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terça-feira, 13 de setembro de 2011

Tarzan dos Macacos 1.

TARZAN DOS MACACOS
Edgar Rice Burroughs

Assiste-se, actualmente, em todo o mundo ao ressurgimento de
Tarzan. Em França, por exemplo, onde um decreto-lei assinado
pelo marechal Petain, com a data de 21 de Setembro de 1941,
baniu por completo dos ecrans, dos jornais e das livrarias o
nome de Tarzan, nunca se chegou a publicar completamente todos
os seus livros. Ao fazê-lo agora uma editora francesa,
conheceu um êxito único, já que no Verão de 1970 os dois
livros mais vendidos foram: "Le Parrain", de Mario Puzo (que
trata da Mafia) e a série Tarzan. Num rápido inquérito feito,
verificou-se que os seus leitores eram de todas as idades,
desde os 12 até aos quarenta anos, mas a predominância era
exercida por um público de vinte e cinco a trinta e cinco
anos.
Porquê este êxito constante de um personagem que nasceu em
1912, quase envergonhado, nas páginas de uma revista popular
chamada "All Story"? Podendo ser relacionado com "Mowgli" de
Kipling, Rómulo e Remo da Bíblia, e mesmo Robinson Crusoe de
Daniel Defoe, ele é, no entanto, diferente de todos eles,
porque Edgar Rice Burroughs, seu autor, soube enquadrá-lo num
mundo, dar-lhe uma linguagem própria, criar-lhe aquilo a que
literariamente hoje se pode chamar um Universo - o Universo de
Tarzan.
Índice

Capítulo 1 - No mar ......................... 5/00
Capítulo 2 - Uma casa na selva ............. 19/00
Capítulo 3 - Vida e morte .................. 32/01
Capítulo 4 - Os macacos .................... 41/01
Capítulo 5 - O macaco branco ............... 51/01
Capítulo 6 - Lutas na selva ................ 61/02
Capítulo 7 - A luz do entendimento ......... 70/02
Capítulo 8 - O caçador nas altas ramadas ... 84/02
Capítulo 9 - Homem e homem ................. 92/03
Capítulo 10 - O fantasma do medo ..... 106/03
Capítulo 11 - Rei dos macacos ............. 113/03
Capítulo 12 - A razão do Homem ............ 126/04
Capítulo 13 - A sua própria espécie ....... 138/04
Capítulo 14 - À mercê da selva ............ 156/05
Capítulo 15 - O Deus da floresta .......... 168/05
Capítulo 16 - "Notável" ................... 174/05
Capítulo 17 - Funerais .................... 186/06
Capítulo 18 - O tributo da selva .......... 200/06
Capítulo 19- O apelo do primitivo ......... 215/07
Capítulo 20 - Hereditariedade ............. 227/07
Capítulo 21 - A aldeia da tortura ......... 243/08
Capítulo 22 - A busca ..................... 252/08
Capítulo 23 - Irmãos Homens ............... 265/08
Capítulo 24 - O tesouro perdido ........... 277/09
Capítulo 25 - Posto avançado da civilização 287/09
Capítulo 26 - Civilização ................. 302/09
Capítulo 27 - Novamente o gigante ......... 317/10
Capítulo 28 - Conclusão ................... 334/10

CAPÍTULO 1

No mar

Conhheci esta história através de alguém que não tinha
qualquer interesse em contar-ma, ou em contá-la a quem quer
que fosse. Devo-a, talvez, à influência exercida, sobre o
narrador, por um excelente vinho. Pelo menos quanto ao
princípio. E, durante os capítulos que se seguiram até à
conclusão da estranha narrativa, influiu seguramente a minha
própria incredulidade.
Quando o meu jovial anfitrião descobriu que já tinha contado
tanta coisa e que eu estava inclinado a duvidar, o seu tolo
orgulho retomou a tarefa que o vinho generoso principiara, e
foi assim que me mostrou provas, sob a forma de um velho
manusCrito e de antigos registos do Departamento Colonial
Inglês, para apoiar muitos dos mais relevantes aspectos da sua
notável narração.
Não digo que a história seja verdadeira, porque não
testemunhei os acontecimentos a que ela se refere,

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mas o facto de, ao contá-la, eu atribuir nomes fictícios aos
principais protagonistas, demonstra suficientemente a
sinceridade da minha própria convicção de que "pode" ser
verdadeira.
As velhas páginas amarelecidas do diário de um homem que
morreu há longos anos, e os registos do Departamento Colonial,
concordam perfeitamente com a narrativa do meu jovial
hospedeiro. Assim, eu reproduzo a história tal como
laboriosamente a reconstituí utilizando essas diversas fontes.
Se o leitor não a achar crível, pelo menos concordará comigo
em considerar que é única, notável e interessante.
Pelos registos do Departamento Colonial, como pelo diário do
homem que morreu, ficamos a saber que um jovem nobre inglês, a
quem chamaremos John Clayton, Lord Greystoke, foi encarregado
de levar a cabo uma investigação especialmente delicada sobre
as condições de vida numa colónia inglesa, na costa ocidental
de África, entre cujos indígenas, criaturas simples, uma outra
potência europeia, segundo se sabia, estava a recrutar
soldados para o seu exército de nativos - exército que
utilizava exclusivamente para fazer a recolha forçada da
borracha e do marfim, nas tribos selvagens ao longo do Congo e
do Aruwimi.
Os indígenas da colónia inglesa queixavam-se de que muitos
dos seus jovens eram aliciados por meio de promessas
tentadoras, mas que poucos deles regressavam para junto das
suas famílias.
Os ingleses de África iam ainda mais longe,

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fazendo que esses pobres negros eram mantidos praticamente em
escravidão, visto que, quando terminava o tempo do seu
alistamento, os oficiais brancos, explorando a ignorância
deles, lhes diziam que tinham ainda de servir durante vários
anos.
Assim o Departamento Colonial nomeou John Clayton para um
novo posto na África Ocidental Inglesa, mas as instruções
confidenciais incidiam sobre uma investigação completa quanto
ao injusto tratamento de súbditos ingleses, negros, pelos
oficiais brancos de uma potência europeia e amiga. As razões
pelas quais ele foi enviado, todavia, são de escasso interesse
para esta história, porque não chegou a fazer qualquer
investigação nem, de facto, chegou sequer ao seu destino.
Clayton era o tipo de inglês que gostamos de associar com os
mais nobres monumentos de históricas proezas sobre centenas de
campos de batalha - um homem forte e viril, tanto mentalmente
como moral e fisicamente.
Tinha uma estatura acima da média, olhos cinzentos, feições
correctas e firmes, um porte altivo que indicava uma saúde
perfeita e anos de treino militar. Ambições políticas
tinham-no levado a pedir a transferência do exército para o
Departamento Colonial, e assim vamos encontrá-lo, ainda novo,
encarregado de uma delicada e importante missão ao serviço da
Rainha.
Quando recebeu a sua nomeação, ficou ao mesmo tempo contente
e perplexo. A preferência parecia-lhe ter o aspecto de uma bem
merecida recompensa por laboriosos e inteligentes serviços,

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um patamar para postos de maior importância e
responsabilidade. Mas, por outro lado, tinha casado três meses
antes com Miss Alice Rutherford, e era a ideia de levar a sua
jovem mulher para o isolamento e os perigos da África
tropical, que o deixava perplexo.
Por amor dela teria recusado a nomeação, mas Alice não o
consentiu, insistindo, pelo contrário, em que aceitasse e a
levasse consigo.
Mãe e irmãos, irmãs, tias e primos, manifestaram várias
opiniões sobre o assunto, mas a história não conta quais os
conselhos que deram. Sabemos apenas que, numa luminosa manhã
de Maio de 1888, John, Lord Greystoke, e Lady Alice,
embarcaram em Dover a caminho de África.
Um mês depois chegaram a Freetown, onde fretaram um pequeno
veleiro, o "Fuwalda", que devia levá-los ao seu destino final.
E, nesse ponto, John, Lord Greystoke, e Lady Alice, sua
mulher, desapareceram dos olhos e do conhecimento dos homens.
Dois meses depois de o Fuwalda" levantar ferro e partir do
porto de Freetown, meia dúzia de navios de guerra, britânicos,
percorreram o Atlântico Sul em busca deles ou do pequeno
veleiro, e não tardou que os destroços deste último fossem
encontrados no litoral de Santa Helena. Isto convenceu o mundo
de que o Fuwalda" se perdera com corpos e bens, e desta
maneira as buscas terminaram quando mal haviam principiado -
embora a esperança persistisse, em corações saudosos, durante
muitos anos.

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O Fuwalda, um barco de cerca de cem toneladas, era do tipo
das embarcações que se encontravam frequentemente em serviços
costeiros no extremo Sul do Atlântico - com tripulações
compostas por autêntica escória do mar, criminosos fugidos da
forca e rufiões de todas as raças e nações.
O Fuwalda não constituía excepção à regra. Os oficiais eram
homens rudes, violentos, que odiavam os tripulantes e eram
odiados por eles. O capitão, conquanto fosse um marinheiro
competente, era feroz na maneira de tratar os seus homens.
Conhecia, ou usava, pelo menos, apenas dois argumentos para
tratar com eles, o cacete ou o revólver, e é pouco provável
que os tripulantes contratados por ele tivessem compreendido
outros.
Aconteceu assim que, ao segundo dia depois da partida de
Freetown, John Clayton e a sua jovem mulher assistiram a
cenas, no convés do Fuwalda, que nunca haviam julgado
possíveis fora das capas dos livros que contavam histórias do
mar.
Foi na manhã do segundo dia que começou a ser forjado um elo
do que viria a formar uma cadeia de acontecimentos dos quais
resultaria, para alguém ainda não nascido, uma vida sem
paralelo na história da humanidade.
Dois marinheiros estavam a lavar o convés do Fuwalda, o
primeiro mestre encontrava-se de serviço, e o capitão
detivera-se para falar com John Clayton e Lady Alice.
Os homens trabalhavam recuando na direcção do pequeno grupo,
que por sua vez estava de costas para eles.

