele, que acaba de se bater, não pode sequer enviar uma mensagem. "Ele já está under-grund"25, como em breve dirá um agente da CIA, jogando com as palavras.

Praga. Quero morrer na Argentina

São já conhecidas as diferentes etapas da peregrinação de Guevara em 1966, apesar de algumas hesitações na cronologia exacta. É um ano difícil, de transição entre
o Congo e a Bolívia, entre entusiasmo, abatimento e nova energia. Se nos guiarmos pelo testemunho de Ulises Estrada, o Che ficou na Tanzânia pelo menos até Fevereiro
de 196626. Fernández Mell declara tê-lo

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visto lá ainda em Março. Estrada é um funcionário do Ministério do Interior que faz parte do departamento Libertação, encarregado de acompanhar, apoiar, orientar
se necessário, os movimentos revolucionários na América Latina. Conhece bem o Che, que em Cuba dirigia o conjunto deste género de operações. É um mulato, bastante
bem parecido, de ar respeitável. Barbarroja (Manuel Piñeiro), o inamovível chefe dos serviços secretos, pedira-lhe que "treinasse" Tamara Bunke, a camarada da RDA
nascida na Argentina, antes de, em 1954 Guevara a ter infiltrado na Bolívia para fazer de "toupeira", até nova ordem.
Quando Estrada chega a Dar es-Salaam, a sua missão é tirar Guevara de lá e levá-lo para Cuba. Se as instruções vêm de Piñeiro, é porque a ordem emana de Fidel. O
Che recusa. Considera que depois da leitura pública da sua carta não pode voltar. "Não queria regressar porque estava mortificado [le daba mucha pena]"28, dirá Castro,
com um profundo cinismo. Optam então - solução de compromisso, para não precipitar as coisas - por o deixar curtir o ressentimento longe da Tanzânia, numa cidade
europeia amiga onde o "aparelho" dispõe de algumas facilidades que escapam ao controlo oficial. Vão para Praga, testa de ponte dos cubanos no velho continente.
Em Dar es-Salaam, Estrada fez-se acompanhar por um colega dos "serviços", Eddy Sufiol, especialista em maquilhagem e transformações de todo o tipo. Rivalta, armado
em cabeleireiro, tinha já cortado o cabelo ao Che. Sufiol dedica-se a modificar a aparência do rosto, engrossando as sobrancelhas, acrescentando uma prótese bucal,
dissimulando o olhar sob os óculos. Assim caracterizado, Guevara embarca para Praga, via Cairo. Antes de sair da Tanzânia, redige, para a filha Hilda, uma carta
datada de 15 de Fevereiro de 1966, dia do seu nascimento, há dez anos, no México - ele assistira ao parto. (Nessa época, Fidel decretara: "Educaremos essa criança
em Cuba"). "É preciso que saibas que estou muito longe, e que ainda estarei muito tempo afastado de ti. Faço o que posso para lutar contra os nossos inimigos. [...]
Lembra-te que ainda há muitos anos de luta pela frente e que, quando fores crescida, terás de tomar parte nessa luta..."29, escreve o pai. Três vezes a palavra lucha
em poucas linhas.
Quando partem de Dar es-Salaam, o Che passa os comandos a Estrada: "Agora és tu que diriges as operações, és tu o chefe". O "chefe" começa por cometer uma falta.
Por sua culpa, quase perdem o avião. Para preservar ao máximo o anonimato do companheiro e evitar a multidão, Estrada enviou primeiro um camarada para tratar do
check-in, de modo a chegarem só no último momento para o embarque - procedimento clássico. Entretanto, vão vigiando, de um café a dez minutos do aeroporto, o barulho
do avião que em breve irá aterrar. Será o sinal para se porem a caminho. "Mas não ouvi o aparelho passar por cima de nós. Distraí-me. Foi preciso o camarada Colman
vir buscar-nos, aflito. O avião já estava a aquecer os motores para partir para o Cairo, mas conseguimos entrar graças aos nossos contactos tanzanianos"30 •
No Cairo - bom sinal -, o encarregado de negócios cubano não reconhece o Che naquela personagem à civil, escanhoado, magro e de óculos. Ficam por

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lá três ou quatro dias, alojados na residência do embaixador. "Só saímos do quarto para comer, mas o Che pregou-me uma partida", conta Estrada. "Soube, por um camarada
da embaixada, que num cinema próximo passava um filme sobre os Jogos Olímpicos de Tóquio, onde se via a vitória de Cuba nos cem metros bruços. Quis ir ao cinema.
Eu disse: "Não, comandante, é imprudente". Mas ele foi, mesmo assim, com o tal camarada. Quando me apercebi, corri atrás deles. Assim que me viu na sala, o Che levantou-se
e seguiu-me. O tipo da embaixada reconhecera-o pela fala. [...] Na escala de Belgrado, Guevara não saiu do canto mais sombrio da sala de espera. "Se alguém aqui
descobrir quem eu sou, o mundo inteiro ficará a sabê-lo de imediato""31.
Em 1966, Praga não está, evidentemente, inundada de turistas. Mas o cinzentismo habitual das democracias populares não a impede de ser uma das mais belas cidades
da Europa. Consagrada como capital da Boémia, no século XIV, por um rei amante de esoterismo que fazia coincidir o eixo das ruas com a orientação dos solstícios,
cidade barroca de cem torres que André Breton baptizou de "capital mágica", estabelece um contraste visível com o Terceiro Mundo ensolarado e caótico de Dar es-Salaam.
Guevara conhece mal esta cidade, embora tenha passado por lá muitas vezes, numa escala entre dois voos ou para assinar um contrato, mas é provável que desta vez
não esteja em condições de apreciar o seu encanto. A julgar pelo testemunho de Estrada, a sua estadia parece até mergulhar no tédio. "Quase nunca saímos do pequeno
"apartamento de segurança" de que dispúnhamos. Passávamos o tempo a ler, a fumar, a jogar xadrez. Nunca fui muito bom nesse jogo. O Che dera-me um livro, para eu
estudar as regras. Dizia que ia ensinar-me. Deixou-me até ganhar algumas partidas, para que eu adquirisse o gosto - o que, aliás, aconteceu -, mas acabou por me
dizer que eu não era suficientemente bom parceiro para ele [...]. Tinha-lhe arranjado um pouco de mate e alguns discos. Havia dois de que gostava especialmente:
os Beatles e Miriam Makeba, a cantora negra africana..."32.
De vez em quando, dão uma volta pelos arredores - é menos arriscado. Guevara obriga o companheiro a tratá-lo por tu, evitando o "comandante" - já não estamos na
tropa! Desconfia também dos serviços secretos checoslovacos, pouco fiáveis. Se eles descobrissem que estava escondido em Praga, diz ele, os norte-americanos não
tardariam em sabê-lo, o que não seria bom para Cuba. A sua fixação anti-ianques é de tal ordem que se manifesta nos mais pequenos pormenores. Por exemplo, proíbe
que Estrada compre cigarros americanos "imperialistas". Em último caso, prefere que ele fume cigarros ingleses. Sempre igualitário, recusa-se a ser servido pelo
companheiro e estabelece que ambos tratarão da cozinha e da limpeza alternadamente. Quando vão ao restaurante, escolhem sempre os recantos sombrios; mas é difícil
passar despercebido com um negro bonito e exótico a quem as empregadas fazem olhinhos. Ao cabo de um mês, Guevara explica o problema ao mulato sedutor e pede que
Cuba lhe envie outra pessoa, se possível um branco. Durante essa estadia em Praga, que se estenderá por quatro meses, de Março a Julho de 1966, terá sucessivamente
junto de si vários camaradas, todos da sua

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confiança: Juan Carretero, aliás "Ariel", encarregado do sector Bolívia junto de Piñeiro; Harry Villegas ("Pombo"), Martínez Tamayo ("Papi") e, já no fim Ramiro
Valdés e Alberto Fernández Montes de Oca, denominado "Pacho"
Consta que, durante essa fase de indecisão, o Che teria registado nalguns cadernos as suas reflexões, as suas hesitações, os seus projectos. Coisa que não se confirmou,
mas que é plausível; sabe-se que, desde muito novo Ernesto sempre escreveu diários. Se existem, esses hipotéticos "cadernos de Praga" devem estar ainda mais bem
guardados do que qualquer outro documento em Cuba, pois seria de estranhar que não contivessem algumas referências às novas relações entre o Che e Fidel Castro.
Conhecendo a liberdade de linguagem de Guevara, essas observações poderiam ser dinamite! Mas são apenas especulações... O interesse desses documentos, se viessem
a aparecer seria o de informar-nos do estado de espírito do condottiere em repouso, durante esses longos dias de ociosidade numa Praga magnífica e gelada. Deve ter
feito um duplo trabalho de luto, da mãe, ponto de referência agora extinto, mesmo que tendo declarado que a família não existe, e, sobretudo, luto da vitória, esperada,
de uma guerrilha congolesa transformada em derrota.
Porém, o certo é que um dia se levantou e declarou que tudo isso acabara, que já não estava deprimido - tê-lo-á alguma vez admitido? - e que a luta continuava. De
facto, foi quando esteve em Praga que encarregou Martínez Tamayo de uma nova missão na Bolívia. Não lhe pede que assegure a retaguarda de uma guerrilha argentina,
como a de Masetti, há três anos, mas que considere uma outra possibilidade, a de montar um centro clandestino de formação de guerrilheiros para toda a região. É
esse o projecto. Este ponto merece atenção, pois o mal-entendido trágico, na Bolívia, nascerá da confusão, da precipitação em transformar em luta armada aquilo que,
à partida, deveria ser apenas uma academia militar da guerrilha à escala de um subcontinente.
Porquê a Bolívia? Em relação a esta pergunta, a resposta é simultaneamente simples e complexa, prendendo-se tanto com a geografia e com a história como com o imaginário
do Che. Basta olhar para um mapa. Amputada da província marítima de Atacama após uma guerra do Pacífico que, no século XIX, perde em favor do Chile, a Bolívia tornou-se
um país-enclave, o único na América Latina que não tem acesso ao mar. Mas, assim implantada no coração do continente, pode servir de encruzilhada, pois faz fronteira
com cinco países que cobrem a maior área da América do Sul: Peru, Chile, Argentina, Paraguai e Brasil. Cinco países onde, em graus diversos, há possibilidades revolucionárias,
passíveis de orientar, canalizar, organizar. Desde que haja homens aguerridos, bem treinados, bem orientados, capazes tanto de se servir de uma arma como de falar
aos camponeses. Por outro lado, a Bolívia é um estado muito politizado onde, durante muito tempo, uma ínfima minoria branca deteve um poder absoluto face às maiorias
índias, quíchuas e aimarás e aos mestiços.
Com o extremismo intransigente da sua juventude vagabunda, Guevara considerava, em 1953, que as revoltas populares dos camponeses e dos

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mineiros, a que ele assistia como espectador um tanto crítico, eram ainda insuficientes. Desde então, forçoso é reconhecer que elas representaram uma verdadeira
revolução naquela época: nacionalização das minas, dissolução (provisória) do exército, reforma agrária.
Último elemento explicativo, com algum peso: para o Che, a Bolívia é a porta de entrada da sua Argentina natal, a última etapa antes do regresso de Ulisses a ítaca.
Quando, endurecidos pelo treino e cerrando fileiras uns e outros - peruanos, brasileiros e os próprios bolivianos - forem, como guerrilheiros de elite, levar a chama
revolucionária às zonas mais propícias dos seus países; quando, ateando à passagem focos de rebelião, transformarem a cordilheira dos Andes numa imensa Sierra Maestra,
de acordo com a profecia castro-guevarista, chegará o momento de Ernesto Guevara, a quem chamam o Che, assumir o seu papel histórico fundamental. Tal como Fidel
Castro em Cuba, tal como Bolívar à escala nacional e depois continental, desencadeará na Argentina a revolução libertadora de que o seu país precisa. Nunca, onde
quer que estivesse, o Che deixou de acalentar a ideia de fechar o círculo desta forma heróica. Nunca aceitou o fracasso da guerrilha-fantasma de Masetti, perdida
nas areias do Chaco. Dezenas de argentinos, de todas as tendências políticas, vieram a Cuba trazer algumas pistas, quanto mais não fosse sobre o local onde Masetti
teria sido enterrado. Nenhuma verdadeiramente consistente. Se o Che quer desencadear a sua operação boliViaña, não é apenas para obter uma desforra simbólica; é
porque, atento à história e dominado pela morte, pressente que vai reconciliar-se com o seu verdadeiro destino. Na Pampa, quando os cavalos regressam sozinhos à
estancia ou junto de certos arbustos, os gauchos dizem que eles obedecem a uma querencia, o apelo misterioso de um recanto da planície onde se sentem melhor do que
em qualquer outro lado. Estrada não esquece que foi em Praga que ele lhe fez, como que de passagem, uma confidência importante: se tiver de morrer em plena acção,
ao menos que seja "com um pezinho em território argentino"33.
É, pois, no exílio de Praga - nos antípodas - que ganha forma esse sonho do Che, há muito concebido. E, neste ponto, Castro não manipula a verdade quando refere,
a propósito do projecto boliviano: "Não fomos nós que o encarregámos dessa missão; foi ele que concebeu a ideia, o plano, tudo..."34. O irrealismo de Guevara é imaginar
que esse projecto podia ser organizado a partir de Praga, por interpostos emissários. Castro, pragmático, percebe melhor que ninguém que isso seria uma loucura.
Pensar que, a partir de Praga, é possível implantar, via Cuba, uma guerrilha na Bolívia, é não ter o menor sentido das coisas. O Líder Máximo insiste, pois, com
o Che para que ele regresse primeiro a Havana. Este persiste na recusa, marcado pela vergonha e, talvez, por algum ressentimento. Até que Fidel, sedutor, lhe envia
nova mensagem, por intermédio de Ramiro Valdés. Ramiro é um veterano de Moncada e da Sierra Maestra. Foi ajudante do Che quando a sua famosa coluna marchou sobre
Havana. Promovido a Ministro do Interior, chefe da segurança nacional, foi guindado ao Bureau Político do novo Partido Comunista

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Cubano. É, pois, um dos primeiros dirigentes na hierarquia cubana. E Guevar gosta dele. Terá sido o conteúdo da mensagem de Fidel, o poder de persuasão de Valdés
ou, acontecimento inesperado, a notícia do golpe de Estado na Argentina a convencer o Che, dando-lhe a impressão que a história acelera? A 28 de Junho, em Buenos
Aires, o general Ongania, perfeito "gorila", derruba com um piparote o pacífico presidente radical Illia. A 3 de Junho, em La Paz, o general Barrientos, outro "gorila",
é eleito presidente da Bolívia legalizando o golpe de Estado que o levara ao poder em 1964. O Che acaba por ceder. Aceita regressar a Cuba nas condições do statu
quo imposto, isto é, em total clandestinidade.
A 19 de Julho de 1966, munido de um passaporte uruguaio emitido em nome de "Ramón Benitez", e acompanhado por Alberto Fernández Montes de Oca (Pacho), Guevara deixa
Praga, de comboio, rumo a Viena, depois Genebra e Zurique; e, por fim, chega a Havana, via Moscovo. Quinze meses após a partida para o Congo, ei-lo agora apontando
à América Latina, à miragem boliViaña, uma lança embotada pelo fiasco congolês. Mas o simples facto de retomar a acção deu-lhe energia. "Há que imaginar Sísifo feliz"35.

Notas:

1 Hergé, Tintin au Congo, Tournai, Casterman, 1946, p. 9.
2 Granma, Havana, 9 de Outubro de 1987, p. 4.
3 Paco Ignacio Taibo II, Froilán Escobar e Felix Guerra, L'Année où Nous N'Étions Nulle Pari, op. cit. Todas as citações não referenciadas deste capítulo são extraídas
desta obra. Edição portuguesa: O ano em que estivemos em parte nenhuma. Campo das Letras.
4 Tad Szulc, Castro, Trente Ans de Pouvoir Absol, op. cit., p. 516.
5 Ricardo Rojo, entrevista com o autor, Paris, 1992.
6 Carlos Moore, Le Castrisme et L'Afrique Noire 1959-1972, op. cit., pp. 530-531.
7 Le Monde, Paris, 13 de Novembro de 1996.
8 Ernesto Che Guevara, Cartas Inéditas, op. cit., p. 22.
9 Élisabeth Lagache, entrevista com o autor, Paris, 1992.
10 Dariel Alarcón Ramírez, entrevista com o autor, Paris, 1996.
11 Ernesto Guevara, El Cachorro Asesinado, Havana, Letras Cubanas, 1978.
12 Citado em Hervé Hamon e Patrick Rotman, Génération, t. I, Les Années de Rêve, Paris, Seuil, 1987, p. 287.
13 Fidel Castro, Entretiens Sur La Religion avec frei Betto, op. cit., p. 264.
14 Gianni Mina, Habla Fidel, op. cit., p. 314.
15 Dariel Alarcón Ramírez, entrevista com o autor, Paris, 1996.
16 Ibid.
17 Carlos Moore, Le Castrisme et L'Afrique Noire 1959-1972, op. cit., pp. 713-714.
18 Dariel Alarcón Ramírez, entrevista com o autor, Paris, 1996.
19 Benigno, Vie et Mort de La Révolution Cubaine, op. cit., p. 111.
20 Élisabeth Burgos, entrevista com o autor, Paris, 1992.

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21 Carlos Franqui, entrevista com o autor, Monte Catini, 1991.
22 Oswaldo Barreto, entrevista com o autor, Paris, 1992.
23 pierre Kalfon e Jacques Lecnhardt, Lês Amériques Latines en France, Paris, Gallimard, 1992, p. 87 e seg.
24 Albert-Paul Lentin, La Lutte Tricontinentale, François Maspero, Paris, 1966, p. 43.
25 Le Monde (artigo de Marcel Niedergang), Paris, 11 de Outubro de 1967.
26 Ulises Estrada, entrevista com o autor, Havana, 1992.
27 paco Ignacio Taibo II, Ernesto Guevara, también Conocido como El Che, op. cit., p. 610.
28 Gianni Mina, Habla Fidel, op. cit., p. 314.
29 Ernesto Che Guevara, Obras, 1957-1967, op. cit., t. 2, p. 694.
30 Ulises Estrada, entrevista com o autor, Havana, 1992.
31 Ibid.
32 Ibid.
33 Ibid.
34 Gianni Mina, Habla Fidel, op. cit., p. 327.
35 Albert Camus, Le Mythe de Sisyphe, Paris, Gallimard, 1958, p. 168. (Edição portuguesa Livros do Brasil, 1983.)

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VIII

UMA ESTAÇÃO NO INFERNO

"É a hora dos braseiros"

"É a hora dos braseiros; só se deve ver a luz". Colocando esta frase de José Marti como introdução à mensagem que dirige, em Abril de 1967, aos "povos do mundo",
seu último texto público, Guevara dá o tom ao novo projecto em que acaba de se lançar. Atear os focos de uma rebelião de raiz latino-americana que, numa primeira
fase, deverá começar por experimentar, nas montanhas da Bolívia, a têmpera dos guerrilheiros. Serão os melhores de entre eles que poderão guiar as revoltas camponesas
do continente e transformá-las em revoluções nacionais. A "hora dos braseiros" é a da madrugada, quando se ateiam as cinzas da noite. Esta simbologia do despertar
é a mais adequada para marcar a fase de ressurgimento dos combates populares, após o longo sono da exploração colonial e neocolonial.
Quando regressa a Cuba, mais clandestino ainda do que quando de lá saiu, há quinze meses, o Che já não tem liberdade de movimentos. É enquadrado pelos serviços do
Ministério do Interior, que o fazem passar pelas tradicionais "casas de segurança" de Havana e o enviam de seguida para a província de Pinar del Rio, no extremo
oeste do país. Arranjaram-lhe, como quartel-general, a confortável residência de um gringo, um norte-americano que regressou aos Estados Unidos, abandonando extensas
propriedades. Situada nos contrafortes da serra de Organos, perto de San Andrés de Taiguanabo, a herdade goza de um microclima temperado, não demasiado húmido, ideal
para um asmático. O doente, aliás, tem passado bem; recuperou, está mais gordo. Aos trinta e oito anos, Guevara é um homem na força da idade, no qual já não se distinguem
os traços quase adolescentes que, no dia da vitória, espantavam aqueles que descobriam o jovem comandante descendo da Sierra Maestra, de estrela na testa.
O Che resistiu à ideia de regressar a Cuba, mas acabou por admitir que era uma etapa indispensável para criar uma logística de base antes de partir

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para a Bolívia. Não lhe agrada entregar-se completamente aos serviços de Piñeiro: esse vice-ministro do Interior, ocupando um lugar muito especial na hierarquia,
está sob o controlo directo de Castro. Sem o pôr de parte, Guevar tenta governar-se com a rede de alguns veteranos da sua coluna, que estiveram com ele desde os
tempos heróicos da Sierra Maestra e que o seguiram até ao Congo. Conhece-os, já os viu em acção, já deram provas. Porém, nada poderia ser feito sem a aprovação de
Castro, e este não se esquece de o lembrar a um jornalista italiano: "Ele [o Che] pediu o nosso apoio nesse sentido [e] nós autorizámos a partida de um grupo de
camaradas experientes". Mas atento ao significado das palavras, o comandante supremo dá subtilmente a entender que, se houve fracasso, a responsabilidade reside
inteiramente na precipitação do seu amigo argentino, cuja impaciência tantas vezes criticou Protegendo-se sempre com o "nós" oficial, tão rebarbativo, tem o cuidado
de sublinhar: "Preferíamos que ele se tivesse incorporado num movimento já mais desenvolvido, mas ele queria estar lá desde o princípio; nós conseguimos retê-lo
até que, pelo menos, as primeiras tarefas [de segurança] fossem efectuadas"1.
O Che fartou-se de insistir em Argel e noutras alturas, na importância do dever de solidariedade internacionalista. Por isso, é provável que não tenha achado necessário
desfazer-se em agradecimentos pela ajuda, no fundo insignificante, que Cuba aceitou dar a um projecto do qual seria a primeira beneficiária: enfraquecer o imperialismo
que, com o seu bloqueio, estrangula a ilha. Nas suas linhas gerais, o projecto é semelhante ao do Congo: abrir uma nova frente, um "novo Vietname" para desviar a
atenção do inimigo.
Seja qual for o resultado da operação na Bolívia, ela apresenta poucos riscos para Castro. Se resultar, tanto melhor. O essencial do êxito reverterá a seu favor
e algumas "Cubas" suplementares no continente americano representarão outras tantas pedras no sapato do Tio Sam. Se redundar em fracasso, só poderá lamentá-lo, explicando
que nunca tinha estado verdadeiramente envolvido nessa aventura pessoal do camarada Guevara, que, como se sabe, rompeu todos os laços com Cuba.
Antes mesmo de o referido camarada regressar de Praga, procede-se a uma primeira selecção do pessoal (tendo em conta as suas sugestões) pelo Ministério da Defesa
(Raul Castro) e pelo Ministério do Interior (Ramiro Valdés), para lhe permitir preparar a sua equipa. Candidatos não faltam; vêem nesse projecto uma forma de escapar
à rotina burocrática e de reencontrar as emoções fortes da Sierra Maestra. Apagaram as recordações más - a fome, a sede, o cansaço -, conservando apenas na memória
os dias felizes, a fraternidade viril, o cheiro a pólvora, as descargas de adrenalina ligadas à excitação do combate, a euforia da vitória.
Os três meses ultra-secretos que o Che irá passar na herdade de Pinar del Rio - meados de Julho/meados de Outubro de 1966 - serão dedicados ao treino intensivo de
um grupo de uns quinze homens, cuidadosamente escolhidos entre os combatentes de elite, todos regressados à situação de simples

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soldados, sublinha ele, seja qual for a sua patente. Incluindo ele próprio, serão dezassete a constituir o comando que desembarcará na Bolívia, em datas espaçadas
e em grupos de dois ou três, por itinerários diferentes e sob uma outra identidade.
A fina-flor do exército rebelde, a julgar pela patente de cada um: cinco tenentes, sete capitães, cinco comandantes (grau máximo de uma hierarquia militar que ainda
não alinhou pelas patentes soviéticas). Entre eles, três trabalharam com o ministro Guevara: o comandante Machíon ("Alejandro"), vice-ministro da Indústria, o comandante
Alberto Fernández Montes de Oca ("Pacho"), director das Minas, o capitão Suarez Gayol ("el Rubio"), vice-ministro do Açúcar junto de Borrego. Juntamente com os comandantes
Juan Vitalio Acuña ("Joaquín") e Antonio Sánchez (conhecido por "Pinares", mas passando a ser "Marcos", na Bolívia), e com o capitão Eliseo Reyes ("Rolando"), um
veterano da coluna do Che, são cinco a fazer parte do Comité Central do Partido Comunista Cubano. Os capitães Orlando Pantoja ("Antonio") e Manuel Hernández ("Miguel")
são veteranos da Sierra Maestra. O único que o Che não conhece bem é Leonardo Tamayo ("Urbano"), apesar de ter feito parte da delegação cubana que Guevara levou
à conferência de Punta del Este, em 1961. A maior parte dos outros são ou foram da guarda pessoal de Guevara, homens de toda a confiança: o negro Harry Villegas
("Pombo"), Dariel Alarcón Ramírez ("Benigno"), Carlos Coello ("Tuma"), José Maria Martínez Tamayo ("Ricardo"). Israel Reyes ("Braulio") vem da rede de Raul Castro;
e René Martínez Tamayo ("Arturo"), irmão de José Maria, da rede do próprio Fidel. Para confundir as pistas, adoptaram um pseudónimo, quase sempre o dos seus passaportes
falsos, excepto Pombo e Tuma, que mantiveram os seus nomes suaílis.
Quem quiser pode ter, como o chefe, um diário. Um manancial de informações, se caíssem nas mãos do adversário, os diários de Pombo, Pacho, Rolando, Braulio e "Moro"
(o médico Octavio de la Concepción) permitirão, por comparação com o de Guevara / Ramón (depois "Fernando"), a reconstituição de vários momentos de uma odisseia
que só muito remotamente se assemelhará à gesta da Sierra Maestra, já celebrada nas escolas.
Benigno (Dariel Alarcón), o guajiro da Sierra Maestra alfabetizado pelo Che, conta, de forma pitoresca, a encenação, lúdica e provocante, montada pelos "serviços"
para testar a qualidade do disfarce de Guevara. No início de Agosto de 1966, todo o grupo foi convocado para se apresentar a um fulano, um espanhol chamado Ramón,
um pouco mal-encarado, segundo os avisaram. "Vimos chegar, não um indivíduo com uma farda verde, como imaginávamos, mas um verdadeiro senhor, de fato completo, camisa,
gravata, sapatos bem engraxados. Não muito alto, um pouco careca, com óculos sem aros e de cachimbo na boca. Disse cá para os meus botões: "Não é possível. Não é
com esta coisa que vamos combater!""2

O senhor, a quem chamavam "doutor", aproxima-se e o home que o acompanha pergunta-lhe: "São estes os homens. O que é que acha deles?"

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Ao que o senhor Ramón responde, com um ar enjoado: "Parecem-me todos uns comemierdas [merdosos]". Indignação contida dos ditos, que cerram os punhos. Trocista, o
doutor espanhol dá um aperto de mão a cada um, acompanhado da mesma fórmula de apresentação: "Mucho gusto. Ramón!", mas vai repetindo: "A minha opinião mantém-se.
Todos uns merdosos". Humilhação e silêncio enraivecido por parte dos soldados a quem foi ensinado o mérito da disciplina. Só quando Ramón entabula um diálogo com
Pinares (o comandante Marcos), Suarez Gayol, el Rubio, ao ouvi-lo falar, tem uma inspiração: é Guevara, com quem trabalhou muito tempo no Ministério da Indústria!
Sai da fila, exclamando: "Porra! É ele! É o Che!" Espanto, alívio, risota. Pinares empresta-lhe a sua própria camisa de caqui, põe-lhe o seu boné e, sem os óculos
e o cachimbo, Ramón recupera os traços de Guevara. Conclusão de Benigno: "Se nós, que o conhecemos bem, não o reconhecemos, é porque o trabalho dos serviços de Ramiro
Valdés fora bem feito e ele podia circular por aí sem muito perigo"3.
No acampamento de luxo da província de Pinar, o conforto é perfeito, mas o treino, infernal, não permite apreciar essas delícias. Primeiro os homens são informados
de que vão ter o privilégio de ir para a Bolívia treinar outros camaradas e, se necessário, combater. "Explicaram-nos que [...] a luta estender-se-ia à Argentina,
ao Brasil, ao Peru, ao Paraguai... Não ao Chile, que constituiria uma retaguarda"4. Dispõem de um verdadeiro arsenal - espingardas, pistolas, metralhadoras, morteiros,
bazucas, de todos os calibres, de todas as marcas, de todas as nacionalidades. Desde as Kalachnikov soviéticas às Garand americanas. Há até pequenos canhões chineses.
Ao longo de seis semanas, o regime que o Che impõe a todos será implacável. Acordar às cinco da manhã; das 6 às 11, exercícios de tiro, com a ameaça de ser eliminado
se o nível de perfeição descer abaixo dos 90%; do meio-dia às 18 horas, marcha nos montes com um saco de mais de vinte quilos às costas; a partir das 19 horas duas
horas de "formação cultural", seguidas de uma hora de francês (para se desenrascarem nas escalas dos voos na Europa) e de duas horas de quíchua, língua predominante
na Bolívia... Nestas condições, não é fácil tirar partido da maravilhosa piscina! Não há sábados nem domingos, evidentemente. Pelo contrário, nos fins-de-semana
é preciso fazer boa figura diante das altas individualidades que chegam de Havana: Ramiro Valdés, chefe dos serviços, com Manuel Piñeiro, encarregado do sector Libertação,
Osvaldo Dorticós, presidente em exercício - coisa que por vezes se esquece -, e até Celia Sanchez, a egéria atenta aos pequenos pormenores, nunca muito longe de
Fidel.
Nada se sabe do encontro entre Castro e Guevara. Não deve ter sido tempestuoso. Em Praga, Ramiro Valdés deve ter convencido o Che a não continuar a ruminar a sua
raiva por um fracasso militar que não lhe era atribuído. Quanto aos motivos da revelação da carta de despedida, podemos contar com a habilidosa dialéctica do Caballo
para demonstrar que, em nome dos interesses superiores da Revolução, as circunstâncias o obrigaram a fazê-lo. O que

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se sabe, conta Benigno, é que Castro vem todas as semanas assistir ao treino, não deixando de sublinhar a importância de a atenção dos ianques ser desviada para
outro ponto do globo para que a pressão sobre Cuba diminua: "Explicava-nos que a nossa luta seria longa e dura, que poderia durar dez a quinze anos, que havia poucas
probabilidades de voltarmos vivos, [...] que seríamos heróis da revolução latino-americana..."5
Pois que seja Ñancahuazu*!

Nota * Ñancahuazu: termo guarani para "desfiladeiro escarpado", (Ia Grande Quebrada).

Enquanto Guevara zela pela boa forma física, política e técnica do seu comando de futuros heróis, uma estranha comédia, feita de mal-entendidos, de meias-verdades,
de não-ditos, desenrola-se, na Bolívia, entre o Partido Comunista e a nebulosa dos movimentos da esquerda revolucionária. Essas peripécias teriam apenas uma importância
relativa se não tivessem pesado sobre a escolha do terreno de implantação da escola de guerrilha - escolha decisiva para o sucesso ou fracasso da operação - e sobre
a possibilidade de receber, em caso de emergência, um indispensável balão de oxigénio.
A Bolívia é um país pouco conhecido. Esse Tibete da América Latina, fascinado pela política, vale mais do que a fama que lhe é atribuída pela dança constante de
governos, vítimas de golpes de Estado militares ou populares. Contudo, entre 1952 e 1964, sob os sucessivos mandatos presidenciais de Paz Estenssoro e de Siles Zuazo,
a Bolívia foi talvez o país mais estável e um dos mais progressistas da América Latina -, um dos três últimos a romper as suas relações com Cuba. Em Novembro de
1966, enquanto os guerrilheiros começam a instalar-se calmamente na planície do Ñancahuazu, as organizações camponesas boliViañas assinam um pacto militar-camponês
com as forças armadas, sob a bênção do novo presidente legalmente eleito, o general da Força Aérea René Barrientos, que afastara o seu antecessor mediante um golpe
de Estado. De chapéu texano, grande bebedor de chicha"* e grande demagogo, falando quíchua e dançando com as jovens camponesas"6, consegue conquistar facilmente,
entre a massa dos trabalhadores do campo, a base popular do seu regime.

No plano militar, o Che, quando consegue dominar a sua impaciência, não é muito mau táctico; mas, no plano político, é um estratega medíocre, muito longe da genialidade
de Fidel Castro. Vai direito ao que lhe interessa, sem perder tempo em dialogar com as correntes comunistas, neocomunistas, dissidentes ou outras quaisquer. O mais
simples, explicaram-lhe, é passar pelo Partido Comunista da Bolívia (PCB), cujo secretário-geral, Mario Monje, veio várias vezes a Cuba, chegando até a receber aí
um treino militar. Embora alinhado por Moscovo, portanto empenhado, em princípio, numa coexistência

Nota: * Chicha: bebida local à base de milho fermentado.

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pacífica inimiga das acções radicais, Monje garante, displicentemente, que não é hostil à luta armada e que o PCB está disposto a dar-lhe o seu apoio sobretudo se,
como lhe dão a entender, a luta se desenrolar fora da Bolívia, no Peru, por exemplo, ou no Brasil, ou na Argentina. É quanto basta ao Che para aceitar esta mão estendida
com pouco entusiasmo pelo PCB.
Por outro lado, certos membros das juventudes comunistas boliViañas são autorizados a ir a Cuba adquirir um complemento de formação política. (Na realidade, receberão
uma verdadeira formação de guerrilha no famoso centro de Punto Cero.) Assim treinados, homens como os irmãos Guido ("Inti") e Roberto ("Coco") Peredo, Jorge Vásquez
Viaña, Rodolfo Saldaña, etc., em breve irão formar o núcleo duro do contingente boliviano da equipa do Che no terreno e constituir um embrião de apoio urbano. Havana
não deixa também de registar o facto de ter havido, em 1964, uma cisão no Comité Central do PCB, incitando a maior parte das suas células operárias a criar um novo
Partido Comunista que se proclamou pró-chinês, e que é dirigido por Oscar Zamora. Deste partido cortado ao meio destacar-se-á ainda um grupúsculo, partidário da
acção directa, o do dirigente Moisés Guevara (simples homonímia), ao qual os guerrilheiros terão de recorrer quando os militantes do PCB falharem. Os serviços de
Barbarroja também não esquecem a existência do POR (Partido Operário Revolucionário), trotskista, nem do PRIN (Partido Revolucionário da Esquerda Nacionalista),
cujo dirigente, Juan Lechín, está também à frente da poderosa Central Operária BoliViaña (COB), bastião dos trabalhadores das minas. Foi este homem que Guevara classificou,
em 1953, de "femeeiro".
Desde então, passaram-se quase quinze anos. O andarilho de julgamento apressado e sumário transformou-se num conhecido guerrilheiro, impaciente por fazer estalar
uma luta de libertação à escala do continente. O Che não perde tempo com querelas que lhe parecem vãs. Para ele, o essencial é dispor de bons combatentes, corajosos,
leais, aguerridos. Confia na acção, convencido de que a necessidade de enfrentar dificuldades comuns limará as arestas ideológicas.
Nada mais esclarecedor do que uma cronologia concisa para seguir as contradanças, as ambiguidades e as armadilhas em que o Che se vai alegremente meter no fim desse
ano de 1966. Desse modo é possível compreender por que foi escolhido o pior local para a operação boliViaña.
Em Março, quando estava em Praga, o Che enviara à Bolívia o capitão Martínez Tamayo (Papi), funcionário do Ministério do Interior, que conhecia o país. Encarregou-o
de restabelecer contactos, por um lado com peruanos, trânsfugas de uma outra guerrilha abortada no Peru, mas sempre prontos a retomar a luta, e, por outro lado,
com os militantes comunistas bolivianos que passaram por Havana. O PCB fica encarregado de mobilizar vinte militantes para apoiar uma operação que ainda ninguém
esclareceu ir desenrolar-se em território boliviano. Missão: encontrar o sítio mais apropriado para servir de campo de treino aos quadros das futuras revoluções
latino-americanas. Sem regatear, Papi manda adquirir, através de um proprietário fictício, de confiança,

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uma bela herdade na região dos Yungas, na encosta oriental da cordilheira dos Andes, no vale quente do Alto Beni. Chega-se entretanto à conclusão de que fica, infelizmente,
demasiado perto de um campo militar, e será abandonada.
O emissário do Che fez também um contacto discreto com "Tânia", "toupeira" ali colocada desde Novembro de 1964. Com o seu charme, "Laura Gutiérrez" - foi esse o
nome que ela adoptou na Bolívia - conseguiu introduzir-se no primeiro círculo do palácio presidencial, a pretexto de investigações arqueológicas e culturais; graças
a esse estratagema poderá fornecer, no momento oportuno, a um certo "Adolfo Mena", uma carta de recomendação da Direcção de Informação da Presidência da República.
Formada em Havana por Ulises Estrada, o simpático mulato do Ministério do Interior que lhe serviu de instrutor (e de amante), recebe de um novo agente, (enviado
por Piñeiro) ordem para ir completar os seus conhecimentos e renovar os seus documentos falsos no México e em Praga, em Abril-Maio de 1966. Passará, portanto, alguns
dias na capital checoslovaca quando Guevara ainda lá está. Ter-se-ão encontrado? É pouco provável, tendo em conta o extremo isolamento imposto a cada um. Mas isso
pode dar que pensar àqueles que imaginam um misterioso romance entre a hábil espia argentino-alemã e o belo revolucionário argentino-cubano que não pára de desafiar
os bufos da CIA...
A 10 de Julho, os dois elementos da guarda pessoal de Guevara, o tenente Carlos Coello (Tuma) e o capitão Harry Villegas (Pombo), saem, por seu turno, de Praga,
para se reunirem, em La Paz, a Martínez Tamayo. Recebem ordem de não voltarem a envolver Tânia nesta operação e de escolherem outra base mais isolada. Porque não
nessa mesma zona do Alto Beni, que não parece um mau local? Tendo entretanto regressado a Cuba, o Che interrompe, em finais de Agosto, o treino do capitão Fernández
Montes de Oca (Pacho) para o enviar também à Bolívia, a fim de com os três batedores, fazer o ponto da situação sobre o número de recrutamentos locais e sobre o
local onde estabelecer a base.
Chegando a 3 de Setembro, Pacho apercebe-se que os jovens comunistas bolivianos optaram por uma região diferente, a sudeste, na zona de Camiri, a meio-caminho entre
Santa Cruz, capital da província (duzentos e vinte e cinco quilómetros a norte), e a fronteira argentina (duzentos quilómetros mais abaixo). Acontece que, em 1956,
Jorge Kolle, que entretanto passou a ser um dos secretários do PCB e seu "ideólogo", pensava que essa seria uma região favorável à implantação de uma guerrilha7.
Para o dirigente comunista, essa opção foi entretanto posta de parte, mas é possível que tenha falado aos irmãos Peredo desse projecto de juventude. Seja como for,
é Coco Peredo que 'aí compra, sempre graças aos fundos cubanos, uma quinta abandonada, de duzentos e vinte hectares, perto do rio Ñancahuazu, onde instala, à laia
de peones (camponeses), três militantes comunistas.
As duas divisões do barracão de taipa (adobe), de um conforto mais que precário, estão cobertas de chapa de zinco (calamina), por isso lhe chamam Casa de Calamina.
A "quinta" só dispõe, como equipamento, de um forno de

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pão rudimentar. O sítio é isolado, a vegetação baixa mas espessa, a população muito dispersa. Único inconveniente: a presença, a três quilómetros, de um vizinho,
Ciro Alganaraz, antigo presidente da Câmara de Camiri, bastante bisbilhoteiro, que pensa que os novos compradores vão montar um laboratório de cocaína. No seu diário,
no dia 10 de Setembro de 1966, Pombo apresenta, numa ortografia hesitante, alguns argumentos justificativos da escolha daquela zona: região tropical, despovoada,
no sopé dos Andes, rica em poços de petróleo, o que permitiria fazer uma operação de impacto internacional se se atacasse o oleoduto que exporta o combustível para
os Estados Unidos, via Chile8.
Enquanto Pacho regressa a Havana com o relatório dos três cubanos Martínez Tamayo, disciplinado, parte de novo para explorar outras zonas virtualmente propícias.
Quando leu as instruções do Che para que se orientasse de preferência para o Alto Beni e trabalhasse também com o activista Moisés Guevara, manifestou uma certa
irritação: "Tudo isto é uma parvoíce do "Mongo" [o Che]", desabafou ele diante de Pombo9. Depois acalmou-se. Numa mensagem de 26 de Setembro, o Che diz-lhe: "A quinta
actual é boa. Descobre outra, mas não mudes as armas até nova ordem"10-
Nesse mês de Setembro de 1966, o francês Régis Debray é encarregado de uma missão quase idêntica. Depois da Tricontinental, Debray não saiu de Cuba, preferindo o
sol castrista das Caraíbas ao seu liceu de Nancy, no cinzentismo da França de Pompidou. Pelo seu brio intelectual e a sua devoção à causa revolucionária latino-americana,
tornara-se um interlocutor privilegiado de Fidel Castro. Este último expõe-lhe os princípios essenciais de um breve ensaio que, redigido por Debray e publicado em
Janeiro de 1967, com a sua assinatura, se tornará o texto-chave da teoria do foco revolucionário guerrilheiro: Révolution dans la Révolution? Como o Che não sai
da sua clandestinidade, Fidel pede então ao jovem Régis que faça, na Bolívia, um "estudo geopolítico" do Alto Beni e do Chaparé.
Em Setembro não fora ainda tomada nenhuma decisão definitiva quanto à implantação do foco revolucionário, embora esse foco se destinasse a permanecer em vigília
durante pelo menos um ano, como calcula o Che. Assim se cruzam, sem se misturarem (são as regras da clandestinidade), as redes do Che, de Fidel, de Piñeiro... Na
Bolívia, o francês não é propriamente um desconhecido nos meios de esquerda, desde que, em 1964, com a sua companheira venezuelana Elizabeth Burgos, andou pelo país,
apresentando-se como colaborador do jornal maoista Révolution, editado em Paris pelo advogado Jacques Vergès, graças aos subsídios de Pequim. Desde que chegou, passou,
pois, a ser vigiado pelos moscovitas do PCB, que vêem com maus olhos os seus contactos com o dissidente pró-chinês Oscar Zamora. Todavia, Debray traz um estudo,
acompanhado de mapas, listas de quartéis, de militantes e simpatizantes, tudo isso aldeia por aldeia. Alinha os argumentos sociais, económicos, políticos e militares
que justificariam uma implantação quer no Alto Beni quer na zona semitropical do Chaparé, a norte da cidade de Cochabamba. Antes de partir, o Che mal terá tempo
de lhe lançar uma olhadela.

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Debray pensa ter sido para enganar os dirigentes do PCB, que "descobriram as nossas descobertas", que "um homem do Che no terreno, sem me prevenir, optou por uma
terceira [zona]. Escolha infeliz e, sem dúvida, fatal"11. Mas o Che não está com mais hesitações. Uma vez que a segunda quinta já está comprada, pois seja Ñancahuazu!
No fim de Setembro, perante toda esta agitação, Mario Monje, primeiro secretário do PCB, começa a manifestar alguma impaciência. Tem a sensação de estar a ser enganado
e faz questão de sublinhar que, se está disposto a colaborar com os camaradas cubanos, não irá permitir que eles organizem, "à sua maneira", uma guerrilha activa
em território boliviano. O seu partido está inclinado para um levantamento popular, na tradição das insurreições mineiras, mas mais tarde, "quando estiverem reunidas
as condições", eterno argumento. Alertado, Guevara pede aos seus homens que evitem a ruptura com Monje. Em Outubro, para apagar qualquer mal-entendido, Martínez
Tamayo vai a Cuba explicar pessoalmente ao Che a complexidade da situação e exprimir as suas reservas quanto à escolha de Ñancahuazu. É recebido por um Guevara ansioso
por se encontrar "em situação" e que não quer ouvir nada que possa detê-lo. Não percamos mais tempo! Ñancahuazu parece-lhe um local excelente para um treino prolongado
- o Alto Beni ficará de reserva para uma eventual segunda frente. No fundo, se pensou começar primeiro pelo Peru, não lhe desagrada agora que a fronteira argentina
não esteja muito longe. O futuro mostrará a que ponto este raciocínio é abstracto.