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Foram-se aproximando até que um ficou directamente atrás do
capitão. Se esse homem tivesse passado, esta estranha
narrativa nunca teria sido registada. Mas, nesse momento, o
oficial voltou-se para se afastar de Lord e Lady Greystoke ao
fazê-lo tropeçou no marinheiro e caíu ao comprido no convés,
entornando o balde, de maneira que a água suja o encharcou.
Por instantes, a cena foi simplesmente ridícula. mas só por
um instante. Com uma rajada de violentas pragas, a cara
congestionada pela raiva e pela humilhação, o capitão
levantou-se e, com um tremendo soco, derrubou o marinheiro. O
homem era idoso e de pequena estatura, de forma que a
brutalidade do gesto se tornou mais flagrante. O outro
marinheiro, todavia, não era velho nem baixo - corpulento como
um urso, com um bigode negro e façanhudo, forte pescoço de
touro entre enormes ombros maciços.
Ao ver o companheiro cair, o homem curvou-se e, com um
rugido surdo, lançou-se sobre o capitão e aplicou-lhe um soco
violento que o fez cair de joelhos. De vermelho que estava, o
capitão fez-se lívido - porque aquele gesto significava um
motim a bordo. E, na sua carreira de violências, o capitão já
havia antes enfrentado e dominado motins. Sem mesmo se
levantar, tirou o revólver do bolso e disparou-o à
queima-roupa sobre a montanha de músculos que se erguia sobre
ele. No entanto, embora o movimento fosse rápido, quase tão
rápida foi a intervenção de Lord Greystoke. A bala, dirigida
ao coração do marinheiro, acertou-Lhe numa perna,

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porque John Clayton batera no braço do capitão assim que o
vira puxar pela arma.
Houve uma troca de palavras entre Clayton e o capitão, em
que o primeiro declarou claramente que lhe repugnava a
brutalidade com que os tripulantes eram tratados e que não
suportaria cenas de tal género enquanto ele e Lady Alice
estivessem a bordo. O capitão esteve prestes a dar uma
resposta irada, mas pensando melhor deu meia volta e
afastou-se, grunhindo entre dentes. Não se atrevia a
hostilizar um oficial inglês, porque o poderoso braço da
rainha manobrava um instrumento de castigo que ele conhecia e
temia - a Armada britânica.
Os dois marinheiros levantaram-se, o mais velho amparando o
camarada ferido. Este, que era conhecido entre os seus
companheiros por Blake Michael, experimentou receosamente a
perna e, verificando que ela aguentava o seu peso, voltou-se
para Clayton com uma palavra de rude agradecimento.
Embora o tom fosse brusco, as palavras do homem tinham
evidentemente uma boa intenção. Concluiu às pressas o breve
discurso e afastou-se, a coxear, na direcção da proa, na
aparente intenção de fugir a um prolongamento da conversa.
Não voltaram a ver o homem durante vários dias, e por seu
lado o capitão não lhes concedia mais do que monossílabos
contrariados, quando era forçado a falar com eles. John
Clayton e Lady Alice tomavam as suas refeições no camarote do
capitão, como tinham feito desde o primeiro dia, mas este

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arranjava-se de maneira a que os seus deveres o impedissem de
comer ao mesmo tempo que eles.
Os outros oficiais eram homens rudes, iletrados, pouco
acima, em posição social, dos tripulantes a quem maltratavam,
e fugiam a qualquer contacto com o nobre inglês e sua mulher.
De modo que os Claytons se viram entregues a si mesmos, quase
completamente. O facto, em si, estava em perfeito acordo com
os seus desejos, mas por outro lado isolava-os da vida no
pequeno veleiro - de maneira que não podiam estar ao corrente
dos acontecimentos diários que em breve iriam culminar em
sangrenta tragédia.
Havia, no ambiente do barco, essa qualquer coisa indefinível
que pressagia desastre. Aparentemente, que os Claytons
soubessem, tudo corria como antes; mas ambos sentiam a
aproximação de um perigo desconhecido, embora não falassem a
tal respeito.
No segundo dia depois de Black Michael ter sido ferido,
Clayton chegou ao convés a tempo de ver o corpo inerte de um
dos tripulantes, que era levado para baixo por quatro dos seus
camaradas, enquanto o primeiro mestre, empunhando um pesado
cacete, olhava ferozmente para o pequeno grupo.
Clayton não fez perguntas - não precisava de as fazer - e no
dia seguinte, quando o grande vulto de um navio de guerra,
inglês, surgiu no horizonte, esteve meio decidido a exigir que
Lady Alice e ele fossem levados para bordo. Estava cada vez
mais convencido de que nada de bom poderia resultar da sua
permanência no sombrio e desagradável Fuwalda.

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Cerca do meio-dia estavam ao alcance de voz do navio inglês,
mas quando Clayton se dispunha a solicitar asilo ao capitão, o
óbvio ridículo de um tal pedido tornou-se-lhe bruscamente
flagrante. Que razões poderia ele apresentar, ao comandante do
barco de Sua Majestade, para desejar voltar para o porto de
onde exactamente viera ? E se ele declarasse que dois
marinheiros insubordinados haviam sido rudemente tratados
pelos seus oficiais ? Rir-se-iam dele, embora discretamente, e
atribuiriam o seu desejo de sair do veleiro a uma única causa
- cobardia.
John Clayton, Lord Greystoke, não pediu para ser transferido
para o navio de guerra britânico. Nessa mesma tarde viu o
grande vulto desaparecer no horizonte distante, mas não antes
de ter sabido o que confirmava os seus maiores receios e o fez
maldizer o falso orgulho que o impedira de procurar, umas
horas antes, quando isso era possível, a segurança para a sua
jovem mulher, uma segurança agora definitivamente
desaparecida.
Era a meio da tarde quando o velho marinheiro, que havia
sido derrubado dias antes pelo capitão, se aproximou do ponto
onde se encontravam, encostados à amurada, a ver sumir-se no
horizonte o navio de guerra. O velho estava a polir os metais,
e ao chegar perto de Clayton disse, em voz baixa:
- Vai haver sarilho neste barco, sir, e não esqueça o que eu
digo. Vai haver sarilho.
- Que quer dizer com isso, meu amigo?... - perguntou
Clayton.
- Não tem visto o que se passa? Não ouviu dizer

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que o capitão e os oficiais têm aleijado metade da tripulação?
Duas cabeças partidas, ontem, e três hoje. Black Michael está
outra vez como novo, e não é homem para se ficar com estas
coisas. Pode ter a certeza disso.
- Quer dizer que a tripulação pretende amotinar-se?
- Amotinar-se?... - quase gritou o velho. - Amotinar-se?
Essa gente quer assassinar-nos, sou eu quem lho diz.
- Quando?
- Não tarda, sir. Não tarda mas eu não vou dizer-lhes
quando. Já falei demais. mas o Senhor foi direito, no outro
dia, e eu pensei que devia avisá-lo. Não fale no caso e quando
ouvir tiros vá para baixo e fique lá. Tenha cuidado e não
fale. senão metem-lhe uma bala nas costelas e sou eu que lho
digo.
E o velho marinheiro continuou a polir os metais,
afastando-se do ponto onde os Claytons se encontravam.
- Uma perspectiva animadora, Alice... - comentou Clayton.
- Deves avisar imediatamente o capitão, John... - disse ela.
- Talvez se possa ainda evitar o pior.
- Suponho que deveria. mas por motivos puramente egoístas
estou quase decidido a não falar. Façam os homens o que
fizerem, agora poupar-nos-ão em reconhecimento por eu salvar a
vida de Black Michael. Mas, se descobrirem que os traí, não
terão contemplações connosco, Alice.

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- Só tens um dever, John. e esse dever consiste em defender
as autoridades constituídas. Se não avisas o capitão, serás
tão responsável pelo que acontecer como se tivesses ajudado a
conspiração.
- Tu não compreendes, querida, - replicou Clayton. - É em ti
que estou a pensar, e o meu primeiro dever é esse. O capitão
provocou a situação em que vai encontrar-se. Portanto, porquê
arriscar minha mulher aos horrores impensáveis de uma ameaça
desses homens, numa tentativa provavelmente inútil para o
salvar das consequências dos seus próprios erros? Tu não fazes
ideia, querida, do que aconteceria em tal caso, se esses
rufiões conseguissem dominar o Fuwalda.
- O dever é o dever, John, e nenhuns argumentos podem
alterar isto. Eu não seria digna de ter Casado com um lord, se
tivesse de ser responsável pelo facto de ele não cumprir um
dever nítido. Compreendo o perigo que poderemos correr, mas
estou pronta a enfrentá-lo contigo.
- Seja como queres, então... - respondeu ele, sorrindo. -
Talvez estejamos a inventar complicações. Embora eu não goste
do aspecto das coisas a bordo deste barco, talvez não venham a
ser assim tão más. É possível que o velho marinheiro estivesse
a dar voz aos desejos do seu ódio, em vez de se referir a
factos reais. Motins no alto mar talvez fossem frequentes há
uma centena de anos, mas neste ano de graça de 1888 são
acontecimentos bastante improváveis. Aí vai o capitão para o
seu camarote, agora, Se tenho de o avisar, mais vale acabar já
com isso, porque não tenho estômago para falar com esse bruto.

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Com estas palavras, John Clayton encaminhou-se
descuidadamente para o passadiço e, um momento depois, batia à
porta do camarote do capitão.
- Entre. - volveu a voz rouca do oficial. E acrescentou, ao
ver que Clayton entrava e fechava a porta atrás de si: - O que
há?
- Venho para o informar de uma conversa que ouvi hoje. Penso
que, embora não haja nada de concreto, deve estar precavido.
Em resumo, os homens preparam um motim.
- É mentira!. - rugiu o capitão. - E se esteve novamente a
interferir com a disciplina deste barco, ou a meter-se naquilo
que não Lhe diz respeito, pode sofrer as consequências e ir
para o inferno! Não quero saber se é um lord ou não é! Eu sou
o capitão deste navio, e daqui em diante não se meta na minha
vida!
O capitão tinha-se exaltado de tal maneira que tinha a cara
congestionada. Gritou a plenos pulmões as últimas palavras,
sublinhando cada frase com tremendos socos sobre a mesa, ao
mesmo tempo que agitava o outro punho na direcção de Clayton.
Este manteve-se impassível, olhando calmamente para o excitado
homem.
- Capitão Billings. - disse ele, por fim. - Se desculpa a
minha franqueza, devo fazer-lhe notar que é um perfeito asno.
Com estas palavras, deu meia volta e afastou-se, com o
indiferente à-vontade que lhe era habitual

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e que seguramente ia fazer explodir um homem como Billings
numa torrente de impropérios.
Assim, embora o capitão pudesse facilmente ter sido levado a
lamentar as suas palavras precipitadas, se Clayton tivesse
tentado convencê-lo, a sua irritação estava agora
irrevogavelmente no ponto em que o lord a colocara, e
desapareceu a última possibilidade de se entenderem para bem
de ambos.
- Bem, Alice... - disse Clayton, quando regressou para junto
de sua mulher -, creio que poderia ter poupado palavras e
fôlego. Esse homem mostrou-se extremamente ingrato. Quase
saltou para mim, como um cão raivoso. Ele e o seu barco podem
ir para os infernos, pelo que me diz respeito. Se estarmos em
segurança fora disto, usarei todas as minhas energias em olhar
por nós próprios. Creio que o primeiro passo para esse fim
será voltar ao nosso camarote, para eu verificar os meus
revólveres. Lamento que as armas maiores tenham ido para o
porão, com a bagagem.
Encontraram o camarote num estado de completa desordem. As
roupas, tiradas das malas e dos sacos, estavam espalhadas, e
até as camas haviam sido violentamente revolvidas.
- É evidente, que alguém estava mais ansioso, a respeito das
nossas coisas, do que nós próprios. -- comentou Clayton. -
Vejamos o que falta, Alice.
Uma busca cuidadosa revelou que nada tinha sido roubado, a
não ser os dois revólveres de Clayton e a pequena quantidade
de munições que ele tinha separado.