"Com Fidel, nem casamento nem divórcio"

Nas colinas de Pinar del Rio, em Cuba, o treino acabou a 15 de Outubro. A forma física é magnífica e o moral das tropas excelente. Cada um está ansioso por se lançar
numa nova aventura heróica que será evocada mais tarde pelos netos, na escola, no capítulo "revolução". Por muito que Guevara tenha alertado os seus homens, anunciando-lhes
que tudo o que passaram de pior na Sierra Maestra ou na marcha sobre Havana, em 1958, não passa de uma "passeata" em comparação com o que os espera, ninguém pensa
que a realidade possa ser tão terrível. Debray confirmará que, de facto, comparada com a geografia de Ñancahuazu, "a Sierra Maestra parece um jardim botânico"12.
Antes de partir, todos receberam passaportes falsos e os documentos relativos às biografias imaginárias que os "serviços" forjaram para cada um e que foi preciso
aprender de cor. O capitão Dariel Alarcón descobre, assim, que é um comerciante equatoriano chamado "Benigno Sobóron". A partir de agora, para todos, será Benigno.
Ele, que ainda não terminou a sua escolaridade primária, que ainda tem dificuldade em ler e escrever, conta como foi ajudado pelo comandante Machín (Alejandro),
outro "equatoriano", para aprender tudo o que era necessário saber sobre o seu país natal: bandeira, hino nacional, descrição do bairro de Guayaquil, onde tem uma
loja com um

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sócio: "Tive de estudar a história do Equador, que nem sequer sabia situar no mapa..."13.
Fidel Castro tem certamente alguma inveja daqueles tipos que vão, de algum modo, continuar a epopeia da Sierra Maestra, demasiado curta para seu gosto. Às vezes
vem participar nos exercícios, mais como um árbitro num estádio. Quando não cronometra a velocidade das marchas (oferecendo como prémio, o seu relógio ao melhor
elemento), é ele próprio, com Ramiro Valdés, que faz de Interpol, fazendo perguntas insidiosas sobre as biografias imaginárias e controlando os documentos, de sobrolho
franzido. Uma fotografia revela-nos Guevara prestando-se ao cerimonial, de fato cinzento, chapéu de feltro e óculos de lentes grossas, contrafeito diante de um Castro
enorme, folheando o passaporte sem largar o charuto. Um pouco de teatro não desagrada de todo a estes revolucionários dos quatro costados.
Poucos dias antes de terminar esta reciclagem acelerada na guerrilha, chega um verdadeiro incondicional, fiel desde a primeira hora: Orlando Borrego, actualmente
ministro do Açúcar. No dia em que ouviu Fidel ler a carta de despedida do Che decidiu editar, com o orçamento do seu novo Ministério, tudo o que o comandante escreveu
ou declarou desde o seu alistamento ao lado dos cubanos, incluindo os relatórios estenografados das discussões travadas no Ministério da Indústria. E então, uma
noite, vem trazer a Guevara os primeiros tomos da edição fora de circulação, em sete volumes cartonados, com uma tiragem de algumas centenas de exemplares: El Che
en la Revolución Cubana. Borrego não diz se o comandante, por muito literato que fosse, viu nisso um sinal de enterro político ou uma homenagem um tanto incómoda.
Recorda-se que Guevara ficou espantado pela abundância da sua produção: "Coño, escreve-se tanta coisa... diz-se tanta coisa... Poderia ter interesse para a América
Latina. É uma miscelânia..."14.
Uma das últimas visitas recebidas pelo Che provoca uma discussão com Ramiro Valdés. Este, pensando fazer bem, traz-lhe inopinadamente, uma manhã, a sua mulher Aleida
March. Grande fúria do marido, que se indigna por lhe concederem um tratamento de favor quando ele acaba de recusar aos seus homens autorização para se despedirem
da família. "O Che fez uma cena dos diabos e dirigiu mil e uma críticas contra o Ministério do Interior. Não deixou Aleida sair do carro, nem sequer lhe deu os bons-dias"15,
conta Benigno. Chegados a este ponto, Castro decide intervir. Como pensámos que era possível conceder uns dias de descanso à tropa, antes de partir, achámos que
tu também tinhas direito de ver a tua mulher, explica ele. O incidente tem por consequência uma licença excepcional de cinco dias para todos.
Antes de voltar a desaparecer, Guevara passa as suas últimas horas cubanas nos arredores de Havana, num casarão, "o mesmo onde vive agora Raul Castro", refere Benigno
em 199616. É aí que se dá o encontro com os filhos, pelo menos com os últimos quatro, nascidos em Cuba, porque a mais velha, Hildita, nascida no México, já tem quase
onze anos, idade suficiente para compreender e poder falar, o que seria demasiado arriscado. Aleidita,

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Camilo, Célia e Ernesto têm entre um e seis anos. Não voltou a vê-los desde que foi para o Congo, há ano e meio. Mais uma vez, tentaram torná-lo irreconhecível.
Em torno da sua calvície, feita a máquina zero, os cabelos tornam-se grisalhos; tem óculos de míope e prótese bucal. Apresentam-no como o sr. Ramón, um amigo espanhol
do papá. Mas a pequena Aleida tem uma reacção espontânea que desencadeia um sinal de alerta: "Tens ar de argentino", diz-lhe ela. Mas quando lhe perguntam porquê,
não sabe responder. Quando o mesmo sr. Ramón se senta à cabeceira, para jantar, ela intervém de novo: "É o lugar do papá". E quando depois ele a senta ao colo, a
beija e lhe oferece bombons, ela corre para as saias da mãe e segreda: "Mamã, acho que aquele senhor está apaixonado por mim"17.
O episódio, edificante, vem dar um toque humano à mitologia do "homem de mármore". Aliás, com o passar dos anos, a lenda do "guerrilheiro heróico" vai-se enriquecendo
de mil e uma fantasias dificilmente verificáveis. Assim, consta que deixou à mulher, registados por si próprio, os Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada,
de Neruda, os versos que, quando era adolescente, recitava à prima, a Negrita. Mas, na iconografia do imaginário colectivo, a mais bela imagem, que, evidentemente,
carece de testemunhos, é a dos dois homens, Fidel e o Che, que teriam ficado sentados, lado a lado, em silêncio, durante uma hora, antes de se separarem. Comovente
mas difícil de acreditar, sobretudo tratando-se de Castro, falador compulsivo. Mais provável parece ser o comentário do Che, que Carlos Franqui garante ter ouvido
da boca dele: "Con Fidel, ni matrimonio ni divorcio"18.
A 23 de Outubro de 1966, Ernesto Guevara sai de Havana tão discretamente como lá entrara, três meses antes. Destino oficial, inevitável: Moscovo, Praga. Destino
real: a quinta de Ñancahuazu, nos confins da Bolívia. Barbeado e engravatado, com o seu fato cinzento anónimo, viaja como funcionário cubano do INRA, titular de
um passaporte diplomático. Em Praga, mudança de identidade, mas trajecto semelhante ao de Julho, com o mesmo passaporte uruguaio, em nome de Ramón Benitez, para
ir de comboio até Viena. Aí, Benitez passa a ser Adolfo Mena, comerciante uruguaio. A multiplicação das escalas e dos nomes falsos favorece a confusão das pistas.
Em Paris, onde ficou alguns dias, compra um par de borzeguins e um gorro com orelheiras verde-escuro, que irá substituir a famosa boina. No aeroporto de Orly, antes
de embarcar para São Paulo, comprou também um cachimbo, aconselhando os outros a fazerem o mesmo: poupa-se tabaco. Esse objecto tem uma história, que será constantemente
evocada na floresta boliViaña. O sr. Mena já enchera o cachimbo quando, ao acendê-lo, pergunta o preço. Ao ser informado que custa 22 dólares, pousa-o logo, horrorizado,
querendo devolvê-lo ao comerciante: "É muito caro! Por esse preço compra-se uma tonelada de açúcar de exportação". Envergonhado com a sovinice do seu "compatriota",
Pacho (o capitão Alberto Fernández, também ele com passaporte uruguaio, em nome de "Borges") paga o cachimbo com o seu dinheiro. O que lhe valerá, como agradecimento,
o epíteto de guataca

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(lambe-botas), sarcasmo com que o Che, puxando baforadas, perseguira o amigo, lembrando-lhe que dilapidou o dinheiro do povo cubano19.
Adolfo Mena e Raul Borges entram na Bolívia pela estrada que passa pelo pequeno posto fronteiriço brasileiro de Corumbá, em pleno Mato Grosso; o que lhes permite
chegar ao aeroporto de La Paz (3 de Novembro) num voo interno, já que a CIA, alertada há alguns meses, tem o mau gosto de se interessar pelos voos internacionais.
Para circular pelo país, o comerciante uruguaio dispõe, como capa, de dois documentos oficiais, obtidos graças aos bons ofícios do comunista boliviano Guido (Inti)
Peredo. Um deles acredita-o como enviado especial da Organização dos Estados Americanos, o que não deixa de ser irónico se nos lembrarmos que Cuba foi outrora excluída
dessa mesma OEA. O outro, com o timbre do Instituto de Colonização e Desenvolvimento das Comunidades Rurais, especifica que vai em missão de estudo. Num país onde
os sinetes oficiais gozam de grande prestígio, esse tipo de documento pode servir de viático. Guevara não terá necessidade de o usar. Tal como não terá ocasião de
ver se a capital boliViaña mudou desde a época distante - apenas treze anos, quase um século - em que, em busca da América e da americanidade, passeara por lá a
sua juventude de andarilho, barafustando contra "a revolução do DDT" de Paz Estenssoro.
Em La Paz, mal tem tempo de fazer o ponto da situação com os seus três colaboradores enviados como batedores -Martínez Tamayo (agora Ricardo), Villegas (Pombo) e
Coello (Tuma). A Tânia (Tamara Bunke), avisa-a que deve permanecer na cidade, mas que irá ser integrada na acção, abolindo dessa forma a compartimentação até aí
imposta. Trinta e seis horas depois de ter chegado, põe-se a caminho com Pacho, Pombo e Tuna. Ricardo e Tânia ficam em La Paz, em contacto com Ivan, um agente dos
serviços secretos cubanos que também dá pelo nome de Renan Montero. Dois jipes avançam para a província de Santa Cruz; aos cubanos veio juntar-se um boliviano, formado
em Cuba, Jorge Vásquez Viaña ("El Loro"). Há várias fotografias de Guevara durante esta viagem de dois dias. Tem o ar de um burguês de óculos, envergando uma canadiana.
Sorri.
Para não despertar as suspeitas do quinteiro vizinho, os cinco homens preferem chegar apinhados num único veículo, guiado pelo boliviano. Assim que se põem a caminho,
Pacho revela finalmente ao condutor que o homem que se encontra ao seu lado é nada menos que Che Guevara. A estupefacção do camarada é tal que larga o volante, lançando-se
ao pescoço do Che, para o abraçar. O jipe quase galga a ravina. "Coño, está certo que gostes de mim, mas olha que ainda nos matas antes de começarmos a combater"20,
diz-lhe Guevara, anotando depois no seu diário que tiveram de fazer a pé os últimos quilómetros, chegando à quinta depois da meia-noite.

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"Começa uma nova etapa"

Dia 7 de Novembro de 1966. "Começa hoje uma nova etapa"21.* Na sua grossa agenda vermelho-escura, na sua letra miúda e rápida, ainda bastante legível naquela data,
Guevara abre o seu diário de campanha na Bolívia com uma observação cuja banalidade é apenas aparente. Seja qual for o resultado, esta "nova etapa" significa que
acabou de ser virada uma página da sua vida.

Nota: * Todas as citações não referenciadas que se seguem são extraídas do Diário da Bolívia de Guevara, na edição francesa publicada pela editora La Découverte
(com algumas correcções de tradução).

Desde o embarque no Granma, em Novembro de 1956, dez intensos "anos cubanos" se passaram, eufóricos, inesquecíveis. Agora, não se trata tanto de apagar o gosto amargo
do fracasso congolês mas sim de dar vida ao velho sonho bolivariano de libertação continental.
Desta vez, o Che já não é Tatu, perdido em terras estranhas, cujos códigos e línguas desconhece; é o latino-americano Ramón, que intervém em pleno coração de pátria
grande, a pátria americana em sentido amplo. Fala o seu idioma, conhece os seus costumes. É aí que poderá formar os militantes guerrilheiros chamados a sublevar
o "subcontinente" contra o verdadeiro inimigo, o imperialismo dos Estados Unidos e os exércitos a seu soldo. Acabou-se, como ele jurara a si próprio, a "cópula de
ideias sem objectivos precisos"22. Agora, o seu objectivo é grandioso: desencadear a dinâmica revolucionária que fará dele o novo Fidel Castro dos Andes, velha ambição.
Sem o saber, responde ao imperativo de André Breton: "O poeta do futuro ultrapassará o modelo deprimente do divórcio irremediável entre a acção e o sonho". Ele será
esse poeta.
Ei-lo, pois, metendo mãos à obra, enquanto as gazetas ainda assinalam um pouco por toda a parte a presença desse furão da América Latina. Disseram que tinha morrido.
Qual novo Lázaro, ressurge em todo o lado. Em Paris, o L'Express retoma a notícia de um semanário italiano que o referencia no coração dos Andes peruanos23. No Chile,
teria entrado em contacto com o dirigente sindical Clotario Blest, cristão de tendência anarquista, simpatizante da IV Internacional24. O La Prensa, de Buenos Aires,
repete o noticiado pelo Globo do Rio de Janeiro: que entrou no Brasil disfarçado de padre colombiano25. Na Argentina, foi visto simultaneamente em Buenos Aires (com
o cabelo pintado de louro)26, em Córdova27, em Misiones e em Rosário, sua terra natal28. A sua presença foi também assinalada em Montevideu29... É uma bela história,
a do reencontro com a memória de uma juventude ardente, antes de se lançar nos caminhos do mundo. Dava, sem dúvida, um belo filme. Mas a realidade é outra, muito
mais prosaica: Guevara luta contra os insectos do Chaco boliviano.
O sítio onde se ergue, minúscula, a casa de telhado de zinco da Calamina não é nada agradável. Já não é a cordilheira dos Andes na sua imponência,

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ainda não é a planície seca e árida do Chaco que se estende a sul, em direcção a Argentina, para lá de Tartagal, onde Masetti desapareceu É uma zona geográfica intermédia
onde tudo parece hostil ao homem, uma paisagem de árvores pardas, uma floresta invadida por moitas que rasgam a pele e a roupa se não se usar um machete sólido.
O relevo é inclinado, constituído por uma série de cerros, montanhas e encostas escarpadas, por vezes a pique, de cumes pontiagudos, como o indica o nome de uma
povoação próxima: Monteagudo. Nas profundezas dos vales, por onde passa um riacho que se transforma em corrente caudalosa quando chove, a vegetação é tropical, pois
estamos próximo do trópico de capricórnio, mas a altitude - entre mil e dois mil metros - contrabalança o calor; pode até fazer bastante frio. A aldeia mais próxima,
Lagunillas, a cerca de 30 quilómetros, antigamente feira de gado, tem vindo a despovoar-se desde a guerra do Chaco e agora não é mais que uma praça poeirenta de
onde partem algumas ruas de terra batida. É preciso ir a Camiri (vinte mil habitantes), a sul e a duas horas de jipe, para se encontrar alguma animação, graças à
actividade petrolífera.
Logo que chega, Guevara regista no seu diário a lista dos bicharocos que o acolheram. Para além de "uma espécie de mosquitos muito incomodativos, embora não piquem",
figuram vários pequenos invertebrados do mesmo género, que, esses sim, picam ou depositam ovos debaixo da pele, o que provoca grandes comichões, quando não se agarram
mesmo vorazmente à epiderme, como carrapatos "Tirei do corpo seis carraças", pode ler-se a 9 de Novembro, e a 11 "A praga é infernal e obriga-nos a escondermo-nos
na rede, debaixo de um mosquiteiro (sou o único a ter um)". A 18: "Os mosquitos e as carraças começaram a provocar chagas nas picadelas infectadas". A mesma observação
por parte do tenente-médico Octavio de la Concepción (Moro), espantado com a "grande quantidade de insectos de todas as espécies, e às vezes de víboras; de noite
é preciso taparem-se e de dia o calor é insuportável [...]Compreendo agora o que nos dizia o nosso Líder Máximo: "Se conseguirem adaptar-se ao meio, então triunfarão""30.
Se se tratasse apenas de organizar uma simples base de treino para a guerrilha, o local, isolado, seria perfeito, ou quase "Aparentemente, a região é pouco frequentada.
Com uma disciplina adequada, podemos ficar aqui muito tempo", escreve o Che. De facto, a zona é quase desértica, na fronteira do território quíchua, de origem inca,
com o território guarani dos Chiriguanos, que resistiram aos incas. Ñancahuazu fica situada na fronteira de um território guarani que se estende por uma área bastante
vasta, compreendendo o Paraguai e a região de Misiones, na Argentina. Foi aí que Ernesto foi concebido e viveu os dois primeiros anos de vida, quando os pais, recém-casados,
se instalaram no yerbal de Caraguatay. Mas, para o "revolucionário profissional" em que Guevara se tornou, trata-se não tanto de um regresso às fontes mas sim de
uma aventura de natureza bem diferente.
Porém, com um pequeno pormenor por resolver (que Guevara só menciona uma vez, quando chega): "Temos de fazer com que o Partido se resolva

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a lutar" A ambiguidade fundamental do projecto do Che na Bolívia assenta, de facto, neste ponto preciso. Porque se "lutar" não significa apenas treinar-se e esperar
- seis meses, um ano? - o momento favorável mas, pelo contrário, passar à acção armada, associando a população ao combate, se possível, então o contrasenso é total,
e, realmente Ñancahuazu revelar-se-á o pior local possível para uma guerrilha de movimento e de desgaste.
A posição do Che parece não estar ainda decidida. Sinal revelador quando, apenas uma semana depois de chegarem a Calamina, Pombo propõe que se faça "uma prova" ("probarnos
a nosotros mismos") atacando um quartel do exército boliviano, Guevara não recusou categoricamente "Ele [o Che] disse que não, a não ser que se tratasse de um pequeno
posto militar -, pois não podíamos começar por um fracasso"31. Portanto, já não se distingue muito bem onde termina o trabalho de preparação para a guerrilha de
um contingente de voluntários que acorreria dos países vizinhos e onde começa a "guerra de guerrilha" contra objectivos "imperialistas" ou que servem interesses
da potência imperialista.
Os meses de Novembro e de Dezembro de 1966 passam-se a organizar o acampamento e a preparar a chegada dos efectivos esperados. Em La Paz, o capitão Martínez Tamayo
(Ricardo) encarrega-se de acolher os recém-chegados e de os encaminhar para Ñancahuazu, com o apoio de um camarada comunista boliviano, Rodolfo Saldaña, que também
passara por Cuba. É um dos quatro militantes do PCB "oferecidos" por Mário Monje para fazer a ligação com os cubanos.
Guevara não gosta muito de dormir dentro de quatro paredes, velho reflexo adquirido na Sierra Maestra; não se vê chegar "o inimigo" Excepto quando chove muito, o
que o obriga, como à chegada, a refugiar-se na Calamina, prefere a rede ao ar livre. Este homem, tão culto, é um "selvagem". Com o seu pequeno grupo, começa quase
de imediato a instalar-se no monte, a uma centena de metros, numa colina em frente da quinta. A precaução é necessária, porque Pacho e Pombo, regressando de uma
marcha exploratória, foram vistos pelo motorista de Algañaraz, o vizinho curioso. Convém que ninguém vá contar que há gente a passar pela Calamina, já suspeita de
ser uma fábrica de cocaína. Cavam-se fossas e túneis para servirem de depósito a "tudo o que possa ser comprometedor": passaportes, documentos e latas de conserva.
Pacho, o comandante Montes de Oca, companheiro de viagem do Che, tem "um ar um pouco inadaptado e triste". Ramón, pelo contrário, sente-se renascer: "O meu cabelo
voltou a crescer, o cabelo branco torna-se louro e começa a desaparecer. A barba também voltou a crescer. Daqui a dois meses, voltarei a ser eu".
No próprio dia da chegada, faz aos companheiros uma pequena exposição, descrita por Pombo: "No continente, a Bolívia é o país que oferece melhores condições para
uma guerra de guerrilha [...]. Mas não podemos dar-nos ao luxo de sonhar com uma revolução só na Bolívia, é preciso que haja

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também uma revolução num país fronteiriço, ou até mesmo em toda América Latina". E Pombo acrescenta também esta observação do comandante, na mesma linha do que o
Che já confessara, em Praga, a Ulisses Estrada: "Disse que tinha vindo para cá para nunca mais sair e que a única maneira de o tirarem dali seria matá-lo ou ele
abrir caminho a tiro até à fronteira [argentina]"32. Tropismos...
Pouco a pouco, chegam os combatentes; veteranos cubanos e também alguns comunistas bolivianos: Jorge Vásquez Viaña (el Loro), que vai fazer o papel do novo dono
da quinta, Orlando Jiménez ("Camba*"), Aniceto Reynaga, os irmãos Coco e Inti Peredo, etc. Falando com eles, o Che tem a confirmação daquilo que pressentira: se,
individualmente, todos parecem decididos a combater numa guerrilha armada, não é essa a "linha" do PCB, que recusa dar directivas nesse sentido aos seus militantes.
Por honestidade, e também para evitar ter homens hesitantes, por isso pouco fiáveis, a 11 de Dezembro, quando o grupo de bolivianos está um pouco mais reforçado,
o Che precisa: "Chamei a atenção dos bolivianos para a responsabilidade que assumiam violando a disciplina do seu partido para adoptarem uma outra linha."

Nota: * Cambas: nome genérico dos habitantes da região tropical de Santa Cruz, a sul do país. Os Collas, pelo contrário, são habitantes do planalto, mais reservados.

A questão tem a sua importância, pois (a 27 de Novembro) o dirigente revolucionário peruano Juan Pablo Chang ("el Chino") informara-o que estava disposto a mandar
vir do Peru vinte combatentes para se juntarem à guerrilha. O que Guevara considera prematuro, "pois isso vai colocar a luta no plano multinacional antes de se consultar
"Estanislao" [pseudónimo do número um do PCB, Mario Monje]". E acrescenta que os bolivianos, consultados, pensam, como ele, que o melhor é "começar as operações"
antes de receber o reforço peruano. O que significa, por um lado, que estão previstas "operações" que ultrapassam o simples quadro do "estágio de formação" e, por
outro lado, que nessa data o Che ainda não perdeu a esperança de associar à sua luta o PCB, parceiro forçado. Para já, Mario Monje passeia-se entre Sofia, Moscovo
e Havana...
Entretanto, o acampamento foi disposto em três zonas, de acesso difícil, para aguentar "o tempo que considerarmos necessário"; a região foi um pouco explorada, confirmando
o seu carácter selvagem e isolado; el Chino, Chang, fez uma ida-e-volta entre a Bolívia e o Peru para declarar a sua adesão entusiástica ao projecto e... mataram-se
três víboras. Com a sua equipa de cubanos finalmente completa, o Che distribuiu as tarefas e organizou o grupo como uma "coluna" da Sierra Maestra, em vanguarda,
centro e retaguarda. Se Fidel só levou dois anos a "libertar" Cuba, pelo seu lado ele calcula que será necessário mais tempo para transformar a Bolívia e os países
vizinhos em "território livre": "Ramón explicou que seriam necessários dez anos ou mais até terminar a fase insurreccional"33, escreve Pombo a 20 de Dezembro.
Na noite de Natal, um pequeno banquete com leitão assado e álcool reúne todos num ambiente de festa - "alguns estavam um bocado tocados". Nas

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Apresentação de um mapa intitulado
A GUERRILHA BOLIVIANA: A ROTA DO CHE (1967)

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suas memórias, Benigno situa uma semana depois um episódio, bastante insólito para ser mencionado, que Pombo regista a quente no dia 24 de Dezembro. Na rádio passa
um tango. "O Che agarrou numa acha de lenha com cerca de um metro de altura e [...], para nossa alegria, pôs-se a dançar o tango com aquele pedaço de madeira". Para
os cubanos, habituados ao comportamento austero do comandante, a surpresa é grande: "Nunca o tínhamos visto fazer uma coisa daquelas"34. Mas não é tudo: "Tirou um
papel do bolso e começou a ler [um poema], A última estrofe acabava assim: "Abaixo a gonorreia, viva a penicilina" - a alusão dizia respeito a dois camaradas que
ao passar pelo Chile, se tinham deitado com prostitutas e tinham apanhado a dita doença venérea. Julgávamos que ele não sabia. Não soubemos o que dizer, e toda a
gente foi dormir"35. Dias tranquilos em Ñancahuazu. O comandante está bem disposto. Não há tempestade à vista.

O PC Boliviano diz não

Muita coisa se disse sobre a posição do Partido Comunista Boliviano e sobre o seu primeiro secretário Mario Monje, a propósito da guerrilha do Che, chegando mesmo
a falar-se de traição, de "punhalada nas costas". Julgamento apressado.
A pedra de toque é a questão da luta armada. É um facto que os cubanos pretendem arrastar para o campo da guerrilha um PCB dividido, que faz finca-pé, deixando todavia
entender que, em princípio, não é contra, mas que, todavia, contudo... Havana finge acreditar que isso significa um apoio. Depois da Conferência Tricontinental de
Janeiro de 1966, Cuba ofereceu a Monje um treino militar, que ele fez contrariado, segundo o testemunho do capitão Alarcón. O futuro Benigno vai procurá-lo ao hotel
Habana Libre para lhe ensinar os segredos do tiro com metralhadora, em Punto Cero. "A verdade é que não tínhamos nenhuma confiança em Mario Monje; esse alto dirigente
andava a ser espiado. Tínhamo-lo instalado no décimo-sétimo andar do hotel, totalmente controlado pela segurança do Estado e tecnicamente recheado de câmaras e microfones.
[...] Ele comportava-se como um robot. Os dirigentes não paravam de o visitar: era o Ariel*, ou então o Piñeiro ou até o Fidel, e assim por diante. Mantinham uma
pressão constante sobre ele. [...] Parece que, no fundo, Monje não concordava com nada"36, dirá Benigno.

Nota: * "Ariel", nome de guerra de Juan Carretero, que visitou o Che em Praga e que, responsável pela Bolívia no sector Libertação do Ministério do Interior em Havana,
será o contacto de "Ramón".

No complicado jogo entre Cuba e o PCB, o que fica claro é que cada qual se esforça por não ser claro. O diálogo adquire por vezes um tom subliminar. A semântica
já anquilosada do discurso revolucionário permite, aliás, deixar subsistir uma zona de sombra na qual cada um pode acusar o outro de se refugiar, e vice-versa. A
experiência da Sierra Maestra transformou, de facto, a

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aventura bem sucedida em Cuba em modelo todo-o-terreno, válido em todo o lado; Guevara estabeleceu o seu breviário no seu livro A Guerra de Guerrilha. Em 1960, com
a fanfarronice de quem acaba de ganhar uma guerra, trava com o seu compatriota argentino Lisandro Viale um diálogo significativo: "Na Argentina instalo-me com vinte
e cinco homens na serra de San Luis, e nem o exército argentino inteiro consegue tirar-me de lá.
- Atenção, em San Luis não há uma população camponesa tão numerosa como na Sierra Maestra.
- As condições favoráveis, não podemos estar à espera que estejam todas reunidas. Temos de as criar"37.
Na sua maioria, os partidos comunistas latino-americanos opõem-se ao método da guerrilha, que consideram um aventureirismo pequeno-burguês, divorciado das massas.
Defendem, pelo contrário, o trabalho de Penélope de "consciencialização" das massas, até que, um dia, a longa paciência de gerações de militantes desemboque finalmente
na revolução proletária constantemente prometida. Essa posição encaixa perfeitamente na política insistentemente preconizada pela URSS.
Ora o PCB tentou manter uma posição acrobática consistindo em obedecer à orientação moscovita proclamando simultaneamente a sua solidariedade com aqueles que recorrem
às armas para fazer ouvir as suas reivindicações. É que na Bolívia um artefacto singular tem marcado a história do país há um século: o pau de dinamite. Os mineiros
das jazidas de estanho, de prata ou de ouro utilizaram-na habitualmente (e frequentemente) para se defenderem dos "barões" da mina e dos consórcios, desencadeando
por vezes autênticas insurreições. A história do movimento operário do Altiplano boliviano está cheia do ruído dos tiros e rebentamento de explosivos. Nascido apenas
em 1950, o PCB não pode ignorá-lo. Assim, sem aderir à linha da luta armada, consentiu em destacar alguns dos seus militantes para dar uma ajuda a "loucuras" desse
tipo, desde que isso se passe noutro sítio. Nessa medida, aceitou servir de base de apoio à guerrilha peruana (1962-1963) e à de Masetti na Argentina (1963-1964).
Colaboração tímida, que permite, sem perigo, dar uma imagem de partido combativo e evitar, tanto quanto possível, que esse tipo de iniciativa surja no seu próprio
território, sem ele saber.
É, portanto, o que acontece com a "guerrilha do Che". Guevara estava ainda na Checoslováquia e Castro pedia já a Monje o apoio do PCB para facilitar o "trânsito"
pela Bolívia de uma destacada figura revolucionária, a caminho do seu país natal. O dirigente boliviano promete o seu apoio. Mas os preparativos feitos por Martínez
Tamayo, enviado como explorador, a compra da quinta do Alto Beni, a viagem de Debray em Setembro e os contactos com Zamora, trânsfuga pró-chinês amaldiçoado, despertaram
as desconfianças do primeiro secretário. Pressente uma manobra e protesta junto do "emissário cubano contra esta ingerência estrangeira". Pelo menos, é essa a versão
que apresentará ao Comité Central do seu partido, em 1968, insistindo em cada pormenor, em cada ponto da cronologia, preocupado em se limpar desse crime de apostasia38.

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Quando desembarcou em La Paz, Guevara esperava encontrar aí Monje. Ora este preferiu partir na véspera (2 de Novembro de 1966) para um oportuno congresso comunista
na longínqua Bulgária. No regresso, o boliviano passa por Havana e propõe a Castro a realização de uma conferência dos partidos comunistas latino-americanos, o que
é uma forma de torpedear todo o apoio estrutural à guerrilha, tendo em conta a conhecida hostilidade dos comunistas ortodoxos. O Líder cubano vê o perigo e pede
a Monje que fale previamente com o comandante Guevara, que se encontra "perto da fronteira boliViaña"39. Marcado para Villazón (Bolívia), do outro lado da fronteira
argentina, o encontro falha... porque os camaradas encarregados de receber Monje não estão lá. Este último tem assim tempo para regressar a La Paz e consultar os
membros da direcção do seu partido antes de voltar a partir, um tanto renitentemente, para se encontrar com o Che em Ñancahuazu, para uma reunião de onde lhe parece
não poder vir nada de bom. Martínez Tamayo, Coco Peredo e Tânia estão encarregados de o levar até lá, missão que cumprem com uma amável firmeza.
É neste contexto que se efectua o breve encontro Guevara-Monje, a 31 de Dezembro: vinte e quatro horas na transição de 1966 para 1967, que marcam uma viragem na
história da guerrilha. "A recepção foi cordial, mas tensa", regista o Che no seu diário. Monje declara de imediato: 1) que veio disposto a demitir-se do seu cargo
de primeiro-secretário do partido para se juntar ao combate: 2) que reivindica a direcção política e militar enquanto a acção se efectuar em território boliviano:
3) finalmente, que está disposto a tentar convencer os outros partidos comunistas latino-americanos a darem o seu apoio à guerrilha.
Sem esconder o seu cepticismo, Guevara dá liberdade ao interlocutor de agir como entender em relação aos pontos 1 e 3. Em contrapartida, no que respeita à direcção
da guerrilha, é categórico: "O chefe militar era eu, e não aceitei nenhuma ambiguidade quanto a isso. A discussão terminou aí". No dia seguinte, o Che observa no
seu diário: "Tenho a impressão que ele se agarrou àquele ponto para provocar a ruptura".
Inti Peredo, em Mi campaña con el Che, fornece alguns pormenores complementares. Dirigindo-se ao pequeno grupo de militantes comunistas bolivianos que se juntaram
ao Che, Monje ordena-lhes que abandonem imediatamente a guerrilha e que partam com ele. "Quando o povo souber que esta guerrilha é conduzida por um estrangeiro,
virar-lhe-á as costas e retirar-lhe-á o seu apoio. Vocês podem morrer heroicamente, mas sem perspectivas de triunfo"40, diz-lhes ele. O discurso pode ser desprovido
de grandeza, mas não deve ser desprezado. Esse prurido nacional, para não dizer nacionalista, transporta-nos dez anos atrás, ao momento em que, no campo de treino
próximo do México, Castro confiara "a direcção do pessoal" ao jovem Guevara: "Entre os cubanos, alguns puseram em causa a direcção do Che, alegando que ele não era
cubano mas argentino"41. Fidel rebatera energicamente esse argumento.
Surge então a mesma condenação enérgica por parte dos voluntários bolivianos: nenhum aceita "desertar". Todos condenam o "sectarismo" do

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primeiro-secretário e insistem para que ele se junte à guerrilha. À noite, no jantar de fim de ano, nenhum dos bolivianos, indignados, se dispõe a emprestar a tigela
a Monje. Até que Benigno, que conta a história, se decide a comer da marmita, para ceder a sua malga ao dirigente boliviano, seu antigo "aluno" em Punto Cero. "Não
sei onde comem os porcos na tua terra, mas, na minha, comem no chão!"42, comenta Julio Méndez ("el Nato"), dirigindo.Se a Benigno.
Quanto a Guevara, resta saber se ele avalia bem o que significa essa ruptura com o PCB. Parece aceitar a coisa sem grande preocupação, quase com alívio: "A atitude
de Monje pode atrasar o desenvolvimento da guerrilha mas, por outro lado, pode facilitá-lo, libertando-me dos compromissos políticos", escreve ele na sua análise
geral do mês de Dezembro. Numa mensagem cifrada enviada a 1 de Janeiro de 1967 a "Leche" (nome de código de Fidel Castro), assinala: "Estanislao partiu bastante
triste". Anuncia também que vai retomar o contacto com Moisés Guevara, o dirigente mineiro dissidente, bem como com Rhea, o médico boliviano que lhes fornece medicamentos43.
É claro que, ao regressar a La Paz, Monje não se demite. Alega mesmo que foi enganado pelos cubanos, em geral, e pelo Che, em particular. Quando a jovem Loyola Guzmán
transmite essa posição ao camarada Ramón, a 26 de Janeiro, ele admite: "Sim, de certa forma enganámo-lo"44.
Não hesita em sublinhar que, por seu turno, Monje disse o que lhe veio à cabeça, afirmando que ia renunciar às suas funções, juntar-se à guerrilha, tentar neutralizar
os partidos irmãos, etc. Quanto ao sigilo sobre a identidade do chefe da guerrilha, se Monje não a divulgou - fá-lo-á mais tarde - foi sobretudo "porque é preciso
não esquecer o enorme prestígio que ele [o Che] tinha. Se soubessem que o comandante Guevara se encontrava no país, não seria uma dúzia mas muitos mais militantes
a juntar-se à guerrilha, tanto do Partido Comunista como de outros partidos"45.
Neste exercício um tanto lamentável em que cada um tenta enganar o outro, manipulá-lo, Guevara é demasiado directo, muito pouco manobrista para poder ganhar. É Inti
Peredo, membro do Comité Central do PCB, que parece ter a visão mais lúcida sobre a situação: "A vergonhosa deserção do Partido Comunista trouxe-nos graves problemas.
Na cidade, perdemos praticamente toda a organização. O trabalho de Coco [Peredo], Loyola [Guzmán], Rodolfo [Saldaña] e Tânia não era suficiente para responder a
todas as nossas necessidades crescentes. [...] Tínhamos de transportar para o monte uma grande quantidade de provisões, de armas e homens"46. Em 1968, um jornalista
da Inter Press Service interroga Pombo, enfim chegado ao Chile:
- Não tinham o apoio do PCB?
- Tínhamos o seu apoio moral.
- Para que é que isso vos servia?
- Para nada47.
Uma vez que, depois da partida de Monje, se torna evidente que já não é possível contar com a estrutura do PCB nem com um recrutamento entre as

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suas fileiras, o Che compreende ser urgente apelar para novos recrutamentos tanto na Bolívia como no exterior. Pede então a Tânia que vá à Argentina convocar alguns
guerrilheiros potenciais: Ciro Bustos, um pintor que estivera ligado à guerrilha de Masetti, Juan Gelman, poeta comunista, Eduardo Jozami advogado, também ele antigo
comunista, Luis Stamponi, militante socialista (que, aliás, já não se encontrava na Argentina e que ignorará até ao fim que Guevara o procurara).
A 2 de Janeiro, todos escutam, comovidos, o discurso de Fidel, celebrando em Havana um novo aniversário da vitória dos rebeldes sobre Batista e a mensagem "especial
e calorosa" que dirige ao comandante Che Guevara e aos seus companheiros "em qualquer parte do mundo onde se encontrem". Apesar de os imperialistas já o terem morto
várias vezes, declara ele, tal como a Fénix, ele ressurgirá das suas cinzas48.

"Vai ser duro, mas vai ser bonito"

"Achei-o mais magro do que quando saiu de Havana...", comenta Tânia ao regressar a La Paz, acompanhada do irmão de el Loro, a quem ela conta a conversa tensa entre
o Che e Monje. "Quando penso nos milhares de revolucionários latino-americanos que tudo dariam para combater a seu lado, e aqueles palermas a recusarem-se a ajudá-lo!"49.
Mas Guevara não parece dar-se bem conta da precaridade da situação, do seu isolamento actual. É certo que os cubanos não podiam resolver o impasse sobre o apoio
do PCB, por muito hipotético que fosse; mas perdeu-se muito tempo à espera de um acordo que não veio. Perdida a ilusão, parece ser já tarde para constituir, a partir
de um punhado de militantes na cidade, jovens e dedicados, mas poucos - menos de dez -, uma estrutura alternativa, capaz de servir de retaguarda a uma vanguarda
a partir de agora isolada de quase tudo -, e em breve de Cuba. Não será, da parte do Che, o sinal de uma prioridade exagerada atribuída à serra em relação à "planície"
(a cidade), de acordo com o esquema cubano de 1957-1958, transformado em axioma?
A julgar pelos seus apontamentos, o camarada Ramón não dá mostras de se sentir muito afectado por essa grande desvantagem. Nas semanas que se seguem à ruptura com
o PCB, mostra-se sobretudo preocupado com a organização do acampamento, com o estado de saúde física e moral dos seus homens. Fazem-se várias gôndolas* para resguardar
- em "caves", esconderijos e galerias subterrâneas - todo o material disponível: armas, mantimentos, medicamentos, documentos diversos. A chuva, que não pára de
cair, molhou os aparelhos de comunicação rádio, e Guevara não deixa de ironizar sobre a fraca competência do operador. Contudo, recebe uma mensagem de Ariel, o

Nota: * Gôndola: a palavra, que designa autocarro na linguagem popular boliViaña, é utilizada aqui para designar o transporte do material.

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oficial encarregado da Bolívia em Havana, comunicando-lhe que "Danton"* (Régis Debray) acaba de publicar um excelente trabalho que irá ter uma certa repercussão
- trata-se de Révolution dans la Révolution? "Vamos mandar-te um exemplar. [...] Penso que é melhor enviar-te Danton com bastantes informações que não posso passar
a escrito"50.

Nota: * "Porquê "Danton"? Engano de Castaneda na Life Magazine (Dezembro de 1967). Se escolheste o nome de Danton, não foi pela vida desse tribuno falhado, mas por
causa de A Morte de Danton, a peça teatral de Büchner", escreve Régis Debray no seu Journal d'un Petit-Bourgeois entre Deux Feux et Quatre Murs (Le Seuil, Paris,
1976, p. 78).

Em Ñancahuazu, convencido que se instala para uma guerra prolongada, Guevara monta um verdadeiro acampamento entrincheirado, como o que criara em El Hombrito, proclamado
"território livre" na Sierra Maestra: escola de quadros, evidentemente, mas também dotado de um forno de cozer pão, de uma pequena olaria, de uma mini-biblioteca,
de uma sala de aulas ao ar livre, etc. Dava para aguentar por uns tempos. Contudo, a disposição de ânimo seria melhor se não fosse a praga dos insectos. Pacho (o
comandante Fernández Montes de Oca) escreve no seu diário que eles são verdadeiramente insuportáveis. Aliás, o dia 11 é proclamado "dia do boro"! Livram meia dúzia
de vítimas das larvas depositadas pelo boro, uma pequena mosca que pica, entre a carne e a pele. O paludismo também não anda longe. Miguel (o capitão Hernández)
apresenta os sintomas característicos - febre alta -, bem como Alejandro (o comandante Machín) e alguns outros. O próprio Che, que o contraiu no Congo, confessa-se
"abatido durante todo o dia" (19 de Janeiro).
É nesse dia que a polícia de Camiri, alertada pelo vizinho bisbilhoteiro, Algañaraz, vem fazer uma "visita" à Calamina, à procura de cocaína. Não encontra nada,
mas el Loro, que faz as vezes de proprietário, fica sem o revólver - confiscado. Numa mensagem rádio de 23 de Janeiro, enviada a Castro, Ramón comunica o incidente,
sublinhando: "Podem aparecer a qualquer momento, o que nos isolará e privará de todos os pontos de contacto. Mas não se preocupem"51. Admirável optimismo, confirmado
ainda pelas observações finais: "O moral é bom; [...] [Se nos detectarem], os homens anseiam por ver esse dia chegar. Vai ser duro, mas vai ser bonito". Antes, na
mesma mensagem, precisará: "Estasnilao é, a partir de agora, um inimigo; conseguiu desviar os três últimos [bolivianos] enviados [de Cuba, após o seu "estágio"]
e tentou infiltrar um homem deles. [...] Só temos onze bolivianos incorporados". Dois dias depois, mensagem de Manila**. Fidel anuncia que vai receber o segundo
secretário do PCB, Jorge Kolle, bem como Simón Reys, destacado sindicalista comunista boliviano, e que "será duro com eles"52.

Nota: * Manila: Havana. Na realidade, trata-se de um centro de comunicação muito potente (50.000 watts) instalado num Bunker, perto da capital.

No acampamento, o Che procura fazer com que o entusiasmo guerrilheiro não esmoreça. Surgiram alguns atritos entre os cubanos. O comandante tem um dos seus tão temidos
ataques de fúria, exigindo mais disciplina, para

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que se crie "um núcleo exemplar que deverá ser como o aço; e aproveitei para explicar a importância do estudo, indispensável para o futuro". Guevara está tão convencido
de que a vitória é certa que pensa já em evitar que aconteça o que sucedeu em Cuba: o recurso a quadros de nível cultural baixo. Por isso nos confins do Chaco, esses
revolucionários armados estudam aplicadamente gramática, história, matemática, espanhol, quechua... O próprio Che dá a quem o pretenda, aulas de francês. Ninguém
fez notar ao professor que os camponeses da zona falam guarani.
A 26 de Janeiro chegam duas personagens que irão desempenhar um papel relevante nesta história: Moisés Guevara, mineiro militante de Huanuni no Altiplano, de 28
anos, dissidente do PCB, depois maoista, partidário decidido da luta armada; e Loyola Guzmán, de 19 anos, estudante de filosofia, membro da direcção das Juventudes
Comunistas.
O Che pede ao primeiro para se integrar na guerrilha com os seus camaradas, mas depois de dissolver o seu grupo, e sem se atribuir grau a ninguém. O homónimo boliviano
aceita sem levantar obstáculos, uma vez que, para ele, o essencial é lutar ao lado de um guerrilheiro tão prestigiado como o Che. Explica, contudo, que só poderá
voltar com reforços em meados de Fevereiro, depois das festas do Carnaval, que são importantes na região mineira.
Loyola Guzmán causa também muito boa impressão a Ramón: "É muito nova, mas sente-se nela uma grande determinação". Chama-lhe, a brincar, "Ignacia", por causa de
Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus. Presa em Setembro de 1967, conseguindo sobreviver a uma tentativa de suicídio lançando-se do terceiro andar
do edifício onde estava a ser interrogada, escreverá para os seus camaradas, em 1968, um extenso documento que será interceptado e publicado em 1969. Fala aí da
sua emoção quando conheceu o Che. "Era qualquer coisa que eu nunca esperara. A sua figura era já um mito, quase idealizada, e de repente vejo-me diante de um homem
simples, afável, que apesar da sua fama e do seu prestígio não me fazia sentir intimidada"53. A "figura mítica" confirma a Loyola que ela é responsável pelas finanças
da guerrilha e pede-lhe para se encarregar da "rede urbana" (sob a direcção de um certo doutor Fareja que nunca chegará a aparecer, a não ser para alojar Debray
em La Paz). Para esse efeito, o Che dá a Loyola "instruções para os quadros destacados para o trabalho urbano", o que mostra como, em matéria de comunicação, está
muito longe de ter o virtuosismo e a mestria de Fidel Castro.
Existe, de facto, na Bolívia, tanto no sector mineiro como nas cidades, uma certa simpatia pela guerrilha - durante meses, os guerrilheiros tornar-se-ão pessoas
formidáveis, generosas, quase invencíveis. Terá Guevara consciência deste estado de espírito? Terá consciência de que esse capital de simpatia pode facilmente desembocar
na participação activa, directa, de inúmeros voluntários? É caso para duvidar, pois as suas "instruções" consistem sobretudo em organizar um embrião logístico para
dar apoio à guerrilha no monte, fornecer-lhe material (sempre segundo o modelo cubano da Sierra

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Maestra); mas deixam em claro, para "mais tarde", tanto o trabalho de propaganda e de agitação ideológica nas cidades como o recrutamento indispensável. O Che não
procurou arranjar, como Fidel fez em Cuba, um Frank País uma "rede do 26 de Julho" capaz de sensibilizar a população, de a mobilizar no apoio aos guerrilheiros.
O que fez com que, nos primeiros combates, a guerrilha surgisse "misteriosa e confusa, sem ter dado as três pancadas teatrais, sem se ter feito anunciar politicamente
e sem apresentar sinais de reconhecimento". A expressão é de Debray54.
No fundo, o comandante Ramón sente-se bastante à vontade nessa floresta remota do Chaco, por muito hostil que ela seja - mas tão próxima da Argentina. "A política
local não lhe interessa muito. Os comunistas bolivianos? Uns medricas. Os dirigentes da esquerda nacional? Políticos de vistas curtas. Os mineiros das minas de estanho?
Uma aristocracia operária que no futuro irá dar água pela barba ao igualitarismo revolucionário. A própria Bolívia: uma retaguarda..."55. Juízo lapidar igualmente
relatado por Debray.
A Tânia, enviada a Buenos Aires, o Che entregou, para o pai (que não voltara a ver desde 1961), um bilhete onde se mostra bem-disposto. Sempre trocista, retoma a
imagem clássica do "Cavaleiro da triste figura", justiceiro um tanto iluminado: "Don Ernesto (escreve ele, como quando nos dirigimos, com um respeito irónico, às
pessoas de uma certa categoria), no meio da poeira levantada pelos cascos do Rocinante, de lança em riste para trespassar os gigantescos inimigos que me atacam,
deixo-lhe este pedaço de papel e a sua mensagem quase telepática, portadora de um abraço para todos vós. [...] Que possa ver-vos em breve, [...] eis os meus votos
concretos. Confiei-os a uma estrela cadente que um rei mago colocou no meu caminho". E assina à italiana, ou seja, à Argentina. "Arrivedérci, se no te veo piú"56.
Todo o mês de Janeiro é dedicado à preparação, calma, de uma próxima marcha de treino, para "experimentar a tropa". Caminheiro impenitente, Guevara é grande partidário
deste tipo de exercício. Basta recordar alguns princípios enunciados na sua Guerra de Guerrilha: "Para além da preparação ideológica e moral, é indispensável um
minucioso treino físico. [...] A marcha é o elemento base da guerrilha, que não pode ser tolhida por gente lenta ou fatigada"57.
Ramón exigiu permanentes circuitos de exploração pelos arredores. Todos apresentam a mesma conclusão: uma geografia difícil, sem caminhos traçados. Mas, por vezes,
paisagens magníficas. Rolando (o capitão Eliseo Reyes, membro do Comité Central do PC Cubano), encarregado de fazer o reconhecimento de uma zona a dois dias de marcha,
fica deslumbrado com a paisagem, a ponto de deixar lá ficar A Cartuxa de Parma de Stendhal, que anda a ler58. Pacho, o companheiro de viagem de Ramón,regista no
seu diário uma observação com a leveza de um haiku: "Libertei uma borboleta de uma teia de aranha"59.

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Marcha ou morre!

Prevista para durar apenas vinte e três dias, a marcha de reconhecimento de Fevereiro vai prolongar-se por quarenta e oito dias, até 20 de Março - mais do dobro
do tempo! Demasiado longa, demasiado difícil, abalará o moral das tropas, esgotará a maior parte dos guerrilheiros, justamente na altura em que no regresso, vai
ser necessário travar os primeiros combates. Haverá no Che uma forma particular de masoquismo, uma preocupação de vencer a todo o preço um corpo recalcitrante? Há
quem pense que sim. Pode tentar-se encontrar a resposta nos diários de alguns dos guerrilheiros: todos descrevem os seus sofrimentos sem que aí se vislumbre o menor
grão de voluptuosidade.
"Ao todo éramos vinte e cinco, cada um com mais de vinte quilos às costas"60, anota Braulio (o tenente Israel Reyes) a 1 de Fevereiro. No acampamento ficaram quatro
homens, comandados por Antonio (capitão Pantoja): dois cubanos e dois bolivianos. Os outros, divididos na clássica vanguarda, centro e retaguarda, têm como objectivo
descobrir a região, entrar em contacto com os camponeses, reaprender a resistência. No quarto dia, Guevara escreve: "A tropa está cansada [...]. O caminho é péssimo
para o calçado: muitos camaradas já estão quase descalços [...]. Perdi cerca de cinco quilos e consigo andar normalmente, embora as dores nas costas sejam por vezes
insuportáveis". A recompensa é chegar ao rio Grande, a que Pacho, enviado como batedor, chama no seu diário "Rio Big". Este vem dar a novidade a Ramón: "Ficou louco
de alegria. "Pacho, chegámos ao Jordão. Baptiza-me" disse ele"61.
Para atravessar este novo Jordão, à falta de pontes, nada melhor do que a jangada. A tropa constrói várias, perde algumas, levadas pela corrente; tanto mais que
está a chover e as cheias são rápidas. A 10 de Fevereiro, encontram, na margem oposta, a casa de um camponês disposto a dar-lhes milho. O seu nome ficará na história
da guerrilha: Honorato Rojas. "É capaz de nos ajudar, mas incapaz de prever os perigos que isso acarreta, e por isso é potencialmente perigoso". Uma fotografia imortaliza
o encontro, mostrando-nos o Che, sentado num tronco de árvore, de barba e cabelo comprido, cachimbo na boca, calças ainda molhadas, atadas nos tornozelos com um
fio, tendo ao colo os filhos do campesino Rojas.
Informados de que, na região, cerca de trezentos soldados de Engenharia estão ocupados a construir uma estrada (de Vallegrande a Lagunillas), Guevara define a sua
intenção: "Marchar durante mais dez dias em direcção a Masicuri e fazer com que todos os camaradas vejam os soldados".
Vem-lhe à cabeça a ideia de organizar um ataque contra um destacamento avançado desses soldados-sapadores, mas põe-na de lado. A sua estratégia é só começar as "operações"
dali a um ano; ou então, talvez, a 26 de Julho, em homenagem à data-fetiche cubana. Essa marcha de treino adquire o estilo da que ele fez na Sierra Maestra, em direcção
à região oeste de Cuba, com a sua coluna Ciro Redondo. Mas não tem o mesmo carácter militar, apesar de todos terem a sua arma e munições. Nenhum inimigo os persegue
a não ser a

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Desolação da região, o monte espinhoso que é necessário talhar a golpes de machete, o terreno escarpado - subir, descer - e muitas vezes a chuva, abundante. E, sobretudo,
a fome.
A fome está presente em todos os diários, sendo o de Pacho exemplar, nesse aspecto. Não há um dia em que ele não se refira à fraca ração ou, excepcionalmente, a
uma barrigada com aquilo que um camponês lhes dá. Acontece-lhe (18 de Fevereiro) fazer uma troca com Ramón: um bocado de banana e de abóbora por um pedaço de cana-de-açúcar.
À falta de abastecimento através de camponeses, caçam. A simples enumeração da sua pobre caça seria cómica se não fosse dramática: alguns pavões, um tatu, dois macacos,
um falcão, uma raposa, uma corça e vários pássaros, papagaios, pombos, gaviões. E também um cavalo.
Os guerrilheiros regressam assim aos primeiros tempos da humanidade, procedendo também à recolha de tudo o que é comestível: tâmaras ou goiabas selvagens... Os homens
estão fracos. Muitos sofrem de edema da fome devido ao "marasmo metabólico" provocado pela desnutrição, a falta de vitaminas e de sais minerais: as extremidades
incham, a massa muscular amolece e infecta ao mínimo arranhão. Alguns, incapazes de meter os pés nos sapatos, enrolam os pés em cascas e folhas.
A expressão dia negro começa a surgir nos escritos do Che. Dia 23 de Janeiro: "Dia negro para mim; vivi-o de dentes cerrados, pois sentia-me esgotado [...] um sol
de rachar [...] uma espécie de desmaio ao chegar ao cimo [...] caminho infernal, sem água". O cansaço torna-os nervosos, irritáveis. Dois comandantes cubanos, Marcos
e Pacho, membros do Comité Central, quase chegam a vias de facto, ameaçando-se mutuamente com o machete. Belo exemplo para os Bolivianos!
Dia 26 de Fevereiro: Rolando anota no diário que Ramón convoca toda a gente, faz o balanço da marcha e sublinha: "O que passámos é uma infinitésima parte daquilo
que nos espera. [...] Sete anos de revolução com motoristas, secretárias e outras delícias tornaram a vida demasiado fácil, fazendo esquecer os rigores e os sacrifícios
da vida presente". E para que nem Marcos nem Pacho o ignorem, o comandante recorda publicamente: "Eu, em Cuba, não tive amigos. Apenas camaradas. Sempre que defendi
alguém em apuros foi porque tinha razão e não por amizade"62. "O céu estrelado sobre a cabeça e a lei moral dentro de mim", dizia Emmanuel Kant. Mas, se este rigor
gelado fez com que o Che fosse admirado, respeitado e até amado como um ser quase exótico na paisagem cultural cubana, também o isolou desse fervor que Castro sabia
provocar num povo dado ao "sentimentalismo".
Nesse mesmo dia, Benjamim, um boliviano, "fisicamente esgotado", escorrega por uma encosta sobre o rio Grande, cai à água e afoga-se: não sabia nadar! Rolando, que
logo se lançou ao rio, foi arrastado pela corrente e só conseguiu pé cem metros adiante. "Tivemos o nosso baptismo de morte e de forma absurda", escreve Ramón. No
seu balanço de Fevereiro, apesar de verificar, algo com um olhar distanciado, uma "diminuição do entusiasmo",

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regista, impávido, aferrado a uma obstinação férrea: "A marcha correu bastante bem" (!).
Terá o Che o direito de reivindicar, como Rimbaud: "Para mim, a históri de uma das minhas loucuras", em relação ao que irá transformar-se num verdadeira "estação
no inferno"? No seu grupo, alguns começam a pensar que sim. Para que serve todo aquele calvário? "É preciso ser-se muito humano para não se cair num dogmatismo extremo",
lê-se na carta escrita por Guevara em 1965, O Socialismo e o Homem63. Agora, esse mesmo Guevara parece ter perdido toda a humanidade, toda a ternura viril. Marcha
ou morre! Endurece as suas relações com todos, maltrata até os mais incondicionais: Tuma é criticado, Pacho é castigado, Marcos é marginalizado. Martínez Tamayo
(RicardoMoisés
), seu "anjo da guarda" no Congo, desabafa com Pombo, que regista a conversa no seu diário (13 de Março): "Ramón trata-me muito mal, Pombo. Está a ser muito injusto,
porque eu só estou aqui por dedicação a ele. Daria a vida por ele, porque é o nosso guia". A análise marxista foi esquecida. Estamos na história sagrada do profeta
e dos seus discípulos.
Esta opacidade do objectivo da manobra leva alguns a colocar a questão que ainda ninguém ousa colocar por escrito, de tal forma ela é sacrílega, de tal forma põe
em causa a pertinência política do projecto: "Mas que diabo estamos aqui a fazer?"64. Apesar de não ter muita instrução, o capitão Alarcón (Benigno) não deixa de
ser um homem de bom-senso. O seu grito de desespero, que já surdia no Congo, torna-se uma evidência na Bolívia (todavia, passarão ainda trinta anos até conseguir,
finalmente, soltá-lo): "Todos nós nos interrogávamos. [...] Afinal, o que fazíamos ali? Parecíamos pedras caídas do céu, no meio da floresta. Que havíamos de fazer,
senão marchar, percorrer o mato às cegas, sem saber para onde íamos nem o que nos aguardava? Todas as organizações políticas ou clandestinas do país estavam a trabalhar
nas cidades. Na zona em que operávamos não dispúnhamos de nenhum contacto; mal sabíamos onde estávamos [...]. Não tínhamos connosco nenhum boliviano daquela região.
Como é que não pensáramos nisso? [...] Não tinha nada a ver com a nossa experiência na Sierra Maestra"65. Ingénuas verdades.
As três semanas seguintes são ainda piores. Diário do Che: "O pessoal estava esgotado, a começar por mim" (2 de Março). "O pessoal está cada vez mais desanimado
ao ver chegar o fim das provisões e não o fim do caminho" (7 de Março). "Eu estava - estou sempre - cansado, como se me tivesse caído em cima um rochedo" (14 de
Março). "Decidimos comer a carne de cavalo, porque o inchaço [das nossas pernas] estava a tornar-se alarmante; estou muito fraco" (16 de Março). "Mais uma tragédia
antes de termos sequer começado a combater. [...] A jangada foi levada pelo rio Ñancahuazu num turbilhão que a enrolou e voltou várias vezes [...]. O resultado foi
a perda de um homem [...] o melhor boliviano da retaguarda" (17 de Março).
Finalmente a 20 de Março, precedido por alguns batedores rápidos entre os quais Rolando, ágil, e Benigno, de asas nos pés, recordando a sua juventude guajira -,
Ramón regressa ao acampamento. Aguardam-no aí, há

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quinze dias, Danton (Debray), el Pelao (o argentino Ciro Bustos), el Chino (o peruano Juan Pablo Chang), Tânia, a hábil "espia" que convocou toda aquela gente, bem
como o mineiro Moisés Guevara, acompanhado de oito homens e não dos vinte recrutas prometidos.
A descrição que Debray faz da chegada do Che e dos seus companheiros é uma peça de antologia: "Ao longe, uma procissão de vagabundos curvados vai surgindo pouco
a pouco, no meio da noite, numa lenta e cega persistência. [...] Parecia uma fila de sonâmbulos arreados ou albardados, bamboleantes e esfarrapados, vergados sob
o peso da mochila (no mínimo 30 quilos). [...] Ramón vem no meio: tronco quase direito com uma mochila que lhe ultrapassa a nuca, espingarda M-1 a tiracolo, vertical,
barrete de lã cinzenta, uma barba a despontar. "Desculpem o atraso. [...] Cozinha ininterrupta, ordena o Che. [...] A caça é pobre, mas havia o urso, um urso pardo
miraculosamente desgarrado naquelas paragens, que eu matara há poucos dias..."66. Para o intelectual ilustre, o "cacique" da Escola Normal Superior, com treino de
tiro em Punto Cero, não deixa de ser uma glória ter, deste modo, dado o nome a uma das estações da gesta guevarista, a partir de então designada por "acampamento
do urso".