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- Exactamente as coisas que eu mais desejava tivessem
deixado. - disse Clayton -. e o facto de as terem levado
parece-me pelo menos sinistro.
- Que fazemos agora, John? Talvez tivesses razão em dizer
que a nossa melhor possibilidade estava em mantermo-nos
neutros. Se os oficiais puderem evitar o motim, nada temos a
recear, mas se os amotinados vencerem, a nossa frágil
esperança estaria em não ter tentado tomar partido contra
eles.
- Tens perfeita razão, Alice. Vamos manter-nos no meio da
estrada.
Quando começavam a pôr em ordem o camarote, Clayton e a
mulher viram, ao mesmo tempo, um pedaço de papel que aparecia
por debaixo da porta.
Clayton baixou-se para o apanhar. e ficou surpreendido ao
vê-lo deslocar-se mais para dentro. Compreendeu então que
alguém estava a empurrá-lo, do lado de fora. Rápido e
silencioso deu mais um passo, estendendo o braço para abrir a
porta, mas Alice segurou-lhe o pulso quando ele ia dar volta
ao puxador.
- Não, John. - sussurrou ela. - Eles não querem ser vistos,
portanto não devemos contrariá-los. Não te esqueças de que nos
mantemos no meio da estrada.
Clayton sorriu e ficou imóvel. Ficaram ambos a olhar o
pedaço de papel até que este parou, completamente do lado de
dentro. Então Clayton apanhou-o. Era um pedaço de papel
branco, sujo, toscamente dobrado em quatro. Viram uma breve
mensagem, quase ilegível, numa letra que mostrava claramente o
trabalho penoso de quem escrevera.

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Traduzida, era um aviso para os Claytons não se queixarem da
perda dos revólveres e não repetirem o que o velho marinheiro
havia dito - sob pena de morte se não obedecessem.
- Acho que não temos outra solução. - disse Clayton, com um
sorriso contrafeito. - Tudo o que temos de fazer é ficar
quietos, à espera do que venha a acontecer.

CAPÍTULO 2

A casa na selva

Não tiveram muito que esperar, pois na manhã seguinte,
quando Clayton saía do seu camarote para o habitual passeio
pelo convés, antes do pequeno almoço, estalou uma detonação, e
logo outra, e ainda outra. O que ele viu confirmou os seus
piores receios. Enfrentando o pequeno grupo de oficiais,
estava toda a tripulação do Fuwalda, comandada por Black
Michael.
À primeira salva de tiros, dos oficiais, os homens correram
em busca de abrigos. Então, de pontos estratégicos atrás dos
mastros, da roda do leme e da cabina central, ripostaram ao
fogo dos cinco indivíduos

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que constituíam a autoridade odiada a bordo do barco.
Dois dos tripulantes tinham caído sob as balas disparadas
pelo capitão, e estavam nos lugares onde haviam tombado, entre
os combatentes. Mas então o primeiro mestre rolou no convés, e
a um sinal de Black Michael os amotinados lançaram-se ao
ataque dos outros quatro. Os homens apenas haviam reunido seis
armas de fogo, e a maior parte deles empunhavam croques,
machados grandes e pequenos, e alavancas de ferro.
Ambos os grupos praguejavam e blasfemavam de terrível
maneira, o que, conjuntamente com as detonações e os gritos
dos feridos, transformava o convés do Fuwalda em qualquer
coisa semelhante a um pesadelo.
Antes que os oficiais pudessem recuar meia dúzia de passos,
os tripulantes estavam sobre eles. Um machado, brandido por um
negro corpuLento, abriu a cabeça do capitão, desde a testa até
ao queixo. Instantes depois os outros estavam derrubados,
mortos ou atingidos por dezenas de golpes ou balas.
Breve e feroz tinha sido o trabalho dos amotinados do
Fuwalda. Durante a luta, John Clayton permanecera
tranquilamente encostado junto da saída do passadiço, fumando
pensativamente o seu cachimbo como se estivesse a assistir a
um desafio de ccricket sem grande interesse.
Quando o último oficial caíu, Clayton pensou que era tempo
de voltar para junto de sua mulher, não fossem alguns dos
homens da tripulação encontrá-la em baixo, sozinha.

20

Embora exteriormente calmo e indiferente, ele não deixava de
se sentir apreensivo e inquieto, intimamente. Receava pela
segurança de Alice entre aqueles homens meio selvagens, em
cujas mãos a sorte os entregara. Quando se voltou, para descer
a escada, ficou surpreendido ao ver a jovem de pé num dos
degraus, logo atrás dele.
- Há quanto tempo estás aqui, Alice?
- Desde o princípio, John. Que coisa horrível! Que esperança
podemos ter, em poder de tal gente?
- A esperança de que nos sirvam o pequeno almoço. - volveu
John, sorrindo corajosamente, numa tentativa para atenuar os
receios dela. - Pelo menos é o que vou dizer-lhes. Vem comigo,
Alice.
Não podemos deixá-los supor que contamos com qualquer outra
coisa que não seja um tratamento cortês.
Entretanto os homens tinham cercado os oficiais e os
feridos, e sem qualquer espécie de compaixão ou escolha
atiravam uns e outros para o mar.
Da mesma forma procederam quanto aos mortos ou moribundos do
seu lado. A certa altura, um dos tripulantes avistou os
Clayton e gritou, correndo para eles e erguendo um machado:
- Aqui estão mais dois para os peixes!
Mas Black Michael foi ainda mais rápido, e o omem tombou,
com uma bala nas costas, antes de poder dar meia dúzia de
passos. Soltando um forte brado, Black Michael atraíu as
atenções dos outros e exclamou, apontando para Lord e Lady
Greystoke:
- Esses são meus amigos e devem ser deixados em paz!

21

Entendido? Agora sou capitão deste navio e o que eu disser é o
que se faz. - interrompeu-se, voltou-se para Clayton e
acrescentou: - Não se metam em nada, e ninguém lhes fará mal.
Os Claytons seguiram tão à letra as instruções de Michael,
que daí por diante mal viam a tripulação e nada sabiam dos
planos que os homens preparavam. Ocasionalmente ouviam ecos de
disputas e desordens entre os amotinados, e por duas vezes
escutaram o som ameaçador de tiros. No entanto, Black Michael
era um chefe adequado àquele bando de rufiões, e parecia
conseguir uma suficiente sujeição às regras que impunha.
No quinto dia depois da morte dos oficiais, o vigia avistou
terra. Black Michael não sabia se se tratava de uma ilha ou de
um continente, mas informou Clayton de que, se verificassem
que o lugar era habitável, ele e Lady Greystoke seriam
desembarcados, com as suas bagagens.
- Ficarão bem durante alguns meses. - explicou Michael -, e
entretanto talvez sejamos capazes de encontrar uma costa
povoada, nalgum sítio, e dispersar. Então eu farei com que o
governo inglês seja informado a respeito de ambos, e mandarão
um barco de guerra para os recolher. Seria muito difícil
desembarcá-los numa zona civilizada sem que nos fizessem uma
porção de perguntas. e nenhum de nós tem respostas
convenientes para dar.
Clayton protestou contra a desumanidade de os deixarem num
litoral desconhecido, à mercê de feras e, possivelmente, de
selvagens ainda piores que as feras.

22

Mas de nada serviram as suas palavras, a não ser para
irritarem Black Michael e assim foi forçado a desistir e a
tirar o melhor proveito possível de uma situação má.
Cerca das três horas da tarde estavam perto de uma linha de
costa muito bela e densamente arborizada, em frente da entrada
do que parecia um pequeno porto natural.
Black Michael enviou um dos botes, com homens encarregados
de sondarem a entrada e verem se o Fuwalda poderia passar com
segurança. Uma hora depois os homens regressaram com a
informação de que havia bastante fundo, tanto na entrada como
adiante, na angra. Antes da noite, o veleiro ficou
tranquilamente ancorado, na diminuta baía cujas águas
tranquilas lembravam a superfície de um espelho. As margens,
altas, eram de grande beleza, cobertas de verdura
semitropical, e na distância o terreno subia a partir do mar,
em colinas e planaltos quase unicanente cobertos por florestas
primitivas. Não se viam sinais de habitações, mas que o lugar
era habitável provavam-no os sinais evidentes de vida e a
abundância de aves, sobretudo. Havia também abundância de água
doce. De bordo podiam divisar o brilho do pequeno rio que
desaguava na baía.
Quando a noite desceu, Clayton e Lady Alice estavam ainda
encostados à amurada, olhando em baixo o lugar onde iam ficar.
Das sombras da floresta densa vinham as vozes dos animais
selvagens.

23

o profundo rugido do leão e, ocasionalmente, o grito agudo
de uma pantera.
Alice aninhou-se nos braços do marido, numa apavorada
antecipação dos horrores que os esperavam na densa escuridão
das noites futuras, quando ficassem sós naquela terra
solitária e selvagem.
Mais tarde, Black Michael foi ter com eles, demorando-se
apenas o tempo suficiente para os avisar de que deviam
preparar-se para desembarcar pela manhã. Clayton tentou
convencê-lo a levá-los para um lugar mais hospitaleiro,
suficientemente perto da civilização para lhes permitir a
esperança de encontrar socorros. Mas nem pedidos, nem
ameeaças, nem promessas de recompensa, conseguiram demovê-lo.
- Sou o único homem, a bordo, que não prefere vê-los mortos.
embora concorde que seria a única maneira de garantir a nossa
segurança. Mas Black Michael não é homem para esquecer um
favor. Salvou-me a vida, uma vez, e em troca poupo a vossa.
mas é tudo o que posso fazer. Os homens não tolerariam mais se
não desembarcarem depressa, eles podem mudar de ideias a
respeito de os deixar vivos e à solta. Vou pô-los em terra,
com as bagagens e tudo o que lhes pertence, além de alguns
utensílios de cozinha e umas quantas velas fora de uso, para
servirem de tendas. Levarão também comida que chegue para se
aguentarem até descobrirem caça e frutos. Dispondo das vossas
armas, poderão viver aqui bastante bem até virem buscá-los.
Quando eu e os homens estivermos longe e em segurança,
tratarei de informar o governo inglês quanto ao lugar onde
ficam.

24

Não poderei dizer exactamente onde é, porque não sei. Mas eles
hão-de encontrá-los.
Depois de Michael se afastar, os Claytons desceram em
silêncio, cada um deles mergulhado nos seus pensamentos. John
Clayton não acreditava que Black Michael tivesse a menor
intenção de avisar o governo inglês sobre o paradeiro deles, e
nem sequer tinha a certeza de que os homens não estivessem a
preparar qualquer golpe traiçoeiro para a manhã seguinte,
quando fossem levá-los a terra com as suas bagagens. Fora das
vistas de Black Michael, qualquer dos homens poderia
assassiná-los, deixando em paz a consciência do improvisado
capitão.
Mas, ainda que conseguissem escapar a esse destino, não
seria para enfrentar outros perigos igualmente graves?
Sozinho, John Clayton poderia ter esperança de sobreviver
durante anos, porque era um homem forte, de compleição
atlética. Mas que aconteceria a Alice nessa outra vida que em
breve surgiria, entre as dificuldades e os perigos de um mundo
primitivo?
Clayton estremeceu ao pensar na tremenda gravidade, na
desesperança horrível da situação em que ficavam. Mas a
misericordiosa Providência não lhe permitiu prever
completamente a realidade pavorosa que os esperava nas
sombrias profundezas da floresta primitiva.
Cedo, na manhã seguinte, as numerosas malas e sacos foram
levadas para o convés e descidas para os botes que esperavam a
fim de as transportarem a terra.

25

Havia uma grande quantidade e variedade de coisas, pois os
Claytons tinham previsto uma estadia de cinco a oito anos na
sua nova casa. Assim, além das muitas coisas necessárias que
haviam trazido, existiam também muitos objectos de luxo e
adorno.
Black Michael estava decidido a que nada pertencente aos
Claytons ficasse a bordo. Seria difícil dizer se a causa era a
compaixão por eles ou a defesa dos seus próprios interesses.
Sem dúvida que a existência, a bordo de um navio suspeito, de
objectos pertencentes a um oficial inglês desaparecido, seria
coisa muito difícil de explicar em qualquer porto do mundo
civilizado.
Tão grande era o interesse dele em cumprir as suas
intenções, que insistiu para que fossem restituídos a Clayton
os revólveres que lhe haviam sido surripiados.
Nos pequenos botes carregaram também carne salgada e
biscoitos, além de uma pequena porção de batatas e feijões,
fósforos, utensílios de cozinha, uma caixa com ferramentas e
as velas fora de uso que Black Michael prometera.
Como se ele próprio receasse o mesmo de que Clayton
suspeitara, Black Michael acompanhou-os a terra e foi o último
a partir quando os pequenos botes, tendo renovado, no rio, as
reservas de água doce, voltaram na direcção do Fuwalda.
Enquanto os botes se moviam devagar sobre as águas calmas da
pequena baía, Clayton e sua mulher ficaram a vê-los afastar-se
- e ambos se sentiam possuídos por uma dolorosa premonição de
desastre e esperança.

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E atrás deles, na crista de uma pequena eelevação de
terreno, outros olhos espreitavam, olhos muito juntos,
malévolos, brilhando sob testas lisas e cobertas de duros
pêlos.
Quando o Fuwalda transpós a saída da angra, e desapareceu
atrás de um promontório, Alice lançou-se nos braços de Clayton
e soluçou, sem poder dominar-se. Enfrentara corajosamente os
perigos do motim. e de ânimo forte havia encarado o terrível
futuro. Mas agora, que o pavor da total solidão os envolvia,
os seus nervos tensos cederam e veio a reacção. Clayton não
tentou impedi-la de chorar. Era melhor que a natureza, à sua
maneira, a aliviasse des emoções tanto tempo contidas, antes,
que Alice - pouco mais do que uma menina - pudesse recuperar o
domínio de si mesma. Decorreram longos minutos.
- Oh, John!... - exclamou ela, finalmente -, Que horror,
isto tudo! O que vamos nós fazer?
- Há apenas uma coisa a fazer, Alice. - respondeu ele, tão
calmo como se estivessem confortavelmente sentados na sala da
sua casa -, e é trabalhar. O trabalho pode ser a nossa
salvação. Não devemos conceder a nós mesmos tempo para pensar,
porque isso levaria à loucura. Temos de trabalhar e esperar.
Tenho a certeza de que virão socorrer-nos, e depressa, assim
que correr a notícia do desaparecimento do Fuwalda e mesmo que
Black Michael não cumpra a sua palavra.
- Mas, John. se fôssemos apenas tu e eu...

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- os soluços sacudiram-na de novo -. poderíamos suportar, eu
sei. Mas...
- Sim, querida. - atalhou Clayton, suavemente -, também
pensei nisso. Mas temos de enfrentar a situação, como qualquer
outra que surgir, corajosamente e com a maior confiança na
nossa capacidade de resolver as dificuldades, sejam quais
forem. Há centenas de milhares de anos, os nossos antecessores
desse vago e distante passado tiveram de enfrentar os mesmos
problemas que nós temos. e talvez até nestas mesmas florestas
primitivas. O facto de estarmos aqui, agora, é a prova de que
venceram. Que podiam eles, que nós não possamos também? E até
melhor, pois que estamos armados com séculos de conhecimentos
superiores e temos os meios de protecção, defesa e
subsistência que a ciência nos deu, e dos quais eles eram
totalmente ignorantes. O que eles conseguiram, Alice, com
instrumentos e armas de pedra e de osso, nós poderemos
consegui-lo também.
- Oh, John! Eu gostaria de ser um homem, com uma filosofia
de homem, mas sou apenas uma mulher e vejo as coisas mais com
o coração do que com a inteligência. E o que vejo é demasiado
horrível, demasiado impensável para traduzir em palavras. Só
desejo que tenhas razão, John! Farei o melhor que puder para
ser uma corajosa mulher primitiva. digna companheira do homem
primitivo.
O primeiro pensamento de Clayton foi arranjar um abrigo para
dormirem, à noite. Alguma coisa que pudesse servir para os
proteger dos animais de presa.

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Abriu a caixa que continha os rifles e as munições, deviam
ambos estar armados contra um possível ataque, enquanto
trabalhassem. Então, juntos, procuraram um sítio para dormir
nessa primeira noite.
A uma centena de metros da praia havia uma pequena porção de
terreno plano e relativamente livre de arvoredo. Decidiram que
construiriam ali uma casa permanente, mas pensaram que, de
momento, lhes bastava construir uma pequena plataforma nas
árvores, fora do alcance dos animais bravios em cujos domínios
se encontravam. Para tal fim, Clayton escoLheu quatro árvores
formando um rectângulo com cerca de oito pés quadrados, e
cortando compridos ramos de outras árvores improvisou uma
armação entre os quatro troncos, a uns três metros de altura
do chão, prendendo com firmeza as extremidades por meio de
cordas que Black Michael fora buscar ao porão do Fuwalda e
lhes fornecera com largueza.
Atravessados sobre essa armação, Clayton colocou ramos mais
pequenos, muito juntos. Depois cobriu a plataforma com grandes
folhas que cresciam em profusão por ali, e sobre as folhas
estendeu uma grande lona de vela, dobrada várias vezes.
Dois metros acima da primeira armou uma outra plataforma,
mais leve, para servir de cobertura, e dos lados deixou pender
o que lhe restava da lona de velas, como paredes. Quando o
trabalho ficou concluído, Clayton e Alice dispunham de um
pequeno ninho relativamente confortável, para o qual ele
transportou as mantas e a parte menos pesada da bagagem.

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Entardecia, e aproveitaram as horas de luz que ainda
restavam para a construção de uma escada tosca, que servisse a
Alice para alcançar o seu novo lar. Durante todo o dia, a
floresta em volta enchera-se de aves agitadas, de penas
brilhantes, e de pequenos macacos barulhentos e dançarinos que
pareciam espreitar, com evidente e fascinado interesse, os
recém-chegados e a construção do maravilhoso ninho. Embora
Clayton e sua mulher tivessem estado sempre alerta, não viram
animais maiores, conquanto, em duas ocasiões, tivessem notado
que os macaquitos guinchavam e fugiam, aos pulos, da próxima
elevação de terreno, lançando olhares assustados por cima dos
pequenos ombros e manifestando, tão claramente como se
falassem, que estavam apavorados por alguma terrível coisa que
ali permanecia escondida.
Antes da noite, Clayton concluiu a sua escada e, enchendo
uma grande bacia com água, na corrente próxima, ele e Alice
subiram para a relativa segurança do seu quarto aéreo. Porque
havia calor, Clayton deixara as cortinas laterais sobre a
plataforma que servia de tecto. Quando estavam sentados, como
turcos, sobre os cobertores, Alice, olhando para as sombras,
cada vez mais densas, da floresta, estendeu subitamente uma
das mãos e agarrou um braço de John.
- John. - sussurrou ela. - Olha! Que é aquilo? Um homem?

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Quando Clayton olhou na direcção que ela apontava, viu o que
lhe pareceu um grande vulto que mal se podia distinguir das
sombras e estava de pé sobre a elevação de terreno. Por um
momento o vulto ficou imóvel, como à escuta, e depois
desapareceu na escuridão da selva.
- O que era, John?
- Não sei, Alice. - volveu ele, gravemente. - Está demasiado
escuro para se ver, e talvez fosse apenas uma sombra
projectada pela lua nascente.
- Não, John! Se não era um homem, era com certeza uma enorme
e grotesca imitação de um homem. Oh, John! Tenho medo.
Ele envolveu-a nos braços, murmurando-lhe ao ouvido palavras
de amor e de encorajamento. Pouco depois baixou as cortinas,
prendendo-as com firmeza aos ramos, de maneira que, com
excepção de uma pequena abertura na direcção da praia, estavam
completamente tapados. Era agora noite escura, no interior do
frágil abrigo. Estenderam-se sobre as mantas, tentando
conseguir, pelo sono, umas breves tréguas de esquecimento.
Clayton estava deitado de frente para a abertura, tendo ao
alcance da mão um rifle e vários revólveres.
Mal haviam fechado os olhos quando o grito apavorante de uma
pantera ecoou na selva, atrás deles. A fera foi-se
aproximando, até que puderam ouvi-la directamente abaixo da
plataforma. Durante uma hora ou mais ouviram-na fungar e
arranhar o tronco, mas por fim a pantera afastou-se e
atravessou a praia. Clayton pôde então vê-la claramente,

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na luz do luar - um grande e belo animal, o maior que ele vira
até então.
Durante as longas horas da noite apenas dormiram curtos
sonos. As noites na selva estão cheias de milhares de ruídos
da vida selvagem. John e Alice, com os nervos tensos, foram
acordados em sobressalto, por gritos agudos, a cada momento
mais fortes e mais ou menos próximos, e pelos movimentos
furtivos de grandes corpos, no terreno em baixo.

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CAPÍTULO 3

Vida e morte

A manhã encontrou-os quase tão cansados como na véspera,
embora as primeiras luzes do dia dessem uma profunda sensação
de alívio.
Logo que concluíram o frugal pequeno almoço, composto por
carne de porco, salgada, café e biscoitos, Clayton começou a
trabalhar na casa, compreendendo que não poderiam ter
segurança nem paz de espírito, durante as noites, até que
quatro fortes paredes efectivamente se interpusessem entre
eles e a vida nocturna da selva.
A tarefa era difícil e ocupou-o durante quase um mês, embora
ele não construísse senão um único e pequeno compartimento.
Utilizou, na construção da barraca, pequenos troncos com cerca
de seis polegadas de diâmetro, tapando as frinchas com barro
que encontrou no terreno, a pequena profundidade. Numa das
extremidades fez uma lareira, com pedras que trouxe da praia

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e fixou também com barro. E, quando a casa ficou pronta,
aplicou ainda camadas de barro em toda a superfície exterior -
sobrepondo-as até obter uma espesssura adicional de mais
quatro polegadas.
Na abertura que servia de janela, dispôs ramos pequenos com
cerca de uma polegada de diâmetro, tão entrelaçados que
formavam uma sólida grade capaz de se opor à força de qualquer
animal. Assim tinham ar e ventilação adequada, sem diminuir a
segurança da barraca. O telhado, em forma de A, foi tecido com
ramos delgados sobre os quais estendeu ervas da floresta,
compridas e resistentes, e largas folhas de palmeira, tudo
coberto com uma camada final de barro.
Clayton fez a porta com tábuas das caixas que tinham contido
bagagem, pregando tábuas umas sobre as outras, entrecruzadas,
até formar uma sólida espessura de cerca de três polegadas,
tão resistente que ambos se riram ao contemplá-la depois de
pronta. Aí surgiu uma dificuldade, porque Clayton não tinha
maneira de suspender uma porta tão maciça. No entanto, ao cabo
de dois dias de trabalho
conseguiu fabricar dois gonzos de madeira rija, e assim pôde
colocar a porta de maneira a fechá-la e abri-la facilmente.
O revestimento interior e outros retoques finais foram
acrescentados depois de se terem instalado a barraca, coisa
que fizeram assim que o telhado ficou colocado. Durante a
noite empilhavam caixotes