Primeiros combates

O que o Che ignora é que há muito que o exército boliviano fora alertado. O general Ovando Cândia, comandante das Forças Armadas, reconhecerá: "Chegaram-nos informações
segundo as quais, entre o dia 26 e 27 de Fevereiro de 1967, cinco indivíduos com aspecto de estrangeiros entraram em contacto com residentes da zona, interrogando-os
sobre o caminho para o rio Grande"67. Trata-se da vanguarda comandada por Marcos. De facto, alguns camponeses viram-nos atravessar o rio e, na margem, abrir um cinto
com vários compartimentos e secar ao sol "grandes quantidades de dólares e de pesos bolivianos"! Um certo capitão Silva foi lançado no encalço desses detentores
de dólares, considerados traficantes de cocaína. Por outro lado, atormentado pela fome, Marcos cometeu o erro de ir com o seu grupo a casa de um funcionário das
empresas nacionais de petróleo, Epifanio Vargas, o qual não perde tempo a alertar a quarta divisão militar de Camiri.
Por outro lado, o Che toma conhecimento - Braulio, no seu diário, refere a data de 28 de Fevereiro - que dois recrutas, acabados de chegar com Moisés Guevara, desertaram
do acampamento de Ñancahuazu. A 14 de Março, a polícia prende-os em Camiri, quando procuravam vender uma arma. Um deles, Vicente Rocabado, explica então que é um
antigo agente da polícia criminal (expulso - isso não diz - por desvio de fundos). Conta pormenorizadamente tudo o que sabe (e até o que não sabe) sobre a guerrilha.
Fala da presença de um argentino, de um francês, de um peruano e, de um "chefe cubano" que não viu, mas que lhe garantiram ser o próprio Che Guevara.

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Indica onde se encontra o jipe de Tânia, fornece o nome dos membros do grupo de Moisés Guevara e propõe-se mesmo acompanhar a polícia ao acampamento!
Na realidade, o recrutamento feito por Moisés Guevara revelou-se um desastre. A alguns camaradas conhecidos, de toda a confiança, acrescentou para fazer número,
desconhecidos descobertos um pouco por acaso. No clima rigoroso do Altiplano boliviano, as festas do Carnaval são, mais do que em qualquer outro lado entre os mineiros
do "metal do diabo*", pretextos para festejos pitorescos, com danças - as diabladas - e bebedeiras. Nem todos os homens com quem o mineiro Guevara contava estão
disponíveis. Assim, para não regressar de mãos a abanar, foi recrutar nas tabernas indivíduos sobre os quais nada sabe, que alicia com miragens financeiras, graduações
militares, viagens a Cuba, etc. Julga-os pela aparência, contrariando o princípio sagrado da extrema vigilância que em princípio deve reger toda a acção clandestina
revolucionária. Esses elementos, sem formação, alguns provenientes do Lumpen-proletariado da mina, contribuirão, pelas informações prestadas ao exército, para determinar
a sorte da guerrilha.

Nota: * Metal del Diablo é o título de um romance-reportagem de Augusto Céspedes, que se tornou um clássico, sobre a exploração das minas da Bolívia e sobre o "barão
do estanho", Simón Patino.

A partir daí, o Che vai perder a iniciativa que tinha previsto para Julho ou para Novembro. Vai ter de entrar em combate muito antes do previsto e não tem nem o
domínio do terreno - a marcha caótica que acaba de ser feita é bem a prova disso - nem a estrutura de uma retaguarda organizada na cidade, nem o apoio popular indispensável.
"A guerra de guerrilha é a guerra de todo o povo", escrevera ele outrora [...]. "É inconcebível que, sem esse auxiliar poderoso, pequenos grupos armados possam resistir
à perseguição organizada de um exército bem equipado"68. Por falta desse "auxiliar poderoso" que, efectivamente, teria permitido aos guerrilheiros sentirem-se "como
peixes na água", segundo a expressão de Mao, a guerrilha do Che vai transformar os futuros libertadores do continente num bando de rebeldes em fuga, completamente
isolados. O milagre será, não a sua sobrevivência, mas que, à força de coragem, tenacidade e uma resistência inaudita, essa guerrilha tenha sobrevivido tanto tempo:
oito meses até ser descoberta. Oito meses de errância.
A 17 de Março, um terceiro homem de Moisés Guevara, Salustio Choque, é preso perto da casa da Calamina. Não opõe qualquer resistência à patrulha militar e confirma
todas as revelações dos dois desertores. Vásquez Viaña, que encontra os soldados no seu caminho quando regressava ao acampamento, não é tão dócil. Dispara, mata
um soldado. Pacho regista, nesse mesmo dia, 17 de Março: "A guerra começou. [...] Deu-se o primeiro confronto armado"69. Quando Marcos (o comandante Sánchez, também
conhecido por Pinares) chega ao acampamento com a vanguarda, alguns dias antes de Ramón, faz uma análise da situação e toma a iniciativa, bastante lógica, de evacuar
um acampamento certamente já detectado e de fazer recuar toda a

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guerrilha para uma zona a duas ou três horas de marcha dali. Grande fúria do Che ao tomar conhecimento dessa decisão: nunca se abandona uma posição sem a tal se
ser obrigado!
Debray, que assiste a essa descarga, observa que esse tipo de descontrolo "quebra o sentimento de solidariedade fraterna que, em tempo normal, ele costuma inspirar
entre os seus. Como se quisesse cortar a comunicação, barricar-se na sua solidão. Há como que um temor reverencial no respeito mudo dos seus homens"70. Tendo recuperado
a liberdade de expressão, Benigno, por seu turno, escreve: "Sinceramente, penso que aquela crítica não era justa. Marcos fez o que devia ser feito. [...] [Mas] quando
o chefe se exaltava, não deixava ninguém justificar-se, [...] não nos deixava pura e simplesmente abrir a boca"71.
Lembrar-se-á o autor de Guerra de Guerrilha do primeiro conselho que dera ao seu amigo guatemalteco el Patojo antes de ele ter ido combater no seu país: "uma mobilidade
constante"? É surpreendente que tenha preferido vir instalar-se numa zona onde se "sedentarizou" e que, obviamente, vai ser atacada pelo "inimigo", em vez de se
movimentar. Está certo que não se dê a impressão de fugir, mas porquê deixar-se apanhar na armadilha? "Manifestava uma espécie de passividade um pouco estranha,
que devia estar ligada não só a um imperativo moral, mas também ao facto de haver instalações importantes como a rádio, difíceis de transportar para outro lado",
comenta Régis Debray72.
O caso ultrapassa o anedótico, revelando alguns traços importantes do carácter do Che. Em circunstâncias excepcionais, cada um acaba por revelar-se. "O Che tinha
um prazer diabólico em fazer chorar - de raiva, de humilhação, de desânimo - o comandante Pinares", prossegue Debray, desbobinando, em voz alta, recordações e reflexões.
"Pinares pedira-me para lhe dizer que já não aguentava mais, que era insuportável. Da parte do Che era inconsciente, qualquer coisa de neurótico [...]. A ponto de
deitar abaixo homens como aquele, que eram duros entre os duros, tipos que tinham dado o melhor de si próprios! [...] Ao contrário de Fidel, grande psicólogo, o
Che não tinha nenhuma psicologia, no sentido de ser capaz de compreender o Outro, de entrar um pouco nos problemas do outro [...]. O mecanismo clássico: sou altruísta
em relação à humanidade em abstracto, mas não em relação ao outro. É a estrutura do perfeito sectário, como o eram os santos e os mártires cristãos. Todos os fundadores
de religiões são assim"73.
Mas este bloqueio voluntário da comunicação não é gratuito. Guevara explica-o a Danton, quando este o interroga. "Faz-se o que se pode com as nossas desvantagens.
Eu sou argentino. Perdido entre as gentes tropicais. Para mim, não foi fácil abrir-me e não tenho os mesmos dons de comunicação de Fidel. Resta-me o silêncio. [...]
Se as pessoas não gostam de mim à primeira vista, pelo menos respeitam-me por ser diferente". Resultado: uma ignorância do que se passa nas suas costas, um clima
por vezes tenso, profundas clivagens entre cubanos e bolivianos porque, conclui Debray, "não havia nenhuma catarse através da linguagem, através do diálogo. Apenas
segredos, manobras, jogos duplos, um mundo fictício"74.

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O caso de Tânia é exemplar. Ao acompanhar os visitantes ao acampamento e permanecendo lá até à chegada do Che em vez de regressar imediatamente à cidade para garantir
as ligações, cometeu um erro. Quando Ramón ameaça Marcos com a expulsão da guerrilha, este responde: "Antes fusilado!". Tânia vira a cabeça, de lágrimas nos olhos.
A opinião de Debray sobre Tânia é oposta à apologética oficial. O facto de ela ter tido algumas aventuras sexuais com Alejandro (o comandante Machín) e com Braulio,
um mulato bastante parecido com o seu antigo companheiro Ulises Estrada, não passa de um episódio banal - Benigno dirá o mesmo75. Isso só tem alguma importância
na medida em que se especulou sobre um romance com o próprio Che. Provavelmente é Debray que tem razão: "Em La Paz, Tânia estava muito só e, por isso, talvez um
pouco desestabilizada; psicologicamente, era muito instável [...]. Lembro-me que, quando eu e o Ciro Bustos fomos de La Paz a Camiri, ela deu nas vistas pelas suas
fúrias, pelas discussões com os bolivianos [...]. Não era uma pessoa nada discreta, era histérica [...]. O livro Tânia la Guerrillera Inolvidable76 é um livro totalmente
kitch - realismo socialista mal disfarçado -, uma obra típica do socialismo real, uma hagiografia [...]. A hipótese de ela ter tido um caso amoroso com o Che não
tem pés nem cabeça!"77.
Dia 23 de Março de 1967. O Che anota, lacónico: "Dia de acções guerrilheiras". Na realidade, é o primeiro combate sério, uma verdadeira emboscada que Ramón organizou
inteligentemente para iniciar as operações com aparato, uma vez que, como se sabe, o exército irá investigar o local. Guevara está estendido na rede, a ler. Quando
Coco Peredo aparece, esfalfado, a anunciar-lhe que a emboscada surtiu efeito, Debray está junto dele. Eis o seu testemunho: "O Che [...] levantou-se e, exuberante,
lançou um grito de guerra e de felicidade". O balanço é excelente; não há baixas entre os rebeldes mas, no inimigo, a metralhada, que durou apenas seis minutos,
provocou sete mortos (entre os quais o delator Epifanio Vargas), catorze prisioneiros "em bom estado", entre os quais um major e um capitão, e quatro feridos, além
de todas as armas apreendidas. "Para festejar o acontecimento, ele [o Che] foi ao ponto de acender solenemente um dos charutos que guardava no fundo da mochila para
as grandes ocasiões. Era uma boa notícia para todos, uma fonte de alívio, depois de um período de tensão e de incerteza"78.
Nesta data, Guevara especifica no seu diário que o grupo é composto por quarenta e sete pessoas, "incluindo visitantes". Os cubanos continuam a ser dezassete, com
o seu chefe argentino-cubano; há também Tânia, recruta imprevista argentino-alemã. Três guerrilheiros são peruanos e vinte e dois são bolivianos. Há ainda Debray
e Bustos e quatro guerrilheiros de pacotilha, trazidos por Moisés Guevara, a que o Che se refere como resaca, rebotalho; servem apenas para carregar material, pois
"quem não trabalha não come". A 25 de Março, o Che regista que Cuba o informara que Kolle, o segundo secretário do PCB, virá, por seu turno, discutir a situação,
mas que ele, Ramón, só acredita em actos e não em palavras. "Fiz uma longa exposição

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oral da situação ao francês. Durante a reunião, foi decidido dar ao nosso grupo o nome de Exército de Libertação Nacional da Bolívia".
Dia 27 de Março. "Hoje estalou a notícia, que ocupou totalmente a rádio". A emboscada de Ñancahuazu foi transformada pelos media bolivianos numa batalha campal,
na qual os insurrectos teriam sofrido pesadas baixas. O próprio presidente Barrientos mobiliza todas as estações de rádio do país para ler um comunicado no qual
fala de uma organização internacional composta por comunistas. Pela primeira vez é referida a hipótese de Che Guevara, o ministro cubano desaparecido, estar ligado
ao acontecimento79. Em plena mata, este redige então, como resposta, em nome do Exército de Libertação da Bolívia, o "comunicado número 1 ao povo boliviano" para
proclamar "a verdade revolucionária [...] face ao chorrilho de mentiras [...] do grupo de gorilas usurpadores [que] enganaram o povo através de uma farsa eleitoral".
Explica a emboscada "preparada pelas nossas forças em território guerrilheiro" e fornece, com nomes e apelidos, a lista das baixas no inimigo. "Estão abertas as
hostilidades", anuncia ele.
Para a guerrilha, o que parece mais importante, talvez, que essa vitória, sem dúvida reconfortante, é o facto de o jipe de Tânia ter sido descoberto numa garagem
de Camiri, com - grande imprudência - documentos, papéis de identificação, uma cassete e fotografias aí deixadas por negligência. "Tudo parece indicar que Tânia
foi identificada, o que representa dois anos de intenso trabalho perdido", escreve Ramón. "A partida dos visitantes torna-se agora muito difícil. Tenho a impressão
que o Danton não ficou nada satisfeito com isso, quando lho comuniquei".
Dia 28 de Março: "Estamos cercados por dois mil homens num raio de cento e vinte quilómetros e o cerco aperta-se, completando-se com bombardeamentos de napalm".
O que o Che também ignora, apesar de estar consciente que o "imperialismo" irá reagir, é que os Estados Unidos já enviaram para Santa Cruz o major Ralph W. Shelton,
denominado "Pappy", um veterano do Vietname, perito em guerra antiguerrilha. Sobre Debray, Guevara regista: "O francês expôs com demasiada ênfase a grande utilidade
que poderia ter no exterior". Na pena do Che, este "demasiada ênfase" provocou inúmeros comentários mais ou menos sarcásticos sobre a coragem do jovem universitário,
brilhante na teoria, mas hesitante na prática. Contudo, para se ser inteiramente justo em relação a essa crítica, basta ler o que o Che escreveu a 21 de Março: "Ele
veio para ficar, mas pedi-lhe para regressar e organizar uma rede de apoio em França e para passar por Cuba, o que corresponde aos seus desejos, pois ele quer casar".
Inti Peredo confirmará: "O Che explicou-nos que, tendo em conta as circunstâncias, o filósofo era mais necessário lá fora que cá dentro"80. Em 1979, Pierre Goldman
pergunta a Debray, sem rodeios: "Se tivesses manifestado esse desejo, poderias ter ficado ao lado do Che. Não o fizeste. Porquê?" Resposta:"Não estava preparado
para a morte"81.

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Separados do mundo

A morte colhe o primeiro combatente dessa guerrilha poucos dias depois a 10 de Abril, em Iripiti, na margem de um afluente do rio Ñancahuazu abaixo da casa de Calamina.
Uma patrulha militar cai numa emboscada: "Um morto, três feridos, seis prisioneiros", regista friamente Guevara. Do lado dos rebeldes, o capitão cubano Suarez Gayol
(el Rubio) é morto com uma bala na testa. Vice-ministro do Açúcar e membro do Comité Central, trabalhou muito tempo ao lado do Che, no Ministério da Indústria. "O
primeiro sangue vertido foi sangue cubano", sublinha Ramón, para responder - como ele escreve - a "uma tendência para depreciar os cubanos", sobretudo entre a vanguarda
boliViana.
Depois da empreitada da "longa marcha", foi necessário abandonar os três acampamentos antes mesmo de recuperar forças. As denúncias dos desertores não permitiam
usufruir do conforto rudimentar organizado nesse matagal, onde o Che previa instalar-se por um ano. As trincheiras defensivas e as armadilhas tornaram-se inúteis.
Abandona-se a horta e a capoeira, o forno de cozer pão, algumas cabanas de troncos de árvore e os inúmeros esconderijos com munições, conservas, medicamentos e documentos
diversos, livros, papel e duas máquinas de escrever, incongruentes naquelas paragens. Imprudência ou convicção de que se voltará e que os esconderijos são indetectáveis?
São também escondidos diários e uma série de fotografias. Este material irá constituir, para o exército, uma fabulosa fonte de informação sobre a identidade dos
guerrilheiros e sobre o seu estado de espírito. Porque a iconografia da fase inicial dessa guerrilha é rica: cada um, convencido de estar a fazer obra histórica,
empenha-se em deixar vestígios no grande Livro de Horas da Revolução. O Alto Peru, transformado em Bolívia, foi "inventado" por Simón Bolívar. Que grande teria sido
a glória (que já era muita) do Libertador, se tivesse havido um fotógrafo para imortalizar a sua epopeia!
A coluna, sempre articulada em três grupos, põe-se então em movimento a 3 de Abril. É composta pelas mesmas quarenta e sete pessoas, incluindo visitantes e "rebotalho".
No seu balanço, no fim de Março, Ramón regista: "A situação não é boa. Somos obrigados a mover-nos antes do previsto [...] com a desvantagem de termos quatro potenciais
delatores". Ao passarem na zona do combate de Ñancahuazu, deparam com o espectáculo macabro dos soldados mortos: "Os abutres tinham feito o seu trabalho". A Debray
e a Bustos, Guevara deu a escolher: "Continuar connosco, partir sozinhos ou ir a Gutiérrez [uma aldeia próxima] e daí tentar a sua sorte; eles optaram pela terceira
solução". Quanto a Tânia e El Chino, elementos importantes da base de apoio imediata, será posto em prática um plano especial para os "exfiltrar". No caminho, os
guerrilheiros encontram quatro camponeses com algumas vacas do vizinho Algañaraz. Compram-lhes duas. A um desses camponeses, natural de Camiri, "que se mostrou aberto,
[...] entregámos o comunicado [n.º 1], que ele prometeu divulgar" (Che, 6 de Abril).

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Terá o Che a noção do ridículo da sua atitude? Confiar, para ser difundido, um comunicado a um camponês desconhecido - saberá ele, ao menos, ler? - ainda para mais
munido de um salvo-conduto do exército! É a isto que está reduzido o sistema de informação da guerrilha? Infelizmente é! Para divulgar a "verdade revolucionária",
despertar as iniciativas, mobilizar a solidariedade, os guerrilheiros já só podem contar com o acaso, o passa-palavra, o contacto pessoal! A partir desse momento,
Guevara e os seus homens estão isolados do resto do país - e de Cuba. O seu combate poderá ser magnífico, exaltante, mas só será conhecido pelas informações que
dele darão os seus adversários. Só lhes resta um aparelho de rádio em mau estado, que pode receber mensagens codificadas de Havana, mas que não é capaz de transmitir.
Um grande aparelho incómodo, um Transoceanic que só permite captar as informações das estações locais ou periféricas. Estão - o termo espanhol é expressivo - incomunicados.
Separados do mundo! Esta impossibilidade de dar a conhecer a sua situação, de pedir socorro, será uma das causas, talvez essencial, da tragédia.
Algumas horas mais tarde, nesse mesmo dia 10 de Abril, a morte de Suarez Gayol é vingada. Em vez de recuar - "Ataca e foge" -, o comandante Ramón faz o contrário.
Faz uma segunda emboscada quase no mesmo sítio. Os reforços que acorrem caem na armadilha. "Sete mortos, cinco feridos, vinte e dois prisioneiros". Entre eles, um
comandante, Ruben Sánchez, que é um homem de carácter. Recusa-se a dar ordem de rendição à sua tropa. Recusa também que lhe tirem o revólver - "propriedade pessoal",
declara ele -, que lhe é restituído sem o carregador. Espera ser executado, mas não! Explicam-lhe que a guerrilha não utiliza esse tipo de métodos. Enquanto os guerrilheiros
tratam os feridos à roda de uma fogueira, trava-se então uma discussão política em que cada um explica as razões do seu combate. O Che, que ouve sem se mostrar,
pede a Inti, que se faz passar por comandante, que proponha a esse oficial juntar-se à guerrilha. Este recusa. Mas compromete-se a divulgar o conteúdo do comunicado.
Entregam-lhe dois exemplares; um deles será submetido às Forças Armadas. Cumprindo a sua palavra, ele fará chegar o outro, através de um irmão, a um pequeno jornal
de esquerda de Cochabamba, Prensa Libre, que o publicará no 1.º de Maio de 1967, causando grande repercussão nos meios políticos bolivianos.
Tendo em conta a topografia, essa guerra de guerrilha só pode exercer-se à escala da marcha, isto é, numa área mais reduzida, de cem a duzentos quilómetros quadrados.
Nesta região de matagal e espinheiros, de vales estreitos muito arborizados, a caminhada, lenta e difícil, conta-se mais em horas de percurso do que em quilómetros.
Será por ter lido Mao ou o general vietnamita Giap que o Che recorre à figura básica do avanço sem obstáculos que é a do "cerco mútuo"? Enquanto os militares preparam
a resposta, ele volta atrás por outro itinerário e permanece uns dias no acampamento do urso, apercebendo-se, aliás, que o local foi descoberto pelo exército, que
o não revistou muito bem (e também por jornalistas, mais curiosos, mas isso só o saberá mais tarde).

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Ao libertar os presos, Coco Peredo faz-lhes um pequeno discurso: "Soldados, vocês são nossos irmãos. Deixamo-vos os vossos uniformes para não terem frio, mas ficamos
com as vossas botas porque precisamos delas. O exército dar-vos-á outras"82. E no comunicado n.º 2 que, tal como os seguintes, não será publicado em vida dele, Guevara
indigna-se por "os chefes das Forças Armadas enviarem mancebos, quase crianças, para o matadouro". Segundo a revista boliViana Primera Plana, o general Ovando exprimirá,
pelo contrário, a opinião de que "foi sem dúvida uma má táctica da parte dos guerrilheiros permitir que uma vintena de homens regressassem à sua base. Deviam ter
sido [...] abatidos!"83.
A necessidade de evacuar rapidamente o francês e o argentino leva o Che a tomar uma decisão, no fundo banal, cuja gravidade ninguém pressente. A 17 de Abril, para
corresponder ao desejo dos visitantes de partir o mais depressa possível - Bustos, sobretudo, é muito insistente - Guevara deixa, em princípio por alguns dias apenas,
a retaguarda, muito lenta, entregue à direcção de Joaquín. O comandante Juan Vitalio Acuña (é esse o seu nome) é um sólido camponês da Sierra Maestra, um veterano
da coluna do Che em Cuba. Foi promovido a comandante e é membro do Comité Central do Partido. Com quarenta e dois anos, é o mais velho do grupo, o "decano" dos guerrilheiros.
E de toda a confiança. Ramón confia-lhe, para além dos quatro "rebotalhos", três doentes - Moisés Guevara, que sofre de cólicas hepáticas, Tânia e Alejandro, que
têm febre alta e o corpo todo inchado -, "el Negro", o médico peruano, e mais nove companheiros válidos. Ao todo são dezassete, quatro deles cubanos.
Nunca mais voltará a vê-los. O ponto de encontro, Iquira, tornou-se inviável, devido aos cordões militares. Durante quatro meses e meio, uns e outros andarão às
voltas, sem nunca conseguirem voltar a encontrar-se. Por vezes só os separa um quilómetro, distância suficiente para não se avistarem, num relevo escarpado. Os poucos
walkie-talkies estão desconjuntados, as pilhas gastas. Esta procura mútua irá obrigar os dois grupos a vaguear numa região que o exército vai declarar "zona proibida",
onde as raras vias de comunicação são fáceis de controlar e os camponeses - aliás, tão raros como a água - são desconfiados. Com a morte no final do caminho.
A 19 de Abril, a patrulha da guerrilha detém um indivíduo que nunca se saberá exactamente se era um agente da CIA ou um repórter fotográfico free lancer; como afirma
ser, um certo George Andrew Roth, de dupla nacionalidade, inglesa e chilena. Foi bem sucedido onde os soldados fracassaram: fazer-se conduzir até à guerrilha por
dois miúdos da povoação de Lagunillas, que já sabem que os guerrilheiros estão na zona. A sua estada é breve - algumas horas -, apenas o tempo suficiente para ser
interrogado por Inti Peredo e levantar suspeitas. O Che anota no seu diário que se trata de um "presente digno dos gregos", pensando sem dúvida no partido que Fidel
Castro tirara da entrevista concedida a Herbert Matthews, do New York Times, na Sierra Maestra. Mas ainda não chegou a altura de ele se mostrar. Inti só lhe fornece

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uns fragmentos de informação e os comunicados do ELNB (Exército de Libertação Nacional da Bolívia) - insuficientes para constituir um scoop (furo jornalístico).
Mas, mesmo assim, suficientes para confirmar que os guerrilheiros existem de facto. O Che escreve: "O francês propôs que se pedisse ao inglês, como prova da sua
boa-fé, que ele os ajudasse a sair". E assim se faz. Em plena noite, Roth, Bustos e Debray são largados perto da estrada, a cinco quilómetros de Muyupampa, onde
chegam de manhã cedo, a 20 de Abril.
Parece ter sido um pequeno pormenor que, na povoação, chama a atenção da patrulha militar, que logo os interpela84. O sargento que examina os papéis dos três "jornalistas"
- na realidade, a imprensa já ronda por ali - descobre que, no rosto de Debray, um tufo de cabelos loiros escapou à lâmina de barbear. Ora tudo o que é barbudo é
suspeito. No saco do visado, os utensílios de barbear ainda estão húmidos. Com efeito, o francês tentou compor um ar mais "civilizado", procurando, em pleno campo,
eliminar à pressa várias semanas de uma pilosidade pouco apreciada pelos militares. Mas o resultado não foi famoso, são presos os três. Prolegómenos de uma aventura
que agitará os media do mundo inteiro, revelando a existência da Bolívia a um público numeroso, e que provocará a intervenção de Sartre, Bertrand Russell e até o
general De Gaulle. Em breve se tornará o "caso Debray", com um fundo de "mistério Guevara".
Em contrapartida, outros "pormenores" parecem ter salvo a vida do francês: uma fotografia, um antigo prisioneiro da guerrilha, um coronel diplomata e... a CIA. Hugo
Delgadillo, correspondente local do jornal mais importante de La Paz, Presencia, tem uma breve troca de palavras com o trio no átrio do comissariado para onde foram
conduzidos, numa altura em que ainda não foram identificados e a vigilância é mínima. Tira uma fotografia a Debray a conversar com o padre (alemão) de Muyupampa.
Após uma série de peripécias atribuladas, que fazem passar o rolo de película de mão em mão até La Paz, o jornal publica a fotografia, a 3 de Maio de 1967. Nessa
data, o autor de Révolution dans la Révoíution? saiu do coma provocado pelos espancamentos que se seguiram à sua prisão, mas continua no isolamento, tal como os
companheiros, e está incomunicável. Nada impede que se declare a sua morte, amplamente noticiada pelos jornais e pela rádio. Em Paris, o France-Soir dá a notícia
numa "breve" de 23/24 de Abril de 1967. Mas, após a publicação da fotografia, a tese da morte em combate na guerrilha já não é sustentável.
Mas nem por isso a sorte do "guerrilheiro francês" fica automaticamente decidida. Se não fosse a intervenção de um oficial, "o ódio visceral dos oficiais subalternos
[...], que se embriagavam com cerveja para ganharem coragem"85, tê-los-ia levado a abater o jovem, demasiado insubmisso. O oficial tolerante é justamente o comandante
Ruben Sánchez, capturado e em seguida libertado poucos dias antes, em Iripiti, por insurrectos que lhe falaram de dignidade nacional e de luta anti-imperialista.
Mas o comandante nem sempre está presente. São então os agentes americanos do FBI e da CIA, "conselheiros

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técnicos" amavelmente cedidos pelos Estados Unidos ao exército boliviano que põem termo ao linchamento. Precisam de ter um prisioneiro lúcido e em bom estado para
sacar dele o máximo de informações. "Talvez tenha sido a CIA que me salvou", dirá ironicamente Debray. "Porquê dois meses de isolamento? Para dar tempo à CIA de
cumprir a sua missão"86. Dominique Ponchardier, um homem corajoso que o general De Gaulle enviara como embaixador da França na Bolívia, antes da sua digressão latino-americana
de
1964, recorre à "fraternidade militar" com o general-presidente Barrientos para que o seu compatriota seja poupado e, se possível, deixado em bom estado de conservação.
Entretanto, os dossiers dos serviços de informações são enriquecidos com colaborações preciosas. Não são necessários mais de dois dias de interrogatório para que
o argentino Ciro Roberto Bustos confesse e ultrapasse todas as expectativas. Na sua documentação foi descoberta a sua verdadeira identidade, fotografias da mulher
e da filha. Ameaçam-no com a família. Ele vai-se abaixo e conta tudo, a presença do Che sob o pseudónimo de Ramón, o número e o nome dos guerrilheiros, o papel de
Tânia, o esconderijo onde estão as armas, os trilhos secretos abertos no matagal.
O agente da CIA está encantado. "Escreva isso tudo", pede-lhe ele. "Vou escrever tudo e não só [o seu depoimento incluirá cerca de 20 000 palavras], vou tentar fazer
de memória o retrato do rosto dos guerrilheiros de que me lembro", responde ele num depoimento gravado a 23 de Abril87. Guiado pelos seus dons de observador e pela
sua formação de pintor, faz uma descrição física, de notável precisão, de todos os guerrilheiros. E ilustra-a com dezoito retratos, de grande utilidade para as investigações.
O de Guevara mostra-o de cachimbo na boca, cabelo mais comprido dos lados do que no alto da cabeça (pela sua antiga calvície simulada) e com as características protuberâncias
dos sobrolhos. "Bustos sentou-se logo à mesa, convocando a sua memória. Fez um duplo jogo muito sacana com o Che. Apresentou-se com uma imagem diferente, mas não
acreditava em nada daquilo. Ficou surpreendido por o Che o ter chamado. Já estava fora daquilo tudo. É um tipo muito hábil, grande simulador. O seu papel foi muitíssimo
negativo", comenta Debray.
A CIA também marca pontos, fazendo com que Jorge Vásquez (el Loro) caia numa armadilha. Este participara num combate quando, dois dias depois de ter "exfiltrado"
os visitantes, o Che e os seus homens confiscam uma camioneta dos YPFB*. No meio da confusão, el Loro perde-se do grupo. Sozinho, tenta encontrar os camaradas. Em
vão. Denunciado por um camponês, é ferido e capturado a 27 de Abril. É operado no hospital de Camiri e aí um agente da CIA, exilado cubano anticastrista, dá-lhe
a entender que é enviado por Cuba para ajudar o Che, conseguindo ganhar a sua confiança. El Loro abre-se então, ignorando que está tudo a ser gravado. Depois disso

Nota: * YPFB: Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos, a empresa nacional que gere os poços de petróleo.

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será torturado, executado, e o seu corpo lançado na floresta, do alto de um helicóptero. "Demasiado inteligente e demasiado corajoso para que o deixássemos vivo",
terá declarado um agente da CIA ao oficial boliviano que relatará essa conversa89.
Debray ignora tudo sobre estas confissões, mas os seus interrogadores dão-lhe conta de informações tão precisas - "há pormenores que não enganam, como costuma dizer-se.
[...] Eu caí das nuvens" - que ele acaba por confessar uma mínima parte (a 12 de Maio). "Já que sabiam tudo, resolvi confirmar o que era evidente, mais nada. Sim,
eu mentira. Tinha tido um encontro com o Che, mas era para uma entrevista"90.
Cá fora, o assunto começa a dar brado. "Na primeira semana de Maio, surgiram os abaixo-assinados mundiais. Chegavam de todos os países. A questão mobilizara jornalistas,
escritores, filósofos, políticos e personalidades do mundo inteiro. O que só aumentava a fúria dos bolivianos"91, escreve Ponchardier.

Criar um segundo Vietname

Dia 20 de Abril, 11 horas. Ao longe, na estrada, sacolejando na poeira, aproxima-se uma camioneta com uma bandeira branca. Numa delegação insólita, o padre de Muyupampa,
o médico e o subprefeito - os notáveis locais
- vêm negociar com os guerrilheiros. Temem que o combate faça vítimas na sua aldeia, onde entretanto chegaram os militares. Inti Peredo, que continua a fazer de
porta-voz, pede comida e medicamentos. Os aldeãos prometem trazê-los nesse mesmo dia. Informam também que, ao romper do dia, foram presos três estrangeiros - um
francês, um argentino e um inglês. A promessa de abastecimento não será cumprida: na hora aprazada, são dois aviões militares que vêm bombardear a finca onde o encontro
se efectuaria.
O Che procura Joaquín que, por sua vez, procura o Che. Durante os meses seguintes, a estratégia e a táctica dos dois grupos isolados reduzir-se-ão a esta equação
simples, mas impossível de resolver, quando é necessário esconder-se, quando os camponeses, receosos, se recusam a dar informações e quando há dois mil soldados
a patrulhar a região, controlando todos os caminhos. Ultrapassado o prazo combinado, e vendo que ninguém aparece, Joaquín dirige-se para a zona onde pensa que o
Che poderá estar. Este último faz o mesmo raciocínio. Mas não chegam a encontrar-se, a manobra é demasiado aleatória. Um lance de dados não abole o acaso. Na estrada
de Muyupampa para Monteagudo, Joaquín assalta um camião de abastecimento (21-22 de Abril). Nessa noite, os dois grupos estão muito perto um do outro. Mas não o sabem.
Na realidade, a partir da sua cisão em duas colunas, a guerrilha vai entrar em declínio. Até aí, embora não tenha aberto as hostilidades, foi ela que tomou a iniciativa
de organizar as emboscadas. A partir de agora, vai ser obrigada a permanecer na defensiva, não sabendo cada coluna onde procurar a outra.

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O dia 25 de Abril é uma das datas que Guevara classifica como "dia negro". Um destacamento de sessenta homens está já em cima dos guerrilheiros sem eles terem tempo
de preparar a emboscada. Conseguem deter o ataque atingindo a vanguarda, conduzida por guias acompanhados por cães-pastores. Mas Rolando é morto. O Che, geralmente
contido no seu diário onde traça quase com frieza o balanço das baixas, nesse dia deixa transparecer a sua tristeza. O capitão Eliseo Reyes, de vinte e sete anos,
também ele membro do Comité Central do PC Cubano e leitor de Stendhal, é um veterano da coluna do Che. "Perdemos o melhor homem da guerrilha, [...] meu companheiro
desde o tempo em que, ainda quase uma criança, foi mensageiro da coluna 4", refere Guevara. E, citando um verso do Canto a Bolívar, de Neruda, acrescenta: "Sobre
a sua morte obscura apenas podemos dizer: "O teu pequeno cadáver de capitão corajoso estendeu na imensidão a sua forma metálica." [...] A morte de Rolando é um golpe
duro, pois pensava dar-lhe o comando de uma segunda frente".
Esse mês de Abril de 1967 foi rico em acontecimentos, mas o Che regista, lucidamente: "O isolamento continua a ser total, a doença minou a saúde de alguns camaradas,
obrigando-nos a dividir as forças, o que nos retirou muita eficácia". E acrescenta uma frase, que será muito glosada: "A base camponesa continua a não se desenvolver,
embora me pareça que, através do terror organizado, obteremos a neutralidade da maioria; o apoio virá depois". Observação um pouco inquietante, de facto, porta aberta
por onde poderiam precipitar-se os Pol Pot e outros adeptos dos "sendeiros luminosos"; mas também sinal evidente dessa "mobilização camponesa inexistente" que surge
como um fio condutor nos seus apontamentos.
Na autobiografia La Mort du Condor, Dominique Ponchardier cita, a este respeito, uma observação de um membro dos serviços de informações bolivianos, nessa altura
na pista dos guerrilheiros: "O Che devia estar na situação de Lénine, em 1920, por ocasião do seu fracasso na Polónia, quando explicava que a "nossa corajosa vanguarda
[...] estava regularmente privada de pão. Tinha de requisitar pão e outros mantimentos aos camponeses polacos. Por isso os polacos viram o nosso Exército Vermelho
como inimigo e não como irmãos e libertadores""92. A citação, interessante, poderá aplicar-se ao caso da guerrilha do Che?
Se tivesse sido feito um estudo socioeconómico da região, antes de se ter escolhido, quase às cegas, esse sítio "impossível" do Ñancahuazu, ele teria revelado que,
desde o tempo dos incas e certamente antes, essa zona fronteiriça entre dois sistemas morfológicos foi sempre um espaço vazio ou muito pouco povoado, uma espécie
de no man's land em que a geografia resistiu à história, desencorajando a implantação humana. Os escassos camponeses, isolados e ariscos, quase todos de origem guarani,
são, sobretudo nessa zona, "fechados", desconfiados, avessos ao contacto, impermeáveis às influências culturais exteriores. O que Guevara também ignora é que, para
"colonizar" esses territórios, o governo de Paz Estenssoro transplantou para lá, de sua

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livre vontade, camponeses pobres da região de Cochabamba, que falam quíchua. A sua única ligação com o resto do país passa pelo exército, que lhes fornece uma pequena
logística de base: comunicações, cuidados médicos de emergência, etc. Quando o comandante Ramón surge com os seus homens barbudos, armados, de roupas rasgadas, é
compreensível que o primeiro reflexo dessa gente tenha sido o medo e a desconfiança. E a denúncia junto dos militares.
O paradoxo é que, enquanto Guevara, "incomunicável", se afadiga sob o seu fardo de trinta quilos, tentando avançar nos matagais agrestes do Chaco, o seu nome ressurge
nos jornais, nas estações de rádio da Bolívia e da América Latina. Embora, em princípio, tenha renunciado a todos os cargos e a todas as funções relevantes do Estado
cubano, é sob a assinatura do "comandante Ernesto Guevara" que, em Havana, a 17 de Abril de 1967, o Granma publica, a duas páginas, uma "Mensagem aos Povos do Mundo
através da Tricontinental"93. O texto, sem data, é antigo, certamente escrito em Setembro ou Outubro de 1966 - "vinte e um anos após a rendição do Japão" (que ocorreu
em Setembro de 1945) -, antes de o Che ter partido para a Bolívia. Os Cubanos divulgam esse apelo no momento em que decorre uma segunda Conferência Tricontinental
em Havana, muito mais modesta do que a de Janeiro de 1966.
Só foi retida a palavra de ordem que agitou todas as frentes e mobilizou multidões: "Criar dois, três, vários Vietnames. É essa a palavra de ordem!" A mensagem,
todavia, deve ser lida na íntegra, não pela subtileza da análise da situação mundial - a descrição clássica do mundo dividido em dois, os imperialistas e os outros,
nada tem de original -, mas pela carga de cólera que é expressa, a raiva intensa que se transforma em grito de guerra contra os Estados Unidos, o "grande inimigo
do género humano" (ainda não se diz o "Grande Satã"). O comandante anuncia que "surgirão novos focos de guerra [...] como já sucede na Bolívia". E explica: "A América,
continente esquecido [...], terá uma tarefa [...]: a de criar o segundo ou terceiro Vietname do mundo". O que falhou no Congo, espera consegui-lo na Bolívia, e em
seguida noutro lado, no seu continente natal.
Mas revela sobretudo, sem floreados retóricos, qual deve ser a chave de um combate "longo e sangrento": o ódio! "O ódio como factor de luta; o ódio implacável contra
o inimigo, que leva a ultrapassar os limites naturais do ser humano e faz dele uma eficaz, violenta, selectiva e fria máquina de matar".
Por vezes, como a 3 de Junho, a fria máquina de matar avaria. Esse profeta do ódio necessário deixa passar "um camião do exército com dois soldados enrolados nas
suas mantas, deitados nos bancos, [...]. Não fui capaz de disparar...". Mas, salvo excepções deste género (que o escritor argentino Ernesto Sábato evocará num dos
seus romances*), Guevara, no seu texto, vai mais longe do que Frantz Fanon, que afirmava: "uma guerra de libertação não

Nota: Abaddón, el Exterminador.

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pode ser alimentada pelo ódio, pelo ressentimento, nem por um legítimo desejo de vingança"94. O Che faz do ódio o instrumento fundamental dessa libertação: "Um povo
sem ódio não pode vencer um inimigo brutal". Assemelha-se a Cipião, personagem do Calígula de Camus, quando declara solenemente: "O que há de melhor em mim é o ódio"95.
O texto dessa mensagem de combate foi citado vezes sem conta, por ser lírico, bem compassado e retumbante. A quinze anos de distância - uma vida inteira, a sua vida
-, corresponde inteiramente ao "anúncio" recebido, numa noite de 1952, no meio do silêncio e do frio dos Andes venezuelanos. Nessa altura com 24 anos, depois de
ter ouvido a misteriosa voz, escrevia: "Tingirei a minha arma de sangue e, como um louco, degolarei todos os vencidos. [...] Vejo-me imolado na verdadeira Revolução"96.
Desta vez, ultrapassa o "Viva la Muerte!" dos franquistas espanhóis; traça os contornos da sua própria oração fúnebre: "Pouco importa onde a morte nos surpreenda;
que seja bem-vinda, se o nosso grito de guerra for escutado, se outra mão se estender para empunhar as nossas armas e outros homens se erguerem para entoar os nossos
cânticos fúnebres no crepitar das metralhadoras e de novos gritos de guerra e de vitória!" Recorde-se a frase da Revolução Francesa, retirada do seu compêndio de
História, que ele copiava, ano após ano, quando, em garoto, se interessava pela grafologia: "Sou uma parte do sangue que fertiliza a terra de França", dissera o
seu herói, ao subir ao cadafalso. A filosofia não mudou. Estamos perante Tertuliano: o sangue, semente fecunda...
Prosaico, no seu resumo de Abril, o Che observa: "Depois da publicação do meu artigo em Havana, já não deve haver qualquer dúvida sobre a minha presença aqui". Engana-se.
Dúvidas, ainda as há. Porque, apesar do testemunho pormenorizado de Bustos e da "confissão" de Vásquez Viaña, que acaba por ser confirmada (minimamente) por Régis
Debray, apenas os serviços de informações militares e a CIA local estão mais ou menos convencidos de que o Che está realmente ali, escondido algures num triângulo
cuja área vai sendo progressivamente reduzida. Em público, o governo persistirá em negar a presença do temível guerrilheiro e Barrientos, embora não negligencie
a gravidade do "foco revolucionário", deixa na sombra o nome de uma vedeta da guerrilha revolucionária cuja presença em território nacional daria grande repercussão
à rebelião.
É caso para perguntar porque motivo não revelou o Che a sua própria identidade. Isso teria sem dúvida aumentado a intensidade da repressão. É provável que o exército
boliviano aproveitasse tal facto para justificar a colaboração "amistosa" dos Estados Unidos (que, de qualquer forma, surgiu). Mas o anúncio de que o comandante
Guevara, procurado em todo o mundo, se encontrava à frente de um exército de libertação na Bolívia poderia ser "a centelha que lançaria fogo à pradaria", como dizia
Mao. Teria provocado uma enorme onda de simpatia e de adesão entre uma população fortemente politizada. É possível até que se constituíssem brigadas internacionais
na América Latina e noutras regiões. O que conduziria à tal "vietnamização"

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do conflito que Guevara intensamente desejava quando apelava à criação de "exércitos proletários internacionais", sublinhando, num estilo tosco: "Cada gota de sangue
vertido num território sob uma bandeira que não é a nossa é uma experiência inesquecível"
Mas o Che não fez nada disso. Poderá ainda fazê-lo? Não será já demasiado tarde? Calado, com a sua asma e os seus companheiros esgotados, com um aparelho de rádio
capaz de receber mas não de transmitir mensagens, continua a avançar pelo matagal, procurando, em mapas imperfeitos, caminhos desconhecidos. Capacidade de sacrifício?
Perfeita. Sentido da comunicação? Nenhum. Inteligência? Notável. Agilidade mental? Mediana. Porque, no fundo, continua a ser o esquema rígido da Sierra, oposto ao
llano, que ele tenta aplicar a um país onde a tradição de combate se apoia sobretudo nas lutas sindicais dos mineiros do estanho. E depois, para reflectir sobre
tudo isso, era necessário algumas tréguas. Que ele não terá. A sua marcha lenta, errática, não é uma fuga, mas parece. Talvez ele aceitasse chamar-lhe uma "retirada
marcial" se não receasse provocar, como no Congo, piadas (respeitosas) por parte dos seus companheiros.