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e malas contra a porta, e assim tinham uma habitação
relativamente cómoda e segura.
A construção de uma cama, cadeiras, mesa e prateleiras, foi
tarefa comparativamente fácil, de modo que ao fim do segundo
mês estavam com a instalação concluída. Excluindo o constante
receio de serem atacados pelas feras, e a sensação de total
isolamento, não se sentiam infelizes nem desconfortáveis. De
noite, as grandes feras rosnavam e rugiam em volta da barraca,
mas - tanto uma pessoa pode habituar-se a ruídos
frequentemente repetidos - em breve deixaram de lhes prestar
atenção e dormiam profundamente até de manhã.
Por três vezes tinham avistado, de fugida, grandes vultos de
aspecto quase humano, iguais ao que haviam visto na primeira
noite, mas nunca bastante perto para saberem, com segura
certeza, se esses vultos entrevistos eram de homens ou de
animais selvagens.
Os pássaros de muitas cores, e os pequenos macacos,
tinham-se habituado à presença deles. Como parecia evidente
que nunca tinham visto antes criaturas humanas, passados os
primeiros dias de susto e de surpresa foram-se aproximando
progressivamente, movidos pela estranha curiosidade que domina
as criaturas selvagens da floresta ou da planície, de maneira
que, ao cabo do primeiro mês, alguns dos pássaros já aceitavam
comida das mãos amigas dos Claytons.
Uma tarde, enquanto Clayton trabalhava para acrescentar a
sua barraca, à qual pensava ligar mais dois ou três

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compartimentos, alguns dos macaquitos vieram aos saltos e aos
gritos, através das árvores, da direcção da elevação de
terreno. Olhavam para trás, enquanto fugiam, e finalmente
pararam junto de Clayton, guinchando excitadamente como para o
avisar de um perigo.
E foi então que John Clayton viu o que tanto apavorava os
pequenos símios - o homem-fera que ele e Alice apenas tinham
conseguido entrever ocasionalmente e só por instantes.
Aproximava-se através da selva, meio erguido, apoiando no
chão, de vez em quando, os enormes punhos fechados - um
gigantesco macaco antropóide. Enquanto avançava ia soltando
profundos grunhidos guturais, e por vezes uma espécie de
ladrido rouco.
Clayton estava a alguma distância da barraca, tendo-se
afastado para derrubar um tronco que Lhe parecera
particularmente perfeito para os seus projectos de construção.
Tornara-se descuidado em consequência de meses de constante
segurança, nos quais nunca avistara um só animal perigoso
durante as horas do dia, e assim havia deixado os rifles e
revólveres na barraca. Agora via o macaco gigantesco avançar,
esmagando as moitas, na sua direcção, e vindo de um ponto que
praticamente lhe cortava a retirada. Sentiu um calafrio
percorrer-lhe a coluna. Sabia que, armado apenas com um
machado, as probabilidades contra tal monstro eram na verddade
muito ténues. E Alice? Deus! O que aconteceria a Alice?

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Havia ainda uma ligeira possibilidade de alcançar a barraca.
Voltou-se e correu, soltando um brado de alarme para que Alice
fechasse a porta no caso de o macaco lhe cortar o caminho.
Alice estava sentada junto da barraca, e ao ouvir o brado
levantou a cabeça e viu o gorila saltar com espantosa rapidez
- mais de pasmar num animal tão grande e desajeitado - para
interceptar o caminho de Clayton. Com um grito rouco, a jovem
correu para a barraca e, ao entrar, lançou para fora um olhar
que lhe encheu a alma de terror. A fera tinha encurralado
John, e este parara, empunhando a mãos ambas o machado, pronto
a brandi-lo contra o gorila quando ele atacasse finalmente.
- Fecha e tranca a porta, Alice!. - gritou Clayton. - Eu
posso enfrentar este bruto, com o machado!
Mas John sabia que estava votado a uma horrível morte, e a
jovem também o compreendeu. O macaco era um macho enorme,
pesando provavelmente cento e cinquenta quilos. Os olhos,
muito juntos e ferozes, brilhavam sob os pêlos hirsutos da
testa fugidia; e os dentes brancos, grandes, apareciam num
esgar de fúria enquanto ele parava um momento diante da sua
presa.
Sobre o ombro do bruto, Clayton podia ver a porta da
barraca, a uma distância de menos de vinte passos, e uma onda
de pavor envolveu-o ao ver que Alice reaparecia, armada com um
dos rifles. A jovem sempre tivera medo de armas de fogo, nas
quais nunca tocava, mas agora corria para o gorila com a
temeridade de uma leoa que defendesse as crias.

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- Para trás, Alice! Pelo amor de Deus, para trás!
Mas ela não obedeceu. e nesse momento o gorila lançou-se ao
ataque, de modo que Clayton nada mais pôde dizer. Firmando os
pés no chão, Clayton levantou o machado e desferiu um golpe
com todo o poder dos seus músculos, mas o poderoso bruto
agarrou a arma, arrancou-lha das mãos e atirou-a a distância.
Com um rugido, o animal saltou sobre a presa e ia
cravar-lhe os dentes quando estalou uma detonação seca, e uma
bala o atingiu nas costas, entre os ombros. Empurrando Clayton
e derrubando-o, o gorila voltou-se para enfrentar o novo
inimigo.
Diante dele estava a frágil mulher, apavorada, tentando em
vão disparar novamente. Mas a jovem não compreendia. o
mecanismo da arma, e o cão batia, inútil, sobre o cartucho
vazio.
Quase no mesmo instante Clayton levantou-se e, sem pensar
na sua impotência perante a fera, correu para afastar o gorila
do corpo de Alice que perdera os sentidos. Conseguiu-o quase
sem esforço, e o grande corpo rolou inerte no terreno, morto.
A bala : fizera o seu efeito.
Um rápido exame permitiu a Clayton verificar que Alice não
estava ferida. O gorila tinha provavelmente morrido no
instante exacto em que ia saltar sobre ela. Suavemente, John
levantou sua mulher, levou-a para a barraca - mas decorreram
duas horas antes que recuperasse os sentidos. As primeiras
palavras dela assustaram Clayton.

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Pouco depois de abrir os olhos, Alice fitou o interior da
barraca e murmurou, com um suspiro de alívio:
- Oh, John! É tão bom estar realmente em casa. Tive um sonho
horrível, querido. Sonhei que já não estávamos em Londres. mas
num lugar horrível onde grandes feras nos atacavam.
- Vamos, Alice, vamos. - disse ele, tocando-lhe na testa. -
Tenta dormir outra vez e não canses a tua cabeça, com maus
sonhos.
Nessa noite uma criança nasceu na pequena barraca à beira da
selva primitiva, enquanto um leopardo rosnava diante da porta,
e se ouvia, ao longe, o rugido poderoso de um leão.
Lady Greystoke nunca se recompôs do choque causado pelo
ataque do gorila, e embora vivesse durante mais um ano, depois
do nascimento do filho, não mais voltou a sair da barraca e
não conseguiu convencer-se completamente de que não estava em
Inglaterra. Por vezes interrogava John, a respeito dos ruídos
que ouviam durante as noites. A ausência de criados e amigos,
os móveis estranhamente toscos do seu quarto, eram também
motivos de perguntas. Mas, conquanto John não tentasse
qualquer esforço para a enganar, Alice nunca mais entendeu o
sentido da verdade. Sob outros aspectos era perfeitamente
racional, e a alegria e felicidade por ter um filho, e as
constantes atenções do marido, tornaram esse ano realmente
feliz para ela, o ano mais feliz da sua jovem existência.
Clayton não ignorava que ela estaria cheia de angústia e de
apreensões, se estivesse na posse das suas faculdades mentais.

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E, com quanto ele sofresse horrivelmente por vê-la assim,
havia ocasiões em que, por amor dela, se mostrava quase
alegre, para que ela não compreendesse.
Havia muito tempo que John perdera qualquer esperança de ser
socorrido, a não ser por acidente. Com incansável zelo,
continuara a trabalhar para embelezar o interior da sua
barraca. Peles de leão e de pantera cobriam o chão, armários e
estantes tapavam as paredes. Estranhos vasos, feitos por ele
com o barro da região, continham lindas flores tropicais.
Cortinas tecidas de compridas ervas, e de bambus, escondiam as
janelas. Mais ainda: com as poucas ferramentas de que
dispunha, tinha trabalhado madeira para forrar as paredes, e
colocara um sobrado liso.
O facto de ser capaz de executar estas tarefas, que sempre
lhe haviam sido estranhas, admirava-o. Mas gostava do trabalho
porque o fazia para Alice e para o filho que viera
encorajá-los e animá-los, embora acrescentando as
responsabilidades dele e agravando o que havia de terrível na
situação.
Durante o ano que se seguiu, Clayton foi várias vezes
atacado pelos grandes gorilas que haviam passado a infestar as
vizinhanças da barraca. Mas, como nunca mais voltara a sair
sem o rifle e os revólveres, os ferozes animais não o
assustavam.
Tinham aumentado a protecção das janelas e fixara uma sólida
tranca de madeira, na porta. Assim, quando saía para caçar ou
apanhar frutos - como era constantemente necessário para
assegurar a subsistência -,

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não receava que qualquer animal pudesse entrar na pequena
casa. Ao princípio conseguira caçar através das janelas da
barraca, mas por fim os animais aprenderam a temer o estranho
lugar de onde vinha o som trovejante do rifle.
Nos momentos de ócio, John Clayton lia, por vezes em voz
alta, para Alice, um dos muitos livros que trouxera na
bagagem. Entre esses livros havia bastantes para crianças -
livros de estampas, de primeiras letras, histórias ilustradas
já com texto. Ao saírem de Inglaterra sabiam já que o bebé
nasceria muito antes de poderem pensar em voltar. De outras
vezes, John Clayton redigia o seu diário, que desde sempre se
habituara a escrever em francês e onde registava os
acontecimentos da sua estranha vida. Guardava esse diário numa
caixa de metal, fechada.
Um ano depois do nascimento do filho, Lady Alice morreu
tranquilamente, durante a noite. Tão calmo foi o seu fim, que
decorreram horas antes que Clayton se convencesse da verdade.
O horror da situação invadiu-o lentamente, e é duvidoso que
tenha alguma vez compreendido a enormidade da sua pena e a
tremenda responsabilidade que recaía agora exclusivamente
sobre ele, de cuidar de uma criança ainda tão pequena.
O último registo, no seu diário, foi feito na manhã que se
seguiu à morte de Alice, e aí narra os tristes acontecimentos
num tom impessoal que aumenta ainda a dolorosa significação
das palavras. Sente-se nelas uma apatia enorme, feita de
cansaço, de pena e de desesperança,

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uma apatia que nem mesmo o golpe tão cruel pôde sacudir para
mais sofrimento:
"O meu filhinho chora por comida. Oh, Alice, Alice! Que devo
eu fazer?"
E, quando John Clayton escreveu as últimas palavras que a
sua mão alguma vez poderia escrever, deixou cair a cabeça
sobre os braços poisados na mesa - a mesa que construíra para
aquela que estava ainda estendida, fria e imóvel, na cama,
perto dele.
Durante muito tempo nenhum ruído perturbou o silêncio de
morte do meio-dia na selva; a não ser o gemer desolado da
criança com fome.

CAPÍTULO 4

Os macacos

Na selva do planalto, a uma milha de distância do mar,
Kerchak, o velho gorila, entregava-se a uma explosão de raiva
entre a sua tribo.
Os outros membros da tribo, sobretudo os mais jovens e mais
leves, foram refugiar-se nas ramadas mais altas das grandes
árvores, para escaparem à sua cólera, arriscando a vida sobre
troncos que mal suportavam o seu peso, de preferência a
enfrentarem a fúria de Kerchak. Os machos adultos fugiram em
todas as direcções, não sem que Kerchak partisse a coluna
dorsal de um deles, entre as mandíbulas poderosas.