Os guerrilheiros errantes

Há um certo despudor em recorrer aos diários de campanha dos guerrilheiros; os seus autores nunca imaginariam que viessem algum dia a ser assim expostos a público,
numa intimidade posta a nu. Mas esses rabiscos apressados de homens estafados, esfomeados, transpirados, revelam, melhor do que qualquer outra narrativa, a verdade
prosaica contida no seio da guerra de guerrilha, a proeza permanente de sobreviver e lutar, a partir da qual podem ser elaboradas as grandes declarações de libertação
nacional ou continental. Para criar um "segundo Vietname" na Bolívia, é preciso começar por não ter dores nos pés, é necessário ultrapassar o descontrolo dos intestinos,
ser capaz de caminhar carregado como uma besta, aguentar vários dias sem comer nem beber. A "revolução" reduz-se então às expressões mais triviais da condição humana.
Pombo, porque conseguiu sobreviver, será o único que poderá reescrever uma parte dos seus apontamentos, retocá-los, torná-los, em certos pontos, "politicamente correctos"97.
A morte interrompe o diário de Rolando a 25 de Abril, o de Braulio a 31 de Agosto. A partir de 10 de Abril, Moro (o tenente médico Octavio de la Concepción) não
escreve mais nada, por estar demasiado doente. Restam os diários de Guevara e de Pacho. Mantidos com regularidade, são os documentos mais completos, preciosos, ricos
em informação, apesar de transformarem o leitor em voyeur indiscreto.
A fome percorre o diário de Pacho a ponto de o imaginarmos a vomitar a comida - quando comeu - ao descrevê-la dia após dia. Mas os apontamentos do comandante Montes
de Oca - verdadeiro nome de Pacho - revelam-nos também as inúmeras misérias do caminhante, análogas, sem sombra de dúvida,

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às que atormentam os companheiros. Alguns trechos dão uma ideia da coragem, da tenacidade com que esses navegantes sem bússola se obstinaram em sobreviver. "Tenho
bolhas; três cravos que me incomodam desde a última marcha e coxeio do pé esquerdo" (19 de Abril). "Marchámos em todas as direcções por estes montes fora, de forma
que já não sabemos onde estamos" (4 de Maio). "Com o peso das armas e dos machetes, apenas a tenacidade nos faz avançar" (10 de Maio). "Tive uma indigestão. O estômago
não aguenta. Quase vomitei as tripas" (13 de Maio). "A mochila está tão pesada, que uma alça rebentou" (1 de Junho). "Está tanto frio que não consigo fechar as mãos"
(9 de Junho). "Consegui extrair uma carraça e uma larva de boro do tamanho de um feijão" (15 de Julho). "Consegui tirar uma carraça das costas do Fernando. Ele tirou-me
várias" (22 de Julho). "Há tanto tempo que não me lavo que já não tenho cheiro definido" (8 de Agosto). É ferido com um tiro. Colocam-no em cima de um cavalo. Ele
escreve: "Os meus cabelos agarram-se às árvores e é como se mos arrancassem" (17 de Agosto). "Os mosquitos vêm beber o suor e entram nos olhos" (26 de Agosto). "Há
três dias que não temos água nem nada para comer" (28 de Agosto). "Estou a morrer de fome. Nunca estive tão fraco. Quando me levanto, se não me agarro a uma árvore
ou a um pau, caio" (1 de Setembro)98. É deste quotidiano sem lirismo que é feita a vida daqueles que mais tarde serão apelidados de "combatentes exemplares".
Para os vinte e cinco homens que constituem o grupo que permaneceu com o Che, toda a história da guerrilha, de Maio a Outubro de 1967, não é mais do que uma deambulação
hesitante, guiada pelas necessidades mais elementares: encontrar água, comida, medicamentos; e a coluna perdida de Joaquín. Quando, pela rádio - a partir de agora
o seu único meio de informação - o Che fica a saber que essa coluna foi massacrada (31 de Agosto), a princípio recusa-se a acreditar. Será necessário ultrapassar
a depressão provocada por essa "amputação" para decidir (princípio de Setembro) deixar de andar às voltas, quebrar o círculo infernal da "zona proibida" e avançar
para norte, em direcção ao Chaparé ou ao Beni. São regiões mais "civilizadas", mais habitadas, portanto mais perigosas, mas nas quais, desde o início, fora decidido
abrir uma "segunda frente".
Quase sempre a pé - alguns, excepcionalmente, de mula ou a cavalo - percorrem, em ziguezague, cerca de seiscentos quilómetros em seis meses, à velocidade média de
três quilómetros por dia. Vão ficando extenuados, nessa rede de desfiladeiros abruptos e de passagens estreitas fechadas por muralhas calcárias, nas quais é necessário
escolher os pequenos vales escarpados para evitar serem descobertos nos cabeços nus. Em Maio, travam três combates, mas não sofrem nenhuma baixa. No acampamento
do urso, onde voltaram uma última vez para ir buscar conservas e armas escondidas que o exército não descobrira, encontram, no bolso de um sargento morto, uma carta
da mulher a pedir o escalpe de um guerrilheiro! A caça ao homem está aberta, mas, neste autêntico western, os cowboys, neste caso os Rangers, ainda não estão prontos.

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Apesar da paranóia que nessa época agita a CIA, obcecada com a ideia de descobrir infiltrações no seu seio, o sector América Latina da agência enviou alguns agentes
muito especiais, não só para investigar esse foco de guerrilha, tão próximo das instalações petrolíferas geridas por empresas norte-americanas - sobretudo a Gulf
Oil Company -, mas também para confirmar o boato da ressurreição desse Guevara, considerado morto e enterrado. Richard M. Helms, o patrão, não acredita nessa atoarda,
persuadido que o Che foi liquidado por Castro e que se trata de uma campanha de intoxicação à qual não convém dar ouvidos. Todavia, apoiados nas informações obtidas
através dos interrogatórios de Camiri e nos documentos e fotografias encontrados nos esconderijos de Ñancahuazu, os relatórios são categóricos: é o Che que comanda
essa guerrilha.
Por seu turno, o Pentágono compreendeu que o exército boliviano não está à altura - desordem, desmoralização entre as fileiras; Barrientos, o general-presidente,
não confia no seu chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, o general Ovando, que lhe paga na mesma moeda. Convém, pois, criar urgentemente um corpo de elite, os
Rangers, especialmente treinados nos métodos da contra-guerrilha rural. Entre outros, o pequeno livro de Guevara - A Guerra de Guerrilha - foi cuidadosamente lido.
Em Abril, o Southern Command (Comando do Sul), sediado em Fort Gullick, no Panamá, destacou da Escola das Américas cinco peritos militares e uns quinze veteranos
da Coreia e do Vietname, chefiados pelo major "Pappy" Shelton e pelo capitão Leroy Mitchell, um negro. Missão: transformar soldados pouco motivados em combatentes
agressivos, dignos dos "Boinas Verdes" norte-americanos.
Instalam-se numa refinaria de açúcar abandonada, La Esperanza, a norte de Santa Cruz, enquanto, do Panamá, uma ponte aérea os abastece rações alimentares, armas
e equipamento. As velhas Mauser do tempo da guerra do Chaco são substituídas por Garand, muito mais modernas. Serão aí ensinadas não só as últimas técnicas aperfeiçoadas
no Vietname (a detecção, por infra-vermelhos, das mínimas fontes de calor, mas também a leitura de mapas pormenorizados da zona, feitos numa escala 1/50 000 pelas
companhias petrolíferas. É por não ter esses mapas que Guevara se perde e se cansa nessa mesma floresta. O exército boliviano envia imediatamente para esse Centro
de Instrução das Forças Especiais seiscentos e cinquenta homens que irão constituir o regimento Manchego, entre os quais um certo capitão Gary Prado, filho de boas
famílias da região.
Quanto ao Che, encontra-se num isolamento absoluto. No seu diário, regista: "Ausência total de contacto com Manila [Havana], La Paz e Joaquín. Ausência total de
apoio camponês". Desconhecendo a regra básica de toda a comunicação, segundo a qual o "fazer saber" é tão importante como o "fazer", descobre um pouco tarde e com
alguma ingenuidade: "A agitação sobre o caso Debray conferiu maior importância guerreira ao nosso movimento do que dez combates vitoriosos". Contudo, prossegue a
marcha, estafado mas decidido. "Sentia-me desfalecer e tive de dormir duas horas

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para poder prosseguir, em passos lentos e incertos. De um modo geral, é neste estado que temos marchado [...]. Os homens estão fracos e muitos já têm edemas" (9
de Maio).
Quando chegam ao lago Pirirenda, a mil metros de altitude, conseguem alguns alimentos no casebre de um camponês: "Abóbora assada, salteada com banha, carne de porco
e uma fritada de miúdos". E depois, na linguagem franca de Guevara: "Dia de arrotos, traques, vómitos e diarreias: um verdadeiro concerto" (13 de Maio). Três dias
depois, a mesma cena; desta vez, ele desmaia: "Tive uma cólica muito forte, com vómitos e diarreia. [...] Perdi os sentidos, enquanto me punham numa rede. Tinha-me
borrado como um bebé; emprestaram-me umas calças mas, como não há água, cheiro a merda à distância" (16 de Maio). O que o Che não diz mas será contado por Benigno
é que, quando recobra os sentidos, Guevara pergunta onde puseram as suas calças sujas. Os companheiros tranquilizam-no logo: "Não se preocupe, comandante, enterrámo-las
cuidadosamente, sem deixar vestígio. - Nem pensar! Ainda podem servir", responde o comandante, que vai desenterrar as calças imundas, enrolando-as num oleado, que
enfia na mochila.
Este gosto pela porcaria, quase escatológico, é já antigo em Guevara. O seu desleixo consigo próprio remonta à infância. Em Córdova, Chichina, a primeira namorada,
ironizava sobre a duração "semanal" da camisa de nylon que nessa altura ele trazia, branca à 2.ª feira e cinzenta no fim de semana. Calica Ferrer, o companheiro
de viagem de 1953, foi testemunha disso: preferia beber um café com leite a tomar um duche. Se nos fiarmos no seu diário, Guevara confessa que só se lavou duas vezes
durante toda a guerrilha. "Esquecia-me de dizer uma coisa. Hoje, passados mais de seis meses, tomei banho". O que nos remete para finais de Fevereiro, princípio
de Março, quando tentava transformar os seus homens em bons guerrilheiros, fazendo-os palmilhar a região, em marchas violentas. No fundo, acrescenta ele, "é um recorde
que vários camaradas já atingiram". Benigno confirma, reconhecendo não se ter lavado entre 11 de Dezembro de 1966 (data da chegada a Ñancahuazu) e... 6 de Janeiro
de 1968! Mais de um ano! "A sujidade protegia-nos..."99.
A 14 de Junho, um minúsculo ponto de interrogação no diário dá que pensar. Estará o Che já tão desligado do mundo antigo, o da vida familiar e do conforto doméstico?
É a data do seu aniversário, mas também a da sua terceira filha, Célia, que Aleida quisera ter por cesariana, nesse dia de 1963, para lhe oferecer esse bebé como
presente. Regista: "Celita: (4?)" - pois já não está certo do ano de nascimento. Quanto a si próprio, escreve: "Eis-me chegado aos 39 anos; caminho irreversivelmente
para uma idade que me leva a reflectir sobre o meu futuro enquanto guerrilheiro; por agora, estou "inteiro". Inteiro mas doente. Durante três dias seguidos (23,
24 e 25 de Junho), a asma, antiga maldição, surge no diário: "A asma começa a ameaçar-me a sério e há poucos medicamentos de reserva".
Debate-se ainda com uma dessas crises quando, no diário, se refere pela primeira vez às "lutas nas minas" (24 de Junho). "A rádio argentina fala de

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87 vítimas; os bolivianos escondem os números" (25 de Junho). Dependendo apenas das notícias da rádio, o Che ignora que o governo de La Paz quis matar à nascença
um movimento espontâneo de solidariedade à guerrilha, esboçado pelos mineiros do Altiplano, sobretudo nas minas de estanho de Huanuni e Siglo XX - doação de um dia
de trabalho, de medicamentos, etc. Barrientos, que a 12 de Abril ilegaliza o PCB e o POR (trotskista) - muito influente entre os mineiros -, manda organizar uma
verdadeira matança. Na manhã de 24 de Junho, festa tradicional do dia de S. João - fogo de artifício, danças, cartazes e cincha -, o exército "intervém" nos sindicatos,
que fazem soar as sirenes de alerta. Todos os que acorrem são ceifados a tiros de metralhadora. É o "massacre de S. João". Domitila, mulher de um mineiro que descreveu
a hecatombe, diz que no dia seguinte foram enterrados "centenas de mortos"100.
Com as poucas informações que dispõe, Guevara pressente tratar-se de um sinal importante. Redige um "Comunicado aos Mineiros da Bolívia", que é um apelo: "Camarada
mineiro, os guerrilheiros do ELN esperam-te de braços abertos e convidam-te a unir-te aos trabalhadores do subsolo que lutam ao nosso lado"101. Este comunicado tem
apenas um valor histórico: nem sequer chega a sair da mochila do guerrilheiro incomunicado.
Nessa altura, surge na guerrilha um outro "dia negro". A 26 de Junho, um combate faz "dois feridos: Pombo na perna e Tuma no estômago". Este último morre passadas
umas horas, enquanto o médico do grupo tenta operá-lo à luz de uma lanterna, na casa de um camponês. O tenente Coello, aliás Tuma, é um antigo elemento da guarda
pessoal do Che. "Tenho um pouco a sensação de ter perdido um filho", escreve ele, sublinhando no seu balanço de Junho que "cada baixa constitui uma derrota". Mas
não perde a coragem: "A lenda da guerrilha adquire proporções fabulosas. O nosso moral está no Illimani [6322 m]".

Abandonados por Cuba?

O moral é alto mas os heróis estão cansados. Têm fome e estão doentes. Precisam de medicamentos, sobretudo para o seu chefe, "Fernando" - novo pseudónimo do Che,
adoptado depois da prisão de Bustos e de Debray. Fernando arrasta-se, mais asmático do que nunca. Já não tem os remédios indispensáveis. Trouxe em quantidade suficiente
para um ano, mas quase tudo ficou nos esconderijos de Ñancahuazu; nunca pensou que tivesse de caminhar durante tanto tempo, em condições tão difíceis. Tem dificuldade
em andar e são obrigados a instalá-lo sobre uma mula, comprada a uns camponeses. Ele repara como é difícil estabelecer contacto com a gente da região: "É necessário
perseguir os habitantes para se conseguir falar com eles, pois são espantadiços como animais" (19 de Junho).
Preocupados com a saúde do Che, os companheiros insistem com ele para tentarem um "golpe". Será a ocupação-relâmpago de Samaipata. Por volta da

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meia-noite, durante uma hora, na noite de 6 de Junho, os guerrilheiros apoderam-se da pequena povoação (1 700 habitantes) situada a 700 metros da estrada alcatroada
que liga as capitais das duas principais províncias do país - Santa Cruz e Cochabamba. Neutralizam o pequeno quartel - um soldado que tem a pretensão de resistir
é abatido; para atrasar a reacção dos outros, abandonam-nos nus, a um quilómetro dali. Os homens do Che acordam o farmacêutico, compram-lhe tudo o que podem (mas
não os bons medicamentos para a asma) e retiram-se sem uma arranhadela, nos veículos que ocuparam para entrar na cidade e que restituem aos proprietários, após indemnização
pelo incómodo causado. Compram também conservas e alimentos frescos. A operação do comando, efectuada com toda a rapidez, em estilo cinematográfico, dará que falar.
Mas foi a última acção retumbante de uma guerrilha cuja imagem audaciosa não revela o quanto ela é hesitante, ainda tacteante, à procura de Joaquín e da sua coluna,
à procura de um contacto, de uma forma de fazer saber à "cidade", a Manila, o estado crítico da situação. Nos despojos dos guerrilheiros, o coronel que comandava
a 4.ª divisão de Camiri, Luis Reque Terán, encontrará uma mensagem do Che para Fidel com data de meados de Abril mas que não pôde ser enviada. Ramón anuncia o regresso
de Danton, portador de informações mais completas, e indica tencionar abrir uma segunda frente no Chaparé. É patético observar que, à medida que vão chegando outras
comunicações de Havana, Guevara acrescenta à sua mensagem uma série de aditamentos inúteis, porque Fidel Castro nunca os receberá102.
Assim, a 13 de Maio, Ariel (Juan Carretero) agente de ligação, responsável pela Bolívia junto de Manuel Piñeiro, pede a concordância do Che para incluir a sua assinatura
num abaixo-assinado a favor do Vietname, por iniciativa de Bertrand Russell. "Claro que sim", escreve Fernando no seu diário; mas é como se estivesse a falar sozinho.
Ninguém ouvirá a sua resposta. Para os festejos do 26 de Julho em Cuba é redigida uma mensagem de saudação, por Inti, comissário político boliviano do ELN. O texto
fica no fundo da mochila, tão inútil como o primeiro. E também a mesma sensação de irrealidade quando o Che anuncia a morte de Tuma e de Papi. Mas a quem? E como?
Este solilóquio do Che com os seus papéis adquire um aspecto ainda mais patético porque a sua confiança permanece inabalável. Como se, sem acreditar em milagres,
pensasse que, à força de vontade e determinação, a sorte mudaria. Mas nenhum rei mago lhe aparece no caminho. Pelo contrário, o único contacto cubano em La Paz,
Renan Montero (Ivan), regressa à ilha; e não é substituído! Quanto a Rodolfo Saldaña, em princípio encarregado da "rede urbana", o que é uma expressão pomposa para
uma estrutura minúscula, não brilha pela iniciativa de tentar renovar o contacto, a julgarmos pelo que diz o Che na apreciação que faz, de três em três meses, de
cada um dos membros da guerrilha: "Não é o homem indicado para este posto" (20 de Fevereiro). "Fraco; não se integrou quando o devia ter feito. A sua atitude é contemplativa
e indecisa face aos resultados" (20 de Maio)103. Se exceptuarmos Loyola Guzmán, cuja

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missão é gerir as finanças, não existe mais ninguém a quem recorrer em La Paz. Guevara está só, perdido nas montanhas áridas. Sem bóia de salvação.
Terá o Che sido abandonado por Cuba? É difícil responder de forma categórica a uma questão tão grave. Mas forçoso é admitir que Havana não deu mostras de um zelo
excessivo para restabelecer, de alguma maneira, a comunicação interrompida. A última mensagem enviada por Ramón a Manila data de 23 de Janeiro! Desde então, ao silêncio
da rádio por parte da guerrilha corresponde uma preocupação extremamente moderada por parte de Cuba. Tendo em conta a reconhecida eficácia dos "serviços" de Fidel
Castro, muito poderia ter sido feito para socorrer o antigo número dois da Revolução, mesmo que não fosse fácil. Afinal de contas, a CIA conseguiu infiltrar na zona
bastantes dos seus agentes - quase sempre exilados cubanos anticastristas - sob a capa de vendedores ambulantes, caçadores ou comerciantes. Roth, um "jornalista"
um tanto curioso, conseguiu estabelecer contacto com a guerrilha interrogando camponeses (ou sendo ajudado pelo exército?). Este tipo de acção estaria assim tão
fora do alcance do tão eficaz departamento "Libertação" do Ministério do Interior de Havana?
Como é sabido, o Che superintendia o apoio concedido por Cuba aos movimentos revolucionários latino-americanos. Terá havido passividade deliberada da parte de Barbarroja
(Manuel Piñeiro) em mobilizar-se?
Contudo, interrogações deste género passam pelo espírito dos guerrilheiros. Começam a interrogar-se se não estarão a ser abandonados nesse Chaco longínquo. O guajiro
Benigno não é um perito em estratégia política, mas possui experiência, bom-senso, uma fé revolucionária inabalável e uma dedicação exemplar ao Che. Se este último
o repreende por vezes, porque, quando se arma em controlador, é um pouco mais generoso com uns do que com outros, ele não deixa de ser o único a receber um invariável
muy bueno na avaliação trimestral estabelecida por Guevara104. Perito na técnica de sobrevivência, Benigno apercebe-se, lucidamente, que essa marcha incoerente e
solitária só pode desembocar na morte.
Explica: "Lembro-me de um dia em que discutíamos com Antonio, Pacho, Marcos e Urbano. Antonio [o capitão Orlando Pantoja, do Ministério do Interior] disse a Marcos:
"Não penses nisso. Em Cuba só queriam livrar-se de nós". E esse rapaz tinha uma grande experiência desse género de coisas, pois fora formado em missões de segurança.
Perguntou-nos: "E vocês, o que pensam?" Houve alguém que respondeu: "Acho que é isso mesmo, pá. Também penso assim". O Che, que estava a ouvir, olhou para nós e
disse: "Não acham que estão a remexer na merda?"" Benigno acrescenta: "A sua admoestação foi branda, pois nós estávamos a ser bastante violentos. [...] Voltando
a pensar nisso, acho que [...] ele também remoía a coisa, mas preferia calar-se, por prudência. [...] Quanto a mim, o Che [...] já não estava à espera que Cuba o
ajudasse". [...] Fidel poderia ter ordenado a Piñeiro: "Arranja-te como quiseres, mas tira-me o Che da Bolívia". [...] Bastava que Cuba entregasse um milhão de dólares
a Ovando. [...] Se Fidel tivesse explicado ao povo cubano: "Temos

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de deixar de comer durante uma semana para salvar o Che", o povo aceitaria de olhos fechados".105 Testemunho comovente pela sua ingenuidade, mas que, sem dúvida,
tem muito de verdade.
Estas especulações não contribuem para fazer subir o moral das tropas mas não impedem esses "duros" de prosseguirem o seu caminho. Uma vez que nenhum dos medicamentos
de Samaipata tem efeito sobre a asma do comandante, rumam de novo a sul, regressando ao acampamento de Ñancahuazu, onde está, bem escondida, a preciosa farmácia.
Mas sempre de orelha à escuta da rádio cubana e da rádio boliViana. A 24 de Julho, Guevara observa: "Raul [Castro] refutou os comentários dos checos sobre o artigo
do Vietname" (mensagem à Tricontinental) - o que não deixa de ser significativo, vindo de alguém tão alinhado por Moscovo. "Os amigos [sem aspas irónicas, mas é
como se elas existissem] consideram-me um novo Bakunine e queixam-se do sangue derramado caso existissem três ou quatro Vietnames", prossegue o Che. Na pena dos
Checos, a comparação com o revolucionário anarquista russo não é um cumprimento. Para os comunistas, Bakunine representa uma abominação. Mas pensar que Guevara,
homem rigoroso e metódico, pudesse ser assimilado àquele que considerava a insurreição como "uma festa, uma exaltação da alma", seria um contra-senso. É certo que
Cuba apoia, à distância, o comandante Guevara e a via combativa que ele escolheu, mas no fundo obedece aos imperativos, por amargos que sejam, da sua dependência
económica.
Nessa Bolívia distante, a "via guevarista" começa a enfrentar revezes cada vez mais graves. A 30 de Julho, os militares bolivianos ganham vantagem num confronto
nocturno. Duas baixas nas fileiras da guerrilha, entre os quais Martínez Tamayo (Ricardo), "o mais indisciplinado [...] mas um combatente extraordinário", um ferido,
Pacho. "Perdemos onze mochilas com medicamentos, binóculos e alguns objectos comprometedores, tais como o gravador, onde estão registadas as mensagens de Manila,
o livro de Debray [Révolution dans la Révolution?] anotado por mim e um livro de Trotsky [História da Revolução Russa].
O que talvez seja mais grave é o comandante estar exausto, "por causa da minha asma, que não sei como controlar". A 8 de Agosto, perde o sangue-frio, que sempre
fora objecto de admiração entre os companheiros. A mula que o transporta está fatigada. Atrasa o andamento do grupo, obrigando a esforços suplementares para abrir
a machete caminhos mais largos no meio dos espinheiros. Começa a haver resmungos na coluna. No meio da sua impaciência, volta-se contra o animal. "A certa altura,
dei-lhe uma facada no pescoço, ferindo-a gravemente [...] À noite, autocritiquei-me: "estamos numa situação difícil. [...] Eu sou um farrapo humano [una piltrafa
humana] [...] Acabo por me descontrolar". [...] Este género de luta permite transformar-nos em revolucionários, escalão mais elevado da espécie humana, mas permite
também sermos homens; os que não se sentirem capazes de atingir nenhum destes estádios devem dizê-lo e abandonar a luta". Benigno conta o resto: "Nós perguntávamos-lhe:
"Bom, mas o senhor,

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comandante, o que vai fazer?" E ele respondia: "Eu, infelizmente, sou outra vez o Che. Só me resta tornar-me um animal selvagem como os outros""106. No dia seguinte
(9 de Agosto), uma observação, aparentemente anódina, no diário, revela como a sua saúde se deteriora, acrescentando ao sofrimento da asma outras fontes de dor.
"Abriram-me um tumor no calcanhar, o que me permite pousar o pé. mas tenho ainda muitas dores e febre". 15 de Agosto: "Vai ser necessário lancetar um outro abcesso
no mesmo pé". 16 de Agosto (vingança animal, como em Daudet?): "A mula deitou-me ao chão".

"Dias negros"

Cortada ao meio, durante algum tempo a guerrilha deu a impressão de estar em todo o lado - imaginavam-na num sítio e ela manifestava-se noutro. Até ao momento em
que o exército, ajudado pela CIA, começa a circunscrever eficazmente a zona de operações das duas colunas. Mas os guerrilheiros só dispõem de informações destiladas
pela rádio boliViana, referindo-se a um ou outro confronto, para tentarem situar aproximadamente, nos seus mapas imprecisos, os pontos onde os camaradas se batem.
Joaquín começou por esperar dez dias por um Che que não aparecia, até se pôr a caminho com os seus homens. São dezassete, mas metade não está em condições de combater;
para além de Tânia, corajosa mas em baixo de forma, os doentes restabelecidos continuam um pouco fracos e os quatro resacas foram desarmados: não é possível abandoná-los,
pois poderiam denunciá-los. Em Maio, um deles consegue fugir. Entrega-se ao exército, que o fuzila. Em Junho, dois batedores enviados à procura de abastecimento
em casa de um camponês são surpreendidos por uma patrulha. Ambos são mortos. A quarta divisão militar de Camiri desencadeia a operação "Cynthia" - o nome da filha
de Barrientos -, cujo objectivo é empurrar os guerrilheiros para norte do rio Grande, território da oitava divisão. Centenas de homens espalham-se pelos vales profundos,
pelos sendeiros, pelas margem dos rios, etc.
No fim de Julho desertam mais dois resacas. São presos por um pequeno pormenor. Alguns soldados surpreendem-nos a tomar banho num ribeiro. Interrogam-nos da margem.
Eles dizem que são vendedores ambulantes mas, ao afastar um insecto, um deles tira o braço fora de água e revela um antebraço cheio de arranhões profundos. É a marca
característica dos guerrilheiros, obrigados a abrir caminho entre espinheiros, para evitarem as estradas. São detidos. Um deles, chamado "Chingolo", irá fazer como
Bustos. Conta tudo e mais ainda. Conduz os militares aos esconderijos mais secretos do Ñancahuazu, onde estão os medicamentos para a asma tão necessários a Guevara.
"Dia negro", volta a escrever este último, que avalia bem a catástrofe quando, a 14 de Agosto, ouve a notícia na rádio. "Estou condenado a sofrer de asma. Levaram-nos
também toda a espécie de documentos e fotografias. Foi o golpe mais duro que sofremos. Alguém deve ter falado".

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A partir daí, a história da guerrilha não é mais do que a crónica desolada de uma morte anunciada na qual, um a um, os guerrilheiros lutam e sucumbem.
Estranho desfazamento em perfeita sincronia: enquanto o Che se esgota no calvário boliviano, em Havana o seu nome soa mais forte do que nunca, a sua imagem difunde-se,
tornando-se omnipresente. É sob a sua presidência "honorária" que abre a OLAS (31 de Julho-10 de Agosto de 1967), a primeira conferência da Organização Latino-Americana
de Solidariedade, criada no ano anterior, por ocasião da Tricontinental. Com uma tiragem de várias centenas de milhares de exemplares, a sua Mensagem aos Povos do
Mundo, de Abril, é distribuída com uma amplitude sem precedentes desde o discurso de Fidel após o assalto ao quartel Moncada (A História Absolver-me-á). Por toda
a parte, os edifícios exibem retratos do guerrilheiro. Por toda a parte se estende, em letras gigantes, negras sobre fundo vermelho, o seu apelo à "criação de um,
dois, vários Vietnames".
O ELN, Exército de Libertação Nacional da Bolívia, não enviou nenhum delegado, e não foi por acaso! Mas isso não é problema: os "serviços" cubanos inventam uma mensagem
de saudação que registam e assinam com um apócrifo "Ricardo Silva". "Milagre da telepatia", comentará, sarcástico, Guevara. Mas, em Havana, é ainda o representante
do Partido Comunista Boliviano que menos escrúpulos tem. O discurso comum do PCB, do PRIN e da Central Operária (COB) é uma obra-prima de insipidez. Contudo, é referida
a presença na Bolívia, entre os "chefes guerrilheiros", de Roberto Peredo (Coco) - não se fala de Inti, seu irmão, membro do Comité Central e a declaração final
da praxe inclui um "Viva os corajosos guerrilheiros!" que não leva a nada107. Quatro semanas depois, o Che regista no seu diário: "Decifrou-se a mensagem completa
que afirma que a OLAS foi um sucesso mas que a delegação boliViana era uma merda. Aldo Flores, do PCB, afirmou ser representante do ELN e foi necessário desmenti-lo"
(5 de Setembro).
Em Cuba, para aqueles que manobram a política e zelam pela imagem internacional da Revolução, será assim tão importante, no fundo, que Guevara esteja vivo ou morto?
Ele cumpre tão bem o seu papel que o símbolo está prestes a levar a palma sobre a realidade. A quem tivesse o atrevimento de criticar os cubanos por um "pacífico-revisionismo"
ditado pelo campo socialista, fornecedor do oxigénio necessário à sobrevivência do país, seria fácil responder, peremptoriamente: "Vejam o Che, o nosso Che. Ele
luta, de armas na mão, algures na América Latina. O que prova que nós não somos revisionistas". Dois ferros ao lume. Velha fórmula, que já deu bons resultados.
Nesse mesmo mês de Agosto - "o pior mês que tivemos" -, a odisseia do Che e dos seus homens atinge as raias do martírio. "Só marchávamos à força de uma vontade férrea.
Há três dias que não tínhamos uma gota de água nem nada para comer", escreve Pacho108 (28 de Agosto). Mais ainda do que a fome, é a sede que atormenta os "corajosos
guerrilheiros" exaltados em Cuba. O Che especifica: "Alguns camaradas estão completamente prostrados com a sede" (29 de Agosto). "Os macheteros desmaiaram. Miguel
e Dano

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beberam a urina e El Chino fez o mesmo, com resultados nefastos: diarreia e cãibras" (30 de Agosto). É nestas circunstâncias extremas que se reactiva a cultura camponesa
de Benigno. Trepa a uma árvore, perscruta o horizonte, avista ao longe uma mancha mais verde. Vai lá ver. Salvos! Entre dois rochedos escorre lentamente um fio de
água. Dá para encher, com paciência, todos os cantis dos camaradas109.
Quando, a 1 de Setembro, o grupo do Che chega finalmente a casa de Honorato Rojas, já conhecido durante a marcha de exploração de Fevereiro, os homens ignoram o
drama ocorrido na véspera, muito perto dali. Rojas é o homem de chapéu de palha que se vê numa má fotografia tirada a 10 de Fevereiro, a fazer uma festa a um dos
seus filhos, que o Che sentou ao colo. "É demasiado maleável", escrevera então Ramón; "capaz de nos ajudar, mas incapaz de prever os perigos que isso acarreta e,
por isso, potencialmente perigoso". Nunca um diagnóstico fora tão certeiro. O camponês não resistiu às ameaças de represálias nem, segundo a Prensa Latina, às promessas
de recompensa de um agente da CIA, chamado Irving Ross.
Contudo, a 2 de Setembro, ainda sem acreditar nisso, Guevara anota no diário: "A rádio transmitiu uma má notícia sobre a liquidação de um grupo de dez homens comandados
por um cubano chamado Joaquín, na zona de Camiri; mas é a Voz da América...". Nesse dia, a Voz da América falou verdade; ou quase: dois escaparam.
Amputada de sete membros - quatro mortos, três desertores - a coluna de Joaquín já só conta com dez sobreviventes quando, a 30 de Agosto, pede a esse mesmo camponês
que os guie, para atravessar o rio Grande a vau, a cerca de um quilómetro dali.
Rojas tem junto de si dois soldados quando o latir dos cães anuncia a chegada do grupo de Joaquín. Um dos soldados não ouve nada, porque foi pescar no rio; o outro,
que contou a história na revista boliViana Sucesos110, despe-se logo, esconde a espingarda e mete-se na cama, fingindo-se doente com malária. "É um amigo meu, que
estou a tratar", explica Rojas. Assim que os guerrilheiros partem para instalar o acampamento a cento e cinquenta metros dali, manda o filho de oito anos avisar
o outro soldado, que vai a correr transmitir a informação ao destacamento militar, a 13 quilómetros. Na madrugada seguinte, Rojas, que foge com toda a família para
evitar o combate que se anuncia, é preso pelo capitão Vargas, que vem fazer uma emboscada com a companhia. O capitão convence firmemente o camponês a desempenhar
o seu papel até ao fim, conduzindo os guerrilheiros à passagem do rio que ele conhece, em Puerto Maurício. "Veste uma camisa branca para não te confundirmos", dizem-lhe.
E ele assim faz.
Às 17 horas, cinco da tarde, hora clássica da estocada de morte nas touradas, enquanto Rojas fica na margem, Braulio é o primeiro a atravessar o rio. Seguem-no,
em fila indiana, a cinco ou seis passos de intervalo, os outros nove; Tânia vai no meio, Joaquín atrás. Quando estão todos na água até à cintura, desencadeia-se
o tiroteio a partir das duas margens. É uma carnificina.

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Contar-se-ão sete a oito impactes de bala em cada corpo. Os corpos de el Negro e de Tânia são levados pela corrente. O de Tânia só será encontrado já decomposto,
uma semana depois. Todavia, dois homens conseguem escapar, sendo em breve apanhados: José Castillo, o único ressaca que não desertou, e Freddy Maimura, um médico.
Este último será abatido três dias depois. Castillo, aliás Paco, marceneiro comunista de Oruro, cumprirá três anos de prisão.
A emboscada, de que o exército se gabará - é o seu primeiro êxito militar -, ficará conhecido como a vitória de Vado del Yeso*.

Nota: * Vado del Yeso é o nome de um baixio a poucos quilómetros dali, no rio Masicuri. Mas para não criar complicações com a 4ª divisão, cujo território atribuído
incluía essa porção do rio Grande, a 8ª divisão, da qual faziam parte os autores da emboscada, preferiu situar o confronto um pouco mais a norte, na "sua" circunscrição.
Subtilezas da burocracia militar.

Já não são os dias que são "negros", para retomar a expressão de Guevara mas as semanas inteiras. Setembro inteiro é gasto numa lenta subida para norte, para Vallegrande,
para uma hipotética saída da armadilha, procurando evitar o confronto com um exército que "dá mostras de uma maior eficácia na acção" - o Che admite-o -, e aperta
o cerco. A 8.ª divisão militar do coronel Zenteno (Santa Cruz) - "rival", a norte do rio Grande, da 4.ª divisão do coronel Reque Terán (Camiri) - lança "operação
Parabano", destinada a encurralar os guerrilheiros a sul de Vallegrande. O presidente Barrientos já exulta. Vem pessoalmente felicitar os soldados de Vado del Yeso.
Faz circular folhetos e comunicados na rádio, anunciando aos guerrilheiros bolivianos que lhes será poupada a vida se se renderem. E promete uma recompensa de 50
000 pesos a quem facilitar a captura de Guevara morto ou vivo; o que não é muito (4 200 dólares). "Um jornalista bem intencionado considerou que era pouco, para
o perigo que eu represento", ironiza o Che a 12 de Setembro.
Apesar do seu gosto pelo sarcasmo, o comandante não deixa de reconhecer que estão todos à beira do esgotamento, começando por ele próprio. Já não é aquele cansaço
feliz que os fazia regressar, quase alegres, das marchas de treino em Pinar del Rio, há precisamente um ano, quando Fidel cronometrava os seus tempos. Agora, um
cansaço imenso apoderou-se do grupo, certamente acrescido pelo abatimento provocado pela notícia do extermínio dos companheiros em Vado del Yeso.
Aliás, há pequenos pormenores que se conjugam com as grandes emoções. Ao atravessar o rio a nado, o Che perde as suas botas boas, compradas em Paris, sempre mal
apertadas. Este género de acontecimento é quase tão grave como um grande desgosto pois, para um guerrilheiro que marcha, não ter bom calçado constitui uma enorme
desvantagem. "Agora tenho de andar com abarcas, o que não me agrada nada", escreve ele a 10 de Setembro. As abarcas são aquelas sandálias artesanais que os camponeses
bolivianos fabricam com tudo o que pode servir de palmilha e que apertam com fitas grosseiras. El Nato (Julio Méndez), um boliviano sempre prestável e habilidoso,

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fabricou logo um par para o seu comandante. Parecem mais os mocassins dos índios de Fenimore Cooper. Afinal, não será Guevara, para alguns, o último Moicano?
O grupo dos vinte e dois guerrilheiros sobreviventes avança numa procissão que mais parece de um cortejo de salteadores. Barbudos, de arma a tiracolo, roupa em farrapos,
ajoujados como bestas, assustam os camponeses que, assim que os vêem, fogem aterrorizados. "Encontrámos pouca colaboração, é necessário recorrer às ameaças" (5 de
Setembro). Voltaram as crises de asma do Che. Não havendo medicamentos, às vezes pede que o pendurem numa árvore, para aliviar os pulmões. Outras vezes, fazem-lhe
uma massagem ao peito e às costas. Já nem consegue aguentar-se em cima da mula. "Tive de continuar a pé". Adivinha-se que o seu organismo exausto se queixa. Mas
estão todos mais ou menos nas mesmas condições. "Eu, com uma crise de fígado e vómitos; os homens esgotados com marchas que não dão em nada" (24 de Setembro). El
Medico está doente como um cão. Desde Ñancahuazu, há meses que se arrasta, atrasando toda a gente; é um peso morto. El Chino está na mesma. O peruano Juan Pablo
Chang tinha vindo em Março só para uma reunião de poucos dias, para em seguida voltar a partir, a fim de organizar a guerrilha no seu país. Foi arrastado na aventura.
Há seis meses que se arrasta. Não aguenta mais, geme, tropeça, está quase cego, sempre a perder os óculos de lentes grossas de míope, que lhe dão um ar de Sr. Magoo,
dos desenhos animados. Mas ninguém pode ralhar com ele. O Che protege-o com uma indulgência especial.
Precisam de ganhar forças para romper o cerco, o que significa correr riscos, isto é, caminhos frequentados, jogando tudo por tudo. A rádio anunciou a prisão de
Loyola Guzmán, a estudante dedicada que, também ela, só sabia dos seus camaradas pelos comunicados das forças armadas na rádio. Foi identificada graças às fotografias
imprudentes guardadas nos esconderijos de Ñancahuazu. Com ela cai o elemento mais sólido de uma rede urbana que permanecera no estado virtual.

Encurralados!

Na conferência pan-americana (OEA) de Washington, no final de Setembro, "o chanceler boliviano causa sensação apresentando "provas irrefutáveis" da participação
do comandante Ernesto Guevara na guerrilha revolucionária cubana" (Le Monde, 25 de Setembro de 1967). As fotografias - uma centena! -, que o ministro boliviano revela
aos seus homólogos do continente, provêm do material descoberto no acampamento central; é provável que os peritos da CIA tenham ajudado os serviços secretos bolivianos
a organizar, triar, "esclarecer" esses documentos. São também exibidos os dois passaportes falsos uruguaios, com as fotografias do senhor careca, traído pelas arcadas
supraciliárias protuberantes; as impressões digitais estão a ser verificadas na

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Argentina. O jornal parisiense precisa: "Os meios oficiais americanos [que] tinham feito passar a tese de Fidel ter liquidado o Che são forçados a reconhecer que
Che Guevara está vivo. [...] O presidente Johnson defende "um recurso decisivo à força" para lutar contra a "subversão castrista".
O presidente dos Estados Unidos não ignora o trabalho que os seus boys fazem na Bolívia. No campo de treino de La Esperanza, os cursos acelerados dos "Boinas Verdes"
terminam um pouco mais cedo do que o previsto. É que, na zona de operações, há uma necessidade urgente desses recrutas novos e determinados. Ensinaram aos soldados
bolivianos a arte de combater uma guerrilha, enalteceram o moral das tropas, forneceram-lhes boas armas, munições, aparelhos de comunicação que não são totalmente
novos, mas funcionam; ensinaram-nos a marchar em silêncio na floresta, a fazer uma emboscada. Todos vestem belos camuflados, com a etiqueta U. S. Army. São os Rangers
do regimento Manchego. São seiscentos e quarenta. A 24 de Setembro desfilam na cidade de Santa Cruz. A 25 começam a ser transportados em camiões, na região do rio
Grande, primeiro para Vallegrande e depois para Pucara. As informações, que não param de chegar, indicam ser nessa zona, em torno de La Higuera, que os guerrilheiros
actuam.
Luis González e Gustavo Sánchez, dois jornalistas que procederam a uma investigação rigorosa, pouco tempo depois destes acontecimentos, revelam que quando, em meados
de Setembro, os militares, embriagados com o êxito de Vado del Yeso e com a descoberta dos esconderijos de Ñancahuazu, começaram a cantar vitória, principiou a manifestar-se
uma reacção popular espontânea nos meios da esquerda nas cidades em torno de uma palavra-de-ordem: "Salvar o Che"110. Alguns comunistas dissidentes teriam mesmo
encarado a hipótese de formar um contingente para ir reforçar os guerrilheiros. Mas, por falta de estrutura e de meios, o projecto não foi avante. Merece ser referido
porque mostra que as boas vontades existiam, que o prestígio do Che era grande, que teria sido possível a um partido, a uma organização decidida, ir em socorro de
Guevara. Este teve a desvantagem de não poder apoiar-se num aparelho análogo ao que o Movimento 26 de Julho, em Cuba, representou para Castro. O PCB recusou-se a
fazer esse papel. E, por seu turno, o Che "omitiu" a verificação desse ponto antes de se lançar na aventura. Foi enganado? Terá contado - com bastante presunção!
- com um efeito de arrebatamento do exemplo guerrilheiro, com a dinâmica da acção? De momento, o comandante e o seu pequeno grupo não podem contar senão com eles
próprios.
Os habitantes da pequena aldeia de Alto Seco, alcandorada a 1 900 metros, ficam divididos entre a curiosidade e o medo quando vêem surgir, a 21 de Setembro, a passos
lentos, sem tomarem grandes precauções, esses estranhos fantasmas. O presidente da Câmara já não está lá. Foi a correr alertar as autoridades. "Como represália,
ocupámos-lhe a loja", escreve o Che. Muito bem, mas então o que é feito das medidas de segurança, até aí exigidas?
No dia seguinte, Inti e Coco Peredo fazem ambos um pequeno discurso político aos habitantes reunidos, que escutam, num silêncio inexpressivo,

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palavras que não entendem. Um jornalista da Presencia (La Paz), que virá em reportagem poucos dias depois (4 de Outubro), conta que um camponês chegou a perguntar
a um dos guerrilheiros anónimos se podia juntar-se a eles. Ao que este lhe respondeu: "Não sejas parvo; nós estamos lixados... não sabemos como sair daqui"111.
Mas Guevara parece saber, pois continua, com uma bela lógica, a rumar a noroeste. O que já não é tão lógico é já não se esconder; não hesita em mostrar-se quando
sabe - é ele que o diz: "Somos anunciados pela Radio Bemba" (25 de Setembro), isto é, pelo passa-palavra, e reconhece: "Começa a ser perigoso andar com mulas, mas
estou a tentar que o médico viaje nas melhores condições possíveis, porque está muito fraco". A sua imprudência dever-se-á apenas à preocupação de poupar o doente
ou provirá de uma atitude mais profunda, de um "comportamento de fracasso", talvez inconsciente, que só pode desembocar num desfecho fatal?
É esta última hipótese que Régis Debray defende; o seu encontro com Guevara marcou-o como um ferro em brasa. Debray afirma que "o Che não foi para a Bolívia para
ganhar, mas para perder. [...] Eu próprio demorei vinte anos para confessar a mim mesmo esse paradoxo, confirmado por múltiplos indícios"112. Seríamos tentados a
partilhar a opinião do autor de La Critique des Armes, se não existissem algumas indicações contrárias.
Dia 26 de Setembro. Os guerrilheiros abandonam toda a vigilância. Dormiram, mortos de cansaço, à beira da estrada, correndo o risco de serem surpreendidos. De madrugada,
chegam a Abra del Picacho, "o ponto mais alto que atingimos: 2 280 metros". A aldeia celebra a festa da Primavera (austral). Mal têm tempo de beber um copo de chicha
e voltam a descer até La Higuera. A 1 500 metros de altitude, a pequena aldeia perdida na montanha foi mais ou menos abandonada pelos seus duzentos habitantes. O
presidente da Câmara, Anibal Quiroga, fugiu como todos os restantes. Encontram no escritório do telegrafista um telegrama (com data de 22) pedindo que alertem Vallegrande
logo que os guerrilheiros fossem vistos na zona.
O Che envia os cinco homens da sua vanguarda por um caminho bem traçado. Mas a iniciativa mudou de campo: mesmo à saída de La Higuera, caem numa emboscada. Tiroteio
prolongado. Um pormenor - mais um - salva a vida de Benigno. À cabeça da coluna, parou um momento para tirar uma pedra das abarcas (pois também ele já não tem botas).
É o seguinte, Miguel (o capitão cubano Manuel Hernández), que apanha o primeiro tiro; morte imediata. Caem, por seu turno, os bolivianos Julio (Mario Guttiérez),
um médico de 28 anos, formado em Cuba) e Coco (Roberto Peredo), outro militante dissidente do PCB. "A perda mais grave depois de Rolando", escreve o Che. Coco foi
ferido de morte, mas ainda respira. Sob as balas, Benigno consegue pô-lo às costas, para fugir. Vergado sob o peso, recebe pelas costas uma bala que, atravessando
o saco, acaba com Coco, agonizante, e vai alojar-se-lhe perto do pescoço, na omoplata. Ficará anos com ela dentro do corpo113. Na confusão, dois homens perdem-se
do grupo, Camba (Orlando Jiménez), que já

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manifestara vontade de renunciar e León (Antonio Domínguez), membro do PCB, que fazia de peón na finca de Ñancahuazu). Este último aproveita para desertar. O Che
resume a questão numa palavra: "Derrota"!
Agora não são mais do que dezassete, com um ferido, três doentes, e o moral nas lonas. A rede aperta-se. Eles procuram uma malha solta para escapar; mas há soldados
por todo o lado. A rádio boliViaña dá poucas notícias. É através de uma estação chilena que o comandante da coluna fica a saber que o exército fez deslocar 2 000
soldados para a zona, que "Che Guevara está encurralado num vale selvagem"! (30 de Setembro). Os diários de Guevara, Pombo e Pacho concordam na descrição da situação:
Rodeados!