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Uma infeliz fêmea escorregou de uma posição insegura num
ramo alto, e despenhou-se no chão quase aos pés de Kerchak.
Com um grito selvagem, o macho enfurecido saltou sobre ela e
mordeu-a ferozmente, arrancando-lhe um pedaço de carne. Logo
depois, com o tronco que brandia à maneira de cacete, Kerchak
esmigalhou a cabeça da fêmea.
Foi então que Kerchak viu Kala, uma macaca que, regressando
de ir procurar comida, com a sua pequena cria, ignorava o
ataque de raiva do grande macho. Bruscamente, avisada pelos
gritos agudos dos demais, Kala saltou em busca de segurança.
Mas o gorila enfurecido estava perto dela, tão perto que a
teria agarrado por uma perna se Kala não tivesse dado um
furioso salto no ar, afastando-se rapidamente, de ramada em
ramada - um risco perigoso que os grandes macacos raramente
correm, a não ser que sejam perseguidos tão de perto que não
tenham outra alternativa. Kala saltou e agarrou-se, mas ao
projectar-se para outra árvore, a violenta sacudidela fez com
que a cria, que se segurava desesperadamente ao seu pescoço,
caísse para baixo. Kala viu o filho torcer-se e voltear no
espaço, até tombar no chão de uma altura de dez metros.
Com um grito rouco, Kala precipitou-se para junto da cria,
sem pensar sequer na ameaça de Kerchak.
Mas, quando apanhou o pequeno animal e o apertou ao peito,
ele tinha morrido. Com pequenos grunhidos, Kala ficou sentada,
embalando o filho morto. Nem Kerchak se atreveu a atacá-la.

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Com a morte da cria, o seu impulso de raiva demoníaca
deixara-o, tão subitamente quanto se apoderara dele.
Kerchak era um enorme gorila-rei, pesando talvez cento e
oitenta quilos. A sua testa era recuada e muito baixa, os
olhos avermelhados, pequenos e muito juntos do nariz largo e
tosco, amachucado. As orelhas eram grandes e delgadas, mais
pequenas, todavia, do que na maioria dos animais da espécie. A
sua ferocidade, e a enorme força, tinham-no feito chefe da
pequena tribo entre a qual nascera cerca de vinte anos antes.
Agora, em pleno vigor, não havia outro gorila em toda a grande
floresta que se atrevesse a contestar o seu direito de chefia.
Nem mesmo outros animais, maiores, o molestavam.
O velho Tantor, o elefante, era o único, entre todos os
animais selvagens, que não temia Kerchak - e era também o
único a quem Kerchak temia. Quando Tantor fazia ouvir o seu
bramido, o gorila e os seus companheiros corriam a refugiar-se
entre as árvores, no planalto superior.
A tribo de antropóides sobre a qual Kerchak reinava com mãos
de ferro e agudas presas, contava seis a oito famílias, e cada
família era composta por um macho adulto, as suas fêmeas e as
crias. Ao todo, a tribo compunha-se de sessenta ou setenta
gorilas.
Kala era a fêmea mais nova de um macho de nome Tublat (nome
que significa nariz quebrado), e a cria que morrera era a sua
primeira cria. Kala não tinha mais de nove ou dez anos de
idade. No entanto, apesar da sua juventude,

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era grande e poderosa, um esplêndido animal de membros ágeis e
fortes, com uma testa alta e arredondada que denotava maior
inteligência do que a maioria das criaturas da sua espécie.
Tinha também uma grande capacidade para o amor e para a
angústia maternais.
Não deixava por isso de ser uma enorme fera
de uma raça de gorilas talvez mais inteligente do que as
outras. o que, com a sua enorme força, fazia dela um animal
temível.
Quando a tribo compreendeu que a fúria de Kerchak chegara ao
fim, os gorilas desceram dos seus refúgios e voltaram a
ocupar-se das várias tarefas que o chefe interrompera. As
crias brincavam e saltavam entre os troncos e as moitas.
Alguns dos adultos estenderam-se para descansar sobre o chão
atapetado de erva alta e folhas secas, enquanto outros
voltavam pedras e troncos caídos em busca dos pequenos bichos
da terra e répteis que constituíam parte da sua alimentação.
Ainda outros exploravam as árvores em busca de frutos, nozes,
pássaros e ovos.
Tinha passado talvez uma hora quando Kerchak os chamou e,
com um grunhido de comando para que o seguissem, partiu na
direcção do mar. Avançavam quase sempre sobre o terreno,
quando este era descoberto, seguindo a pista dos elefantes
que, nas suas idas e vindas, tinham desbravado os únicos
caminhos existentes naquele labirinto de troncos, mato, lianas
e arbustos. Ao caminharem, faziam-no de uma forma baloiçante e
desajeitada, poisando os punhos no chão e lançando os pesados
corpos para diante.

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Mas, quando tinham de percorrer zonas de árvores mais baixas,
moviam-se mais depressa, saltando de ramo em ramo com a
agilidade de macacos pequenos. Durante a jornada, Kala não
deixou de apertar contra o peito a sua cria morta.
Pouco passava do meio-dia quando alcançaram uma pequena
elevação de terreno que dominava a praia onde, abaixo deles,
se erguia a barraca para a qual Kerchak se dirigia.
Kerchak tinha visto muitos dos seus morrerem em consequência
do barulho feito pelo pequeno pau preto, empunhado pelo
estranho macaco de pele branca que vivia ali. E, na mente
confusa de Kerchak, surgira lentamente a ideia de se apoderar
daquela coisa que causava a morte, e de explorar o interior do
misterioso refúgio. Desejava, ao mesmo tempo, sentir os
poderosos dentes cravados no pescoço do estranho animal ao
qual aprendera a odiar e a temer - e por isso mesmo viera
algumas vezes, com a tribo, espreitar, esperando a ocasião de
apanhar desprevenido o macaco branco.
Ultimamente havia desistido de o atacar, ou mesmo de se
mostrar. Porque, de cada vez que algum dos outros gorilas o
fizera, o pequeno pau negro rugira enviando a sua mensagem de
morte.
Mas naquele dia não havia sinais do inimigo nas proximidades
e, de onde estavam, os gorilas podiam ver que a entrada do
refúgio estava aberta. Devagar, cautelosamente e sem ruído
atravessaram aquela ponta da selva, na direcção da barraca.
Não grunhiram, não deixaram escapar gritos de raiva.

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O pequeno pau negro ensinara-os a serem prudentes para não
despertarem a sua ira. Avançaram, até que Kerchak, o primeiro,
alcançou a porta e espreitou para dentro. Atrás dele vinham
dois outros machos, e logo depois Kala, que continuava a
apertar ao peito o filho morto.
Dentro, viram o estranho macaco branco imóvel, com a cabeça
poisada sobre os braços; sobre a cama, coberto com um pano de
vela, estava um vulto, e a curta distância ouviam os gemidos
de uma criança.
Kerchak entrou, sem rumor, curvando-se para atacar. e foi
então que John Clayton se levantou em sobressalto, e se
voltou. O espectáculo que se lhe deparou decerto o petrificou
de horror. Dentro da barraca estavam três enormes gorilas
machos, e lá fora podia sentir a presença de muitos outros.
Nunca soube quantos, porque os seus revólveres estavam
suspensos da parede distante, junto dos rifles - e porque
Kerchak atacou.
Quando o gorila-rei largou a forma inerte que tinha sido
John Clayton, Lord Greystoke, voltou a sua atenção para o
berço; mas Kala chegou antes dele, e quando Kerchak se curvava
para apanhar a criança, a grande macaca apanhou-a e saltou
para trás, através da porta, indo refugiar-se no alto de uma
enorme árvore. Ao apanhar o filho vivo de Lady Alice, Kala
deixou cair, no berço, o corpo morto da sua própria cria. Ao
ouvir o gemido do vivo, obedecera ao apelo universal da
maternidade, que brotara do seu peito selvagem,

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e a que o morto já não podia corresponder.
A grande altura, dominando o seu receio - os gorilas só se
arriscam nas ramadas mais fortes e mais baixas das árvores,
que suportam o seu peso - aconchegou a criança gemebunda
contra o seio. E em breve o instinto - tão forte na feroz
gorila como tinha sido no seio da terna e bela Alice Clayton -
o instinto do amor maternal, se comunicou ao entendimento
embrionário da criança humana, que se aquietou.
A fome transpôs a distância entre ambos, e assim o filho de
um nlord e de uma lady bebeu o leite do seio de Kala, a
macaca.
Entretanto, na barraca, os outros gorilas examinavam tudo,
desconfiados. Tendo-se assegurado de que Clayton estava morto,
Kerchak voltou as suas atenções para o vulto estendido sobre a
cama, coberto por um pedaço de tecido branco. Timidamente
levantou a lona, mas quando viu o corpo da mulher que estava
debaixo, arrancou bruscamente o sudário e agarrou, entre as
mãos poderosas, o pescoço branco e frágil. Por um instante
deixou que os seus dedos se cravassem na pele fria, mas então,
compreendendo que a mulher estava morta, largou-a e continuou
a examinar o que havia na barraca, não voltando a tocar nos
corpos, para sempre imóveis, de Lady Alice ou de Sir John.
O rifle, suspenso da parede, foi a primeira coisa a chamar a
sua atenção. Tinha desejado, durante meses, aquele pau negro
que continha a morte em pequenos trovões;

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mas agora, que o tinha ao seu alcance, mal dispunha de coragem
para se apoderar dele. Cautelosamente, aproximou-se do
objecto, tenso e alerta, pronto para fugir se ele falasse na
sua voz rouca e rugidora - tal como tinha ouvido contar nas
últimas palavras daqueles que, por ignorância ou ferocidade,
haviam atacado o macaco branco. Profundamente, na sua
inteligência rudimentar, alguma coisa lhe dizia que aquele pau
trovejante só era perigoso quando em mãos que soubessem
utilizá-lo.
mas assim mesmo decorreram vários minutos antes que se
atrevesse a tocar-lhe.. I Hesitante, pôs-se a caminhar de um
lado para o outro, diante do rifle, movendo a cabeça de modo a
nunca deixar de fitar o objecto dos seus desejos.
Utilizando os longos braços como um homem poderia utilizar
muletas, baloiçando desajeitadamente o enorme corpo, o
macaco-rei continuou a andar de um lado para o outro, emitindo
grunhidos roucos e gritando agudamente, por vezes - esse grito
que é um dos ruídos mais apavorantes da selva.
Até que parou em frente do rifle. Devagar, levantou a grande
mão até quase tocar o rebrilhante cano da arma, mas logo
recuou e continuou a caminhar.
Era como se, demonstrando a sua coragem naquela primeira
tentativa, e gritando com a sua voz potente, o gigantesco
gorila estivesse a animar-se, a construir o impulso que o
levaria a apanhar o rifle.
Parou outra vez, e agora conseguiu forçar a mão até tocar no
frio aço, mas de novo recuou e recomeçou a andar. Repetiu a
estranha manobra, novamente e, com crescente confiança,