Nesta página existe um mapa com os movimentos da tropa boliviana e dos guerrilheiros intitulado A QUEBRADA DO CHURO E LA Higuera: último combate

Pombo explica a táctica do Che: não se mexer durante uns dias, dar a entender que saiu da zona. Contudo, é necessário moverem-se: soldados e camponeses passam muito
perto do sítio mal protegido onde se escondem os guerrilheiros. Ouvem-nos falar. Pacho: "Abrir uma lata de conserva, mesmo com cuidado, parecia-nos uma barulheira
infernal" (28 de Setembro). "Ontem, o Fernando disse-me que tínhamos acabado de nascer de novo. [...] O ruído de um cantil pode custar-nos a vida". (29 de Setembro).
"Fernando vai à frente,

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apresssando El Chino (Mister Magoo)" (30 de Setembro). "Fernando pede-me que lhe carregue a pistola. Segura-a na mão, como se estivesse mais disposto a matar-se
do que a deixar-se prender" (1 de Outubro).
O denominado Fernando tem o ouvido colado à rádio: os desertores falaram, deram todas as informações sobre o número de guerrilheiros, o seu estado de espírito, as
suas carências, etc. Regista: "Ouvimos uma entrevista de Debray, muito corajoso, perante um estudante provocador". (3 de Outubro). Na avaliação que fizera de todos
os que entraram na guerrilha, o Che escrevera sobre Danton, após a sua prisão: "Perdemos um excelente quadro intelectual, mas duvido que desse um bom guerrilheiro"114.
A 26 de Setembro, o processo de Debray e de Bustos prossegue em Camiri, depois de inúmeros adiamentos, de inúmeros interrogatórios, de inúmeras diligências por parte
de Jeanine Debray, mãe de Régis, vice-presidente do Conselho Municipal de Paris, do pai, advogado, do embaixador de França, Dominique Ponchardier. A terra inteira
parece ter-se mobilizado para salvar o intelectual francês, que decidiu assumir ele próprio a sua defesa. Os comentários insidiosos sugerindo ter sido ele a indicar
aos militares as pistas do Che saíram gorados, mas voltarão a surgir, sobretudo depois de Debray ter rompido com Castro e dos processos estalinistas do "Inverno
do patriarca"115. O terceiro indivíduo, Roth, foi libertado em Julho, mostrando que os militares bolivianos sabem distinguir um "verdadeiro" de um "falso" jornalista!
Vagabundos curvados sob o peso da carga, eis a imagem dos dezassete homens que aguardam o ocaso para se porem a caminho em silêncio, entre a noite e o nevoeiro,
conscientes de estarem cercados e de o próximo combate poder ser decisivo. Inti está deprimido com a morte do irmão. Benigno caminha com uma bala nas costas, perde
sangue, "sofro como um animal [...]. Tenho até larvas que caem por si", explicará ele116. A água, muito rica em magnésio, acentuou as cólicas. Mas é rara. A sede
consome os guerrilheiros. Guevara: "Partimos ao cair da noite, com os homens esgotados pela falta de água e Eustaquio a fazer uma cena, chorando por uma pinga de
água" (5 de Outubro). Neste inferno, o peruano el Chino é o mais lastimável; não pára de tropeçar, levanta-se, volta a cair. Não vê onde põe os pés, uma das lentes
dos óculos partiu-se, e ele chama: "Fernando, Fernando..." O Che volta atrás, trata dele como de uma criança, mas resmunga no diário: "El Chino está mesmo a tornar-se
um peso morto". São raros os que ainda têm calçado - gasto pelos caminhos. Quase todos fabricaram abarcas. Mas elas não protegem dos espinhos que abundam nesse Gólgota.
Pacho: "A marcha durante a noite foi um inferno. Os espinhos cravam-se nos pés, nas pernas, dos lados, junto da cabeça. É terrível. Só a autoridade de Fernando consegue
fazer com que os homens avancem"117 (1 de Outubro).
Um exercício físico tão violento que deixa o grupo estupefacto, marca o dia 7 de Outubro. Tem o valor de um símbolo. Guevara não se lhe refere no seu diário, mas
Pombo e Benigno não o esqueceram. Uma falésia a pique, perigosa, barra-lhes a passagem ("una faralla peligrosisima"). O obstáculo é considerado intransponível. Tanto
mais que é necessário em seguida saltar uma

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cratera com um metro e meio de largura, no fundo da qual estagna uma água gelada. Pombo: "Os homens estavam exaustos. Ninguém queria prosseguir"118 O Che decide-se
então, apesar de estar doente. Lança-se a escalar a falésia, agarra-se à rocha como um animal, trepa, iça-se, consegue chegar lá acima, e em seguida ajuda os outros
a subir. Benigno: "Quando não queríamos avançar [...], sempre que era preciso coragem, audácia, uma vontade férrea, o Che estava lá"119. Será esse o comportamento
de alguém que caminha para a derrota, que caminha para a morte? Será possível ver nisso um mero instinto de sobrevivência numa atitude suicidária, retomando a expressão
de Régis Debray? O Che deixou-se morrer na Bolívia? Não haverá antes, nessa obstinação em prosseguir, o sinal de um desejo de viver, de combater, de possível vitória,
mesmo que pareça improvável? Questões sem resposta, mesmo admitindo que por vezes a tentação de acabar com tudo seduz como uma vertigem. "O meu destino é morrer
como um guerrilheiro e hei-de morrer como guerrilheiro", dissera ele a Carlos Rafael Rodríguez120, antes de sair de Cuba. O Che, como Camilo, esteve sempre a tourear
a morte.
No diário de Guevara, a página do dia 7 de Outubro é célebre: é a última. O Che faz, com uma serenidade incrível, uma espécie de balanço positivo. Está cercado por
todos os lados, encurralado no fundo de um vale; perdeu metade dos homens. Mas escreve: "Os onze meses que passaram desde que iniciámos a guerrilha terminaram sem
complicações, bucolicamente [!]. Até às 12h30, hora em que uma velha veio guardar as suas cabras no vale onde estávamos acampados, e tivemos de a prender". Durante
muito tempo pensou-se que fora essa velha que, uma vez posta em liberdade, os denunciara. Nada disso.
Foi um camponês, Pedro Peña, que se assustou. Na noite de 7 para 8 de Outubro, antes do romper do dia, veio com uma pequena lamparina abrir um rego no seu campo
de batatas. Guevara observara: "Partimos, todos os dezassete, por uma noite de lua nova. [...] Neste vale há sementeiras de batatas regadas por caleiras [acequias]".
O camponês, avistando os guerrilheiros, apagou logo a candeia. Ao romper da aurora foi logo contar a novidade na aldeia. O presidente da Câmara de La Higuera, Anibal
Quiroga, transmite a informação ao sargento Carlos Pérez, da companhia A, ali acantonada com um pequeno destacamento. Este, como não pode alertar pela rádio o seu
chefe, acantonado em Pucara, a 15 quilómetros dali, previne o capitão Gary Prado, (companhia B), colocado em Abra del Picacho, a 3 quilómetros. Este último vem imediatamente
com quarenta dos seus Rangers. Prepara um dispositivo clássico de "limpeza" das duas quebradas, que se unem em baixo conduzindo ao rio Grande. Soaram as clássicas
três pancadas.

<Tengo a Papá"

São raros os que, num mapa, sabem situar com precisão a Bolívia. Mais raros ainda, mesmo entre os bolivianos, os que sabem dizer onde fica La Higuera e a quebrada
do Churo, nos confins do Sudoeste do país. Esse

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pequeno vale que "quebra" o relevo médio da cordilheira dos Andes - daí o seu nome, quebrada - teria permanecido anónimo durante vários séculos, com a pequena aldeia
lá no alto, se não se tivesse transformado, em dois dias de 1967, no palco de um acontecimento de alcance internacional, que fará crepitar os telexes de todo o mundo.
A noite foi curta para os guerrilheiros. Às quatro horas da manhã, nesse domingo de 8 de Outubro, os dezassete sobreviventes do ELN puseram-se a caminho. Às seis
horas, quando o primeiro clarão da aurora faz prever um dia quente, o Che anuncia uma pausa. Chegaram perto da intersecção de três vales que se alargam ao descer
para o rio Grande. "Não dei nem mais um passo, deixei-me cair", conta Benigno, que já não consegue servir-se do braço direito e segura a espingarda com a mão esquerda.
O cansaço desse guajiro incansável é tal que se deixa cair numa poça de água - "muito fria" - que lhe chega acima do joelho. No entanto, quando o comandante lhe
pergunta: ""Sentes-te em condições de partir em reconhecimento?", ele responde: "Claro que sim, Fernando". - Estamos metidos numa alhada, continua o Che, olhando-o
fixamente. [...] Não sei porquê mas parece-me ter chegado a hora do nosso último combate""121.
Em grupos de dois, o Che envia três patrulhas a detectar o ponto mais favorável para saírem da ratoeira. Inti relata que o Che, numa análise rápida, calculara que
se fosse necessário travar um combate de manhã, teriam poucas hipóteses de se safar, mas que, depois do meio-dia, talvez fosse possível aguentarem até a escuridão
da noite, velha cúmplice, lhes permitir escapar ao cerco.
Ninguém está de acordo quanto à hora do início dos combates - 11h30, diz Benigno; 13h30, garante Inti, que no entanto estava mesmo a seu lado.
13 horas, indica no seu relatório o capitão Prado, que dirige a operação militar. Os Rangers do regimento Manchego espalharam-se por toda a zona, sob o comando do
coronel Zenteno e do major Ayoroa. O capitão Prado comanda a companhia B. Fez bons estudos, fala inglês. Serviu de intérprete aos "Boinas Verdes" norte-americanos
do campo de La Esperanza que, com excepção de dois porto-riquenhos, não falam espanhol. Chegado a Pucara no dia a seguir ao confronto de 26 de Setembro, foi ele
que capturou Camba, o guerrilheiro que fugira; passeou-o com uma trela, diante dos soldados, para lhes mostrar que, no fundo, um guerrilheiro não era algo de tão
terrível.
Quanto aos combates, é sabido que cada um tem deles apenas uma visão muito parcial. Benigno, mais bem situado que os outros, dá-nos, talvez, a versão menos incompleta
desse dia "histórico". Quando, ao romper do dia, avisa que os cabeços estão cheios de soldados, o Che manda-o voltar a esconder-se, com Inti e Dario, na encosta
oposta, para vigiar os movimentos do inimigo. A ordem é de não serem os primeiros a disparar. Os três homens só dispõem como refúgio de uma árvore pouco frondosa
- é a estação seca -, cujo tronco mal chega a ter a largura de um homem. Revezam-se para avaliar, com o canto do olho, o avanço dos Rangers que, espalhados em leque,
descem de todos os lados.

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Aniceto Reynaga, um mineiro de Potosi, é o primeiro a cair. Assim que os soldados o avistam desencadeiam um tiroteio intenso, com metralhadora e morteiro, enquanto
ele corre para o posto de comando de Fernando. Ter-se-á ele exposto quando quis socorrer El Chino, num estado lastimável? É provável que tenha sido nesse primeiro
tiroteio que o Che foi ferido. Uma bala atingiu-o na perna direita. Outra bateu no cano da espingarda. Até o boné ficou perfurado... Benigno perdeu de vista o chefe;
o seu ferimento já não sangra, mas incomoda-o. Apesar de tudo, encostou ao ombro esquerdo a sua M-2, uma espingarda-metralhadora ligeira, colocada na posição "tiro
a tiro" e, sem se mostrar, vai acertando quase sempre, sincronizando o seu tiro com os da frente.
Guevara encontra-se só com "Willy" (Simón Cuba, outro mineiro de Huanuni) para o ajudar a avançar. Têm de escapar aos Rangers. Apoiado ao companheiro, Che trepa
em silêncio por uma pequena parede rochosa, que entretanto descobriram. Os dois homens não reparam que, lá em cima, também silenciosos, os aguardam dois soldados,
de arma apontada. Os guerrilheiros vêm por si próprios colocar-se a um metro das duas espingardas. Impossível esboçar qualquer movimento de defesa. É o fim.
"Meu capitão, apanhámos dois!", gritam os soldados do capitão Prado, a quinze metros dali. Ele acerca-se, examina os dois combatentes em farrapos, verifica a sua
identidade consultando a documentação fornecida pela CIA e pelos serviços de informações bolivianos a todos os oficiais. Mantém o sangue-frio quando ouve o comandante
guerrilheiro murmurar: "Sou Che Guevara". Em seguida põe-se a transmitir, pelo emissor de pouca potência de que dispõe, uma mensagem para a base de Pucara, para
retransmissão imediata ao comando de Vallegrande: "Tengo a Papá e Willy. Papá está ligeiramente ferido. Os combates prosseguem". Papá é o nome de código de Ernesto
Guevara entre os militares. São cerca de 15 horas. "Foi verdadeiramente um alívio ver a facilidade com que o lendário chefe guerrilheiro caiu", escreverá mais tarde
Gary Prado, promovido a general122.
Sobre a captura e a morte do Che, existe uma história sagrada, fixada na rigidez oficial a partir da versão apresentada por Fidel Castro. Apesar de todas as imperfeições
da memória, mais vale, no entanto, seguir os testemunhos directos dos protagonistas: os soldados que participaram no combate e o capitão que dirigiu as operações.
Alguns pormenores coincidem, outros não.
Gary Prado afirma que o Che não trazia boné, mas sim uma boina preta com a insígnia do CITE (Centro de Instrução das Tropas Especiais). O atributo tem a sua importância
na iconografia. Benigno afirma que nunca viu essa boina, que o Che trazia sempre um boné com a pala voltada para trás, que até dormia com ele. Prado garante - e
a coisa parece tão incongruente para poder ter sido inventada - que Guevara também tinha, quando foi preso, uma gamela com... meia-dúzia de ovos! Que a sua espingarda
era uma M-1 e não uma M-2, que a sua pistola era uma 9 mm e estava carregada - indicou-o no seu

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relatório, nessa mesma noite - e não sem o carregador, como se disse em Cuba para explicar que o Che tivesse sido capturado vivo.
Cada elemento tem o seu peso a favor ou contra a imagem do cavaleiro branco da Revolução. Gary Prado conta ainda que o Che pediu para beber e para fumar um cigarro;
que, para evitar uma eventual tentativa de suicídio, ele próprio lhe deu água do seu cantil; que o Che preferiu o tabaco negro dos cigarros Astoria ao tabaco loiro
dos cigarros Pacific do distinto capitão, e que encheu com ele o seu cachimbo; que nessa altura libertaram as mãos dos prisioneiros dos cinturões com os quais os
haviam atado de pés e mãos - uma vez que estavam a ser visados pelas armas dos dois soldados que os haviam capturado: o cabo Balboa e um soldado chamado Choque,
nalgumas versões, Tito Sánchez e Angel Aliaga, segundo Prado.
Em Vallegrande, a notícia da captura do Che parece tão inacreditável que é pedida a confirmação. Ao que o capitão Prado responde, com certo humor, que não tem o
hábito de brincar. Aliás, o dia começa a declinar. Os estampidos das detonações continuam ainda a fazer-se ouvir no vale, mas é tempo de regressar a La Higuera.
Há mortos e feridos de ambos os lados. O helicóptero pedido não pode aterrar para levar os feridos; quanto aos aviões com napalm, recebem instruções pela rádio dos
Rangers para que não larguem a sua carga: soldados e guerrilheiros estão demasiado perto uns dos outros. Por volta das 17 horas, o Estado-Maior das Forças Armadas,
em La Paz, recebe a fulgurante notícia. No mesmo instante, cessam os combates na quebrada do Churo.
Uma procissão fúnebre põe-se então a caminho, para voltar a subir os dois quilómetros que separam o local do combate da aldeia de La Higuera. Nos cabeços, até à
aldeia, concentraram-se os camponeses das redondezas, alertados pelos tiros, o barulho dos aviões e o zumbir do helicóptero. À luz rósea do crepúsculo, avançam primeiro
os feridos, transportados em padiolas improvisadas, e os mortos, atados a ramos e troncos cruzados; em seguida, enquadrados por soldados e seguidos pelo grosso da
tropa, os guerrilheiros presos. Guevara caminha a coxear. Antes do mito fazer dele o Cristo libertador dos povos, ele tem já esse aspecto: de braços abertos, apoia-se
em dois soldados. "À direita, estava o meu amigo Hugo Franco, que entretanto morreu; à esquerda, era eu que o apoiava", explica Humberto Montenegro, actualmente
motorista de camiões em Santa Cruz. "Pouco falou pelo caminho. Eu tentava convencê-lo a dar-me o relógio de pulso. Parecia uma espécie de bússola"113.
Na rua principal da aldeia, os habitantes, reunidos contemplam sem uma palavra o longo cortejo dos combatentes e das suas vítimas, que passa ao cair da noite. É
a pequena escola rural de paredes de adobe que nessa noite serve de prisão. Mais uma vez, as versões diferem. O soldado Montenegro, que ficou de guarda uma parte
da noite, é categórico: o Che e Willy estavam juntos numa das duas salas de aula, sem janela, com dois guerrilheiros mortos (Antonio - o capitão Orlando Pantoja
- e Arturo - o tenente René Martínez Tamayo, antigo guarda pessoal de Fidel Castro). "A prova é que, como o meu tenente Totti Aguilera me oferecera um maço de cigarros
LM, ofereci um ao

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Che. Ele disse-me que oferecesse primeiro ao seu camarada, que estava a seu lado. O que ele queria era fugir. Propôs-mo claramente: que em Cuba eu trabalharia com
ele, que nada me faltaria. Eu bem gostava, mas era impossível. À volta da escola havia ainda muitos outros soldados a guardarem-nos. E o tenente Totti também lá
estava"124.
O capitão Prado, pelo contrário, dirá que cada um dos dois guerrilheiros estava numa sala separada, que Willy ficou com os cadáveres dos seus dois companheiros,
mas que o Che estava sozinho quando ele o visitou, nessa mesma noite. "Estava sentado no chão, de terra batida, com um ar aborrecido à luz de uma vela. Não se mostrou
comunicativo, mas falámos um pouco' Falámos até do seu julgamento, provavelmente em Santa Cruz e não em Camiri, visto que fora preso na circunscrição da 8ª divisão"125.
"Disse-me também que os soldados que o tinham ajudado a caminhar lhe tinham tirado os dois relógios", prossegue Prado. "Reagi de imediato, reavi os relógios e entreguei-lhos.
"Não, guarde-os, podem voltar a tirar-mos. Dar-mos-á depois", declarou ele. E marcou o dele com uma cruzinha feita com a ponta de uma pedra, para o distinguir do
de Tuma, que herdara depois da morte deste último. Eram Rolex Oster..." Esta é a versão de Prado. Entregou um dos relógios, o de Tuma, ao major Ayoroa, seu superior
hierárquico imediato e, mais tarde, enviaria o do Che para Cuba.
Ao subir o vale com os seus Rangers, Prado encontrou, à sua espera à entrada de La Higuera, o referido major Ayoroa, comandante de batalhão, e um tenente-coronel
de Engenharia, Andrés Selich, que não tem nada a ver com o caso - está a construir uma estrada com os seus soldados - mas que, conhecendo bem a região, serviu de
guia ao piloto do helicóptero desde Vallegrande. Em conjunto, os três oficiais procedem ao inventário, muito administrativo, do conteúdo da mochila e dos dois sacos
de Guevara: duas agendas, de 1966 e 1967, utilizadas como diário de campanha, dois blocos com os textos das mensagens enviadas e recebidas, dois cadernos para fazer
a descodificação, dois "livros sobre o socialismo", vários mapas da região, corrigidos a lápis, doze rolos de película virgem e uma bolsa contendo dinheiro boliviano
e dólares. Registam também: "uma espingarda M-1 danificada e uma pistola de 9 mm com o respectivo carregador"126. A propósito dos diários do Che, Prado observa:
"Apenas os folheámos rapidamente, mas não resistimos à curiosidade de verificar algumas datas em que os nossos militares tinham intervindo..."127
A fama do guerrilheiro capturado é tal que Selich, recorrendo à sua graduação superior, faz questão de ver também o famoso Guevara. Entra na pequena prisão com Prado
e Ayoroa e permite-se um gracejo de mau gosto: "Vai ser muito fotografado quando o conduzirem a Vallegrande. E se lhe fizéssemos a barba?", disse ele, agarrando
na barba do Che. Prado, única testemunha para além de Ayoroa, conta que Guevara olhou fixamente o adversário e repeliu-o "calmamente" com a mão128. Outros, que não
assistiram à cena, garantirão que, pelo contrário, o Che se libertou do impertinente

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com um gesto brusco. Surgirão muitas histórias deste género. Já não seria apenas Selich, mas também o sargento Pérez que viria importunar o guerrilheiro; e leva
um pontapé (com a perna válida) de Guevara que o atira ao chão... No seu livro, o capitão Prado procura dar uma imagem "positiva" do exército boliviano e é de supor
que algumas arestas tenham sido limadas; mas, se o lermos com cuidado, o seu testemunho apresenta uma vantagem essencial: é o de um protagonista directo.
Finalmente anoitece. A tensão desse domingo intenso abrandou um pouco. Guevara e Willy jantaram o mesmo que a tropa. "Um prato de massa com um pouco de carne", dirá
Prado, acrescentando: "A história da professora da escola que vem visitá-lo, falar-lhe, trazer-lhe comida, tudo isso é pura invenção. Ela só o viu uma única vez,
de relance. Pensa que eu deixaria alguém aproximar-se de Guevara, sem ser um militar?"129
Entretanto, na quebrada, os últimos guerrilheiros tentam agrupar-se, sem o conseguirem. Procuram sobretudo o seu comandante, sem perceber muito bem o que lhe aconteceu,
sem ousarem confessar a angústia que se apodera deles. El Chino agoniza num canto. Pacho também deve estar ferido, mas não se sabe. Quatro homens - um deles doente
(el Medico) e um ferido (Pablito) - estão perdidos, sem o chefe. Conseguirão fugir por uns dias antes de serem capturados, não muito longe, e massacrados. Outros
seis reunem-se no ponto de encontro e decidem romper o cerco: Pombo, Urbano e el Nato; Benigno, Inti e Dano. Três cubanos e três bolivianos. No combate, Benigno
levou um tiro na virilha. Mas marcha, apesar dos dois ferimentos, porque não quer morrer. Nunca o ditado foi tão justo.
Em La Higuera, algumas luzes rasgam as trevas. Dispuseram três filas de soldados à volta da escola prisão. O Che está bem guardado. Às 22 horas chega uma mensagem
via rádio do coronel Zenteno. No seu laconismo, o comandante da 8ª divisão confirma o receio que é legítimo alimentar quanto à sorte do chefe guerrilheiro: "Mantenham
Fernando vivo até à minha chegada, amanhã de manhã, de helicóptero". O coronel ainda não sabe que, a essa hora, em La Paz, o general Ovando, em reunião com o seu
estado-maior e com o presidente Barrientos, estão prestes a tomar uma decisão sem apelo: a morte!

"Mataram o nosso Che"

Dia 9 de Outubro de 1967. Está um dia magnífico. De madrugada, a jovem professora, Julia Cortez, de dezanove anos, é autorizada a entrar na sala de aula transformada
em cela prisional. Troca breves palavras com o prisioneiro, que ainda está de pés e mãos amarrados. De manhã cedo, o helicóptero, sempre pilotado por Niño de Guzmán,
deposita em La Higuera, o coronel Zenteno, acompanhado de um agente da CIA, um exilado cubano anticastrista, Felix Rodríguez, aliás "Ramos", que declara ser capaz
de reconhecer

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Che Guevara. Guiados pelo capitão Prado, os três homens penetram na cela rústica onde o Che está sentado, na penumbra, encostado à parede. O seu ferimento, sumariamente
ligado, já não sangra, mas ainda ninguém o tratou. Zenteno, que fora ministro dos Negócios Estrangeiros no governo anterior, procura fazer falar o prisioneiro. Tempo
perdido. O agente da CIA tira algumas fotografias. Terão poucas hipóteses de ficar boas sem flash mas, para já, está fora de questão trazer Guevara para a luz do
dia, diante dos aldeões que, cá fora, curiosos, se concentram à espera. Para eles, tudo aquilo é um acontecimento. Niño de Guzmán garante que, quando Felix Rodríguez
tenta, por seu turno, interrogar o Che, este, adivinhando certamente pela sua pronúncia a origem cubana do enviado da CIA, declara numa voz nítida: "Não falo com
traidores", cuspindo-lhe na cara130.
Cada hora dessa manhã memorável será objecto dos mais diversos comentários; mais tarde surgirá até a exegese da exegese. Nessa manhã, enquanto o helicóptero transporta
para Vallegrande o grosseiro Selich, bem como dois soldados feridos, o coronel Zenteno e o comandante Ayoroa acompanham por algum tempo o capitão Prado, que regressa
à quebrada do Churo para proceder a uma "limpeza" profunda da área, com a sua companhia. Zenteno - "muito metódico, muito minucioso", dirá Gary Prado - pára no alto
da quebrada para fazer um esboço panorâmico do local. Em seguida regressa à aldeia com Ayoroa.
Entretanto, Felix Rodríguez não fica parado. Sem usar galões, comporta-se como um oficial - está vestido com a mesma farda dos Rangers. Alto, forte, descarado, intimida.
De casa de Anibal Quiroga, transformada em Posto de Comando pelos militares, traz para a luz do sol uma mesa de madeira tosca, coloca-lhe em cima a sua máquina fotográfica
Pentax, assente num tripé telescópico e põe-se a fotografar sistematicamente, sem que ninguém se oponha, todos os documentos encontrados na mochila do Che: o diário,
página a página, os códigos secretos, o texto das mensagens, os blocos com contactos, etc. Regressado à aldeia, Zenteno deixa-o actuar. Preocupa-se mais em saber
como é que os altos comandos em La Paz reagiram à notícia da captura do Che, se foi tomada alguma decisão, se chegou alguma mensagem. Por duas vezes, via rádio,
consulta os seus oficiais em Vallegrande. "Por enquanto nada, meu coronel", respondem-lhe.
Só às onze horas, também via rádio, e em código, chega o veredicto: "Não há prisioneiros!", o que significa: execução imediata dos que foram capturados. Prado avança
a explicação mais plausível para tal decisão: evitar, a todo o custo, um segundo processo Debray. "Debray era uma figura pouco importante na guerrilha, mas a agitação
em torno do seu processo tornara-se muito embaraçosa para o governo, sobretudo no plano internacional. Era necessário evitar um processo análogo que, tratando-se
de Guevara, teria uma repercussão cem vezes maior. Além disso, como não há pena de morte na Bolívia, isso teria levantado complicadíssimos problemas de segurança.
Seria necessário evitar tentativas prováveis de o libertar, etc."131.

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Guevara e Simón Cuba vão, portanto, morrer. Felix Rodríguez já praticamente terminou o seu trabalho. O material fotográfico é precioso. Mas isso não chega. Segundo
ele afirma, a CIA quer o comandante guerrilheiro. Durante muito tempo acreditou que o Che tinha sido eliminado por Castro, fisicamente liquidado, que estava under
ground, enterrado. A partir do momento em que é óbvio ser ele que se encontra à frente da guerrilha boliViana, precisa de se servir dele para desmontar a realidade
da política castrista de subversão nas Américas. Precisa dele vivo para o obrigar a falar, para o exibir em público, para o utilizar como prova da malignidade cubana.
A partir das dez semanas que passou na Bolívia, de quatro horas em La Higuera e de uns breves minutos que esteve diante de Guevara, Felix Rodríguez "escreveu", com
a ajuda de um romancista americano, John Weisman, uma narrativa que, longe de constituir um testemunho credível, é uma verdadeira efabulação. Nada nesse texto resiste
a uma investigação minimamente séria, com excepção de uma observação e de uma fotografia. A observação é que a CIA lhe dera instruções para trazer o Che vivo. "Os
Estados Unidos tinham aviões e helicópteros prontos a evacuar o Che para o Panamá, para o interrogar. Mantê-lo vivo era de uma importância fundamental para a Agência"132.
O agente Rodríguez-Ramos pretende, pois, ter tentado fazer com que Zenteno suspendesse a execução. Em vão.
Quanto à fotografia onde ele surge com o Che, tendo ao lado alguns Rangers, também eles desejosos de passar à posteridade, foi tirada diante da escola, momentos
antes da execução, pelo major Niño de Guzmán, com a máquina fotográfica de Rodríguez, enquanto a população era mantida à distância. Com um outro aparelho fotográfico,
que o chefe dos serviços de informação da 8.ª divisão (major Saucedo) lhe confiara, o piloto do helicóptero tirou também duas fotografias a Guevara. Essas duas fotos,
uma de frente e outra de perfil - esta última de cachimbo na boca - são de qualidade inferior pois, com alguma perfídia, o agente da CIA, fingindo estar a focar,
abriu ao máximo a objectiva, de forma a que elas ficassem sobrexpostas. São essas as três últimas fotografias do guerrilheiro, ele próprio um apaixonado pela fotografia.
São fotografias patéticas. Vê-se um tipo um pouco curvado, quase andrajoso, com aspecto de vagabundo, de cabelos desgrenhados, faces encovadas, mal cobertas por
uma barba de onze meses, os braços unidos ao nível dos pulsos, que se adivinham amarrados. Tem as sobrancelhas franzidas e o olhar sombrio de quem foi arrastado
à força para diante de uma objectiva para a qual se recusa a olhar. Um mocho saído da noite. Comovente e lamentável.
Para executar a ordem do Estado-Maior das Forças Armadas de La Paz, o coronel Zenteno convoca de imediato os sete sargentos e praças disponíveis nessa manhã. Pede
dois voluntários. Apresentam-se dois homens, dois sargentos: Mario Terán, o mais graduado (sargento de primeira classe) e Bernardino Huanca. "Verificar as armas
e execução", ordena o coronel133. As armas são M-2, espingardas-metralhadoras norte-americanas de trinta tiros, que podem disparar em rajada. Parece que os homens
não combinaram previamente a

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escolha da vítima. Ao fazer a meia-volta regulamentar, Huanca encontra-se diante da porta da sala onde está fechado Willy e Terán diante daquela onde está o Che,
depois de o terem retirado por uns instantes para o fotografar à luz clara do sol de Outubro.
Terá o sargento Terán bebido nessa manhã? Estaria bêbado, como chegou a ser afirmado? Os testemunhos não são fiáveis. Prado garante que não houve álcool a circular
em La Higuera, antes da execução. O argumento não serve à escala individual: na Bolívia, é costume beber uma golada de álcool antes de qualquer acção importante.
Tal como é raro não encontrar numa aldeia remota uma garrafa de singani, aguardente ainda mais forte que a chicha. Além disso, nenhum dos sargentos teve ocasião
de ir arranjar algum encorajamento para executar um acto que haviam sido ensinados a cumprir como uma rotina: matar.
Parece que foi Huanca o primeiro a disparar contra o mineiro comunista Simón Cuba (Willy). O Che, separado do companheiro por um frágil tabique, reconhece o som
característico da M-2, e compreende logo o que se passa. É a hora, tantas vezes evocada, do "sacrifício supremo". É claro que preferia morrer de arma na mão, em
solo argentino. Era uma aspiração profunda, sobre a qual falara, em Praga, com Ulises Estrada; e ainda há poucas semanas a repetira a Pombo. Mas não se pode escolher.
Não foi ele que disse: "Pouco importa onde a morte nos surpreenda; ela será bem-vinda..."? Ei-la agora, ignóbil.
É quase meio-dia. Ernesto Guevara, o Che, o argentino cubanizado, "cidadão da grande pátria latino-americana", tomba na longínqua aldeia de La Higuera sob as balas
de um sargento boliviano que, só por esse gesto, saiu do anonimato. Contar-se-ão nove impactes de bala no seu corpo. Muitos outros na parede. O rosto foi poupado.
Segundo a lenda, Terán não ousou disparar, tendo sido o Che a encorajá-lo, chamando-lhe cobarde. Mas o que não dizem as lendas! São as únicas coisas sérias, garante
Régis Debray. A de Guevara era grande, até aí. A partir desta morte desgraçada, tornou-se imensa.
O sargento Terán não mediu bem o quanto a iniciativa de se oferecer como voluntário iria fazer recair sobre si o opróbrio que atinge os carrascos. A partir de agora,
mais não é que o executor do Che. Durante uns tempos, gabar-se-á disso. Depois, com o correr dos anos, terá de se esconder. Diz-se que foi para um convento, espiar
a sua abominação, que se exilou nos Estados Unidos, que se escondeu no Panamá, entre os "Boinas Verdes", após uma cirurgia plástica... A verdade é bem mais prosaica.
Trinta anos depois, vivia ainda na Bolívia. É certo que nunca sai à rua sozinho e prefere circular à noite, por ruas pouco iluminadas. Mora num quartel porque, com
a filha, tem acesso à messe dos sargentos. Entrevistado em Santa Cruz, acompanhado do filho, responde a contra-gosto, querendo saber primeiro quanto lhe pagarão
pela entrevista. O homem é gordo, moreno, desconfiado. Daquilo que diz, recusando qualquer gravação, sobressai um grande sentimento de frustração. Foram os homens
da companhia B do capitão Prado que chamaram a si toda a glória da captura do Che, ao passo que foi ele e os seus companheiros

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da companhia A que fizeram o trabalho todo, encurralando os guerrilheiros na quebrada do Churo, onde seriam apanhados. A execução do Che? Uma ordem que cumpriu,
nada mais.
Foi assim, sem mais, que, nessa mesma manhã de 9 de Outubro, os Rangers trouxeram mais três guerrilheiros após a "limpeza" na quebrada: el Chino, Pacho e Aniceto.
Vivos, feridos, ou mortos? A questão já não se põe. A ordem é não haver prisioneiros. Todos devem ser mortos. Quando, cinco dias depois, a 14 de Outubro, outros
soldados capturam, perto do rio Grande, o médico cubano Octavio de la Concepción, doente, e três guerrilheiros bolivianos em fuga, dão-lhes o mesmo destino. Puras
formalidades.
Só subsistem seis resistentes, decididos a vender caro a sua pele: Pombo, Urbano e Benigno; el Nato, Inti e Darío. Caminharam durante toda a noite subindo o vale.
E, na manhã de 9 de Outubro, perto das 10 horas, encontram-se a escassas centenas de metros de La Higuera. Colam o ouvido ao rádio, que já dá como provável a morte
em combate do famoso Che Guevara. Não imaginam que o seu chefe, ainda vivo, está preso numa das casas da aldeia que está mesmo à frente deles. À tarde, os boletins
informativos tornam-se mais precisos, descrevendo a roupa esfarrapada e suja do guerrilheiro, a cor verde do seu blusão etc. Desta vez, parece não restar dúvida.
Benigno: "Sinto as lágrimas a escorrerem pela cara, mas não quero admitir que estou a chorar... Então ergo os olhos, e que é que vejo? [...] estão todos a chorar
e, a partir desse momento, eu sei. [...] Sei que é verdade. Mataram o nosso Che"134.

Morto sem sepultura

Tendo verificado que as ordens foram devidamente cumpridas, o coronel Zenteno entrega o comando ao major Ayoroa e, sempre acompanhado pelo cubano da CIA, regressa
a Vallegrande (sete mil habitantes) no helicóptero de Niño de Guzmán. Até ao cair do dia, o aparelho não pára de ir e vir entre Vallegrande e La Higuera - uma meia
hora de trajecto. Depois dos militares feridos, a sua missão é trazer os corpos dos sete guerrilheiros executados.
Há muitos jornalistas na pequena cidade colonial de telhados vermelhos, que nunca conheceu tamanha agitação; chegam de todas as partes. De Camiri, evidentemente,
onde estão a "cobrir" o processo Debray, mas também do estrangeiro. Todas as grandes agências cobrem o acontecimento. Às 13h45, o coronel Zenteno dá uma conferência
de imprensa improvisada no hotel Santa Teresa de Vallegrande. Como não é permitido a ninguém deslocar-se à "zona interdita" dos combates, profere, na sua qualidade
de comandante da 8.ª divisão, uma declaração que vai fazer os títulos dos jornais do mundo inteiro: "Che Guevara morreu em combate!" É aí que a confusão começa e
que a imprensa manifesta uma curiosidade "insuportável".
Porque, se muita coisa foi ensinada aos militares, esqueceram-se de lhes ensinar as técnicas da comunicação. Ninguém explicou aos oficiais encarregados

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de se dirigirem à comunicação social a arte de apresentar uma informação, nem a forma de a manipular. Comunica-se, portanto, "à antiga", inventando algumas mentiras
que não se aguentam de pé. Em breve surgirão incongruências. Dezenas de camponeses de La Higuera assistiram à subida do Che, da quebrada até à aldeia. Alguns oficiais
referir-se-ão a declarações atribuídas a de Guevara: "Falhei"; "Os soldados bolivianos são melhores do que eu pensava" etc. Declarações, quando se é morto em combate?
Seriam mensagens de além-túmulo? Mas é a propósito da sepultura do Che que as contradições e as rectificações, grotescas, irão multiplicar-se.
Quando, nesse dia 9 de Outubro, pouco depois do meio-dia, Prado e os seus homens regressam à quebrada, trazendo, como trofeus, os três outros guerrilheiros, Zenteno
acabara de partir. O major Ayoroa vai ao encontro do seu adjunto e informa-o das instruções recebidas de La Paz e imediatamente executadas. "Olhámos um para o outro
em silêncio. Não era isso que esperávamos", escreverá Prado135. Não será uma reacção demasiado ingénua, mesmo para um militar que, na época, se afirmava pouco politizado?
A liquidação devia fazer parte, sem dúvida alguma, das hipóteses a considerar. E apesar do que Prado conta em relação às perspectivas de julgamento perante um tribunal,
é provável que o próprio Guevara não tivesse muitas ilusões sobre o respeito pelas disposições constitucionais por parte do regime do general-presidente.
O que irrita Gary Prado quando lhe falam na narrativa de Rodríguez, que afirma ter tido uma conversa longa e "cordial" (!) com Guevara, são "as invenções desse senhor
da CIA... Ele já lá não estava quando nós regressámos da nossa operação de limpeza. Tínhamos recebido ordem de evacuar "Fernando" em último lugar. Quando a padiola
com o corpo foi amarrada a um dos patins do helicóptero, por volta das quatro e meia da tarde, fiquei impressionado com a quantidade de poeira colada ao rosto do
Che. Limpei-o um pouco e, como o maxilar já estava pendente, amarrei-lhe a cabeça com o meu lenço branco. Como quando se tem uma dor de dentes"136. Nesse preciso
momento chega, a toda a pressa, o padre de Pucara, Roger Schaller, um redentorista suíço. Antes do helicóptero partir, tem tempo de abençoar o corpo inanimado do
descrente Guevara e de lhe fechar os olhos...
À chegada a Vallegrande, pelo efeito do frio, do vento ou da altitude - o aparelho sobe a três mil metros - os olhos de Guevara estão bem abertos, tal como surgem
nas fotografias. No pequeno aeroporto há uma pequena multidão. Os habitantes da cidade concentram-se para verem o famoso guerrilheiro; há muitos jornalistas, que
a tropa dificilmente consegue controlar. Junto dos soldados bolivianos que "recebem" a padiola e correm a enfiá-la numa velha camioneta que os aguarda, detectam
um homem alto e louro, um pouco calvo, que não tem ar de boliviano: é um segundo agente da CIA, Gustavo Villoldo, que usa o nome de "Eduardo González". Cubano anticastrista
como o outro, circula sem insígnia, com uniforme de Ranger, e vigia atentamente o transporte do Che para o hospital do Senhor de Malta (também chamado San Juan de
Dios). Os restos mortais dos guerrilheiros - espectáculo

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atroz - foram depositados no chão da lavandaria do hospital, transformada em morgue. É um pequeno compartimento aberto sobre um recinto de terra batida, onde geralmente
é secada a roupa de cama, afastado do hospital propriamente dito. Guevara tem direito a uma atenção especial, pois colocam-no, com a padiola, sobre o tanque de cimento
que serve de lavadouro.
Em frente dos portões do hospital aguardam uns trinta jornalistas, bolivianos e estrangeiros, fotógrafos e operadores de câmara; têm de esperar que termine uma cerimónia
mórbida. A enfermeira Susana Osinaga estava de serviço nessa tarde. Conta que, sob a orientação do Dr. Martínez Casso, foi feita uma incisão na artéria aorta do
cadáver para injectar formol, de forma a atrasar a decomposição137. Em seguida, duas freiras alemãs procedem à lavagem do corpo e desbastam um pouco a sua trunfa
de vagabundo. Dá-se uma rápida transformação: o malandrim encurvado, hirsuto, carrancudo, transforma-se numa espécie de arcanjo seráfico: os olhos arregalados parecem
fixar uma longínqua quimera, na boca, ligeiramente entreaberta, paira a sombra de um sorriso, a cabeça, um pouco erguida por uma prancha, alinha o conjunto do corpo,
que parece finalmente aceitar o repouso.
Deixam então aproximar-se os jornalistas. Aguardam-nos militares de uniformes impecáveis, que explicam não haver qualquer dúvida quanto à pessoa, que se trata efectivamente
de Ernesto Guevara de la Serna, que as impressões digitais coincidem, que as arcadas supraciliares protuberantes não deixam margem a qualquer dúvida. No jornal Le
Monde de 12 de Outubro de 1967, o enviado especial da agência France-Presse escreve: "Os jornalistas dão mostra de um espanto misturado de incredulidade. Contudo,
um erro de identidade parece estar fora de causa". Uma observação muito simples, que os médicos não farão, nesse dia, diante dos jornalistas, faz cair por terra
a tese oficial de uma morte em combate, na véspera: o corpo não revela a rigidez cadavérica que seria normal. Não houve dificuldade em despi-lo. Fotógrafos e operadores
de câmara são sempre um pouco obscenos, o que é próprio dos "ladrões de imagem". Fotografam o cadáver de Guevara de todos os ângulos, de perto, de longe, de cima.
E fotografam até aqueles que estão a fotografar, trepando sobre o tanque, para recolher uma melhor imagem.
John Berger, crítico de arte inglês, é o primeiro a chamar a atenção para a semelhança entre algumas dessas fotografias e dois quadros célebres de um morto jacente:
A Lição de Anatomia, de Rembrandt, e o Cristo Morto, de Mantegna138. Numa das fotografias, a atenção dos observadores de Vallegrande está centrada em torno do morto,
tal como em Rembrandt. Fixam o cadáver, apontam com o dedo o impacto das balas, tapam o nariz pelo forte odor a formol. Na outra, o Che é apresentado na mesma perspectiva
que em Mantegna, a partir da planta dos pés. Há o mesmo movimento do tecido grosseiro das calças verde-azeitona desabotoado num torso nu e na prega do lençol lançado
sobre a parte inferior do corpo de Cristo.
Depois dos jornalistas, vêm os habitantes de Vallegrande. Tentou evitar-se que eles se aproximassem, mas a pressão tornou-se muito forte. Até ao cair

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da noite, são autorizados a desfilar em silêncio em torno dos guerrilheiros mortos. Guevara tem um ar tão vivo que faz impressão. Ninguém ousa tocar-lhe. Será o
único cortejo fúnebre a que terão direito os guerrilheiros, que em breve vão desaparecer numa sepultura improvável. Porque se coloca de imediato a questão do local
do enterro, se é que há enterro. Para alguns, cujos nomes não são referidos, é a vala comum anónima, ignominiosa. Pretende-se que não volte a acontecer o sucedido
no caso de Tânia, enterrada no cemitério da cidade, cuja campa está sempre florida, através de mãos anónimas. Tratando-se do Che, a resposta é mais complicada, ainda
controversa, trinta anos depois da rajada fatal em La Higuera. Nesse ponto, mais uma vez, os militares apresentaram inúmeras versões.
O general Ovando, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, começou por falar num enterro em local secreto, depois em incineração, para em seguida voltar a falar
de enterro. Zenteno embrulhou-se em declarações não menos contraditórias. Gary Prado afirma conhecer o oficial que procedeu à cremação, mas jurou segredo e, portanto,
não adianta mais. Ora, não existe forno crematório na Bolívia, e queimar um corpo numa pira especial, como na Índia, exige uma mão-de-obra envolvendo vários homens.
Seria impossível que, entretanto, não tivesse transpirado nenhum indício. Além disso, uma operação desse tipo exige dois ou três dias. Difícil de dissimular. Em
1995, uma semi-revelação agitará por algum tempo as salas de redacção. O general Mario Vargas Salinas fala de uma inumação secreta de Guevara, perto da pista do
aeroporto de Vallegrande. O presidente Sánchez de Lozada aceita então que técnicos argentinos, antropólogos especializados na investigação de vestígios de "desaparecidos"
da ditadura dos "anos de chumbo" argentinos (1976-1983), bem como geólogos cubanos, venham fazer pesquisas. Durante dois anos os peritos vão procurar, escavar um
pouco por todo o lado. Em vão.
A verdade talvez esteja na posse do major Saucedo e do tenente-coronel Selich, ambos "falcões" e anticomunistas" declarados. O primeiro preside ao suplício do cadáver,
o segundo ao desaparecimento do que resta. Na terça-feira, 10 de Outubro, Saucedo autoriza, de facto, um tenente-coronel dos carabineiros, Roberto Quintanilla, oficial
de informações, enviado pelo ministro do Interior, Antonio Arguedas, a tirar as impressões digitais, aguardando uma delegação argentina encarregada de confirmar
a identidade da personagem. Mas a delegação ainda não chegou. Tal como ainda não chegara Roberto Guevara de la Serna, irmão do Che, um advogado com pouco dinheiro,
que teve de recorrer à revista argentina Gente para financiar a sua viagem. Na tarde de 10 de Outubro, Quintanilla decide fazer a máscara mortuária do comandante
guerrilheiro, utilizando, para tal, gesso de dentista. A máscara arranca as sobrancelhas e os pêlos da barba. "A operação resultou em pleno", escreve Saucedo139.
A enfermeira Susana Osinaga explica que, pelo contrário, o doutor Martínez Casso se esqueceu de untar previamente o rosto com uma pomada especial e que a pele foi
toda arrancada, até a das pálpebras, deixando o rosto

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em carne viva. "Foi por isso que esconderam o corpo, que já não estava apresentável"140. Mas o horror não acaba aí. A obstinação vai mais longe. Quintanilla afirma
ter recebido instruções do ministro para trazer para La Paz as mãos e a cabeça do guerrilheiro! Recusa de Saucedo que, lá por ser cruel, não deixa de ser cristão,
declara ele; e opõe-se à profanação de um inimigo, mesmo detestado. No meio desta palhaçada quase irreal, há cedências. Guevara fica com a cabeça, mas cortam-lhe
as mãos, acima dos pulsos, a pretexto de servirem para fins de identificação. Desta vez, é outro médico, o doutor Moisés Abraham Baptista, que procede a esse acto
sinistro. Finalmente, embora contrariados, os dois médicos fazem uma autópsia a preceito (e a "pedido"); autópsia que não refere as amputações nem a data da morte).
É a que figura nos documentos oficiais. Declara-se que o denominado Guevara morreu com um tiro no coração e outro nos pulmões, já enfraquecidos. Como terá ele podido
falar com uma bala nos pulmões? A história não o diz.
Que fazer com aquele corpo mutilado, se não é possível enterrá-lo nem cremá-lo? É o tenente-coronel Andrés Selich, encarregado dessas questões, que intervém então,
segundo parece. Saucedo afirma que, na noite de 10 para
11 de Outubro, de madrugada, Selich levou o cadáver. Não esqueceu o desprezo exibido por esse "vermelho", assassino dos nossos soldados, quando Guevara reagiu, na
prisão, ao facto - uma simples brincadeira! - de lhe quererem puxar a barba. Selich comanda um regimento de engenharia, que está a construir uma estrada, de Vallegrande
a Lagunillas. Dispõe de rolos compressores e de betoneiras. Que poderá haver de mais expedito para fazer desaparecer um corpo de guerrilheiro do que reduzi-lo a
uma papa e misturá-lo com saibro e areia? Que melhor maneira de servir os interesses da Bolívia do que facilitar assim as comunicações nessa província tão pouco
beneficiada? Não será uma variante do caixão de cimento, tão ao gosto da mafia? É evidente que não é possível apresentar uma prova irrefutável para esta hipótese,
mas o major Ruben Sánchez, o tal que foi preso e em seguida libertado pelos guerrilheiros, acredita ter sido isso que aconteceu141. Vários investigadores aceitam
essa pista como a mais plausível142. Para além da verosimilhança da coisa, Sánchez recorda que, depois da sua façanha, Selich desapareceu de circulação, volatilizando-se
durante uns meses, até à sua intervenção no golpe de Estado de um general (Banzer) contra outro general-presidente (Torres), e ao seu próprio assassínio, a murro
e pontapé, em 1973, na residência do ministro do Interior da época. Não saímos do horror...
E eis que, a 5 de Julho de 1997, surge a notícia bombástica. A equipa cubano-argentina que, durante muitos meses, escavou 10 000 m2 em Vallegrande, descobre, junto
do aeroporto, uma vala comum contendo sete esqueletos. O esqueleto número dois, segundo a ordem de exumação, parece ser o de Che. O médico legista cubano Jorge González,
formado na ex-RDA, dirige a operação. Um relatório de peritagem assinado pela antropóloga argentina Patrícia Bernardi e pelos outros quatro membros da equipa, confirma
tratar-se realmente de Guevara. O relatório apoia-se em alguns indícios: ausência

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do primeiro molar esquerdo do maxilar superior e "coincidências entre as regiões anatómicas do crânio e a fotografia de Ernesto Guevara", - referindo-se certamente
às protuberâncias características das arcadas supraciliares. Finalmente, quatro impactos de bala encontrados nos ossos do tronco e das pernas corresponderiam ao
resultado da autópsia de Outubro de 1967.
A grande agitação na imprensa, que titula "O Regresso do Che", evoca, para as jovens gerações, a história trágica e bela do guerrilheiro romântico, evoca o mito
e desenterra dos arquivos toda uma iconografia ainda não bolorenta... Todavia, surgem algumas vozes exprimindo algum cepticismo e considerando estranho que essa
descoberta surja mesmo a calhar para dar relevo ao "Ano Che Guevara" decretado em Cuba; a poucos dias da comemoração da morte do herói na altura em que (Outubro
de 1997) decorre o quinto congresso do Partido Comunista Cubano; e a poucas semanas da entronização na Bolívia do novo presidente o general Banzer, que nunca escondera
a sua hostilidade em relação ao prosseguimento das buscas.
Seja como for, a Bolívia autoriza o regresso a Cuba daquilo que se pensa serem os restos mortais do Che e de três dos seus companheiros cubanos. Recuperado post-mortem,
o "morto sem sepultura" vai repousar em Santa Clara, lugar destacado das suas façanhas, num mausoléu especial (construído em tempo recorde). É aí que os turistas,
o bom povo e os estudantes de lenço vermelho virão prestar homenagem ao arquétipo do "homem novo".

A esquerda chora

Poder-se-ia pensar que é a "vingança de Tut Ank Amon", mas Guevara nunca se tomou por um faraó. Um jornalista boliviano ficou espantado com a série de desgraças
que, nos anos que se seguiram, se abateram sobre todos aqueles que tiveram algo a ver com a captura e com a morte do comandante guerrilheiro143. O jornalista Ted
Córdova-Claure chamou-lhe "a maldição do Che". De facto - mero produto do acaso, sem dúvida -, a enumeração é perturbadora, mesmo tendo em conta apenas a hierarquia
militar:
- O general René Barrientos, presidente da Bolívia, morre em 1969, queimado num acidente de helicóptero, cuja causa nunca foi esclarecida.
- O general Alfredo Ovando, que sucede a Barrientos, vê o filho mais velho morrer num acidente aéreo; entra em depressão, perde o gosto pelo poder e morre em 1982.
- O general Juan José Torres era chefe do Estado-Maior na altura em que o Che foi capturado. Diz-se que o seu voto foi decisivo para decidir a liquidação do guerrilheiro.
Em 1976, Torres, que presidira a um governo de extrema-esquerda em 1971, antes de ser destituído por Banzer, é assassinado por esbirros em Buenos Aires, na época
da ditadura sangrenta do general-presidente argentino Jorge Videla.

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- O comandante da 8.ª divisão de Santa Cruz, o coronel Zenteno (promovido a general, e em seguida a embaixador em França) é assassinado em plena rua, em Paris, em
1976, por um intitulado "comando Che Guevara" que nunca existiu. O inquérito inclinar-se-á para um ajuste de contas entre bolivianos.
- O coronel Roberto Quintanilla - o que queria cortar a cabeça de Guevara - é assassinado no seu gabinete de cônsul da Bolívia em Hamburgo, em 1971.
- O tenente-coronel Selich, que escarneceu o guerrillero prisioneiro, foi morto a pontapé em La Paz, em 1973.
- O capitão Prado, comandante da companhia que capturou o Che, foi atingido a tiro nos rins em 1972, andando, desde então, de cadeira de rodas.
Seis mortos e um paralítico. Córdova-Claure observa ainda que esta espécie de fatalidade misteriosa atingiu os protagonistas de um drama que se desenrolou no centro
propriamente geográfico do subcontinente sul-americano. Ir-se-á extrapolar sobre estranhas forças ocultas... A Bolívia é uma terra de lendas e de fantasmas.
A 11 de Outubro de 1967, dois dias após a morte do Che, o Congresso boliviano felicita o Presidente da República por ter defendido a soberania nacional da "agressão
castro-comunista". Cinco dias depois, o Senado dos Estados Unidos exprime, por seu turno, a sua gratidão às forças armadas boliVianas pela sua acção anticomunista.
Um senador chega mesmo a sugerir o aumento do auxílio económico concedido à Bolívia. Mas Luis González e Gustavo Sánchez, autores da primeira investigação séria
sobre a guerrilha, indicam também que, em Cochabamba, a Federação Universitária local decreta luto geral na Universidade, cancela o baile de gala marcado e pede
um minuto de silêncio em memória do comandante Guevara, considerado "cidadão e patriota boliviano"144. A reacção parece minúscula, mas não passa de uma amostra da
gigantesca vaga de homenagens que agitará o mundo inteiro, para saudar o guerrilheiro absoluto, D. Quixote do século XX, condottiere dos tempos modernos, etc.
A esquerda chora. Num soluço quase unânime. Os poetas escrevem elegias, os músicos cantam baladas que começam por lamentos e terminam em gritos de revolta. Chove
em Buenos Aires; a chuva aumenta o carácter indecente das fotografias do cadáver do Che nos quiosques de jornais. O escritor Francisco Urondo sente ganas de dar
um soco na parede, de raiva. O motorista de táxi admite que aquele tipo tinha coragem, para se ir meter naquele país dos diabos: "No fundo, é um compatriota, como
o Fangio, como o Gardel ou San Martin"145.
Alguns partidos comunistas dogmáticos, "ortodoxos", recusam associar-se ao concerto. É o caso do PC argentino, do PC chileno... O Che admirava Neruda, mas a recíproca
não era verdadeira. É certo que o poeta chileno reconheceu que os crimes de Estaline foram grandes e pequena a coragem de enfrentar a verdade: "Foi necessário calarmo-nos
para que a árvore rubra

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florescesse". Mas, para condenar o rebelde com aspereza, não se cala. Quando Sérgio Insunza, velho camarada de célula, lhe diz quanto se sente abalado com o assassínio
de Guevara, Neruda responde: "Mas o que é que te deu? Aqueles que devemos admirar são os Recabarrén* e não esses jovens imprudentes [ilusos] que só cometem loucuras"146.

Nota: * Luis Emilio Recabarrén foi um dos fundadores do Partido Comunista Chileno.

Em Havana, a 15 de Outubro, Fidel declara aos microfones da rádio e da televisão que "a notícia da morte do comandante Ernesto Guevara é dolorosamente verdadeira"147.
Durante um mês, as bandeiras são colocadas a meia-haste. De futuro, o dia 8 de Outubro será comemorado como o dia do "guerrilheiro heróico". É decretado luto nacional
por três dias, no fim do qual, a 18 de Outubro, se organiza uma vigília fúnebre solene. Essa noite ficou na memória de todos os que nela participaram como um acontecimento
carregado de profunda emoção. O Che queria "um sudário de lágrimas cubanas". E teve-o. Sob os projectores, na noite tropical ainda quente, perfumada pela brisa marítima,
a Praça da Revolução é invadida por uma multidão infinda, grave, atenta.
Nicolás Guillén lê um poema de circunstância, um pouco empolado "Queremos morrer para viver como morreste". Passa uma curta-metragem sobre a vida do herói, ouvem-se
alguns excertos de discursos, entre os quais o mais ardente, de todos proferido na ONU, em Dezembro de 1964, antes de Guevara dar início ao seu ano "africano". Em
seguida, depois de disparadas vinte e uma salvas de artilharia e de um longo dobre de finados, tornando o silêncio ainda mais impressionante, ouve-se, numa voz aflautada,
a prosopeia de Castro: "O Che é um modelo de homem que não pertence ao nosso tempo; pertence ao futuro. [...] Aqueles que pensam que a sua morte representa a derrota
das suas ideias, enganam-se..."148. Vivo, incomodava. Morto, torna-se perfeito. A lenda cresce, atinge o mito.
Alguns pretendem-se seus émulos. Na multidão, Pierre Goldman, "judeu polaco nascido em França", recusa-se a sobreviver à sua juventude. Electrizado pela Internacional
que sobe, poderosa, de um milhão de bocas, contempla "o imenso rosto trágico do Che, belo, como que num além onde, agora, parecia ter sempre estado"149. O olhar
iluminado e distante dessa extraordinária fotografia, tirada ao acaso em 1960, brilhou na sua luz sombria em milhares de lugares, públicos e privados, em Cuba, mesmo
ainda em vida de Guevara. A rajada do sargento Terán vai conferir ao instantâneo de Korda um alcance universal. Verdadeiro fenómeno cultural, o cartaz é difundido
em todo o mundo, reproduzido em milhões de exemplares.
Será "a segunda morte de Che Guevara", como escreverá mais tarde Régis Debray, no Nouvel Observateur?150 Não exactamente, pois é com o póster como símbolo da sua
revolta que os camponeses chilenos marcham no campo para se apoderarem das terras que a reforma agrária lhes nega; é sob o emblema do Che que vão ser conduzidas
todas as revoltas estudantis de 1968 na

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Europa, em França, nos Estados Unidos, no mundo inteiro. "Che, Che, Che", gritam os manifestantes correndo no Boulevard Saint-Michel em Paris. O termo porteño, cujo
significado ninguém conhece, torna-se um grito de guerra contra a ordem estabelecida. Uma desforra para o cantor do ódio salutar.
Em Moscovo, o Pravda publica, com assinatura do dirigente comunista Ghioldi, um requisitório severo contra a política cubana, acusada de apoiar a luta insurreccional
armada na América Latina151, o que é um contra-senso, pois Havana já abandonou essa linha, embora o Kremlin o ignore. A China comunista não envia qualquer mensagem
de solidariedade. As relações Pequim-Havana estão bastante frias. Mas, em Roma, as bandeiras vermelhas do Partido Comunista Italiano foram colocadas a meia-haste.
O jornal Unità, órgão do PCI, refere-se a Guevara como um "mártir que será recordado por muito tempo"132.
Em Paris, o PCF alardeia uma mensagem de Waldeck Rochet, secretário-geral, "profundamente contristado"153. Em França, os mais sinceros na sua tristeza são as Juventudes
Comunistas Revolucionárias, que organizam, na clássica sala da Mutualité (no Quartier Latin), a abarrotar, uma sessão de despedida, na qual a emoção atinge o clímax
quando os participantes assobiam primeiro em surdina o Canto dos Mártires da Revolução Russa de 1905, antes de entoarem, de lágrimas nos olhos: "Vous êtes tombés
pour tous ceux qui ont faim...". "Muitos aprendizes de bolchevique perderam a carapaça ao ouvir Pienkny, a "Cubana", falar do comandante, que muitas vezes encontrara
durante as suas estadas em Havana. A voz de Jeanette [...] parecia entrecortada de pequenos soluços"154, escreve Patrick Rotman. Na Argélia, que ele tanto amava,
as avenidas das cidades mais importantes passam a chamar-se Che Guevara...
Na sua prisão de Camiri, a atitude de Régis Debray muda radicalmente após a confirmação da morte do Che. Em Agosto, na sua farda de prisioneiro, que lhe fora imposta,
ainda respondia desta forma a um jornalista do Témoignage Chrétien: "Se eu fosse um guerrilheiro, di-lo-ia"155. A partir do momento em que os dados estão lançados,
não subsistindo dúvidas quanto à sua condenação, não hesita em declarar-se "co-responsável pelos actos de guerra dos meus camaradas. Longe de os condenar, aprovo-os
e considero-os legítimos e necessários. [...] "Estafeta" [...] corresponde melhor ao meu papel exacto", esclarece ele, perante o Conselho de Guerra. Mas isso não
interessa. "Agradeço antecipadamente a pesada pena que espero de vós"156. Sentença de 17 de Novembro de 1967: trinta anos de prisão! A pena máxima. Cumprirá cerca
de quatro anos até o major Ruben Sánchez, decididamente o seu anjo da guarda, aproveitar uma acalmia na situação política da Bolívia e o deixar partir para o Chile,
onde Allende acaba de ganhar as eleições presidenciais. Em Santiago, o correspondente da Prensa Latina pergunta-lhe: "Qual seria a principal crítica a fazer a Révolution
dans la Révolution?" Resposta: "Penso que é um livro abstracto"157.

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Santo Ernesto de La Higuera

É num concreto bastante imediato que estão mergulhados os sobreviventes que escaparam ao combate da quebrada do Churo. À sua volta pululam os Rangers, empenhados
em acabar com eles. Mas esses seis homens em farrapos, que praticamente mais não têm que as suas armas, são autênticos duros, empenhados igualmente em salvar a pele.
Juraram ser fiéis ao combate do Che... Cada um tentou contar à sua maneira como foi possível manter-se vivo no meio de todo aquele inferno. Em Les Survivants du
Che, Benigno, o guajiro, faz uma descrição pormenorizada, de grande sinceridade e absolutamente apaixonante dessa aventura inenarrável. Constituem-se em grupos de
dois, um boliviano e um cubano: Inti/Urbano, Darío/Pombo, el Nato/Benigno. Este último é um atirador de elite mas tem duas balas alojadas no corpo. O ferimento supura;
já não consegue servir-se do braço direito. "Por isso sou obrigado a arrastar-me, apoiando-me apenas na mão esquerda, com a qual seguro a espingarda; avanço, largo
a espingarda, iço o corpo com a mão esquerda, volto a pegar na espingarda, e assim por diante..."158.
Vêem-se com os fundos da guerrilha - o equivalente a 170 mil dólares, pequena fortuna inútil no mato, mas que repartem entre si, no pelo sim pelo não... Se um dos
parceiros for morto, vai-se buscar o seu dinheiro e documentos pessoais; se for gravemente ferido e atrasar a marcha, mais vale ter a coragem de acabar com ele do
que deixar essa tarefa entregue aos Rangers. "E nós iríamos enfrentar essa dor"159, diz Benigno. Com efeito, é ele que vai ter de cumprir a terrível missão de dar
o tiro de misericórdia ao seu companheiro el Nato (Julio Méndez), ferido de morte a 15 de Novembro, num reencontro perto de Vallegrande. "Nato tira o relógio, estende
o dinheiro... "Abraça-me, irmão, e dispara". [...] Cada um dos camaradas aproxima-se e abraça-o. [...] Todos nós gostávamos de el Nato pelas suas qualidades humanas,
pela sua ternura, pela sua coragem. [...J O seu olhar deu-me forças para cumprir com a minha palavra"160.
São agora apenas cinco. Têm a cabeça a prémio. Há cartazes afixados por todo o país, oferecendo dez milhões de pesos bolivianos a quem permitir a sua captura. Contudo,
assim que chegam a zonas mais habitadas, as coisas melhoram. Encontram camponeses partidários do MNR que, em vez de os denunciarem, os ajudam. Pombo, que é negro,
é o mais difícil de esconder, mas conseguem, apesar de tudo, chegar a Santa Cruz. Geralmente são comunistas bolivianos que apoiam os guerrilheiros, que entram em
contacto com as forças de esquerda chilenas e que organizam, o melhor que podem, uma tentativa de salvamento. Inti e Darío ficam no seu país - retomarão o combate,
mas ambos serão mortos pela polícia em 1969. A 18 de Fevereiro de 1968, após quatro meses de cerco, os três cubanos, acompanhados por dois guias bolivianos, conseguirão,
ao cabo de várias peripécias dignas de um western, atravessar a pé a cordilheira dos Andes, no esplendor gelado do Altiplano, a mais de cinco mil metros de altitude.
Entram em território chileno. Estão salvos!

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O presidente do Senado, o socialista Salvador Allende, enviou em seu auxílio a sua própria filha Beatriz, bem como um jornalista, militante do PS, Elmo Catalan.
Mas é a um enviado especial do grande jornal de direita de Santiago, El Mercurio, que os guerrilheiros fornecem, por acaso, um "furo", numa taberna da pequena povoação
de Camina. A partir daí, a história transforma-se num outro ramo da saga do Che. Eduardo Frei, o presidente chileno democrata-cristão, "expulsa" os guerrilheiros,
o que é uma maneira de os reenviar para Cuba sem irritar Washington. Allende acompanha-os - e protege-os - até ao Taiti. Em seguida, após Paris, onde são aclamados
no aeroporto de Orly, é o caminho habitual, via Praga e Moscovo, até Havana onde, a 7 de Março de 1968, o próprio Fidel os aguarda ao fundo da passadeira.
Uma viagem não menos complicada aguarda o diário de companha do Che até chegar, fotocopiado, a Havana. As agitadas atribulações desse documento dariam, só por si,
um livro à parte. Ficaria aí patente o grau de venalidade dos generais bolivianos da época, dispostos a vender o diário a quem mais pagasse. A ironia da história
faz com que mesmo nas barbas dos militares e da CIA, que o vigiam de perto, seja o próprio ministro do Interior da Bolívia que, gratuitamente, faz chegar o texto
ultraconfidencial a Fidel Castro. Na Bolívia, tal como em Gabriel García Márquez, a realidade - mágica - ultrapassa a ficção.
Resumindo: a 10 de Outubro de 1967, no dia a seguir à execução do Che em La Higuera, o coronel Zenteno exibe, numa conferência de imprensa em Vallegrande, as duas
grandes agendas vermelhas do diário do guerrilheiro morto, sublinhando que aí figuram páginas muito amargas e revelações bastante comprometedoras para certas personalidades
boliVianas e estrangeiras. Não é preciso mais para aguçar a curiosidade dos jornalistas e editores e o interesse dos juízes militares encarregados do processo contra
Debray e Bustos.
Mas, prevendo um bom negócio, representantes de algumas editoras dos Estados Unidos, como Stein and Day, Holt, Random House, etc., ou jornalistas conhecidos como
próximos da CIA, como Juan de Onis (New York Times) e Andrew Saint George, são autorizados a consultar o documento original. E começam a circular na imprensa fragmentos
do diário. Quando confirma, a 15 de Outubro, que Guevara infelizmente está morto, Fidel Castro manda submeter as cópias que obteve a um exame grafológico. Entretanto,
a CIA já dispõe, como atrás referimos, das fotografias tiradas pelo agente Rodríguez em La Higuera, antes mesmo de Guevara ter sido executado.
Barrientos e os seus generais fazem subir a parada. Por seu turno, a Paris-Match envia em reportagem a jornalista Michèle Ray. No avião, entre Lima e La Paz, ela
encontra o advogado da agência Magnum, o qual, ignorando o objecto da viagem da encantadora francesa, comete a imprudência de lhe revelar que está encarregado de
comprar os direitos do cobiçado diário. Michèle Ray encena então uma manobra bluff que lança a confusão nas negociações. De conivência com Jean-Jacques Pauvert,
editor sem poder económico cujo nome lhe fora sugerido por François Maspero, declara estar mandatada por

525

um "consórcio europeu" para oferecer uma "quantia avultada". São referidos montantes fabulosos. Porque não um milhão de dólares? É recebida pelo presidente Barrientos
e pelo general Ovando. Prolonga o jogo, ganha tempo, mostra-se promissora e evasiva. O Comité dos Pais das Vítimas da Guerrilha exige desde logo a sua parte. Ela
sabe que o objectivo dos cubanos é evitar que editores norte-americanos se apoderem do documento e procedam a eventuais manipulações do diário, sugeridas pela CIA.
A operação resulta. Desiludida, a Magnum retira-se. O editor McGraw Hill prefere consultar primeiro a família para evitar qualquer problema de direitos de autor.
As negociações arrastam-se161.
Intervém então uma figura bizarra, inconstante e obscura: o ministro do Interior, Antonio Arguedas. Na sua juventude, foi militante do PIR (Partido de Esquerda Revolucionária),
de onde saíram inúmeros fundadores do PCB. Ficou-lhe algo desses tempos. Esse homem de confiança de Barrientos é, manifestamente, pago, controlado, vigiado e teleguiado
pela CIA; mais tarde admiti-lo-á sem rodeios. Mas quando se apercebe das manobras da CIA para manipular o diário e, com o auxílio de grafologistas, fabricar uma
versão deformada, amputada, reescrita ad hoc, envia a Santiago do Chile um dos seus antigos companheiros do PIR, Víctor Zannier, propor o diário do Che à Punto Final,
ser transmitido a Havana. A revista de extrema-esquerda, ligada a Cuba submete o texto a uma peritagem do agente cubano Luis Fernández Oña (futuro genro de Salvador
Allende) e encarrega o jornalista Mario Díaz de entregar pessoalmente o documento a Piñeiro.
Precedido de uma "introdução necessária" de Fidel Castro, o diário de Che Guevara é secretamente editado em Cuba e distribuído gratuitamente por todo o país a partir
de 1 de Julho de 1968, em várias centenas de milhar de exemplares. Após rápida tradução - daí, por vezes, alguns erros - é lançado simultaneamente em francês (Maspero),
italiano (Feltrinelli), inglês (Ramparts) e alemão (Trikont). Para maior difusão, são também confiadas edições em espanhol à Punto Final (Chile), Siglo XX (México)
e Ruedo Iberico (encarregada, em Paris, de envios clandestinos para a Espanha de Franco). Qualquer tentativa de manipulação é, assim, neutralizada de forma espectacular.
Castro preferiu divulgar o texto do Che com toda a sua liberdade de linguagem a correr o risco de uma provocação sob a forma de uma edição falsificada pela CIA.
Em Moscovo, o semanário Tempos Novos publica, em Outubro de 1968, extensos extractos dos Diários Bolivianos de Guevara, acompanhados de comentários acerbos: "Ao
ler estes apontamentos, vêm-nos à memória as palavras de Lenine a propósito do "levantamento revolucionário": "Não precisamos de acessos de histerismo. Precisamos
da acção ponderada dos batalhões de ferro do proletariado""162.
Três semanas depois desta proeza, Arguedas vê-se obrigado a fugir; as suspeitas que recaem sobre ele transformam-se em evidências: faltam duas páginas, ou seja,
treze "dias", na versão que ele subtraiu em La Paz. São as mesmas que faltam na edição cubana. Além disso, fará chegar a Havana as

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mãos decepadas de Che, conservadas em formol, após o clássico circuito via Praga e Moscovo. Contudo, Arguedas volta a aparecer na Bolívia um mês depois, após uma
pequena viagem por Cuba, Londres e Estados Unidos. Cumpre três meses de prisão, paga uma multa e transforma-se em jornalista. Sabe muito sobre as ligações secretas
entre o presidente Barrientos e os serviços da central de Langley (CIA) para que o molestem durante muito tempo. A menos que o façam calar de vez.
A aventura rocambolesca dos últimos escritos do Che conhece uma última peripécia em 1984, num cenário de fraude. Os dois diários originais de Guevara e o diário
de Pombo são leiloados em Londres, pela galeria Sotheby's. Base de licitação: 350 000 dólares. O governo boliviano opõe-se, faz valer os seus direitos sobre um documento
que foi roubado dos seus arquivos e ganha a acção. O ladrão era nem mais nem menos do que o Presidente da República da época, o general García Meza! Que, desde 1995,
cumpre uma pena de trinta anos de prisão.
Trinta anos foi o tempo que demorou a instalar-se na Bolívia, sobretudo na região de Santa Cruz e Vallegrande, uma espécie de culto, de um novo santo que não figura
no calendário da Igreja - Santo Ernesto de La Higuera. O movimento surgiu logo após a morte do "guerrilheiro heróico". Reza a tradição que aqueles que morreram de
morte trágica têm o poder de realizar os desejos e fazer milagres.
Num poema tosco, escrito entre a Guatemala e o México, em 1954 ou
1955, o jovem médico que descobria a injustiça, e já ardendo em desejos justiceiros, escrevera: "Finalmente / poderá alguém proclamar sem corar / o triunfo da espada
sobre a fé do homem?"163. Na montanha árida das cercanias do Chaco boliviano, as camponesas invocam Santo Ernesto para as ajudar a encontrar uma cabra perdida ou
para fazerem uma viagem sem incidentes até à aldeia vizinha. Pouco importa o local exacto onde estão as ossadas. No hospital de Vallegrande, onde o morto esteve
exposto ao olhar fascinado dos habitantes e dos fotógrafos, com o corpo crivado de tantas balas quantas as flechas no corpo de S. Sebastião, a lavandaria tornou-se
uma espécie de gruta de Lurdes onde, todos os anos, a 8 de Outubro, chegam, numa procissão pagã, jovens de todos os pontos do país, para uma romería de um género
inédito. As inscrições revolucionárias nas paredes provêm de uma veneração análoga à dos ex-votos. "Che, morreste por nós", "Che, serás a nossa estrela", "Che, tu
fazes parte daqueles que não morrem nunca"... Beatificado por crentes e descrentes, Ernesto Che Guevara, terminada a sua estação no interno, goza, no Oriente boliviano,
de uma parcela de eternidade.

Notas:

1 Gianni Mina, Habla Fidel, op. cit., p. 315.
2 Dariel Alarcón Ramírez (Benigno), entrevista com o autor, Paris, 1996.
3 Ibid.

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4 Benigno, Vie et Mort de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 126.
5 Ibid., p. 152 e seg.
6 Alfonso Gumucio-Dagron, Bolivie, Seuil, Paris, 1981, p. 40.
7 Saverio Tutino, Il Che in Bolivia, Memorie di un Cronista, Roma, Editori Riuniti, 1996, p. 23
8 Carlos Soria Galvarro, Por Primera Vez, el Verdadero Diario de Pombo, La Paz, separata do jornal La Razón, 9 de Outubro de 1996, p. 20.
9 Ibid., p. 19.
10 El Che en Bolivia, Documentos y Testimonios, La Paz. Cedoin, 1996, t. 4, Los Otros Diarios y Papeles, p. 298.
11 Régis Debray, Les Masques, op. cit., p. 66.
12 Id., La Guérilla du Che, Paris, Seuil, 1974, p. 104.
13 Benigno, Vie et Mort de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 129.
14 Orlando Borrego, entrevista com o autor, Havana, 1992.
15 Benigno, Vie et Mort de la Révolution Cubaine, op. cit., pp. 131-132.
16 Ibid, p. 134.
17 Aleida March, entrevista com o autor, Havana, 1992.
18 Carlos Franqui, Retrato de Familia con Fidel, op. cit., p. 449.
19 Dariel Alarcón Ramírez (Benigno), entrevista com o autor, Paris, 1996.
20 Ibid
21 Ernesto Che Guevara, Journal de Bolivie, Paris, La Découverte, 1995, p. 73. Esta edição inclui as passagens que faltam nas edições anteriores (treze dias) e tem
um excelente prefácio de François Maspero.
22 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 225. (Edição portuguesa: Os Meus Anos com o Che Ed. Dinoussauro, Lisboa 1995.
23 L'Express, Paris, 9 de Maio de 1966.
24 Oscar Ortiz (secretário de Clotario Blest), entrevista com o autor, Santiago do Chile, 1993.
25 La Prensa, Buenos Aires, 9 de Março de 1967.
26 Primera Plana, Buenos Aires, 17 de Outubro de 1967.
27 Hugo Gambini, El Che Guevara, op. cit., p. 461.
28 Oscar Ortiz, entrevista com o autor, Santiago do Chile, 1993.
29 La Nación, Buenos Aires, 22 de Janeiro de 1967.
30 "Diário de Morogoro", in Carlos Soria Galvarro, El Che en Bolivia, t. 4, Los Otros Diarios y Papeles, op. cit., p. 254.
31 "Diário de Pombo", in Carlos Soria Galvarro, El Che en Bolivia, t. 4, Los Otros Diários y Papeies, op. cit., p. 61.
32 Ibid., p. 60.
33 Ibid., p. 65.
34 Benigno, Vie et Mort de la Révolution Cubaine, op. cit., pp. 145-146.
35 Ibid.
36 Ibid., pp. 138-139.
37 Claudia Korol, op. cit., p. XIII-XV.
38 Carlos Soria Galvarro, El Che en Bolivia, La Paz, Cedoin, 1992, t. 1, El PCB Antes, Durante y Después, p. 298.
39 Ibid., p. 147.

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40 ibid., p. 189.
41 Fidel Castro Punto Final, Santiago do Chile, 7 de Dezembro de 1971, in (discurso em S. Miguel de 28/11/71).
42 Benigno, Vie et Mort de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 144. O episódio, enriquecido, foi contado ao autor. Paris, 1996.
43 Carlos Soria Galvarro, El Che en Bolivia, t. 4, Los Otros Diários y Papeies, op. cit., p. 289.
44 Ibid., t. 1, El PCB antes, durante y después, p. 207.
45 Humberto Vázquez Viaña e Ramiro Aliaga Saravia, Bolivia, Ensayo de Revolución Continental, documento dactilografado inédito, de 172 páginas, 1970, p. 30.
46 Carlos Soria Galvarro, El Che en Bolivia, t. 1, El PCB antes, durante y después, op. cit., p. 195.
47 Citado em Luis González, Gustavo Sánchez Salazar, Che Guevara en Bolivie, Paris, Stock, 1969, p, 67.
48 Humberto Vázquez Viaña e Ramiro Aliaga Saravia, Bolivia, Ensayo de Revolución Continental, op. cit., p. 29.
49 Ibid., p. 30.
50 Carlos Soria Galvarro, El Che en Bolivia, t. 4, Los Otros Diários y Papeies, op. cit., p. 300.
51 Ibid., p. 290.
52 Ibid., p. 301.
53 Ibid., t. 1, El PCB antes, durante y después, p. 207.
54 Régis Debray, La Guerrilla du Che, op. cit., p. 123.
55 Id., Les Masques, op. cit., pp. 77-78.
56 in Punto Final, Santiago do Chile, 13 de Outubro de 1970.
57 Ernesto Che Guevara, Textes Militaires, op. cit., p. 114.
58 Carlos Soria Galvarro, El Che en Bolivia, t. 4, Los Otros Diários y Papeies, op. cit., p. 104.
59 Ibid., p. 150.
60 Ibid., p. 137.
61 Ibid., p. 157.
62 Ibid., p. 111.
63 Ernesto Che Guevara, Le Socialisme et l'Homme à Cuba, op. cit., p. 106.
64 Benigno, Vie et Mort de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 150.
65 Ibid.
66 Régis Debray, Les Masques, op. cit., pp. 68-69.
67 Luis González e Gustavo Sánchez Salazar, Che Guevara en Bolivia, op. cit., p. 73.
68 Ernesto Che Guevara, "Qu'est-ce qu'un guerrillero?", Textes Militaires, op. cit., p. 132.
69 Carlos Soria Galvarro, El Che en Bolivia, t. 4, Los otros Diarios y Papeles, op. cit., p. 169.
70 Régis Debray, Les Masques, op. cit., p. 71.
71 Benigno, Vie et Mort de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 163.
72 Régis Debray, entrevista com o autor, Paris, 1992.
73 Ibid.
74 Id., Les Masques, op. cit., p. 73.
75 Benigno, Vie et Mort de la Révolution Cubaine, op. cit., p. 154.
76 Tânia, la Guerrillera Inolvidable é uma compilação de testemunhos e descrições reunidos por duas jornalistas cubanas, Marta Rojas e Mirta Rodríguez (com o apoio
de Ulises Estrada). Com uma tiragem de 300 000 exemplares, o livro foi editado em Havana, em 1970, pelo Instituto del Libro.

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77 Régis Debray, entrevista com o autor, Paris, 1992.
78 Id., La Guerilla du Che, op. cit., p. 122.
79 Telegrama da Associated Press, publicado pelo jornal El Mercurio, Santiago do Chile, 28 de Março de 1967.
80 Inti Peredo, Mi Campaña con el Che, Santiago do Chile, Prensa Latina-Americana, 1971, p. 77
81 Hervé Hamon e Patrick Rotman, Génération, t. 1, Les Années de Rêve, op. cit., p. 378.
82 Luis González e Gustavo Sánchez Salazar, Che Guevara en Bolivia, op. cit., p. 126. 83 Ibid., p. 129.
84 Saverio Tutino, Il Che in Bolivia, op. cit., p. 62.
85 Régis Debray, Les Masques, op. cit., pp. 95-96.
86 Luis González e Gustavo Sánchez Salazar, Che Guevara en Bolivia, op. cit., p. 151.
87 Ibid., p. 148.
88 Régis Debray, entrevista com o autor, Paris, 1992.
89 Luis González e Gustavo Sánchez Salazar, Che Guevara en Bolivia, op. cit., p. 158.
90 Régis Debray, Les Masques, op. cit., pp. 83-85,
91 Dominique Ponchardier, La Mort du Condor, Paris, Gallimard, 1976, pp. 305-306.
92 Ibid.
93 Ernesto Che Guevara, Journal de Bolivie, op. cit., p. 293 e seg. Todas as citações de "Mensagem aos povos do mundo através da Tricontinental" são extraídas desta
edição francesa.
94 Frantz Fanon, Les Damnés de la Terre, op. cit., p. 104.
95 Albert Camus, Caligula, in Théatre, Récits, Nouvelles, Gallimard, Paris, col. "Bibliothèque de la Pléiade", 1963, p. 53.
96 Ernesto Che Guevara e Alberto Granado, Latinoamericana, Journal de Voyage, op. cit., p. 137.
97 O diário de Pombo compõe-se de duas partes. A primeira (Julho de 196-Maio de 1967) foi publicada na Bolívia, em 1969, a partir do texto que o exército boliviano
encontrara (e vendido à editora norte-americana Stein and Day, sem dúvida graças aos bons ofícios da CIA); a versão mais fiável desta primeira parte foi editada
em La Paz por Carlos Soria Galvarro em 1966 (El Che en Bolivia, t. 4, Los Otros Diarios y Papeles, op. cit.). A segunda parte foi publicada em Havana pela Editora
Política, em 1966 (Harry Villegas, Pombo, Un Hombre de la Guerilla del Che). O autor, entretanto promovido a general, retomou, com alguns retoques, os apontamentos
da segunda parte do diário que tinham sido retidas pelas autoridades chilenas em 1968.
98 Carlos Soria Gal varro, El Che en Bolivia, t. 4, Los otros Diarios y Papeles, op. cit., p. 178 e seg.
99 Dariel Alarcón Ramírez, entrevista com o autor, Paris, 1996.
100 Domitila, Si on me donne la Parole, François Maspero, Paris, 1981, p. 119 e seg.
101 Ernesto Che Guevara, Journal de Bolivie, op. cit., pp. 286-287.
102 Carlos Soria Galvarro, El Che en Bolivia, t. 4, Los Otros Diarios y Papeles, op. cit., pp. 291-295.
103 Id., La Razón, El Che evalua a sus Hombres, op. cit., p. 7.
104 Ibid., p. 11.
105 Benigno, Vie et Mort de la Révolution Cubaine, op. cit,, p. 165 e seg.
106 Ibid., p. 168.
107 Marxismo Militante (revista teórica do Partido Comunista Boliviano) La Paz, n.º 2, Outubro de 1968, pp. 22-25.

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108 Carlos Soria Galvarro, El Che en Bolivia, t. 4, Los Otros Diarios y Papeles, op. cit., p. 230.
109 Dariel Alercón Ramírez, entrevista com o autor, Paris, 1996.
110 Luís González e Gustavo Sánchez Salazar, Che Guevara en Bolivia, op. cit., pp. 181-182.
111 Ibid., p. 183.
112 Régis Debray, Loués Soient nos Seigneurs, op. cit., p. 194.
103 Mariano Rodríguez, Ellos Lucharon con el Che, Havana, Políticas, 1989, pp. 112-114.
114 Carlos Soria Galvarro, Por Primera Vez, el Verdadero Diario de Pombo, op. cit., p. 14.
115 Régis Debray, Contretemps, Eloge des Idéaux Perdas, Paris, Gallimard, col. "Folio",
1992, p. 167.
116 Dariel Alercón Ramírez (Benigno) e Mariano Rodríguez, Les Survivants du Che, Ed. du Rocher, Mónaco, 1995.
117 Carlos Soria Galvarro, El Che en Bolivia, t, 4, Los Otros Diarios y Papeles, op. cit., p. 246.
118 Pombo, in Granma, Havana, 8 de Outubro de 1970.
119 Dariel Alercón Ramírez (Benigno) e Mariano Rodríguez, Les Survivants du Che, op. cit., p. 14.
120 Herbert L. Mathews, Fidel Castro, op. cit., p. 305.
121 Dariel Alercón Ramírez (Benigno) e Mariano Rodríguez, Les Survivants du Che, op. cit., p. 16., e Benigno, entrevista com o autor, Paris, 1996.
122 Gary Prado Salmón, La Guerrilla Inmolada, Santa Cruz, Punto y Coma SRL, 1987, p. 273.
123 Humberto Montenegro, entrevista com o autor, Santa Cruz, 1995.
124 Ibid.
125 Gary Prado, entrevista com o autor, Londres, 1992.
126 Id., op. cit., p. 195.
127 Id., entrevista com o autor, Londres, 1992.
128 Ibid.
129 Ibid.
130 Id., entrevista com Jean-Pierre Clerc e Maurice Dugowson, Santa Cruz, 1997.
131 Id., entrevista com o autor, Santa Cruz, 1995.
132 Felix Rodríguez e John Weisman, Guerrero en la Sombra, Buenos Aires, Emece, 1991, p. 178.
133 A descrição desses momentos foi reconstituída pelo capitão Prado, a partir de conversas mantidas com o coronel Zenteno e com os dois sargentos. Não figura na
sua obra. Entrevista com o autor, Londres, 1992, e Santa Cruz, 1995.
134 Dariel Alarcón Ramírez (Benigno) e Mariano Rodríguez, Les Survivants du Che, op. cit., p. 30.
135Gary Prado Salmón, La Guerrilla Inmolada, op. cit., p. 283.
136 Id., entrevista com o autor, Londres, 1992.
137 Testemunho recolhido por dois investigadores franceses, Jean-Luc Quémard e Cyrille Hanappe, Vallegrande, 1992.
138 John Berger, "Che" Guevara morto, in Les Lettres Nouvelles, Paris, número especial, Ecrivains de Cuba, Dezembro de 1967-Janeiro de 1968, p. 218.
139 Carlos Soria Galvarro, El Che en Bolivia, op. cit., t. 2, p. 202.
140 Testemunho recolhido por dois investigadores franceses, Jean-Luc Quémard e Cyrille Hanappe, op. cit.
141 Ruben Sánchez Valdivia, entrevista com o autor, Cochabamba, 1995.
142 A hipótese avançada é retomada por Roberto Savio no filme Inchiesta su un Mito, realizado para a RAI, Roma, 1973, e por Saverio Tutino, ex-correspondente de
L'Unità (Roma) em Havana, Guevara al Tempo di Guevara, 1957-1976, Roma, Riuniti, 1996, p. 188.

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143 Ted Córdova-Claure, entrevista com o autor, La Paz, 1995. •'
144 Luis González, Gustavo Sánchez Salazar, Che Guevara en Bolivia, op, cit., p. 219.
145 Francisco Urondo, "Descarga", in Cuba por Argentinos, Buenos Aires, Merlín, 1968, p. 82.
146 Luis Poirot, Neruda, Retratar la Ausencia, Santiago do Chile, Hachette-Los Andes, 1991 p. 146.
147 Granma, Havana, ed. especial de 16 de Outubro de 1967.
148 Ibid., ed. semanal em francês, 29 de Outubro de 1967.
149 Pierre Goldman, Souvenirs Obscurs d'un Juif Polonais Né en France, Paris, Seuil, 1975, p. 65.
150 Régis Debray, "Les deux morts du "Che"", Le Nouvel Observateur, Paris, 10 de Outubro de 1977.
151 Le Monde. Paris, 27 de Outubro de 1967.
152 Ibid., 18 de Outubro de 1967.
153 Ibid.
154 Hervé Hamon e Patrick Rotman, Génération, t. 1, Les Années de Rêve, op. cit., p. 384.
155 Témoignage Chrétien, Paris, 24 de Agosto de 1967.
156 Luis González e Gustavo Sánchez Salazar, Che Guevara en Bolivia, op. cit., p. 264 e seg.
157 L'Express, Paris, 11-17 de Janeiro de 1971.
158 Dariel Alarcón Ramírez (Benigno) e Mariano Rodríguez, Lês Survivants du Che, op. cit., p. 33.
159 Ibid., p. 34.
160 Ibid., pp. 87-88.
161 Michèle Ray, entrevista com o autor, Paris, 1992.
162 Le Monde, Paris, 25 de Outubro de 1968.
163 Hilda Gadea, Anos Decisivos, op. cit., p. 231.

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O TÚMULO DE GUEVARA

"Viver depressa e morrer jovem": esse lema dos cantores de rock que percorre o mundo inteiro nesta viragem de século foi aplicado por Guevara sem que ele o conhecesse.
É a palavra de ordem de todos os romantismos. Byron, revoltado e misantropo, marcado pelo seu pé boto e pelo ódio contra a aristocracia, encarnou o "mal do século"
antes de morrer, aos 36 anos, ao lado dos Gregos, em luta contra o domínio turco. No imaginário popular, Guevara, guerrilheiro romântico, representaria antes o "bem
do século", o da generosidade do combate revolucionário por um mundo mais justo. Contudo, volvidos apenas vinte anos sobre a sua morte, a identidade do herói torna-se
obscura. Adolescentes suburbanos, interrogados à porta de uma discoteca, nos anos oitenta, confessam não saber ao certo quem é o "cantor de rock" cujo olhar extático,
sob a boina estrelada ostentam nas suas T-shirts, mas que acham sedutor, com o seu rosto sério e cabelo comprido.
Essa sedução faz-se sentir logo após o desaparecimento do Che. A dor e a raiva, o desgosto e o sofrimento provocados pelo assassínio de La Higuera fala-se já em
holocausto - desembocam numa espécie de Pentecostes, em que a vítima regressa ao seio dos vivos, apoiada num reconhecimento imediato e gratificante. O facto de ter
sido abatido como um cão, nos confins do mundo, "sob as balas do imperialismo", confere ao guerrilheiro exemplar uma linha de crédito moral em que vêm inspirar-se
todos aqueles que, seguindo o seu desejo ardente e escutando o seu grito de guerra, empunham a arma erguendo-se para entoar os cânticos fúnebres. A partir daí, a
derrota transforma-se em vitória. Por todo o mundo se canta hinos em seu louvor. A canonização do Che começa alguns dias ou algumas horas após o dobrar dos sinos,
estimulada pelo ditirambo dos poetas, dos músicos, dos escritores - de Luigi Nono a Msrio Benedetti, de René Depestre a Margaret Randall ou Laurette Sejourné. "Ainda
há heróis. [...] Che Guevara representa uma das nossas grandes figuras românticas", declara Miguel Angel Asturias, que acabara de receber o prémio Nobel de Literatura
(Il Mensagero, Roma, 23 de Novembro de 1967). Milhões de latino-americanos e também de africanos e europeus descobrem subitamente que acabaram de perder um irmão,
que esse homem, diferente dos outros, fazia parte do património dos justiceiros e dos combatentes da liberdade.

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Em Paris, o choque é grande. Sartre presta homenagem, para a Prensa Latina, ao "homem mais completo da nossa época". Três mil pessoas, consultadas por referendo
para o Petit Larousse, indicam que entre as novas personalidades a incluir na próxima edição do dicionário deveria figurar, à cabeça, Che Guevara (Le Monde, 26 de
Outubro de 1967). Cineastas e professores universitários "sem qualquer filiação partidária" decidem, numa homenagem espontânea a Guevara, ir colocar flores na estátua
de Bolívar (Le Monde, 27 de Outubro de 1967). "Qual foi o acontecimento que mais o marcou nos últimos tempos?", pergunta Le Nouvel Observateur (18 de Outubro de
1967) a François Mitterrand. Resposta: "Foi a notícia da morte de Che Guevara [...]. Como homem de esquerda francês, considero que [...] o combate de Che Guevara
é o combate dos homens livres". Nesse mesmo número da revista, Albert-Paul Lentin vê no massacre da quebrada do Churo "a vitória de Che Guevara". Na revista Tricontinental
(n.º 4, 1968), André Pieyre de Mandiargues escreve: "O tempo da acção revolucionária abre-se diante de nós como um dia puro e claro, deslumbrante. Seríamos loucos
ou cobardes se duvidássemos da sua beleza". Poderia Guevara ter melhor aceitação?
Mas é em Cuba que o fenómeno de transsubstanciação da mensagem guevarista se revela mais extraordinário. "O sangue de Che Guevara correu em nome de todos os explorados"
declara Fidel Castro na sua homilia de 18 de Dezembro de 1967. De um dia para o outro, o causador de atropelos nas negociações com Moscovo, o economista demasiado
centralizador, o denunciante insolente do imperialismo camuflado dos países socialistas torna-se a grande figura sacrificial da modernidade revolucionária. E como
o Líder Máximo se assume guevarista, a hierarquia acerta o passo. Os grandes temas definidos por Guevara - trabalho voluntário, predomínio dos estímulos morais,
exaltação do homem novo - adquirem subitamente uma importância nunca atribuída em vida do Che. Em Janeiro de 1968, em Havana, é saneada, muito oportunamente, uma
"microfracção" de activistas pró-soviéticos dirigidos pelo inevitável Anibal Escalante que, entre outros crimes de exagerado seguidismo em relação a Moscovo, consideraram
que a saída de Cuba de Che Guevara constituirá "um facto salutar para a Revolução".
Em 1996 há grande euforia em Havana para comemorar os sessenta e um anos de Fidel Castro, patriarca (no Outono) de uma revolução exangue. Mas Guevara teve a "sorte"
de morrer aos 39 anos, antes dos "terríveis quarenta", antes que a História o despedisse. "Morreu a tempo, e estou-lhe muito grato por isso", escreve Jean Cau que,
em 217 páginas de uma declaração de amor tão veemente quanto intempestiva (Une Passion pour Che Guevara) procede a uma "manipulação" que o crítico literário do Le
Monde, Bertrand Poirot-Delpech, classifica de "autêntico remexer de cadáver" (12 de Janeiro de 1979). Todavia, ninguém contesta que, no "aplaudímetro", o guerrilheiro
que morre leva vantagem sobre o comandante supremo que sobrevive, liberto de quem o incomoda à esquerda e à direita.

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Que pensaria disto tudo o Che que, no fundo, forneceu a toda uma geração óculos infravermelhos para detectar, para além das belas palavras oficiais, as baixezas
dos revolucionários bem instalados na vida? Há que reparar na alegria secreta que ele deixa transparecer quando, no calvário das marchas e contramarchas boliVianas,
os comandantes cubanos - vice-ministros esgotados - choram de sofrimento por terem sede, por não se aguentarem de pé. À laia de consolo, o Che faz-lhes um pequeno
sermão sobre os malefícios do conforto dos gabinetes climatizados, das secretárias solícitas e dos carros com motorista. Tudo isso, afirma ele, fez esquecer o sentido
profundo da Revolução: sacrifício! Será puro masoquismo, estoicismo exacerbado, atracção obsessiva pela morte? É sabido como o contacto constante da asma com a asfixia
dera a Guevara uma espécie de cumplicidade com "a Grande Ceifeira", uma certa leveza do ser, como que uma desenvoltura para se lançar nas mais perigosas aventuras.
Mas é necessário pesquisar mais atrás, procurar a explicação no rigor ético da personagem, radical, intransigente.
Porque o Che, antes de mais, é um homem de moral. Um puro. Homem revoltado ou santo laico, mais camusiano do que sartriano, se o medirmos pela bitola francesa, poderia
bem assumir o aforismo de Rambert em A Peste: "Sei agora que o homem é capaz de grandes acções. Mas, se não for capaz de um grande sentimento, não me interessa".
Não era justamente isto que Guevara dizia a Jean Daniel, em 1963, em Argel: "Sem a moral comunista, o socialismo não me interessa"?
Régis Debray escreve algo parecido quando, em 1966, evocando a sua própria educação política, observa que "Fidel era um homem muito simpático e pouco recomendável
e o Che era um homem antipático e admirável". A magia do mito e da lenda transformaram o antipático em arcanjo, totem universal da revolta radical, enquanto o simpático
Líder cubano não passa de um caudillo manhoso e obstinado, que faz correr sobretudo os operadores de câmara, ávidos de mostrar as rugas e os cabelos brancos daquele
que, outrora, era visto como o Prometeu da Revolução.
Imagem poderosa, o rosto, sombrio ou radiante, o charuto em riste como um desafio, tudo isto diz mais sobre o Che do que dois artigos da Encyclopedia Universalis.
Mas foi o retrato-relâmpago de Korda, cartaz perene que, mais do que qualquer outro ícone, se tornou o ideograma de referência da mística revolucionária. Deus-lar
dos quartos de estudante durante os anos sessenta e setenta, sinal de reconhecimento dos manifestantes europeus de 68 e dos jovens universitários californianos,
a imagem de Guevara, fixada numa eterna juventude, voltou à carga nos anos noventa, por toda a parte no mundo, tanto nos bares latinos das capitais europeias como
nas discotecas em voga de Buenos Aires, Abidjan ou Tóquio.
Na Grã-Bretanha, os anunciantes duma cerveja chamada Che dizem que é proibida nos Estados Unidos, portanto de boa qualidade. Bastava pensar nisso. Em Paris-Bastille,
novo pólo de atracção, no Havanita Café e no

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Montecristo Bar, uma fauna nocturna, bem comportada, vem saborear a rumba, a salsa e o merengue, comendo gambas à equatoriana ou tiburón con salsa Hemingway (tubarão
com molho Hemingway), regados com Cuba Libre, com tequila mexicana ou mesmo... com um Cheguevara, nova bebida, bastante parecida com o mojito da Bodeguita del Medio
de Havana (rum, açúcar, limão verde e menta fresca).
Arquétipo do revolucionário dos quatro costados, o guerrilheiro foi esquecido, tornando-se objecto de decoração nas paredes, do mesmo modo que certos contemporâneos
ilustres, como ele transformados em ícone - os Beatles ou Marilyn Monroe. O cantor Renaud aproveita a onda e, no cartaz que anuncia o seu concerto na Mutualité,
em 1995, não tem qualquer escrúpulo em tirar partido da fama do Che, inscrevendo-se a si na T-shirt de Guevara. Quanto a uma certa colecção famosa de roupa desportiva,
resolve festejar os seus 10 anos de sucesso comercial organizando uma "noite Che" no Elysée-Montmartre. Pobre Ernesto!
De facto, a imagem de Guevara flutuou ao sabor dos imperativos políticos e das oscilações da moda. Durante cerca de quinze anos após o crime de La Higuera, o combatente
sacrificado dá ainda alguma consistência ao sonho revolucionário - muito louco, muito belo, talvez muito absurdo, mas enfim! Criou-se um mito, no qual se mistura
a figura do Justo com a do Valente, a do Desordeiro que "os tem no sítio" com a do Robin dos Bosques da América Latina, implacável com os maus, generoso e terno
com os humildes. Em Les Mots et les Choses (1966), Michel Foucault escreve, a propósito de D. Quixote: "O feito heróico não consiste propriamente em triunfar - é
por isso que, no fundo, a vitória não importa -, mas em transformar a realidade em signo". É justamente o que sucede ao Che no seu inferno boliviano.
Ao donquixotismo da personagem incorporou-se toda a panóplia crística, tão evidente, envolvendo a captura e a morte. Os desertores que traíram são realmente tenebrosos
Judas. O soldado Montenegro, que oferece o seu ombro ao guerrilheiro ferido para subir até à aldeia de La Higuera, não é outro senão Simão de Cirene (que ajudou
Cristo a carregar a cruz). E o desamparo de Guevara na Bolívia, "esquecido" por Cuba, cortado de todo o apoio, não será o mesmo do Cristo dos Evangelhos, exclamando:
"Meu Deus, por que me abandonaste?" (Com a diferença de que o Che, demasiado orgulhoso, não chama por ninguém na sua aflição. Cerra os dentes e conduz o seu grupo
numa viagem colectiva até ao fim de si mesmo).
Em Outubro de 1968, no primeiro aniversário da morte daquele que passou a ser denominado, segundo a terminologia cubana, "guerrilheiro heróico", é desfraldada em
sua homenagem uma grande bandeira vermelha, no primeiro andar da Torre Eiffel, - que é rapidamente retirada. Em 1977, o Che está ainda bem vivo no imaginário colectivo.
O pai, Ernesto Guevara Lynch, consegue obter mais de cem mil dólares de um editor canadiano para um livro de memórias, em que são narrados inúmeros episódios da
juventude e adolescência do menino-prodígio. Nos Estados Unidos, Hollywood tentou

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rexplorar o filão, produzindo um filme indigente, de Richard Fleischer, Che, no qual Omar Sharif, no papel principal, se defronta, numa involuntária paródia, com
Jack Palance (Fidel Castro). Quando essa "coisa" é apresentada na televisão francesa, em Maio de 1973, surge um coro de protestos contra essa caricatura grosseira,
considerada um "insulto ao povo cubano". Allende ainda não tombara, no Chile da Unidade Popular, sob as balas de um certo Pinochet, marcando o fim de uma época.
Mas, pouco a pouco, vêm tempos em que o ambiente já não é tão vermelho. A imagem do Che esbate-se aos olhos de uma nova geração que não conheceu essas lutas e cujo
comportamento é marcado simultaneamente por um fascínio pelo consumo "inteligente", por uma preocupação de êxito individual e por um questionamento "ecológico" desse
mesmo consumo. O Che deixa de ser a identificação mágica. A reprodução, em centenas de milhar, do cartaz com a boina tornou a figura de Guevara inofensiva e abstracta.
A efígie transforma-se em mero ponto de referência na iconografia geral de uma era que só pode ser classificada de "pós-moderna", etiqueta sob a qual se amontoam
os mais heteróclitos conceitos.
Aliás, com o regresso em força da moda dos anos sessenta no final do século XX, a ressurreição de Che Guevara torna-se um fenómeno planetário que provavelmente ultrapassa
as simples considerações mercantis. Alguns vêem nisso uma tentativa confusa de reencontrar os valores morais esquecidos: honestidade absoluta, justiça igualitária,
espírito de sacrifício... Outros garantem que esse come back explica também o radicalismo intransigente manifestado pelos movimentos integristas. A verdade é que
o 30.º aniversário da morte do herói mítico é pretexto para um extraordinário revivalismo em que o prosaico ultrapassa largamente a ilusão lírica de uma idade de
ouro já longínqua. Uma dezena de filmes de todas as nacionalidades, outras tantas biografias não menos diversas no rigor e na qualidade, e um dilúvio de bugigangas,
amuletos e traquitanas de todo o tipo invadem o mercado. Cuba, Bolívia e Argentina participam de forma exemplar neste movimento.
Em Havana, o Che foi manipulado de mil maneiras, deixado na sombra, posto em surdina quando era necessário negociar e transigir, chamado à ribalta sempre que convinha
lembrar ao bom povo as virtudes do sacrifício e dos estímulos morais para apertar o cinto e trabalhar de graça, em "período especial". Reina majestosamente nos altares
domésticos, ao lado dos orixás, divindades africanas que os cubanos continuam a venerar contra tudo e contra todos. Perante o afluxo de pedidos de autorização (vindos
de todo o mundo) para filmar os lugares sagrados onde esse homem ilustre combateu, onde viveu e trabalhou, perante a chuva de pedidos de entrevista a personalidades
que conviveram com o santo homem, as autoridades compreenderam que existe ali uma mina, um tesouro escondido, uma ocasião a aproveitar para fazer com que o país
tire proveito de uma fonte de dólares imprevista.
O ano de 1997 é declarado "Ano Che Guevara", e surge um comércio florescente que propõe aos turistas engodados todo o catálogo da quinquilharia

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com a efígie do Che: porta-chaves, pins, medalhas, postais e T-shirts. Vão ser organizadas excursões à Sierra Maestra, até aqui reservada aos cubanos dignos dela.
O Banco Nacional de Cuba edita uma nota e uma moeda de três pesos com a imagem do seu antigo presidente, que desta vez é comprada em divisas estrangeiras. Os Correios
imprimem selos adhoc; os garotos vendem na rua calhaus apanhados na praia, nos quais foi pintado o retrato da personagem. Quanto à televisão cubana, está a preparar
duas séries complementares de folhetins, um em quinze episódios e o outro em sessenta (!), que evocam minuciosamente a hagiografia do herói imortal.
A descoberta dos restos mortais do Che na Bolívia surge, como que por milagre, poucos dias antes de oito mil "guevaristas", reunidos em Havana para um festival mundial
da juventude (Julho de 1997), entoarem em coro um novo hino ao guerrilheiro com o cantor Silvio Rodríguez, da Nueva Trova, mas é o mausoléu de Santa Clara que passará
a ser o lugar obrigatório do ritual.
Apesar do "rapto das relíquias" por Cuba, os bolivianos persistem na organização das suas próprias comemorações. Business first, o culto de Santo Ernesto de La Higuera
tornou-se tão intenso que começam a afluir turistas da Argentina, do Peru, do Chile e da Europa. Reabilitando de facto o guerrilheiro, a Secretaria de Estado do
Turismo organizou um circuito denominado "a rota do Che", no qual, a partir de Camiri, os apreciadores de aventura (e de mosquitos) passam pelas "estações" que marcaram
a Paixão de Guevara: Ñancahuazu, Vado del Yeso, Quebrada del Churo, com o seu Gólgota de La Higuera, terminando no Santo Sepulcro sem sepulcro, Vallegrande. Mais
vale multiplicar os lugares de devoção, uma vez que, por toda a província, ainda há círios e velas a arder diante de uma imagem do novo Cristo local.
Ninguém é menos profeta no seu país do que um argentino, como se sabe. Na terra de Jorge Luis Borges, a admiração por esse Guevara, conhecido por Che, esteve quase
sempre envolta em cepticismo. Exceptuando alguns militantes de extrema-esquerda - montoneros peronistas ou trotskistas do ERP (Exército Revolucionário do Povo) -,
a maior parte interrogava-se, como o Geronte de Molière: "Que diabo foi ele lá fazer?". À direita, a reacção é ainda mais nítida: Guevara foi o mau pastor que conduziu
ao sacrifício uma geração de idealistas, cruelmente castigados pela "guerra suja" dos generais. Mas a comemoração do famoso trigésimo aniversário, em 1997, desencadeou
uma reapropriação da personagem, orquestrada por um marketing hábil e estimulada, mais uma vez, pelo interesse dos media estrangeiros, que não param de filmar os
lugares já históricos do nascimento, da adolescência e da juventude.
Sinal inequívoco, as hinchadas, claques de adeptos das equipas de futebol, exibem o retrato de Guevara nas suas bandeirolas. O Che torna-se o símbolo identificador
de um país que nunca deixou de andar à procura de si mesmo. Os tifosi de Nápoles já o tinham compreendido. Na época em que Maradona os subjugava com o seu prodigioso
jogo de pés e os seus golos imparáveis, eles prestavam homenagem à argentinidade do seu jogador-fetiche exibindo o retrato do guerrilheiro nas suas bandeiras.