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até que agarrou a espingarda. Verificando que ela não lhe
fazia mal, começou a examiná-la atentamente. Apalpou-a de um
extremo ao outro, espreitou para o interior do longo cano,
mexeu na mira, na coronha, e finalmente no gatilho. Durante
todas estas operações os outros gorilas tinham-se reunido
junto da porta, observando o chefe. Os outros, que tinham
ficado no exterior, diligenciavam ver. De súbito, um dedo de
Kerchak fez pressão no gatilho. Um estrondo ensurdecedor
encheu a barraca - e os gorilas que estavam junto e para além
da porta caíram uns sobre os outros, na ânsia de fugir.
Kerchak ficou igualmente assustado, tão assustado que, sem
sequer pensar em se libertar do objecto que causara tão
temeroso ruído, saltou para a porta com a mão crispada sobre o
rifle. Quando passou através da abertura, a mira do rifle
prendeu-se na beira da porta - que se abria para dentro - com
suficiente força para fechar o batente atrás do gorila. Quando
Kerchak parou, a curta distância da barraca, e compreendeu que
ainda segurava o rifle, deixou-o cair como se fosse um ferro
em brasa, e não tentou pegar-lhe de novo. O estrondo fora
demasiado imprevisto e forte, para os seus nervos, mas estava
agora convencido de que o terrível pau negro era inofensivo
desde que não lhe tocassem.
Decorreu uma hora antes que os gorilas se animassem a
aproximar-se outra vez da barraca, para continuarem as suas
investigações. Mas, quando finalmente o fizeram,

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descobriram com pena que a porta estava fechada e tão
seguramente firme que não Podiam forçá-la. O fecho,
inteligentemente colocado por Clayton, tinha caído quando
Kerchak fugira. E os gorilas também não conseguiram passar
através das janelas fortemente protegidas.
Depois de vaguearem pelas redondezas, durante algum tempo,
os grandes macacos retomaram o caminho da floresta densa e do
terreno mais alto, de onde tinham vindo.
Kala não desceu imediatamente, com a sua cria adoptiva, mas
Kerchak chamou-a e, como não hou vesse cólera na voz dele, a
macaca saltou agilmente de ramo em ramo e juntou-se aos
outros, no caminho de regresso.
Os gorilas, que haviam tentado examinar a estranha cria de
Kala, tinham sido repelidos com grunhidos ameaçadores e presas
prontas, acompanhados de palavras de ameaça. Quando, porém, se
asseguraram que não fariam mal, ela deixou-os aproximar-se sem
todavia permitir que tocassem na.
criança. Era como se soubesse que o seu bebé era frágil e
delicado, e temesse que as mãos rudes dos companheiros
pudessem magoá-lo.
Kala fez também outra coisa, o que tornou a caminhada uma
dura provação para ela. Lembrando-se da morte da sua própria
cria, agarrava desesperadamente o novo bebé, com uma das mãos,
por onde quer que a tribo seguisse . Os outros filhos seguiam
às costas das mães, segurando-se, com os pequenos dedos, aos
longos pêlos do pescoço delas, enquanto as pernas se prendiam
sob os sovacos maternos.

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Mas Kala não fazia assim. Segurava o pequeno vulto infantil
do Lord Greystoke, apertando-o con o peito onde as frágeis
mãos brancas se agarram também à farta pelagem. Kala tinha
visto uma cria cair-lhe das costas e morrer - e não se
dispunha a correr igual risco com aquela.

CAPÍTULO 5

O macaco branco

Ternamente, Kala criou o menino, pasmando em silêncio por
ele não adquirir força e agilidade como os pequenos macacos de
outras mães. Tinha decorrido quase um ano desde que ela tomara
conta do bebé, e ele ainda caminhava mal e não era capaz de
trepar. E como era estúpido! Kala falava, por vezes, com
outras fêmeas mais velhas, a respeito da sua cria, mas nenhuma
delas conseguia compreender como o pequeno era tão lento e
atrasado na aprendizagem de cuidar de si mesmo, nem sequer
conseguia alimentos, sozinho - e no entanto tinham passado
mais de doze luas, desde que kala o encontrara. se as macacas
soubessem que treze luas haviam decorrido antes, decerto
considerariam o caso como completamente perdido e sem
esperança, pois os pequenos gorilas da tribo vam tão
adiantados, em duas ou três luas, como o de Kala, ao cabo de
vinte e cinco.

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Tublat, o companheiro de Kala, sentia-se vexado, e se não
fosse o cuidado constante da fêmea, provavelmente teria
eliminado a criança.
- Nunca será um grande macaco, - dizia ele. - Terás sempre
de o transportar e proteger. Para que servirá, na tribo? Para
nada, será apenas um encargo. Deixemo-lo dormir para sempre,
quieto entre as altas ervas, para que possas ter outros
filhos, mais fortes, que nos guardarão quando a idade pesar.
- Nunca, Tublat!... - respondia Kala. - Se eu tiver de o
transportar sempre, assim será.
Então Tublat procurou Kerchak, para lhe pedir que usasse a
sua autoridade junto de Kala e a forçasse a desistir do
pequeno Tarzan - nome que significa "pele branca" e havia sido
dado por Kala ao pequeno Lord Greystoke. Mas, quando Kerchak
lhe falou a tal respeito, Kala ameaçou-o de abandonar a tribo
se não a deixassem em paz com a criança. Era esse um dos
inalienáveis direitos do povo da selva, quando não se sentiam
bem entre os da sua tribo. Não a molestaram mais, pois Kala
era uma jovem fêmea, forte e escorreita, e não queriam
perdê-la.
Enquanto ia crescendo, Tarzan progredia mais rapidamente, de
maneira que, com cerca de dez anos, era um excelente trepador
e, no terreno, podia fazer muitas coisas maravilhosas que
estavam para além das possibilidades dos seus irmãos e irmãs.
Era diferente deles, sob muitos aspectos, e por vezes os
outros pasmavam ante a sua inteligência superior, mas em
tamanho e força era deficiente.

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Aos dez anos, todos os grandes antropóides estão completamente
desenvolvidos e alguns deles alcançam mais de um metro e
oitenta de altura, ao passo que o pequeno Tarzan era ainda um
rapaz. Mas que rapaz, no entanto!
Desde muito pequeno aprendera a utilizar as mãos para pular
de ramo em ramo, à maneira de Kala, e enquanto crescia ocupava
várias horas por dia jornadeando através das altas ramadas das
árvores, com os seus irmãos e irmãs.
Podia dar saltos de seis metros, pelo espaço, nas alturas
estonteantes das copas da floresta, e agarrar, Com infalível
precisão e sem esticão aparente, uma liana batida por vento
ciclónico. Podia descer outros seis metros de cada vez, em
sucessivos pulos que o levavam de ramo em ramo até ao chão, ou
podia atingir as copas dos grandes gigantes da floresta, com a
facilidade e a rapidez de um esquilo. Embora apenas com dez
anos, era tão forte como um homem médio, de trinta, e muito
mais ágil do que o atleta mais bem treinado que pudesse
existir. E, dia a dia, a sua força ia aumentando.
A sua vida entre os ferozes gorilas tinha sido feliz; não
recordava outro género de vida, nem sabia que existisse, no
universo, qualquer coisa mais além daquela floresta e dos
animais selvagens que Lhe eram familiares.
Foi quando tinha quase dez anos que começou a compreender a
grande diferença que existia entre ele e os seus companheiros.
O seu corpo, pequeno, bronzeado pelo ar e pelo sol, causou-lhe
então uma sensação de profunda vergonha, porque,

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como as cobras e outros répteis, era quase inteiramente
desprovido de pêlos.
Tentou remediar isso cobrindo-se, dos pés à cabeça, com lama
- mas a lama secava e caía. Para mais, sentia-se tão
desconfortável sob essa cobertura de barro, que preferiu a
vergonha ao desconforto.
Nas terras altas, onde vivia a tribo, havia um pequeno lago,
e foi aí que Tarzan, pela primeira vez, viu a sua cara que as
águas tranquilas reflectiam. Foi num dia muito quente, na
estação das secas, que ele e um dos seus primos desceram à
margem, para beber. Quando se debruçaram, ambas as pequenas
caras ficaram reflectidas na superfície do lago, as ferozes e
terríveis feições do gorila, lado a lado com as feições
aristocráticas do rebento de uma nobre família inglesa.
Tarzan ficou pasmado. Já era bastante mau ser desprovido de
pêlos, mas ter uma tal cara. Maravilhou-se de que os outros
macacos olhassem sequer para ele.
Aquela boca tão pequena, aqueles dentes muito brancos mas
diminutos! Como lhe pareciam horríveis ao lado dos grossos
lábios e das poderosas presas dos seus irmãos mais favorecidos
pela sorte! E o nariz insignificante, delgado - tão delgado
que parecia indicar que estava a morrer de fome. Corou
intensamente ao compará-lo com as belas e largas narinas do
seu companheiro. Um tão amplo e generoso nariz! como ele se
espalhava pela cara! Devia certamente ser agradável ter uma
tão bela presença - pensou o pobre Tarzan.

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Mas, quando reparou nos seus próprios olhos, o golpe final!
Um ponto castanho, um círculo preto e depois tudo branco, em
volta! Horrível!
Nem mesmo as cobras tinham uns olhos tão feios como os seus!
Tão absorvido estava na observação de si mesmo, que não
ouviu, atrás dele, o ruído das altas ervas secas que eram
afastadas à passagem de um grande corpo fulvo. Nem também o
seu companheiro, o gorila, ouviu esse ruído, porque estava a
beber e o som gorgolejante da água que chupava abafou a
silenciosa aproximação do intruso.
Vinha a menos de trinta passos atrás deles. Sabor, a grande
leoa, curvada, agitava a longa cauda. Cautelosamente moveu uma
das patas, poisando-a sem ruído antes de levantar a outra.
Avançava assim, o ventre quase a roçar o terreno - um grande
gato preparando-se para saltar sobre a presa.
Estava agora a dez passos dos dois jovens. Com cuidado,
dobrou sob ela as patas traseiras, os grandes músculos
desenhando-se sob a pele magnífica. Estava tão agachada que
parecia colada ao chão, excepto quanto ao arquear do dorso
lustroso, quando se dispunha a saltar. A cauda estava agora
imóvel, estendida. Por instantes ficou assim, como
transformada em pedra, e então, com um rugido terrível,
saltou.
Sabor, a leoa, era hábil caçadora. Para alguma criatura
menos experiente... o alarme do feroz rugido, ao saltar, teria
parecido tolo - pois mais fácil parecia ser se caísse sobre as
vítimas sem aquele grande brado. Mas Sabor conhecia a
espantosa rapidez das criaturas da selva,

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e a sua quase inacreditável acuidade de ouvido. Sabia que não
podia dar tal salto sem fazer algum ruído. Assim, o rugido não
era um aviso. Pelo contrário, soltava-o para paralisar pelo
terror as suas vítimas, durante a fracção de instante
necessária para que as poderosas garras se cravassem na carne
macia, segurando-as sem esperança de fuga. Pelo que se referia
ao gorila, a táctica de Sabor era correcta. O pequeno animal
encolheu-se, trémulo, apenas por um momento, mas esse momento
foi-lhe fatal. Não aconteceu o mesmo com Tarzan, filho de
homem. A sua vida entre os perigos da selva ensinara-o a
enfrentar confiadamente as emergências, e a sua inteligência
superior dava-lhe uma rapidez de acção mental muito para além
das possibilidades dos gorilas. Assim, o rugido de Sabor, a
leoa, galvanizou instantâneamente e ao mesmo tempo os músculos
e o cérebro de Tarzan. Na sua frente tinha as águas profundas
do lago, atrás dele tinha a morte imediata nas garras e nas
presas da leoa.
Tarzan sempre detestara a água, a não ser como meio de
saciar a sede. Detestava-a porque a ligava com o frio e
desconforto das chuvas torrenciais, que ele temia por causa
dos trovões e relâmpagos que as acompanhavam. Tinha sido
ensinado, pela sua mãe adoptiva, a evitar as águas profundas
do lago, e ele próprio vira Neeta, a pequena macaca,
desaparecer sob aquela superfície calma, para nunca mais
regressar à sua tribo.