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Houve muitos argentinos a protestar, indignados, ao verem, no filme Evita, a máquina de Hollywood fazer do Che um empregado de café transformado em corifeu de uma
Eva Perón edulcorada. Um inquérito de 1995 revelava que, na classificação dos seus ídolos, os jovens entre os 15 e os 25 anos colocavam Che Guevara antes de Carlos
Gardel! (Noticias, 15 de Outubro de 1995). Nesse mesmo ano, o romancista português António Lobo Antunes catapultava a imagem dos dois símbolos numa só, confidenciando
ao jornal Le Monde (10 de Novembro de 1995) que, para se proteger dos "pesadelos burgueses", pregara à cabeceira da cama "o Carlos Gardel da Revolução", ou seja,
o cartaz do Che.
O que resta, volvido meio século da vida breve mas intensa do belo rapaz de 1947 que chega a Buenos Aires, aos 19 anos, para tirar o curso de Medicina? A imagem
de um viajante apressado.
Em 1950, sem se deixar deslumbrar pelas luzes da cidade nem pelas perspectivas de uma carreira confortável, o rapaz de cabelos curtos e de sonhos desmedidos pôs-se
a correr as estradas. Boémio inocente e curioso, em breve se transformou em D. Quixote e em condottiere, figuras recorrentes da sua alucinação pessoal. Cinco balizas
assinalam esta viagem marcada pela pressa: a Guatemala e a revelação da brutalidade do imperialismo; o México, por ter aí encontrado o seu Messias; Cuba, que lhe
parece a Terra Prometida, insuficiente para a sua fome; o Congo e a insuspeitada complexidade de um Terceiro Mundo ignorado pelas teorias marxistas; e finalmente
a Bolívia, terrível frustração de um sonho libertador do país natal.
Na memória colectiva, a apologética de Guevara ocultou o homem autoritário, impermeável à dúvida, retendo apenas o "herói positivo", exaltado pela morte precoce.
Essa morte foi sórdida; di-la-ão grandiosa. O seu feitio era duro, por vezes intratável; lembrá-lo-ão aberto à ternura. Mas o que, unanimemente, lhe valerá todas
as indulgências é ter sabido conservar as mãos limpas, ter resistido às delícias corruptoras da hierarquia instalada no poder.
Só se empresta aos ricos. O Che foi um grande contestatário, mas também um "semeador de sonhos". Um dos paradoxos da personagem é o de ter simbolizado a utopia de
um mundo mais livre, mais igualitário, mais intransigente na luta contra a injustiça e, na sua abundante produção escrita, nunca ter dado contornos precisos a essa
utopia que pretendia alcançar. É certo que algumas observações esparsas nos seus discursos se referem a amanhãs que cantam. Mas permanecem vagas. Uma breve passagem,
em O Socialismo e o Homem, anuncia que, "uma vez quebradas as cadeias da alienação, ele (o homem) alcançará a consciência total do seu ser social através da cultura
e da arte". O diagnóstico é interessante, mas a ideia é pouco desenvolvida, não saindo da logomaquia marxista tradicional. A sua revolução está por inventar.
O velho conceito do "homem novo" poderia ter aberto um campo de reflexão fecunda; mas isso nunca foi feito. Sem dúvida por falta de tempo,

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mas talvez também por comportar riscos políticos: de facto, é impossível não nos interrogarmos sobre o tipo de sociedade que poderia produzir essa nova categoria
da espécie humana. "Procura-se desesperadamente o homem novo" proclama Guevara, que põe nessa procura uma obstinação digna da do capitão Ahab, de Melville, em busca
da sua baleia branca. O comandante-ministro pensou que a guerra de guerrilha, o chamado trabalho "revolucionário", permitiriam seleccionar os primeiros batalhões
desses homens novos. Generosa ilusão. A transformação das mentalidades e dos comportamentos é um fenómeno complexo que faz intervir uma série de parâmetros, entre
os quais o de uma participação real nas decisões. Perigoso!
Por isso, nesse conceito demasiado vago, vieram misturar-se desordenadamente as mais diversas aspirações revolucionárias: socialismo libertário, trotskismo, revoltas
juvenis de toda a espécie, stakhanovismo de choque, etc. Ninguém repara no mal-entendido porque cada um alimenta aí a sua miragem pessoal e porque a imagem exemplar
do comandante está presente, tranquilizadora, dispensando maiores aprofundamentos. Na verdade, o Che nunca escondeu que preferia de longe a luta armada aos raciocínios
teóricos. Apesar do seu gosto pela escrita e dos seus bolsos cheios de livros e de lápis, estava convencido de que a teoria viria a seguir, mas que não se devia
esperar para agir. Daí a acusação de "blanquismo" que alguns, nomeadamente em Pequim, proferiram contra a impaciência, considerada excessiva, do condottiere impetuoso.
"Muitos dirão que sou aventureiro, e sou-o" escrevia o Che na sua carta de despedida aos pais. "Com a diferença que eu arrisco a pele para defender as minhas verdades".
Talvez seja nesse lado aventureiro que se situe, não as verdades, mas a verdade do homem-Guevara, movido por um sonho que para ele foi verdadeiramente o vírus da
acção, segundo a expressão do coronel Lawrence. Um sonho de glória e de libertação nacional, sem dúvida alguma. Mas não um sonho de poder.
Que importa então que esse vanguardista tenha tido uma revolução de atraso? O general Arnaldo Ochoa* não estava a brincar quando afirmou diante de Aleida, filha
do Che, que o pai fora um "perdedor", como o relatam Jean-François Fogel e Bertrand Rosenthal. É certo que Guevara navegava ainda em Marx e Lenine quando já se perfilava
no horizonte a contracultura anunciadora de uma revolução de monta: a do acesso ao saber, a da revolução informática de Bill Gates, muito mais demolidora do que
a do foco guerrilheiro, no fundo bastante elitista. Assim, o ponto de interrogação que Régis Debray tinha tido a prudência de colocar no título do seu panfleto de
1967 perde a sua razão de ser.

Nota: * Arnaldo Ochoa: a crueldade da história fará deste antigo combatente da coluna de Camilo Cienfuegos, um "perdedor" ainda mais trágico, ao ser fuzilado em
1989, após um processo vergonhoso conduzido pelos irmãos Castro.

A verdadeira "revolução dentro da revolução" parece consistir agora numa forma de poder mais subtil do que a que se encontra na ponta da

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espingarda: a da informação e dos meios de comunicar essa informação. Guevara, aos tropeções na floresta da Bolívia, impotente, por falta de mapas, por falta de
indicações, por falta de mensagens-rádio, não será o perfeito antiexemplo do comandante Marcos, homem da videoesfera, que no México, nas montanhas de Chiapas, conduz
uma luta de guerrilha de um novo estilo para reivindicar a dignidade e o direito à terra? Marcos e os seus companheiros dispõem de telefones, de faxe, de uma sinergia
de sites "amigos" na Internet. Os seus adidos de imprensa fazem um trabalho mais importante junto dos media do que o dos guerrilheiros armados de Kalachnikov. O
Che não fizera mais do que pressentir o fenómeno ao descobrir - escreveu-o - que o processo Debray dera melhor a conhecer a sua guerrilha do que dez combates vitoriosos.
Não desenvolveu a sua análise, não adivinhou a mutação radical na esfera da comunicação que, vinte e cinco anos depois, o mesmo Debray analisará.
Se Guevara permanece, contudo, um looser magnífico, se, apesar do seu destino calcinado, não envelheceu um só minuto desde a época em que a sua imagem de arcanjo
foi exibida à cabeça de todas as manifestações de protesto, é porque o mito perdura e se amplifica, anunciando a eterna boa-nova: amanhã o mundo vai mudar. Essa
esperança permanente jaz, imutável, no fundo da caixa negra onde está encerrada a vida de Ernesto Guevara de la Serna. Que encontramos lá, de facto, para além dos
habituais "pequenos segredos"? Encontramos a asma, evidentemente, que envenenou essa existência mas que levou o asmático a forjar uma vontade temperada de aço. Encontramos
o poderoso antídoto de uma maravilhosa cumplicidade materna, que inculcou os valores libertários fundamentais que marcaram a personalidade do jovem. Encontramos,
por fim, o deslumbramento da aventura única proposta por Castro, outro louco genial.
Mas não encontramos o essencial, isto é, a alquimia particular que, a partir da edição dos mal-entendidos, permitiu conciliar Marx e Rimbaud - um Guevara salvo pelo
Che, finalmente em paz consigo mesmo, brilhando no leve sorriso esboçado na banca mortuária de Vallegrande, pairando na sua lenda...

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AGRADECIMENTOS

Este livro nasceu de uma ideia de Patrick Rotman, em casa de Fabienne Servan-Schreiber, numa noite de 1991, em Paris. A ambos dirijo os meus agradecimentos.
Desejo também manifestar a minha gratidão:
• àqueles que, generosamente facultaram a sua biblioteca para reunir a documentação inicial: Pierre Wiazemsky, Jean Mendelson, Borja Huidobro, Huguette Faget, Alain
e Cecilia Joxe, Richard Gott, Philippe Gavi, Raul Maldonado, Raúl-Roa Kouri;
• àqueles que, ao longo de seis anos de inquérito, me trouxeram uma nova pista, uma fotografia fora do comum, um vídeo, um recorte de jornal, um ponto de vista interessante,
um livro acabado de ser publicado ou, pelo contrário, uma obra esgotada. São muitos e estão espalhados pelo mundo:
- Argélia: Serge Michel;
- Argentina: Jolie Gil Cazalis, Miguel Canale, Hector Yanover, Daniel Divinsky, Paul Zimmerlin, Osvaldo Soriano;
- Bélgica: Jules-Gérard Libois, BenoAurélio
ît Verhaegen, Jean Van Lierde;
- Bolívia: Alfonso Gumucio-Dagron, Carlos Soria Galvarro, Loyola Guzmán, Gustavo Sánchez Salazar, Ruben Sánchez Valdívia, Ted Córdova Claure, Carlos Carrasco, Freddy
Alborta;
- Chile: Nancy Henriquez, Mónica Echeverria, Amália Chaigneau, António Schneider, Isidoro Guelfenbein;
- Cuba:Hilda Guevara Gadea,Alfredo Guevara, Antonio Nuñez Jiménez, Ana Maria Erra, Aurélio Alonso, Marta Rojas, Marta Harnecker, Adys Kupull e Froilán González,
Miria Contreras, Jean-Claude e Xenia Barousse, Jean-Louis Pandelon, Jeanne Texier;
- Espanha: Christian Pauly;
- Estados Unidos: Lou Rosof;
- França: Janette Habel, François Maspero, Élisabeth Lagache, Albert-Paul Lentin, Paz Espejo, Jean Harzic, Pierre Caries, Monique Darrigade, José Maldavsky, Henri
Robillot, Jean-François Fogel, Jean-Luc Quémard, Cyrille Hanappe, Remi Lenoir, Patrice Barrat;

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- Grã-Bretanha: Sophie Benson, Richard Gott;
- Itália: Saverio Tutino, Moreno Montomoli, Marie-Pierre Kalfon, Roberto Savio;
- México: Philippe Chéron;
- Suíça: Richard Dindo;
- Uruguai: Violette Faro Hanoun, Ernesto González Bermejo.
Agradeço em particular àqueles que me ajudaram a compreender os problemas de saúde de um asmático alérgico: o doutor Jean-Christian Bazin, a doutora Nicole Frey
e o professor Olivier Blétry; bem como àqueles que me facilitaram uma documentação preciosa: Michel Tatu, do jornal Le Monde, Geneviève Dreyfus-Armand, conservadora
da Biblioteca de Documentação Internacional Contemporânea, Jean Canet, responsável pelas teses na Biblioteca de Ciências Humanas da Universidade de Paris-VII, Jerôme
Kalfon, conservador da Biblioteca Universitária de Paris-V.
Um agradecimento especial a Colette Vacquier - primeira leitora que, com dedicação e desinteressadamente, "tratou" este texto durante mais de um ano, bem como àqueles
que o leram e enriqueceram com as suas observações pertinentes: Simonne Lacouture, Jean-Pierre Clerc, Élisabeth Burgos, Jean Mendelson, Nicole Kervévan.
Finalmente, esta obra careceria de substância se não se apoiasse nos testemunhos daqueles que gentilmente se prestaram ao exercício por vezes incómodo da entrevista,
sempre transcrita por Valérie Kalfon. Agradeço calorosamente a todos os que aceitaram conceder-me uma parte do seu tempo: Dariel Alarcón (Benigno), Nestor Almendros,
Miguel Ayoroa, Oswaldo Barreto, Orlando Borrego, Léon Bouvier, Élisabeth Burgos, Guillermo Cabrera Infante, Carmen Córdova, Fernando Córdova, Ted Córdova-Claure,
Julia Cortéz, Regis Debray, René Depestre, Hernán Donaire, Ulises Estrada, Ana Maria Erra, Carlos Calica Ferrer, Carlos Franqui, Rogelio Garcia Lupo, Armand Gatti,
Alberto Granado, Alfredo Guevara, Norma Guevara, Roberto Guevara de la Serna, Michel Gutelman, Loyola Guzmán, Janette Habel, Carlos Jorquera, Lofti El Kholi, Élisabeth
Lagache, Marita Lamarca, Luis Alberto Lavandeyra, Nestor Lavergne, Raul Maldonado, Max Marambio, Aleida March, Alberto Martínez, Jorge Masetti, Miriam Merzouga,
Serge Michel, Humberto Montenegro, Antonio Nuñez Jimenez, Enrique Oltuski, Oscar Ortiz, Omar Pérez, Gary Prado, Rolando Prats, Michèle Ray, Roberto Fernández Retamar,
Raul Roa Kouri, Carlos Romeo, Ricardo Rojo, Gustavo Sánchez Salazar, Ruben Sánchez Valdivia, Hernán Sandoval, Roberto Savio, Jorge Pupilo Serguera, Mario Terán.
Que me perdoem aqueles que (involuntariamente) esqueci.

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BIBLIOGRAFIA

A bibliografia referente a Ernesto Che Guevara é simultaneamente vasta e incompleta.
Vasta porque a personagem, pela sua singularidade, levou inúmeros autores a expressarem as suas próprias reflexões ou reunir testemunhos. Todavia, são raras as obras
que evitam o parti-pris, quase sempre hagiográfico, ou o requisitório.
Incompleta, porque os próprios escritos de Guevara estão longe de ter sido publicados na sua totalidade. Muitos textos inéditos deste polígrafo inveterado estão
ainda adormecidos, num sono cuja razão nos escapa, trinta anos volvidos sobre a sua morte.
Esses inéditos encontram-se quer na antiga residência familiar de Guevara em Havana, transformada em Centro de Estudos (bastante confidencial), sob a vigilância
da viúva do herói, Aleida March, quer nos arquivos do departamento histórico do Conselho de Estado e nos arquivos do Ministério das Forças Armadas Revolucionárias,
sob o controlo de Raul Castro.
Vale a pena recordar o testemunho de Carlos Franqui, já referido nesta obra. Depois de o jornal Revolución, do qual era director, ter sido extinto em 1965, fundindo-se
com o Hoy e dando origem ao Granma, Carlos Franqui fora colocado "na prateleira", no Departamento dos Arquivos Históricos. Foi aí que, após a morte do Che, Fidel
Castro veio em pessoa entregar "cinco ou seis sacas seladas", naquela época com "proibição de abrir". É provável que, desde então, esse material tenha sido classificado
e compilado, mas nunca foi publicado nada, a não ser, com alguns "retoques", a narrativa da primeira viagem pela América Latina, com Alberto Granado, em 1952, ao
cuidado de Aleida March e a colaboração de Maria del Carmen Ariet. Por outro lado, já referimos a frustração sentida quando, tendo-nos entregue por breves instantes
um dos cadernos de apontamentos do Che no Congo, Aleida March o guardou de imediato entre uma série de outros documentos encafuados num grande arquivador metálico,
fechado à chave, dentro de uma sala sem ar condicionado e desprovida de condições para uma boa preservação de documentos.
Em França, o leitor poderá recorrer aos fundos da Biblioteca de Documentação Internacional Contemporânea (BDIC) da Universidade de Paris,

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tanto no que respeita aos livros como à imprensa periódica. Poderá também tirar partido do material disponível na biblioteca da Fundação Nacional das Ciências Políticas
(Paris) e na biblioteca do Instituto de Altos Estudos da América Latina (Paris).

Obras:

Enrique Acevedo: Descamisado, Cultura Popular, Havana, 1993.
Luis Aguero e outros: Che Comandante, Diógenes, México, 1968.
Dariel Alarcón Ramírez (Benigno) e Mariano Rodríguez: Les Survivants du Che, Ed. du Rocher, Paris, 1995. (Benigno, testemunha privilegiada, fornece informações inéditas
sobre o período de preparação do comando em Cuba, sobre os subterfúgios utilizados para entrar na Bolívia e, sobretudo, sobre a "estação no inferno" boliViana).
José Luis Aleazar: Ñancahuazu, la Guerilla del Che en Bolivia (sem menção de editor, nem data nem lugar de edição).
José Luis Aleazar e José Baldivia: Bolívia: Outra Lección para America, Era, México, 1973.
José Guerra Alemán: Barro y Cenizas, Fomento Editorial, Madrid, 1971.
Juan Almeida Bosque: Por las Faldas del Turquino, Política, Havana, 1992.
G. Almeyra e E. Santarelli: Che Guevara, Il Pensiero Ribelle, Demetra, Bussalengo, Itália, 1996.
Alcides Arguedas: Raza de Bronce, Losada, Buenos Aires, 1945.
Maria del Carmen Ariet: Che, Pensamiento Politico, Política, Havana, 1988. (Esta historiadora cubana situa-se na linha da hagiografia oficial e é, tanto quanto sabemos,
a única a ter tido acesso ao texto inédito do Dicionário Filosófico e do diário da segunda viagem de Guevara).
Georges Arnaud: Indiens pas Morts, Robert Delpire, Zurique, 1956.
Raymond Aron: Penser la Guerre, Gallimard, Paris, 1976.
Atti del Convegno di Urbino: Ernesto Guevara, la Storia la Memoria, Rivista Latinoamericana, Roma, 1989.
Alberto Bayo: Mi Aporte a la Revolución Cubana, Ejercito rebelde, Havana,
1960.
Simone de Beauvoir: La Force des Choses, Gallimard, Paris, 1963.
Fuan F. Benemelis: Castro: Subversão e Terrorismo en África, Europress, Lisboa, 1986.
Benigno (Dariel Alarcón Ramírez): Vie et Mort de la Révolution Cubaine, Fayard, Paris, 1996. (Nesta curta autobiografia, escrita após a sua ruptura com o castrismo,
o guajiro da Sierra Maestra, entretanto coronel, fornece inúmeros elementos sobre a guerrilha abortada do Che no Congo e sobre a falta de preparação dos bolivianos,
antes da chegada do Che a esse país. A edição espanhola (Tusquets, Barcelona, 1997), revista e apresentada por Elizabeth Burgos, é muito melhor do que a francesa

546.

Charles Bettelheim: La Transition vers l'Économie Socialiste, François Maspero, Paris, 1970.
Edward Boorstein: The Economic Transformations of Cuba, Monthly Review Press, Nova Iorque, 1968.
Pascal Bruckner.Le Sanglot de l'Homme Blanc. Tiers Monde, Culpabilité, Haine de Soi, Seuil, Paris, 1986.
Guillermo Cabrera Alvarez: Camilo Cienfuegos, el Hombre de Mil Anecdotas, Política, Havana, 1989.
Guillermo Cabrera Infante: La Pabana para un Infante Difunto, Plaza y Janés, Barcelona, 1986.
- Três Tristes Tigres, Seix Barral, Barcelona, 1988.
Jorge Camarasa: Los Nazis en la Argentina, Legasa, Buenos Aires, 1992.
- Odessa Al Sur, Planeta, Buenos Aires, 1995 (esta última obra fornece interessantes precisões sobre o papel dos franceses colaboracionistas e amigos dos nazis,
refugiados na Argentina após a derrota alemã e acolhidos por "comités de apoio" peronistas).
Albert Camus: Le Mythe de Sisyphe, Gallimard, Paris, 1958.
Marie-Hélène Camus: Lune de Miel chez Fidel Castro, Fayard, Paris, 1960.
Jay Cantor: The Death of Che Guevara: a Novel, Alfred Knopf, Nova Iorque, 1983.
Fidel Castro: Cuba et la Crise des Caraïbes, François Maspero, Paris, 1963.
- Etapes de la Révolution Cubaine, François Maspero, Paris, 1964.
- L'Histoire M'Acquittera, Güairas, Havana, 1967.
- Révolution Cubaine, I e II, François Maspero, Paris, 1968.
- Entretiens sur la Religion avec Frei Betto, Le Cerf, Paris, 1986.
Jean Cau: Une Passion pour Che Guevara, Julliard, Paris, 1979.
Centro de Estudos de História Militar: De Tuxpan à La Plata, Política, Havana, 1985.
- Granma, Compilación de Documentos, Política, Havana, 1985.
Centro de Estudos sobre a América: Pensar al Che, 2 vol., José Marti, Havana, 1989.
Augusto Céspedes: Metal del Diablo, Puerta del Sol, La Paz, 1969.
Armando Chávez Antúnez: Del Pensamiento Ético del Che, Política, Havana, 1983.
Julio O. Chaviano: La Lucha en las Villas, Ciências Sociales, Havana, 1990.
Jean-Pierre Clerc: Fidel de Cuba, Ramasay, Paris, 1988.
- Les Quatre Saisons de Fidel Castro, Seuil, Paris, 1995.
Annie Cohen-Solal: Sartre 1905-1980, Gallimard, Paris, 1985.
Jean Contenté: L'Aigle des Caraïbes, Robert Laffont, Paris, 1978.
Jean Cormier: Troisième Mi-Temps, Lincoln, Paris, 1991.
- Che Guevara, Éd. du Rocher, Paris, 1995.
Julio Cortázar: Los Relatos, 3, Pasajes, Alianza Editorial, Madrid, 1976 (é nesta colectânea que se encontra a novela Reunión, evocando a travessia do Che no Granma).

547

Julio Cortázar e outros: Cuba por Argentinos, Merlín, Buenos Aires, 1968.
Claude Couffon: René Depestre, Seghers, Paris, 1986.
Adys Cupull e Froilán González (este casal de cubanos retomou minuciosamente a vida de Ernesto Guevara, sem sair da hagiografia oficial. Foram recolhidos muitos
testemunhos interessantes, mas a curiosidade dos autores não foi ao ponto de interrogar Aleida March, Fidel e Raul Castro nem de consultar os arquivos secretos em
Havana):
- De Nancahuazu a la Higuera, Política. Havana, 1989.
- Ernestito Vivo y Presente, Política, Havana, 1989.
- La CIA Contre le Che, EPO, Bruxelas, 1993.
- Un Hombre Bravo, Capitán San Luis, Havana, 1994.
- Cálida Presencia, Sn Amistad Con Tita Infante, Oriente, Santiago de Cuba, 1995.
Horacio Daniel Rodríguez: "Che" Guevara, Aventura o Revolución?, Plaza y Janés, 1968.
Jean Daniel: Le Temps qui Reste, Stock, paris, 1973.
Régis Debray (são raras as obras de Régis Debray onde não surja qualquer referência a Che Guevara. Os melhores testemunhos encontram-se em La Guérilla du Che, Les
Masques e Loués Soient nos Seigneurs):
- Entretiens avec Allende sur la Situation au Chili, François Maspero, Paris, 1971.
- Escritos en la Prisión, Siglo XXI, México, 1972.
- Révolution dans la Révolution? Et Autres Essais, François Maspero, Paris, 1972.
- La Critique des Armes, Seuil, Paris, 1974.
- Les Épreuves du Feu, Seuil, Paris, 1974.
- La Guérilla du Che, Seuil, Paris, 1974.
- Journal d'un Petit-Bourgeois entre Deux Feux et Quatre Murs, Seuil, Paris, 1976.
- L'Esperance au Purgatoire, Alain Moreau, Paris, 1980.
- Les Masques, Gallimard. Paris, 1987.
- Que Vive la Republique, Odile Jacob, Paris, 1989.
- A Demain de Gaulle, Gallimard, Paris, 1990.
- Christophe Colomb, le Visiteur de l'Aube, La Différence, Paris, 1991.
- Cours de Médiologie Générale, Gallimard, Paris, 1991.
- Contretemps. Éloge des Idéaux Perdus, Gallimard, Paris, col. "Folio", 1992.
- Loués Soient nos Seigneurs, Gallimard, Paris, 1996.
Edmundo Desnoes: Memorias del Subdesarrollo, Galerna, Buenos Aires, 1968.
Jesús Díaz: Los Anos Duros, Juracán, Havana, 1968.
- Las Iniciales de la Sierra, Alfaguara, Madrid, 1987.
Theodore Draper: La Révolution de Castro, Mythes et Réalités, Calmann-Lévy, Paris, 1963.
Jean-Marc Dufour: Révolution: Capitule Cuba, La Table Ronde, Paris, 1962.
René Dumont: Cuba, Socialisme et Développement, Seuil, Paris, 1964.

548

- Cuba est-il Socialiste?, Seuil, Paris, 1970.
Jorge Edwards: Persona Non Grata, Circulo de Lectores-Barral, Barcelona, 1975.
Hans Magnus Enzensberger: Mausolée, Alinéa, Aix-en-Provence, 1987.
Froilán Escobar, Felix Guerra: Che, Sierra Adentro, Política, Havana, 1988.
Frantz Fanon: Peau Noire, Masques Blancs, Seuil, Paris, 1952.
- Les Damnés de la Terre, François Maspero, Paris, 1966.
Alberto Fernández Montes de Oca: El Diario de Pacho, Punto y Coma, Santa Cruz, Bolívia, 1987 (prefaciado e revisto por Gary Prado).
Marc Ferro: Histoire des Colonisations, des Conquêtes aux Indépendances, XIIIe-XXe siècles, Seuil, Paris, 1994.
Maria Flores: La Femme au Fouet, Club Français du Livre, Paris, 1953.
Jean-François Fogel e Bertrand Rosenthal: Fin de Siècle à La Havane, les Secrets du Pouvoir Cubain, Seuil, Paris, 1993.
André Fontaine: Histoire de la Guerre Froide, Seuil, Paris, col. "Points Histoire",
2 vol., 1983.
Michel Foucault: Les Mots et les Choses, Gallimard, Paris, 1966.
Victor Franco: La Révolution Sensuelle, Grasset, Paris, 1962.
Ania Francos: La Fête Cubaine, Julliard, Paris, 1962.
Carlos Franqui (este jornalista cubano, partidário convicto do Movimento 26 de Julho, exilado voluntariamente desde 1968, deu, em Le Journal de la Révolution Cubaine
e Le Livre des Douze, o mais completo testemunho sobre a guerrilha da Sierra Maestra. As suas outras obras referem-se mais a Fidel Castro):
- Le Livre des Douze, Gallimard, Paris, 1965.
- Journal de la Révolution Cubaine, Seuil, Paris, 1976.
- Retrato de Familia con Fidel, Seix Barral, Barcelona, 1981.
- Vida, Aventuras y Desastres de un Hombre Llamado Castro, Planeta, Barcelona, 1988.
Martha Frayde: Écoute Fidel, Denoël, Paris, 1987.
Carlos Gabetta: Argentine, le Diable dans le Soleil, Atelier Marcel-Jullian, Paris, 1979.
Hilda Gadea: Anos Decisivos, Aguilar, México, 1972 (a primeira mulher do Che dá neste livro uma série de informações que permitem reconstituir com alguma precisão
a evolução de Guevara, a sua "mudança radical", na Guatemala e no México, entre 1954 e 1956).
Eduardo Galeano e outros: Querido Che, Revolución, Madrid, 1987.
Jean-Pierre Garnier: Une Ville, Une Révolution: La Havane, Anthropos, Paris, 1973.
Philippe Gavi: Che Guevara, Éditions Universitaires, Paris, 1970.
Luis J. González e Gustavo Sánchez Salazar: Che Guevara en Bolivie, Stock, Paris, 1969 (este livro, a melhor obra de síntese sobre o início, o desenvolvimento e
o fim da guerrilha do Che na Bolívia, só existe em versão inglesa e francesa).

549

Luis M. González-Mata: Las Muertes del "Che" Guevara, Argos Vergara, Barcelona, 1980.
Marta A. González: Bajo Palabra, Venceremos, Havana, 1965.
André Gorz: Le Traître, Seuil Paris, 1958.
Pierre e Renée Gosset: L'Adieu aux Barbus, Julliard, Paris, 1965.
Richard Gott: Guerrilla Movements in Latin America, Doubleday & Company, Nova Iorque, 1972.
Graham Greene: Notre Agent à La Havane, Robert Laffont, Paris, 1959.
Ióssif Grigulevitch: Luchadores por la Libertad de America Latina, Progresso, Moscovo, 1988.
Ernesto Che Guevara: El Che en la Revolución Cubana (esta edição em 7 tomos, fora do comércio, de tiragem limitada, foi feita em Havana, pelo Ministério da Indústria
Açucareira, sob a direcção de Orlando Borrego, provavelmente em 1966. Mas não menciona local nem data).
- Cartas Inéditas, Ed. Sandino, (local de edição não mencionado), 1967.
- Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, prefácio de Robert Merle, François Maspero, Paris, 1967.
- Le Socialisme et l'Homme à Cuba, François Maspero, Paris, 1967.
- (OEuvres I, Textes Militaires, François Maspero, Paris, 1968.
- (OEuvres II, Souvenirs de la Guerre Révolutionnaire, François Maspero, Paris, 1968.
- (OEuvres III, Textes Politiques, François Maspero, Paris, 1968.
- (OEuvres IV, Journal de Bolivie, François Maspero, Paris, 1968 (uma edição, enriquecida com um prefácio de François Maspero e de treze dias que faltavam, foi publicada
por La Découverte, em 1995).
- (OEuvres V, Textes Inédits, François Maspero, Paris, 1972.
- (OEuvres VI, Textes Inédits, François Maspero, Paris, 1972.
- The "Complete" Bolivian Diaries of Che Guevara and Other Captured Documents, introdução de Daniel James (ed.), Stein and Day, Nova Iorque, 1968.
- Obras 1967-1967, 2 vols., Casa de las Americas, Havana, 1977 (estas duas compilações incluem os textos publicados em francês nos seis volumes de OEuvres e são
aqui indicados para aqueles que pretendem referir-se directamente à língua do Che).
- Escritos y Discursos, 9 vols., Ed. de Ciencias Políticas, Havana, 1985.
- Écrits d'un Révolutionnaire, La Brèche, Paris, 1987 (com textos de Ernest Mandel e de Charles Bettelheim sobre a economia de transição em debate).
- Ernesto "Che" Guevara, Juan Maestre Alfonso (ed.), Ed. de Cultura Hispânica, Madrid, 1988.
- Union de Periodistas de Cuba, Che Periodista, Pablo de la Torriente, Havana, 1988.
- Notas de Viaje (Tomado de su Archivo Personal), Abril-Sodepaz, Havana-Madrid, 1922 (de notar que a "redacção" desta obra foi garantida, no caso da edição cubano-espanhola,
pela viúva do Che, Aleida March, que

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tem ainda em seu poder uma parte significativa dos manuscritos inéditos do marido. Essas notas de viagem de Ernesto Che Guevara, juntamente com as do seu amigo
Alberto Granado, foram traduzidas para francês e editadas num só volume: Ernesto Che Guevara e Alberto Granado, Latinoamericana, Journal de Voyage, Austral, Paris,
1994).
Ernesto Guevara Lynch: ...Aquí va un Soldado de America, Sudamericana Planeta, Buenos Aires, 1987.
- Mi Hijo el Che, Arte y Literatura, Havana, 1988.
Yves Guilbert: La Poudrière Cubaine. Castro ITnfidèle, La Table Ronde Paris, 1961.
Gérard Guillerm: Le Péronisme, Histoire de l'Exil et du Retour, Publications de la Sorbonne, Paris, 1989.
Alfonso Gumucio-Dagron: Bolivie, Seuil, Paris, 1981.
Michel Gutelman: L' Agriculture Socialisée à Cuba, François Maspero, Paris, 1967.
Janette Habel: Ruptures à Cuba. Le Castrisme en Crise, La Brèche, Paris, 1989.
Hervé Hamon e Patrick Rotman: Génération, t. 1, Les Années de Rêve, Seuil, Paris, 1987 e 1988, e col. "Points Actuel", 1990.
Marta Harnecker: Cuba: Dictature ou Démocratie?, François Maspero Paris, 1975.
Mohamed Hassanein Heikal: Les Documents du Caire, Flammarion, Paris, 1972.
Hergé: Tintin au Congo, Casterman, Tournai, 1946.
Leo Huberman e Paul M. Sweezy: Cuba, Palestra, Buenos Aires-Montevideu, 1968.
Jorge Icaza: Huasipungo, Losada, Buenos Aires, 1953.
I. Joshua: Organisation et Rapports de Production dans une Économie de Transition (Cuba), Sorbonne, CEPS, Paris, 1968.
II. Alain Joxe: El Conflicto Chino-Sovietico en America Latina, Arca, Montevideu, 1967.
Claude Julien: La Révolution Cubaine, Julliard, Paris, 1961.
- L'Empire Américain, Grasset, Paris, 1968.
Pierre Kalfon: Argentine, Seuil, Paris, 1967.
K. S. Karol: Les Guérilleros au Pouvoir, Robert Laffont, Paris, 1970 (obra de referência, excelente análise política da evolução da revolução cubana até 1970).
Robert Kennedy: 13 Days. The Cuban Missile Crisis, prefácio de Harold MacMillan, MacMillan, Londres, 1969.
Claudia Korol: El Che y los Argentinos, Dialéctica, Buenos Aires, 1988 (obra de inspiração comunista e peronista de esquerda, muito rica em testemunhos sobre a argentinidade
do Che).
Philippe Labreveux: Bolivia Bajo el Che, Colección Replanteo, Buenos Aires, 1968.
Yves Lacoste (dir.): Hérodote, (Stratégies, Géographies, Idéologies), n. 5, Paris, Janeiro - Março 1997, François Maspero. Este número é consagrado, em parte, a
Che Guevara.
Jean Lacouture: De Gaulle, t. 3, Le Souverain, Seuil, Paris, 1986.

551

Jean Lamore: Cuba, Presses Universitaires de France, Paris, 1970.
Jesus Lara: Guerrillero Inti Peredo, Canelas, Cochabamba, Bolívia, 1980.
Jean Lartéguy: Les Guérilleros, Presse Pocket, Paris, 1972.
I. Lavretski: Ernesto Che Guevara, Progresso, Moscovo, 1975.
Jacques Leenhardt e Pierre Kalfon: Les Amériques Latines en France, Gallimard, Paris, 1992.
Philippe Lemarchand (dir.): L'Afrique et l'Europe, Complexe, Bruxelas, 1994.
Maurice Lemoine: Les 100 Portes de l'Amérique Latine, Autrement, Paris, 1988.
- (dir.). Cuba, 30 Ans de Révolution, Autrement, Paris, 1989 (inúmeros testemunhos interessantes).
Albert-Paul Lentin: La Lutte Tricontinentale, François Maspero, Paris, 1966.
Robert Linhart: Le Sucre et la Faim, Éd. de Minuit, Paris, 1980.
José Luis Llovio-Menéndez: La Vie Secrète d'un Révolutionnaire à Cuba, Ergo Press, Paris, 1989.
Lee Lockwood: Castros Cuba, Cubas Fidel, The MacMillan Company, Nova Iorque, 1967.
Rufo López-Fresquet: My Fourteen Months with Castro, World Publishing, Nova Iorque, 1966.
Michael Lowy: La Pensée de Che Guevara, François Maspero, Paris, 1970.
Pierre Lux-Wurm: Le Péronisme, R. Pichon e R. Durand-Auzias, Paris, 1965.
Jacobo Machover (dir.): La Havane, 1952-1961. D'un Dictateur l'Autre: Explosion des Sens et Morale Révolutionnaire, Autrement, Paris, 1994 (reconstituição de uma
atmosfera havanesa antes e depois da revolução).
Juan Maestre Alfonso: El "Che" y Latinoamerica, 2 vols., Akal, Madrid, 1979.
Mao Tsé-Tung: La Guerra de Guerrillas, Huemul, Buenos Aires, 1963.
Gilles Martinet: Les Cinq Communismes, Seuil, Paris, 1971.
Diego Martínez Estévez: Ñancahuazu, Apuntes para la Historia Militar de Bolivia, Computación y Projectos, La Paz, 1989.
Ezequiel Martínez Estrada: Mi Experiencia Cubana, El Siglo Ilustrado, Montevideu, 1965. Fernando Martínez Heredia: Che, el Socialismo y el Comunismo, Casa de las
Americas, Havana, 1989.
Jorge Ricardo Masetti: pai, Los que Luchan y los que Lloran, Freeland, Buenos Aires, 1968. Jorge Ricardo Masetti: filho, La Loi des Corsaires, Itinéraire d'un Enfant
de la Révolution Cubaine, Stock, Paris, 1993.
Roberto Massari: Fernando Martínez e outros, Guevara para Hoy, Centro de Estudios sobre America-Erre Emme, Roma, 1994.
Herbert L. Matthews: Fidel Castro, Seuil, Paris, 1970.
Plinio Mendoza: La Llama y el Hielo, Planeta, Barcelona, 1984.
Alfred Métraux: Les Incas, Seuil, Paris, 1961.
François-Bernard Michel: Le Souffle Coupé, Gallimard, Paris, 1984.
Pierre Michon: Rimbaud le Fils, Gallimard, Paris, 1991.
Gianni Mina: Habla Fidel, Mondadori, Madrid, 1988.

552

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553

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Abraham Santibánez: Los Diarios Secretos del Che, Araucária, Santiago do Chile, 1984.
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1993; vol. 3, Análisis y Reflexiones, 1994; vol. 4, Los Otros Diarios y Papeles, 1996; vol. 5, Su Diário de Campaña, 1996 (há que prestar homenagem ao trabalho de
documentação realizado pelo autor e pela equipa boliViana do CEDOIN, pelo rigor com que foi compilado tudo o que, na Bolívia, diz respeito a Ernesto Che Guevara.
Há também a referir uma publicação à parte de Carlos Soria Galvarro, no jornal La Razón (9-10-96), com uma reprodução do "verdadeiro diário de Pombo").
Tad Szulc: Castro, Trente Ans de Pouvoir Absolu, Payot, Paris, 1987 (esta biografia inclui bastantes pormenores que permitem uma melhor compreensão do lugar de Guevara
junto de Fidel).
Carlos Tablada Pérez: El Pensamiento Economico de Ernesto Che Guevara, Casa de las Americas, Havana, 1987.
Paço Ignacio Taibo II: La Batalla del Che, Santa Clara, Política, Havana, 1989.
- Ernesto Guevara También Conocido como El Che, Planeta-Joaquin Mortiz, México, 1996.
- com Froilán Escobar e Felix Guerra: L'Année ou Nous N'Étions Nulle Part. Extraits du Journal d'Ernesto Che Guevara en Afrique, Métailié, Paris, 1995.
Volodia Teitelboim: Neruda, L'Harmattan, Paris, 1996.
Tzvetan Todorov: La Conquête de l'Amérique, la Question de l'Autre, Seuil, Paris, 1982.
Saverio Tutino: L'Octobre Cubain, François Maspero, Paris, 1969.
- Guevara al Tempo di Guevara, Editori Riuniti, Roma, 1996.
- Il Che in Bolivia. Memorie di un Cronista, Editori Riuniti, Roma, 1996.
Hernan Uribe: Operación Tia Victoria, Emisión, Santiago do Chile, 1987.
Armando Valladares: Prisonnier de Castro, Grasset, Paris, 1979.
Jorge Valls: Mon Ennemi, Mon Frère. Cuba, 1952-1984, Gallimard-l'Arpenteur, Paris, 1989.

554

Mario Vargas Salinas: El Che: Mito y Realidad, SEPA, La Paz, 1987.
Rubén Vásquez Díaz: La Bolivie à l'Heure du Che, François Maspero, Paris, 1968.
Humberto Vázquez Viaña: Acerca de la Publicación de "Mi Campaña Junto al Che" atribuída a Inti Peredo, La Paz, 1971.
Humberto Vázquez Viaña e Ramiro Aliaga Saravia: Bolivia, Ensayo de Revolución Continental, textos inéditos, Paris, 1970 (este documento, escrito por dois bolivianos
que se apresentam como membros do Exército de Libertação Nacional (ELN), traz contributos inéditos, em primeira mão. É a primeira obra que põe em causa a pertinência
das decisões de Guevara na condução da guerrilha na Bolívia).
Pierre Vayssière: Les Révolutions d'Amérique Latine (XIXe-XXe), Seuil, Paris, 1991.
Jeannine Verdès-Leroux: La Lune et le Caudillo, 1959-1971, Gallimard, Paris, 1989.
Ezequiel Vieta: Mi Llamada es..., Letras Cubanas, Havana, 1982.
Carlos Villar-Borda: Che Guevara, su Vida y Muerte, Gráfica Pacific Press, Lima, 1968.
Harry Villegas: Pombo, Un Hombre de la Guerrilla del Che. Diario y Testimonio Inéditos, 1966-1968, Política, Havana, 1996.
Juan Vivés: Les Maîtres de Cuba, Robert Laffont, Paris, 1981.
Pedro Vuskovic e Belarmino Elgueta: Che Guevara en el Presente de America Latina, Casa de las Americas, Havana, 1987.

Imprensa periódica:

No que respeita à imprensa periódica com referência a Ernesto Che Guevara, o número é de tal forma elevado - uma vez que todos os anos são publicadas dezenas de
artigos em todas as línguas em diversas regiões do mundo - que se torna difícil elaborar uma lista exaustiva. Os artigos citados na presente obra constituem uma
primeira amostra e revelam o interesse dos media por uma figura que não cessou de despertar a curiosidade do público.

Filmografia:

Como os programas de televisão sobre Che Guevara são demasiado numerosos para poderem ser citados, referiremos apenas os principais filmes (35 mm) tendo como objecto
a figura do herói, já mítico. A maior parte foi produzida em Cuba pelo ICAIC (Instituto Cubano das Artes e Indústrias Cinematográficas), geralmente sob a forma de
documentário.

555

- Santiago Alvarez: Hasta la Victoria Siempre (35 minutos), Cuba, 1967.
- Manuel Herrera: El Llamado de la Hora (35 m.), Cuba, 1969.
- Richard Fleischer: Che, com Omar Sharif (Che) e Jack Palance (Fidel Castro), longa-metragem de ficção (96 m.), Estados Unidos, 1969.
- Sergio Giral: Un Relato Sobre la Columna Cuatro (45 m.), Cuba, 1972.
- Bernabé Hermández: Che, Comandante Amigo (17 m.), Cuba, 1979.
- Orlando Rojas: Viento del Pueblo (17 m.), Cuba, 1979.
- Pedro Chaskel: Una Foto Recorre el Mundo (13 m.), Cuba, 1981. Che Hoy e Siempre (11 m.), Cuba, 1982.
- Fernando Birri: Mi Hijo el Che (70 m.), Cuba, 1985. Este filme utiliza uma grande parte daquilo que o próprio Ernesto Guevara Lynch filmou sobre a infância do
filho mais velho, o futuro Che.
- Richard Dindo: Ernesto Che Guevara, le Journal de Bolivie (92m.), França.
Por ocasião do trigésimo aniversário da morte do Che (Outubro de 1997), estão anunciados vários projectos cinematográficos, essencialmente dirigidos por argentinos
(Luis Puenzo, Tristan Bauer, Anibal di Salvo) ou italianos (Ettore Scola, Giuseppe Ferrara). Em França, deverá ser exibido nas salas de cinema, em 1997, um documentário
de longa-metragem, realizado por Maurice Dugowson, a partir do livro presente.

556

ÍNDICE ONOMÁSTICO

Acevedo, Enrique: 188, 193, 214
Acuña. Juan Vitalio, chamado Joaquín: 449, 482, 485, 490-491, 494, 497, 499
Adjoubeï, Alexis: 328
Adler, Alfred: 111
Adriázola, David, chamado Darío: 511, 515, 524
Aguero, Rivero: 213
Alarcón Ramírez, Dariel, chamado Benigno: 164, 166, 259, 284, 345, 360, 406, 420, 427-428, 436, 449, 455, 464, 474, 544
Albentosa, Emilio: 158
Alcorta, Gloria: 49
Alejandro, ver Machín, Gustavo. Alganaraz, Ciro: 454, 461, 469, 480
Aliaga, Angel: 509
Alioucha, ver Guevara March, Aleida.
Allende, Beatriz: 525
Allende, Salvador: 97, 439, 523, 525-526, 537
Almeida, Juan: 158-161, 166, 178, 181, 183, 197, 199, 203, 207, 213, 243-244, 265, 276, 292 Almendros, Nestor: 140, 260, 306
Alvarado, Pedro de: 115
Ameijeiras, Efigenio: 168, 340, 345, 384
Ana, Marcos: 284
Anderson, Rudolf: 329, 331
Antonio, ver Pantoja, Orlando.
Apithy, Sourou Migan: 371
Aragonés, Emilio: 326, 371-372, 381, 423
Aranda, Sergio: 264
Arbenz, Jacobo: 94, 104-106, 108, 110, 114-121, 124-125, 142, 261, 275, 335
Arcocha, Juan: 266, 268
Arévalo, Juan José: 104
Arguedas, Antonio: 518, 526-527
Ariel, ver Carretero, Juan.
Arlt, Roberto: 31, 50
Asturias, Miguel Angel: 104, 113, 533
Ayoroa, Miguel: 507, 510, 512, 515-516
Baker, Joséphine: 439
Balboa, cabo: 509
Banzer, Hugo: 519-520
Baptista, Moisés Abraham: 519
Barquin, coronel: 220
Barrai, Fernando: 28, 32, 319, 334
Barreto, Oswaldo: 366-367, 372, 375, 383, 387, 438
Barrientos, René: 444, 451, 479, 484, 488, 491, 493, 497, 500, 511, 520, 525, 526-527
Barrios de Chungara, Domitila: 493
Barrios, Jaime: 264-265
Batista, Fulgencio: 32, 99, 107, 121, 126, 129, 135, 138-139, 144, 153-

557

-154, 157, 159, 164-165, 167-168, -170, 173-178, 180-182, 185-186, 189-190, 192, 194-205, 207, 210, 213, 215-220, 228-229, 231-235, 237-245, 247, 249, 258, 236-264,
277, 280, 289, 293, 295, 304, 306, 314, 347, 357, 368, 372, 422, 468
Baudelaire, Charles: 32, 357
Bauer, Alfonso: 119, 142
Bayo, Alberto: 135-138, 166
Beauvoir, Simone de: 266, 267, 269, 305
Bedoya, Alcides: 321
Bejar, Hector: 333
Ben Bella, Ahmed: 261, 330, 344-345, 357, 366-368, 374-375, 377, 384, 417, 430
Ben Barka, Mehdi: 426, 430, 439
Benedetti, Mario: 533
Bénichou, Paul: 49
Benigno, ver Alarcón Ramírez, Dariel.
Benitez, Conrado: 159, 303
Benitez, Ramón, ver d'Ernesto Che Guevara.
Berenguer, Alfred: 279
Berger, John: 517
Bergquist, Laura: 365
Betancourt, Rómulo: 98, 367
Bettelheim, Charles: 246, 351, 357, 427
Betto, Frei: 383, 427
Beveraggi Allende, Domingo: 99-100
Beveraggi Allende, Walter: 99-100
Bienkowski: 351
Bioy Casares, Adolfo: 49
Bingham, Hiram: 80
Blanco, Hugo: 333
Blest, Clotario: 459
Bocciolesi, Lida: 90
Bolívar, Simón: 82, 91, 127, 130, 443, 480, 534
Bonpland, Aimé: 14
Bonsal, Philip: 261
Boorstein, Edward: 320
Bordon, Víctor: 210
Borges, Jorge Luis: 49, 113, 538
Borges, Raul, ver Fernández Montes de Oca, Alberto.
Borrego, Orlando: 234, 265, 271, 319, 321-322, 361, 381, 387, 449, 456, 544
Bosch, Juan: 98
Boti, Regino: 273, 313, 347, 386
Bumediene, Huari: 346
Braden, Spruille: 44
Branco, Castelo: 355
Braulio, ver Reyes, Israel.
Brejnev, Léonide: 362, 373
Breton, André: 266, 305, 441, 459
Brizzola, Leonel: 354-356
Broz, Josip, ver Tito.
Bunke Bider, Tamara, chamada Tânia ou Laura Gutiérrez: 289, 303, 334, 440, 453, 458, 466, 471, 475-476, 478-480, 482, 484, 497, 499-500, 518
Burgos, Elisabeth: 436-437, 454, 544, 546
Bustos, Ciro Roberto: 10, 468, 475, 478, 480, 482-484, 488, 493, 497, 505, 525
Cabell, C. P., general: 261
Cabral, Amilcar: 370
Cabrera Infante, Guillermo: 234, 239, 247, 278, 305-306, 544
Cabrera, Restituto, chamado el Negro: 482, 500
Cáceres, Julio, chamado el Patojo: 119-120,122, 131, 153, 253, 335, 355, 477
Cadícamo, Enrique: 26
Caillois, Roger: 49
Calica Ferrer, ver Ferrer, Carlos.
Camba, ver Jiménez, Orlando.
Campa, Eliseo de la: 284-285, 387
Campos, Ricardo: 48

558

Camus, Albert: 19, 29, 305, 488
Camus, Daniel: 231
Cantillo, Eulogio: 203-205, 219
Cárdenas, Lazaro: 139, 433
Carillo, Antonio: 371
Carlos, ver Vaca Marchety, Lorgio.
Carpentier, Alejo: 279, 304
Carrasco, Juana: 389
Carretero, Juan, chamado Ariel: 113, 442, 464, 468, 494
Cassady, Neal: 64
Castellano, Alberto: 337
Castillo Armas, Carlos: 114-116
Castillo, José, chamado Paco: 500
Castillo, Ramón: 43
Castro, Fidel: 32, 85, 99, 107, 115, 121, 126-131, 133-144, 152-154,
156, 158-162, 164-168, 170, 172, 174-184, 189, 191, 194-210, 213, 215, 219-220, 227-238, 240-243, 245-252, 256, 258, 260-262, 264, 266-276, 278-281, 283, 287, 289-296,
301-302, 304-310, 313, 315, 318, 323, 326-333, 335, 341-343, 346, 352-353, 355, 358, 361-361, 367-368, 371-373, 376, 378-379, 381-384, 387, 389-392, 404-405, 410,
416, 424-423, 435-440, 442-443, 448, 450-451, 454, 456-457, 459, 465-467, 469, 470, 473, 482, 491-494, 502, 505, 508, 513, 522, 525-526, 534, 537, 541, 545
Castro, Raul: 107, 131, 139, 153-154, 161, 168, 175, 195, 204-205, 213-214, 246, 259, 265, 272, 275-277, 292, 326, 328, 357, 382, 391, 448-449, 456, 496, 545
Catalan, Elmo: 525
Catarina II: 288
Cervantes, Miguel de: 33, 278
Céspedes, Augusto: 476
Céspedes, Carlos Manuel de: 161, 171
Chamaleso: 405-407, 434
Chana: 192
Chang, Juan Pablo, chamado el Chino: 418, 462, 475, 480, 499, 501, 505, 508, 511, 515
Chao, Rafael: 158-159
Chavez, Ñuflo: 94
Chaviano, Julio O.: 241, 250
Chibas, Eduardo: 174
Chibas, Raul: 183, 244
Chichina, ver Ferreyra, Maria del Carmen.
Chingolo, ver Choque Silva, Hugo.
Chino, el, ver Chang, Juan Pablo.
Chino, el, ver Wong.
Chomón, Faure: 210, 229
Choque, Salustio: 476
Choque Silva, Hugo, chamado Chingolo: 497
Chu En-Lai: 255, 288, 312, 413, 433
Churchill, Winston: 59, 310
Cienfuegos, Camilo: 158-159, 165, 167, 178, 189, 194, 198-199, 207, 212, 219-220, 230, 236-238, 242, 244, 249-250, 259-260, 281, 334
Cienfuegos, Osmany: 371-372, 376, 381, 389, 412
Clerc, Jean-Pierre: 330, 391, 544
Coco, ver Peredo, Roberto.
Coello, Carlos, chamado Tuma: 416, 436, 449, 453, 458, 474, 493-494, 510
Colombo, Cristóvão: 163, 171
Concepción de la Pedraja, Octavio, chamado Moro ou el Medico: 449, 460, 489, 501, 511, 515
Cooke, John William: 46, 334, 384
Córdova de la Serna, Carmen, chamada Ia Negrita: 16, 32-33, 38, 41,
58,319
Córdova de la Serna, Fernando: 29, 41, 52, 58
Córdova, Teddy: 247
Córdova Iturburu, Cayetano: 28, 31, 559

559

Córdova-Claure, Ted ou Teddy: 520-521
Cortázar, Julio: 151
Cortez Hernán: 115
Cortez, Julia: 511
Crespo, Luis: 154, 165, 169, 176, 181
Cuba, Simón, chamado Willy: 508-511, 514
Cubela, Rolando: 210, 229
uriel, Henri: 368
Dalmau, Mario: 107, 117
Daniel, Jean: 328, 344-345, 535
Danton, ver Debray, Régis.
Darío, Rubén: 49, 193
Darío, ver Adriázola, David.
Debray, Janine: 505
Debray, Régis, chamado Danton: 168, 195, 199, 230, 245, 250, 283, 303-304, 387, 390, 436, 439, 454-455, 465, 469, 470-471, 475, 477-480, 482, 484-485, 488, 491,
493, 496, 503, 505-506, 512, 514, 515, 522-523, 525, 535, 540-541, 544
Del Rio, Hugo: 217
Delgadillo, Hugo: 483
Denard, Bob: 430
Deng Xiau-Ping: 372
Depestre, René: 242-243, 278-279, 296, 304, 340, 345, 357, 387, 544
Díaz Gutiérrez, Alberto, chamado Korda: 269
Díaz Lanz, Pedro Luis: 201, 258, 269-270, 277, 522, 535
Díaz, Epifanio: 170
Díaz, Mario: 526
Dillon, Douglas: 309
Dinh Noup: 364
Discépolo, Enrique Santos: 26
Domínguez, Antonio, chamado León: 504
Dorticos, Osvaldo: 256, 361-362, 370, 381, 383, 426, 450
Dreke, Victor: 389, 391, 401-402, 405-406, 410-411, 416-418, 421, 423, 430-432
Duarte, Eva, ver Perón, Eva.
Dubois, Jules: 274-275
Duclos, Jacques: 278
Dulles, Allen W.: 104, 114, 276, 293, 308
Dulles, John Foster: 104, 114, 261
Dumas, Alexandre: 31
Dumont, René: 281-282, 290, 315-316, 341, 353, 381, 391
Duno, Pedro: 375, 438
Duvalier, François, ver Papa Doe.
Edwards, Jorge: 356
Eguren, Alicia: 334
Eichmann, Adolf: 36
Einstein, Albert: 117
Eisenhower, Dwight D.:104, 202, 235, 261, 271-273, 279, 289, 293
El Kholi, Lofti: 378
Engels, Friedrich: 50, 108, 117, 279, 351, 359
Erra, Ana Maria: 47, 384
Escalante, Anibal: 237, 242, 279, 287, 305, 326, 426, 534
Escobar, Froilán: 388
Espín, Vilma: 175, 205, 214, 250
Espinoza, Roberto: 218
Estaline, Joseph: 99, 123, 193, 237, 257, 273, 286, 289, 351, 362, 428, 521
Estigarribia, José Manuel: 27
Estrada, Ulises: 424, 439-441, 443, 453, 462, 478, 514
Eustaquio, ver Galván Hidalgo, Lucio Edilberto.
Fajardo, Manuel: 175, 182
Falla, Manuel de: 28
Fangio, Juan Manuel: 199, 521

560

Fanon, Frantz: 86, 357, 365, 369, 438, 487
Fanon, Josie: 369
Faulkner, William: 32-33
Felipe, Léon: 113, 131, 363
Feltrinelli, Giangiacomo: 270, 526
Fernández, Octavio: 279
Fernández, Omar: 256, 321
Fernández Mell, Oscar: 217, 423, 433, 436, 439
Fernández Montes de Oca, Alberto, chamado Pacho ou Borges, Raul: 442, 444, 449, 453-454, 457-458, 461, 469, 471-474, 476, 489, 495-496, 504-505, 511, 515
Fernández, Oña, Luis: 526
Fernando, ver Ernesto Che Guevara.
Ferrer, Carlos, chamado Calica: 28, 43, 90, 92-97, 250, 492
Ferreyra, Horacio: 58
Ferreyra, Maria del Carmen, chamada Chichina: 57-60, 63, 66-67, 82, 84, 88-89, 253, 492
Figueras, Miguel Angel: 386
Figueres, José: 98, 201
Figueroa, Carlos: 50-52, 56, 59
Firk, Michèle: 427
Fleischer, Richard: 537
Flores, Aldo: 498
Fogel, Jean-François: 540
Fonseca, Javier: 207
Fortuny, José Manuel: 114, 118, 124-125
Foucault, Michel: 536
Franco, Francisco: 45, 278, 295, 319, 346, 526
Franco, Hugo: 509
Francos, Ania: 294, 302
Franqui, Carlos: 140, 152, 175, 183, 191, 200, 202-204, 220, 233-234, 240, 243-244, 262-263, 266-267, 278, 283, 294, 306, 315, 328, 330-331, 344, 347, 361, 391,
437, 457
Frayde, Martha: 234, 242
Frei, Eduardo: 525
Freud, Sigmund: 32, 48, 111, 391, 412
Freude, Ludwig: 35
Frondizi, Arturo: 133, 274, 312-313
Fuentes, Carlos: 247, 261
Gadea, Hilda: 96-98, 105-113, 117-118, 121-127, 129-136, 138-140, 142-143, 214, 239, 250, 294, 386, 440
Gagarine, Youri Alexeievitch: 302, 328
Gaitán, Jorge Eliécer: 85
Gallegos Mancera, Eduardo: 372
Gallieni, Joseph: 369
Gandhi, Indira: 257
Gandhi, Mohandas Karamchand: 58, 253
García, Calixto: 99, 139, 141-142
García, Eduardo, chamado Gualo: 96-99, 105-110, 161
García, Guilherme: 161
García Buchaca, Edith: 305
García Lorca, Federico: 28, 32
García Lupo, Rogelio: 247
García Márquez, Gabriel: 208, 247, 302, 305, 317, 347, 525
García Meza, Luis: 257
García Valls, Pancho: 265
Gardel, Carlos: 26, 114, 237, 521, 539
Gates, Bill: 540
Gatti, Armand: 118
Gaulle, Charles De: 45, 59, 200, 261, 357, 362, 370, 383-384
Gelman, Juan: 468
Ghioldi, Rodolfo: 523
Giancana, Sam: 294
Giap, Vô Nguyên: 365, 481
Gide, André: 307, 345
Guinsberg, Allen: 64
Goebbels, Joseph: 35
Goethe, Johann Wolfgang von: 193
Goldman, Pierre: 479, 522
Gomez, Laureano: 85

561

Gomez, Maximo: 241
Gomulka, Wladyslaw: 287
González, Alfredo: 160
González, Eduardo, ver Villoldo, Gustavo.
González, Luis: 502, 521
González, Maria Antonia: 126, 138
González, Aguilar, Carmen: 58
González, Aguilar, José, chamado Pepe: 28, 32, 46, 58-59, 334, 387
Goodwin, Richard: 310
Gordo, el: ver Rojo, Ricardo.
Gorki, Maxime: 108
Goulart, João: 354-355
Granado, Alberto, chamado Mial ou Petiso: 30, 33, 39, 42-43, 46, 54, 58, 63, 65-66, 68-77, 79-85, 90, 128, 250, 283, 334, 355, 363, 386
Granado, Tomás: 34, 39, 45-46, 74
Granata, Domingo: 90
Grau San Martin, Ramón: 173
Greco, le: 373
Grobart, Fábio, chamado Abraham: 236
Gromyko, Andrei: 368
Grumbach, Tiennot: 346
Gualo, ver García Eduardo.
Guerra, Eutimio: 164, 168-169, 176
Guerra Felix: 388
Guevara, Alfredo: 236, 248, 256, 258, 266, 306
Guevara, José: 27
Guevara, Maria Rosário: 19
Guevara, Norma: 360
Guevara, Rodríguez Moisés: 452, 454, 466, 470, 475-476, 478, 482
Guevara Castro, Roberto: 20, 31
Guevara de la Serna, Ana Maria: 23, 51, 53
Guevara de la Serna, Celia (mãe do Che): 13-16, 18-19, 23-24, 27-28, 34, 45, 53, 90, 284, 343, 384, 412, 456
Guevara de la Serna, Celia, chamada Celita: 16-17, 21, 27-28, 41, 53, 59, 285, 389, 492
Guevara de la Serna, Juan Martin, chamado Patatín: 39, 238
Guevara, de la Serne, Roberto: 20, 25, 29, 39, 41, 46, 52, 58, 362, 518
Guevara Gadea, Hilda Beatriz, chamada Hildita: 138, 239, 250, 360, 371, 381, 385-386, 388, 456 Guevara Lynch, Ana Isabel: 15-18, 20, 31, 47
Guevara Lynch, Beatriz: 15, 18, 47, 49, 99, 109, 114, 120
Guevara Lynch, Ernesto: 13-16, 19, 27, 34-36, 38, 64, 66, 70, 238, 239, 254, 384, 536
Guevara Lynch, Jorge: 52, 114
Guevara March,Aleida,chamada~Alioucha ou Aleidita: 388, 456
Guevara March, Camilo: 334, 358, 388, 457
Guevara March, Celia: 388, 457
Guevara March, Ernesto: 388, 457
Guillén, Nicolas: 242, 283, 522
Güiraldes, Ricardo: 54, 336
Guitart, Renato: 374
Guiteras, Antonio: 245
Gutelman, Michel:248, 316-317, 344, 427
Gutiérrez, Carlos Maria:197-198, 247
Gutiérrez, Laura, ver Bunke Bider, Tamara.
Gutiérrez,Mario,chamado Julio: 503
Gutiérrez Menoyo, Eloy: 210, 215
Guzmán, Jaime Nino de: 511-513, 515
Guzmán, Loyola, chamada Ignacia: 467, 470, 494, 501

562

Habel, Janett, ver Pienkny, Jeannette.
Hart, Armando: 175, 383
Haya de la Torre, Raul: 96, 106
Heikal, Mohamed Hassein: 253, 374, 377-378
Helms, Ricardo M.: 491
Hemingway, Ernest: 236, 279, 284, 381
Heraud, Javier: 333
Hergé: 400
Hernández, Manuel, chamado Miguel: 32, 449, 469, 503
Herrera Genge, Marco Antonio: 404, 421
Herrero, Andrew: 96, 98
Hidalgo Galván, Lucio Edilberto, chamado Eustaquio: 505
Hikmet, Nazim: 141
Hitler, Adolf: 34-35, 43, 110, 332
Ho chi Minh: 286
Hoare, Mike: 430
Huanca, Bernardino: 513-514
Huanca, Francisco, chamado Pablito: 510
Hugo, Victor: 193
Huidobro, Ramón: 356
Hurtado, Pablo: 160
Huxley, Aldous: 281
lacocca, Lee: 386
Ibañez, Sara de: 113
Icaza, Jorge: 97
Iglesias, Joel: 181, 191, 214
Ilanga, Freddy: 408, 411, 415, 420
Illia, Arturo Umberto: 336, 444
Infante, Tita: 48, 88, 91, 111, 120, 122, 136, 143
Insunza, Sergio: 522
Inti, ver Peredo, Guido.
Irigoyen, Hipólito: 25
Ivan, ver Renan Montero.
Ivens, Joris: 294, 340
Jiménez, Eva: 130
Jiménez, Graciela: 130
Jiménez, Orlando, chamado Camba: 462, 503, 507
Joaquín, ver Acuña, Juan Vitalio.
Joffé, Roland: 14
Johnson, Lyndon: 355, 502
Jorquera, Carlos: 333
Jorrin: 385
Jouvé, Federico: 337
Jozami, Eduardo: 468
Julien, Claude: 231, 262, 295, 330, 343
Julio, ver Gutiérrez, Mario.
Jung, Carl Gustav: 111
Jurado, general: 28
Justo, Augustin P.: 20
Kabila, Laurent-Désiré: 374, 404-408, 410, 413, 415-416, 419-420, 422, 424, 433
Karol, K. S.: 195, 260, 273-274, 287, 307, 317, 347, 373
Kasavubu, Joseph: 429
Keita, Modibo: 369
Kennedy, John Fitzgerald: 274, 289, 293-294, 296, 302, 308-310, 312, 327, 328-332, 355, 373 Kennedy, Robert: 327
Kerouac, Jack: 64
Kim Il Sung: 279, 288
Kipling, Rudyard: 113
Kolle, Jorge: 453, 469, 478
Korda, ver Dáz Gutiérrez, Alberto.
Kropotkine, Piotr Alexeievitch: 108
Kruchtchev, Nikita: 127, 138, 237, 271-274, 276, 283, 286-287, 295, 326-332, 343, 351, 362, 367, 373
Kuntz, Hans: 27
Lacouture, Jean: 362
Lafferté, capitão: 198
Lagache, Élisabeth: 417

563

Lamarca, Marita: 334
Lambert, coronel: 424
Lamouline, coronel: 430
Lansdale, Edward: 327
Lansky, Meyer: 174
Lartéguy, Jean: 381, 385
Larumbe, Adalberto: 49
Las Casas, Bartolomé de: 171
Lataste, Alban: 264
Laurent, Julio: 158
Lavergne, Nestor: 320-321
Lawrence, coronel: 540
Le Corbusier (Charles-Édouard Janneret), chamado: 266
Leche, ver Castro, Fidel.
Lechín, Juan: 92, 452
Leiva, Elena: 106
Lénine (Vladimir Ilitch Oulianov), chamado: 32, 108, 117, 234, 245-246, 279, 302, 351, 486, 526, 540
Lentin, Albert-Paul: 534
León, ver Domínguez, Antonio.
Leroy Mitchell, capitão: 491
Libermann, levseï Gregorievitch: 362
Linch, Hugues de: 19
Linch of Lydicam, Justo: 19
Linch of Lydicam, Patric: 19
Liniers, Jacques de Liu, Chao-chi: 21
Liu-Chao-Chi: 286, 372
Llovio-Menéndez, José Luis: 371, 386
Lobo, Julio: 156
Lobo Antunes, António: 539
Lockwood, Lee: 220
London, Jack: 31-32, 56, 158
López, Antonio, chamado Nico: 107, 121, 126, 153, 158
López, Lilia Rosa: 360
López-Fresquet, Rufo: 231
Loro, el ver Vázquez Viaña, Jorge.
Lowy, Michael: 245
Lumumba, Patrice: 282, 365, 368, 374, 403, 429, 434
Lynch, Ana Isabel, ver Guevara Lynch, Ana Isabel.
Lynch, Charles: 19
Lynch, Francisco: 20
Lynch, James: 19
Lynch, Patricio: 20
Lynch, Raul: 140
Lynch, Walter de: 19
MacArthur, Douglas: 255
Maceo, Antonio: 129, 171, 207, 241
Machado, Antonio: 32, 173, 231, 363
Machado, José Ramón: 191, 424
Machín, Gustavo chamado Alejandro: 449, 455, 469, 478
Maimura, Freddy: 500
Makeba, Myriam: 441
Malcolm X, chamado Malcom Litle: 368, 377
Maldonado, Raul: 264-265, 320, 387
Malmierca, Isidoro: 325
Malraux, André: 49
Mancilla, Anatasio: 319
Mandel, Ernest: 246, 351, 386
Mandl, Fritz: 35
Manresa, José Manuel: 263, 283, 371, 382
Mansilla, Lucio V.: 68-69
Manzi, Homero: 26, 53
Mao Tsé-Tung: 112, 136, 193, 202, 263, 279, 288, 309, 320, 372- 373, 380, 476, 481, 488
Maradona, Diego: 538
Marambio, Max: 392
March, Aleida: 94, 214, 234, 238, 240, 242, 250, 254-255, 263, 265, 284-285, 289, 322, 334, 339, 343, 376, 381, 412, 414
Marcos, comandante: 541
Marcos, ver Sánchez, Antonio.
Marechal, Leopoldo: 122
Mariátegui, José Carlos: 96
Mark, Hermann: 232
Márquez, Juan Manuel: 139, 158
Marti, José: 88, 127, 129-130, 135, 152, 170-172, 174, 179, 237, 241,
245, 276, 278, 327, 405, 447
Martínez, Alberto: 264, 319
Martínez Casso, José: 517-518
Martínez Tamayo, José Maria, chamado Ricardo, ou Papi, ou M'bili: 402, 421, 430, 432-433, 436, 442, 449, 452-455, 458, 461, 465-466, 474, 496, 509
Martínez Tamayo, René, chamado Arturo: 452
Martner, Gonzalo: 264
Marx, Karl: 30, 50, 108, 117, 123, 193, 195, 237, 245-246, 257, 275, 279, 305, 319, 321, 345, 348, 351, 368, 387,411, 540-541
Masetti, Jorge Ricardo: 206, 247, 304-305, 334-337, 346, 355, 371, 402, 434, 442-443, 460, 465, 468
Masferrer, Rolando: 218
Maspero, François: 357, 388, 525-526
Massemba-Débat, Alphonse: 370, 417
Massengho: 404, 419, 433-434
Matos, Hubert: 201, 244, 258-260, 262, 277, 384
Matthews, Herbert L.: 170, 174-177, 79, 202, 231, 292, 296, 482
Matus, Carlos: 264
Maulana, general: 424
McCarthy, Joseph: 88
Medero Mestre, José: 348
Medico, el, ver Concepcíon de la Pedraja, Octavio.
Medina Silva: 367
Mehring, Franz: 411
Mena, Adolfo, ver Guevara, Ernesto.
Mena, Emilio: 430
Méndez, Evaristo: 337
Méndez, Julio, chamado el Nato: 467, •500-511, 515, 524
Mendoza, Edelfin: 184
Mendoza, Plinio Apuleyo: 247, 304
Meneses, Edmundo: 264
Mengele, Josef: 36
Merleau-Ponty, Maurice: 212
Merzouga, Miriam: 345
Métraux, Alfred: 95
Michel, François-Bernard: 17
Michel, Serge: 368
Miguez, Juan: 28-29, 34
Mikoyan, Anatas Ivanovitch: 271-272, 332
Millan, Javier: 191
Miller, Henry Mills, Wright: 32
Mills, Wright C.: 237
Mina, Gianni: 383, 427
Miro Cardona, José: 237, 277, 293
Mitudidi: 410, 413, 415
Mitterrand, François: 534
Mobutu, Sese Seko: 403, 407, 429
Monje, Mario chamado Estanilao: 451-452, 455, 461-462, 464-468
Monroe, James: 269, 274, 287, 295, 308
Montané, Jesúschamado Chucho: 131, 157-158
Montenegro, Humberto: 509, 536
Montero, Renan chamado Ivan: 458, 494
Moore, Carlos: 414
Mora, Alberto: 314, 351, 386
Mora, Manuel: 98
Morales, Calixto: 138, 162, 216
Moravia, Alberto: 438
Moreno Fraginals, Manuel: 386-387
Moreno, García: 96
Moro, ver Concepción de la Pedraja, Octavio.
Morse, Wayne: 232
Moyano, Magda: 365
Mulele, Pierre: 403, 405, 434
Mundandi, Léonard: 415-416, 418, 433
Muni, Paul: 141
Mussolini, Benito: 28, 34, 164

565

Najdorf, Miguel: 40
Napoleão III: 96
Nasser, Gamal Abdel: 246, 252-253, 257,281,313,361,374-375, 377-378, 380, 420, 429
Negrita, la ver Córdova de la Serna, Carmen.
Negro, el: ver Cabrera, Restituto José.
Nehru, Jawaharlâl: 253-254, 429
Neruda, Pablo: 32-33, 79-80, 113, 193, 212, 229, 283-284, 288, 382, 386, 457, 486, 521-522
Neto, Agostinho: 370
Nico, ver López, Antonio.
Niedergang, Marcel: 115-116
Nixon, Richard: 202, 279, 293
Nizan, Paul: 270
Nkrumah, Kwame: 370, 384, 429
Nono, Luigi: 533
Nouguès, Isaias: 93
Novotny, Antonio: 287
Nuñez, Jiménez, Antonio: 217, 236, 248, 272, 286
Nyerere, Julius: 374, 402, 429, 432, 434
Ocampo, Victoria: 49
Ochoa, Arnaldo: 540
Odría, Manuel: 96
Oliver, Maria Rosa: 32
Oltuski, Enrique: 210-211, 213, 262, 319, 322, 334, 356, 360
Ongaña, Juan Carlos: 444
Onis, Juan de: 525
Orbigny, Alcided': 94
Orfila Reynal, Arnaldo: 133
Orsenna, Erik: 268
Ortiz, Heralda: 182
Osinaga, Susana: 517-518
Osório, Chicho: 165
Otero Silva, Miguel: 67
Ovando Cândia, Alfredo: 475, 482, 491,495, 511, 518, 520, 526
Pablito, ver Huanca, Francisco.
Pablo, ver Raptis, Michel.
Pacheco, Raimundo: 193
Paco, ver Castillo, José.
País, Frank: 143-144, 152, 162, 175-176, 183-184, 194-196, 205, 363, 471
Palance, Jack: 537
Palomo, Avelino: 127
Pantoja, Orlando, chamado Antonio: 449, 472, 495, 509
Papa Doe, ver Duvalier, François.
Papito, ver Serguera, Jorge.
Pappy, ver Shelton, Ralph W.
Pardo, Israel: 181, 185
Pardo Liada, José: 254, 256
Pareja, Walter: 470
Patatín, ver Guevara de la Serna, Juan Martin.
Patino, Simon: 92
Patojo, el, ver Cáceres, Julio.
Pauvert, Jean-Jacques: 525
Pavio v, Ivan Petrovitch: 112, 117, 140
Paz Estenssoro, Víctor: 91-92, 451, 458, 486
Pazos, Felipe: 183, 262-263
Peña, Fernando: 21, 22
Peña, Hermes: 336, 337
Peña, Pedro: 506
Pepe, ver González Aguilar, José.
Pedro, Guido, chamado Inti: 452-453, 458, 462, 466-467, 479, 482, 485
Pedro, Roberto, chamado Coco: 452-453, 462, 466-468, 482, 498, 502-503
Pérez, Carlos: 506
Pérez, Crescencio: 160
Pérez, Faustino: 144, 152-154, 156, 158, 161, 175, 199, 200, 204, 244, 262
Pérez, Mongo: 161
Pérez, Omar: 360
Pérez, Rafael: 432
Pérez Jiménez, Marcos: 231

566

Perón, Eva: 88-89, 539
Perón, Juan Domingo: 26, 35-36, 44, 45, 49, 93, 117, 122, 124, 132- 134, 346, 365, 378, 385
Pesce, Hugo: 81-82, 95
Petit de Murat, Ulises: 118, 121-122
Peurifoy, John E.: 103, 114, 116, 118
Philipe, Anne: 337
Philipe, Gérard: 266, 337
Picasso, Pablo: 266, 305
Pienkny, Jeannette, chamado Habel, Janette: 376, 427, 523
Pietrasanta, Dr. (médico): 120
Pieyre de Mandiargues, André: 534
Pina Fonseca, Julián: 166
Pinares, ver Sánchez, Antonio.
Piñeiro, Manuel, chamado Barbarroja: 205, 280, 332, 412, 440, 442, 448, 450, 452-454, 464, 494-495, 526
Pinelli, German: 239
Piñera, Virgílio: 306
Pino, Onelio: 153
Pinochet, Augusto: 265, 537
Pisani, Dr. (médico): 51, 59, 89-90, 120, 124
Poirot-Delpech, Bertrand: 534
Pombo, ver Villegas, Harry.
Ponchardier, Dominique: 484-486, 505
Prado, Salmon, Gray: 8, 68, 491, 506-512, 514, 516, 518, 521
Prado, Manuel: 142
Prats, Rolando: 360
Prebisch, Raul: 356
Priebke, Erich: 36
Prío Socarras, Carlos: 178, 210
Puebla, Carlos: 426
Quadros, Jânio: 253, 313, 355
Queneau, Raymond: 17
Quevedo, José: 204, 277
Quijano, Carlos: 378
Quintanilla, Roberto: 518
Quiroga, Anibal: 503, 506, 512
Raft, Georges: 174
Ramón: pseudónimo de Ernesto Che Guevara.
Ramos Latour, René: 194-195
Ramos, ver Rodríguez, Félix.
Randall, Margaret: 533
Raptis, Michel, chamado Pablo: 368
Ray, Manuel: 244, 262
Ray, Michèle: 525
Recabarrén, Luis Emilio: 522
Redondo, Ciro: 191, 207
Reed, John: 123
Renaud: 536
Reque Terán, Luis Antonio: 494, 500
Retamar, Roberto Fernández: 386, 436-437
Reyes, Eliseo, chamado Rolando: 449, 471, 473-474, 486, 489, 503
Reyes, Israel, chamado Braulio: 449, 472, 475, 478, 489, 499
Reyes, Simón: 469
Reynaga, Aniceto: 462, 508
Ribes, Jean-Paul: 346
Ricardo, ver Martínez Tamayo, José Maria.
Riera, Santiago: 320
Rigatusso, Domingo: 36-37, 42
Rivalta, Pablo: 374, 402, 405, 419, 424, 429, 432-433, 435, 438, 440
Roa-Kouri,Raul (filho), chamado Raúlito: 354
Roa, Raul (pai): 125, 133
Robrieux, Philippe: 376
Roca, Blas: 237, 326
Roca, Deodoro: 40
Roca, Gustavo: 28, 40, 45, 250, 334, 337, 371, 381, 384
Roca, Jimmy: 88
Rocabado, Vicente: 475
Rochet, Waldeck: 523
Rockefeller, Bobo: 365
Rockefeller, Nelson: 365
Rodo, Enrique: 113
Rodríguez, Carlos Rafael: 201, 205

567

236-237, 263-264, 381
Rodríguez, Félix, chamado Ramos: 511-513, 516, 525
Rodríguez, René: 314
Rojas, Honorato: 472, 499
Rojas, Ursinio: 196
Rojo, Ricardo, chamado el Gordo: 93-97, 99-100, 105-107, 110, 124, 132-133, 250, 309, 334, 336-337, 342, 381, 384-385, 412
Rolando, ver Reyes, Eliseo.
Romeo, Carlos: 264-265, 320
Roosvelt, Franklin D.: 173
Roque, Roberto: 153
Rosabal, Argelio: 160
Rosas, Juan Manuel de: 20, 31
Roseli, Severino: 99
Rosenthal, Bertrand: 540
Ross, Irving: 499
Rossi, Elba: 24
Roth, George Andrew: 482-483, 494, 505
Rotman, Patrick: 523
Rougemont, Denis de: 49
Rousset, David: 339
Ruarte, Rodolfo: 30
Rubio, el, ver Suarez Gayol, Jesús.
Russell, Bertrand: 483, 494
Sábato, Ernesto: 31, 285, 336, 487
Sadat, Anwar al-: 253
Sagan, Françoise: 279
Saint-Exupéry, Antoine de: 334
Saint George, Andrew: 179, 190, 525
Salazar Mayen, Dr. (médico): 124
Saldaña, Rodolfo: 452, 461, 467, 494
Salgari, Emílio: 31
Salvador, David: 244, 280
Sánchez Antonio, chamado Pinares ou Marcos: 449-450, 473-478, 495, 541
Sánchez de Lozada, Gonzalo: 518
Sánchez Mosquera, Angel: 168, 185, 190-191, 206, 258
Sánchez Salazar, Gustavo: 523
Sánchez Valdivia, Ruben: 481, 483, 519
Sánchez, Celia: 152, 154, 161-162, 169, 175-176, 179, 183, 191, 193, 200, 202-203, 214, 220, 302, 391, 437
Sánchez, Gustavo: 502
Sánchez, Osvaldo: 235, 242
Sánchez, Tito: 509
Sánchez, Universo: 138, 144, 160, 164-165, 169
Sandino, Cesar Augusto: 114, 115, 135
Sandoval, Hernán: 285
Santamaría, Haydée: 175, 200
Sardinas, Guillermo: 193
Sardinas, Lalo: 189, 203
Sarmiento, Domingo Faustino: 325
Sartre, Jean-Paul: 111, 266-271, 292, 305, 334, 357, 360, 387, 438, 483, 534
Saucedo, Arnaldo: 513, 518-519
Sauvy, Alfred: 251
Savio, Roberto: 361
Schaller, Roger: 516
Schlesinger, Arthur: 330
Sejourné, Laurette: 533
Seku Turé, Ahmed: 370
Selich, Andrés: 510, 512, 518-519, 521
Selser, Gregorio: 52
Senghor, Léopold Sedar: 370
Serguera, Jorge, chamado Papito: 227, 346, 366, 368-372, 374-375, 417
Serna, Carmen de la: 16
Serna de la Llosa, Carmen de la, ver Córdova de la Serna, Carmen.
Serna de la Llosa, Celia de la, ver Guevara de la Serna, Celia.
Serna, Juan Martin de la: 20-21
Sharif, Omar: 537
Shelton, Ralph W., chamado Pappy: 479, 491
Siles Zuazo, Hernán: 451
Silva, Otero: 67, 475

568

Simón, Luis: 212
Smith, Earl: 196
Smith, Ian: 426
Soberón, Benigno, ver Alarcón Ramírez, Dariel.
Soler, Eugenio: 254
Somoza, Anastasio, chamado Tacho: 106, 202, 291
Sori-Marín, Humberto: 203, 215, 247-248
Soriol, Mario: 166
Sosa Blanco, Jesús: 232
Sosa, Merob: 185-186
Soumialot, Gaston: 374, 403-405, 420, 424-425, 429
Stamponi, Luis Faustino: 468
Steinbeck, John: 32, 71
Stendhal: 268, 471, 486 Stevenson, Adlai: 31, 291, 329
Stone, Irving: 131
Storni, Alfonsina: 113
Suarez Gayol, Jesús, chamado el Rubio: 449, 450, 480-481
Sucre, José Antonio: 82
Sukarno, Achmed: 256
Sunol, Eddy: 440
Szulc, Tad: 131, 196, 203, 236, 277
Tabernilla, Francisco: 240
Tacho, ver Somoza, Anastasio.
Tagore, Rabindranath: 193
Taibo II, Paco Ignacio: 388, 426, 436
Tamayo, Leonardo, chamado Urbano: 449, 495, 511, 515, 524
Tania, ver Bunke Bider, Tamara.
Tatu, Michel: 288
Terán, Mario: 513-514, 522
Thorez, Maurice: 286
Tito: 256, 429
Torrenzo, Sánchez: 117
Torres, Edelberto: 106, 125
Torres, Felix: 210
Torres, Juan José: 402, 410, 418, 420
Torres, Myrna: 106-107, 112, 123
Totti Aguilera, Tomás: 510
Trotsky, Léon: 32, 123, 305, 351, 496
Trujillo Molina, Leonidas Rafael: 202
Tschombé, Moïse: 403, 405-407, 410, 423, 429
Tuma, ver Coello, Carlos.
Tungiba, Alexis: 420
Ubico, Jorge: 104
Ufkir, general: 439
Ugalde de la Serna, Albertina: 21
Urbano, ver Tamayo, Leonardo.
Uriburu, José Maria: 25, 27
Urondo, Francisco: 521
Urrutia, Manuel: 194, 229, 231, 235, 237, 256
Valdés, Ramiro: 138, 159, 193, 209, 236, 280, 442-444, 448, 450, 456
Valdevinos, Oscar: 96-97
Valéry, Paul: 49
Vallejo, Cesar: 113
Vargas, Epifanio: 475, 478
Vargas Llosa, Mario: 356, 439
Vargas Salinas, Mario: 499, 518
ázquez Viaña, Jorge, chamado el Loro: 452, 458, 462, 468-469, 476, 484, 488
Velasco Ibarra, José Maria: 96
Velasquez, Lucila: 125
Vergès, Jacques: 454
Verne, Júlio: 31, 357
Viale, Lisandro: 465
Videaux. Erasmo: 417, 419, 421, 434-435
Videla, Jorge: 520
Villa, Pancho: 123, 136
Villamar, Marco Antonio: 116
Villegas, Harry, chamado Pombo: 416, 436, 442, 448-449, 453-454, 458, 461-462, 464, 467,474, 489,

569

493, 504-506, 511, 514-515, 524, 527
Villoldo, Gustavo, chamado Eduardo González: 516
Vivés, Juan: 236-237, 259, 270, 327
Walsh, Rodolfo: 247
Weisman, John: 513
Welles, Sumner: 173
White, Harold: 109-110, 112
Wiecha, Robert: 196
Willy, ver Cuba, Simón: Wong, chamado el Chino. 8
Zamora, Oscar: 452, 454, 465
Zannier, Víctor: 562
Zapata, Emiliano: 123
Zenón, Julio: 169-170
Zenteno, Joaquín: 500, 507, 511-513, 515-516, 518, 521, 525
Zerquera, Rafael: 402, 404, 406, 408, 412-413
Zola, Émile: 71
Zorine, Valerian: 329

570

ÍNDICE GERAL

CHE?.... 6
PRÓLOGO 9
"Yo soy Che Guevara" 9
PRIMEIRA PARTE
"A NOSSA AMÉRICA MAIÚSCULA"
I - UM ASMÁTICO APRESSADO 13
Nos confins do mundo, os trópicos 14
O miúdo que tirita 16
Uma família patrícia 19
Alta Gracia, o "exílio" 21
Viver a vida 24
"Esquerda mate" 27
Vingar-se da asma 30
Uma Argentina pró-nazi 34
Córdova, a revolucionária 36
Louco pelo râguebi 39
"Já te apareceu?..." 41
Um fascismo à argentina 43
Buenos Aires: estudante de Medicina 47
Expedientes 50
De bicicleta, na Argentina profunda 53
Chichina 57
II - O HOMEM DAS SOLAS DE VENTO 63
Ernesto e Alberto partem de moto 63
"Foi sempre tudo mel" 66
O ar leve da aventura 67
"É sempre cara ou coroa" 70
Peritos em leprologia 71
Passageiros clandestinos 74
A manta partilhada em Acatama 76
Um Peru de livro ilustrado 79
"Como eu descesse rios tranquilos" 82
"O grito bestial do proletariado triunfante" 86
"Aqui vai um soldado da Ainérica!" 88
"Uma revolução muito tímida" 90
À reconquista do passado 94
"Aniquilar esses polvos capitalistas" 96
III - A MUDANÇA RADICAL 103
Respirar Democracia 103
Os dois "eus" do doutor Guevara 107
O dia em que me amarás (tango) 111
A chaga aberta da Guatemala 114
"No fundo, sou um vagabundo..." 119
Dez horas de entusiasmo: Fidel Castro 126
"Terás uma rubra vingança" 131
Elogio da guerrilha 135
"Não sou Cristo" 141
SEGUNDA PARTE CUBA, CROCODILO VERDE
IV- SIERRA MAESTRA: O CHEIRO DA PÓLVORA 151
"Vim para lutar" 151
O dilema resolvido do doutor Guevara 156
A senha era mosquito 161
Quando os joelhos tremem 166
Um país sob tutela 170
Sobrevivência, modo de usar 174
Uma guerrilha de chapéus de palha 179
Comandante Che 184
Uma ilha dentro de outra ilha 189
"O meu nome histórico" 193
Revolucionários na Revolução 197
A pulga e o martelo-pilão 201
A "invasão" 205
A maninha Escambray 209
Uma ofensiva relâmpago 214
Os "cinco gloriosos" de Santa Clara 216
"Nunca voltaremos a ser tão felizes..." 219
V - UMA REVOLUÇÃO TIPO MELANCIA 227
Fuzilamentos em La Cabaña 227
Eminência vermelha? 233
"Não sou um artista de cinema" 238
"Vamos viver coisas extraordinárias" 241
Marxista independente 244
Guerra ao latifúndio 248
Vasto é o Terceiro Mundo 251
Um cruzado 254
Morte de um amigo 257
Che Guevara banqueiro? Uma anedota 260
As noites brancas da Revolução 263
A visita de Espírito Santo 265
Lenda de uma imagem lendária 269
Pingue-pongue entre David e Golias 271
A grande viragem 275
"Trabalho, trabalho e mais trabalho!" 282
Ernesto no continente das maravilhas 285
El señor ministro 289
A baía dos porcos: um fiasco monumental 291
VI - À PROCURA DO HOMEM NOVO 301
A pachanga e depois 301
Um pouco de seriedade, por favor 304
O sonho acordado de Punta del Este 308
Um torrão de açúcar ou nenhum? 313
"Orientar os obscuros desejos das massas" 317
Marx mais D. Quixote, menos os moinhos de vento 321
"Lo que se da no se quita" 326
A guerrilha fantasma da Argentina 332
Um lobby anti-Che 337
"O socialismo económico sem moral comunista não me interessa" 341
"É preciso transformar o Homem" 347
"Não nasci para morrer avô" 352
Era um homem 358
"Toda essa gente disse Basta! 364
A África negra, uma descoberta interrompida 369
Os países socialistas devem pagar 373
"Fora da Revolução, não há vida" 377
À porta fechada 380
A cerimónia do adeus385
TERCEIRA PARTE
OUTRAS TERRAS DO MUNDO...
VII - "TATU" NO CONGO 401
"Porque combatemos?" 401
Um remake da Sierra Maestro'! 405
O universo cultural do outro 411
As talhas da poção mágica 415
Eu, fulo de raiva; eles perdidos de riso 419
Um enterro político 424
Voando sobre um ninho de rebeldes 428
Retirada marcial ou derrota absoluta? 432
Catão autocensor 435
Praga. Quero morrer na Argentina 439
VIII - UMA ESTAÇÃO NO INFERNO 447
"É a hora dos braseiros" 447
Pois que seja Ñancahuazu!451
"Com Fidel, nem casamento nem divórcio" 455
"Começa uma nova etapa" 459
O PC Boliviano diz não 464
"Vai ser duro, mas vai ser bonito" 468
Marcha ou morre! 472
Primeiros combates 475
Separados do mundo 480
Criar um segundo Vietname485
Os guerrilheiros errantes 489
Abandonados por Cuba? 493
"Dias negros" 497
Encurralados! 501
"Tango a Papá" 506
"Mataram o nosso Che" 511
Morto sem sepultura 515
A esquerda chora 520
Santo Ernesto de La Higuera 524
O TÚMULO DE GUEVARA 533
AGRADECIMENTOS 543
BIBLIOGRAFIA 545
ÍNDICE ONOMÁSTICO 557
MAPAS
As três viagens do Comandante: da Argentina a Cuba, 78 - Cuba tão próximo dos Estados Unidos, 155. - Geografia da epopeia: a Sierra Maestra, 187 - Uma caricatura
de guerrilha: o Congo-Zaire (1965), 409, - A guerrilha boliViaña: a rota do Che (1967), 463. - A Quebrada do Churo e La Higuera: último combate, 504

Orelha da contracapa

Pierre Kalfon - jornalista, escritor e diplomata francês - é um profundo conhecedor da América Latina, que tem incansavelmente percorrido, desde há trinta anos.
Foi director da Aliança francesa na Argentina, professor na Universidade do Chile e correspondente do jornal Le Monde neste mesmo país, donde foi expulso após o
golpe militar do general Pinochet.
Dirigiu diversos projectos da Unesco, na área do desenvolvimento cultural, na Colômbia, na Nicarágua, na Guatemala e no México. Posteriormente, foi membro do gabinete
do director-geral da Unesco (em Paris), adido cultural da Embaixada de França (em Roma) e conselheiro cultural em Montevideu (Uruguai) e Santiago (Chile).
Nos últimos anos, voltou à Argentina e esteve nba Bolívia, procedendo a uma larga pesquisa sobre Ernesto Guevara, da qual resultou a presente biografia (publicada
em França pelas edições du Seuil, em Maio de 1997. Esta primeira edição portuguesa, reproduz já todas as correcções e actualizações entretanto introduzidas pelo
autor).
Escreveu de numerosos artigos e reportagens saídos na imprensa francesa e latino-americana e publicou também dois livros: Argentine et les Ameriques latines en France.

Contracapa
9 de Outubro de 1967: Uma rajada de metralhadora liquidou Ernesto Guevara, univeslmente conhecido pela alcunha, tão afectiva, de Che. Aconteceu num lugarejo perdido,
na Bolívia.
Assassinado precipitadamente como se fosse forçoso extirpar o mais ameaçador de todos os vírus, o Che tornou-se o verdadeiro símbolo do revolucionário íntegro, indefectível,
que abandonou o poder para manter a coerência revolucionária, tentando conciliar Marx e Rimbaud.
Nesta biografia extremamente documentada, Pierre Kalfon reconstitui a existência fulgurante deste autêntico Dom Quixote dos tempos modernos, intensamente marcada
pela paixão revolucionária. Havia que distinguir entre o mito e a realidade, entre o "santo" e o homem de carne e osso, havia que separar da lenda a verdade vivida,
desde a infância e a juventude na Argentina até ao decisivo encontro com Fidel Castro no México, desde a epopeia da luta armada em Cuba até à vitória da revolução,
desde o exercício do poder até ao regresso à guerrilha (tentando criar outros Vietenames), até ao trágico desfecho na Bolívia.
Graças a dezenas de testemunhos directos e à análise rigorosa de fontes inéditas, Pierre Kalfon conseguiu produzir uma biografia que já se impôs como obra de referência
indispensável, para quem quiser conhecer de facto um dos protagonistas políticos mais generosos do século XX. E, talvez, o mais amado.

Fim

Um comentário:

Cris Bottaro disse...

Parabéns pelo blog, ótima escolha de títulos. Abraço