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Mas, dos dois males, a sua mente rápida prontamente escolheu
o menor, e mal a leoa começara a soltar o seu rugido, antes de
ter transposto em voo metade da distância do seu salto, já
Tarzan sentia fecharem-se sobre a sua cabeça as águas frias do
lago. Não sabia nadar e a água era muito funda, mas assim
mesmo Tarzan não perdeu a confiança em si próprio, nem a
reserva de recursos que eram a marca da sua superioridade como
criatura. Rapidamente, por instinto, moveu as mãos e os pés,
numa tentativa para voltar à superfície, e com certeza mais
por acaso do que por intenção, repetiu os movimentos de um cão
quando cai na água. Dentro de curtos segundos tinha o nariz
fora de água e descobria que podia manter-se assim se
continuasse a mover-se. Podia mesmo avançar na superfície do
lago. Ficou surpreendido e contente com aquela nova
possibilidade adquirida tão inesperadamente, mas não dispunha
de tempo para pensar nisso.
Pôs-se a nadar paralelamente à margem, e assim pôde ver a
fera que tentara apanhá-lo e estava agora curvada sobre o
vulto imóvel do seu companheiro. A leoa observava atentamente
Tarzan, decerto à espera de que ele voltasse para terra, mas o
rapaz não tinha a menor intenção de o fazer. Em vez disso
levantou a voz, no apelo comum à sua tribo, acrescentando um
aviso que impediria os possíveis salvadores de caírem nas
garras de Sabor.
Quase imediatamente veio uma resposta, da distância, e logo
depois quarenta ou cinquenta grandes gorilas saltavam rápida e
majestosamente por entre as árvores, aproximando-se do cenário
da tragédia.

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À frente vinha Kala, que reconhecera a voz do seu filho
preferido, e com ela a mãe do pequeno gorila que jazia morto
sob o corpo fulvo de Sabor.
Embora mais forte, e mais poderosamente armada para a luta
do que os grandes macacos, a leoa não tinha o menor desejo de
enfrentar os furiosos adversários. Com um grunhido feroz,
saltou rapidamente para o mato e desapareceu. Tarzan nadou
então para terra e içou-se. A sensação de frescura e de
exaltação que a água fria lhe havia comunicado, enchia-lhe o
corpo, com grata surpresa. Daí por diante nunca mais perdeu a
oportunidade de mergulhar no lago, no rio, ou mesmo no mar
quando isso lhe era possível.
Durante muito tempo Kala não se habituou a tal coisa. Embora
os gorilas possam nadar quando forçados a isso, não gostam de
entrar na água e nunca o fazem voluntariamente.
A aventura com a leoa deu a Tarzan assunto para agradáveis
recordações. Eram casos assim que quebravam a monotonia da sua
vida quotidiana - que de outra maneira consistia num ciclo
fechado e sem interesse, feito de procurar comida, comer e
dormir.
A tribo a que Tarzan pertencia habitava um território que,
grosseiramente, se alongava por umas vinte e cinco milhas de
costa, alargando-se cerca de cinquenta milhas para o interior.
Percorriam quase continuamente essa extensão, embora por vezes
se demorassem, durante meses, num mesmo local. Mas, quando se
deslocavam a grande velocidade por entre as árvores,

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era frequente percorrerem todo o território em poucos dias.
o território muito dependia de abastecimentos de comida,
condições de clima e existência de animais das espécies mais
perigosas. Todavia, Kerchak muito frequentemente os guiava em
longas marchas, pela simples razão de estar cansado de
permanecer no mesmo sítio. De noite, dormiam no sítio onde se
encontravam quando a escuridão os envolvia estendidos no chão,

algumas vezes cobrindo a cabeça, e mais raramente o corpo,
com grandes folhas de palmeira. Dois ou três podiam aninhar-se
uns nos outros, para terem mais calor se as noites eram frias,
e assim Tarzan dormira nos braços de Kala, todas as noites
durante aqueles anos. Que o grande animal amava aquela cria de
outra raça, era indiscutível; por seu lado, Tarzan dava à
grande macaca todo o afecto que teria pertencido a sua mãe, se
esta vivesse. Quando ele se mostrava desobediente, Kala
castigava-o sem todavia ser cruel
e muito mais frequentemente o acariciava do que o punia.
Tublat, o companheiro de Kala, sempre odiara Tarzan, e em
várias ocasiões estivera prestes a pôr termo à sua jovem
carreira. Por sua vez, Tarzan nunca perdia a oportunidade de
mostrar que correspondia exactamente aos sentimentos de Tublat
e quando podia, sem risco, irritá-lo, ou fazer-lhe caretas, ou
insultá-lo, não o poupava. Encontrava sempre refúgio nos
braços de Kala ou nos altos ramos das árvores.

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A sua superior inteligência, e astúcia, permitiam-lhe
inventar dezenas de ardis diabólicos para atormentar a vida de
Tublat. Desde pequeno que aprendera a fazer cordas, torcendo e
entrelaçando as longas ervas, e com essas cordas fazia cair
Tublat, frequentemente, ou tentava enforcá-lo trepando às
ramadas das árvores.
Brincando com as cordas, e experimentando-as, Tarzan
aprendera também a fazer nós de correr, com os quais se
divertia em companhia dos jovens macacos. Um dia, ao brincar
assim, Tarzan tinha lançado a sua corda sobre um dos outros,
que tentava escapar-se. A corda, que ele atirara mantendo na
mão a outra extremidade, caiu por acaso sobre a cabeça do
gorila fugitivo, o que fez com que este parasse bruscamente,
surpreendido. Os jovens macacos tentavam sempre imitar Tarzan,
mas sem o conseguir porque lhes faltava astúcia e habilidade.
Ao verificar o êxito da sua brincadeira, Tarzan pensou que
aquele jogo podia em verdade ter interesse, e durante semanas
de aturado treino aprendeu a dominar a arte de atirar o laço.
Foi a partir de então que a vida de Tublat se transformou num
pesadelo constante. De dia ou de noite, quando dormia ou
quando caminhava, nunca sabia quando o maldito laço silencioso
caía sobre ele, e lhe apertava o pescoço, e quase o sufocava.
Kala castigava, Tublat resmungava ameaças da vingança, e o
velho Kerchak, avisado, interveio e ameaçou também. Mas de
nada serviu. Tarzan desafiava-os, a todos, e o nó corredio,
delgado mas forte, continuava a cair sobre o pescoço de Tublat

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quando este menos o esperava.
Os outros macacos divertiam-se largamente ante a raiva de
Tublat, porque este era um velho desagradável a quem ninguém
estimava. No cérebro ágil de Tarzan agitavam-se muitos
pensamentos e por detrás dos pensamentos surgia pouco a pouco
a dádiva divina da razão.
Se ele podia apanhar os gorilas com a sua longa corda feita
de ervas entrançadas, por que motivo não poderia apanhar
Sabor, a leoa?
Era o embrião de uma ideia que, todavia, estava destinada a
girar na sua mente, no subconsciente e no consciente, até
aparecer como uma conquista magnífica.
Mas isso aconteceu anos depois.

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CAPÍTULO 6

Lutas na selva

O vagabundear da tribo levava-os frequentemente perto da
barraca fechada e silenciosa a curta distância da praia e em
frente da angra natural. Para Tarzan, era sempre uma fonte de
interminável mistério e prazer.
Espreitava pelas janelas que as cortinas tapavam
interiormente, ou subia ao telhado e tentava ver através

61

das profundidades escuras da chaminé, numa tentativa sempre vã
para sondar as desconhecidas maravilhas que deviam estar
dentro daquelas fortes paredes. A sua imaginação ainda
infantil criava estranhas criaturas, lá dentro, e a
impossibilidade de forçar a entrada ampliava mil vezes o seu
desejo de entrar. Experimentava o telhado e as janelas durante
horas, tentando descobrir a maneira de desvendar o segredo,
mas pouca atenção prestava à porta porque lhe parecia tão
sólida como as paredes.
Foi na primeira visita às vizinhanças, depois da aventura
com Sabor, que, ao aproximar-se da barraca, Tarzan notou,
ainda a distância, que a porta parecia independente da parede
a que estava ligada, e pela primeira vez lhe ocorreu a ideia
de experimentar, por ali, forçar a entrada que nunca pudera
conseguir.
Estava sozinho, o que lhe acontecia muitas vezes quando
visitava a barraca, visto que os gorilas não gostavam daquele
lugar. A história do pau negro e trovejante nada perdera pelo
facto de ser repetidas vezes contada durante mais de dez anos,
e cercara a barraca deserta, do homem branco, de uma atmosfera
de fantasmagoria e pavor para os macacos.
A história da sua própria ligação com a barraca, nunca fora
contada a Tarzan. A linguagem dos macacos tinha um vocabulário
extremamente pobre, de forma que eles mal podiam falar do que
tinham visto ali, sem palavras para descreverem com exactidão
as estranhas pessoas e as coisas que lhes pertenciam. Assim,
muito antes de Tarzan chegar à idade de compreender,

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a narrativa conservava apenas os aspectos fantásticos, esses
em plena força, mas os pormenores começavam a ser esquecidos.
Só muito vagamente Kala explicara ao seu filho adoptivo que o
pai dele era um estranho macaco branco, mas nunca sequer lhe
dera a entender que a mãe não teria sido ela própria.
Assim, desta vez, Tarzan encaminhou-se directamente para a
porta e durante horas mexeu nos gonzos, no puxador e na parte
exterior do fecho. Por fim, de repente, encontrou a exacta
combinação de movimentos e a porta rangeu, abrindo-se diante
dos seus olhos pasmados.
Durante minutos não se atreveu a entrar, mas quando os seus
olhos se habituaram à obscuridade interior, avançou
cautelosamente, devagar.
No meio do chão estava um esqueleto - todos os vestígios de
carne desaparecidos dos ossos aos quais se agarravam ainda
pedaços bolorentos que tinham sido roupas. Sobre a cama jazia
outro esqueleto, embora bastante menor, e num pequeno berço um
terceiro amontoado de ossos, de uma criatura muito pequena. A
todas essas provas de uma tragédia ocorrida muitos anos antes,
Tarzan dedicou apenas uma atenção fugidia. A sua vida selvagem
tinha-o habituado a ver animais mortos ou moribundos. e mesmo
que tivesse sabido que aqueles restos pertenciam a seu pai e
sua mãe, o facto não o impressionaria muito mais. O que atraiu
a sua atenção foi o mobiliário e o resto do conteúdo da
barraca. Examinou minuciosamente várias coisas -,

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estranhas ferramentas e armas, livros, papel, roupas - o pouco
que conseguira resistir à passagem do tempo e à humidade do
ar, tão perto da praia. Abriu as malas e armários, coisas que
não surpreenderam a sua pequena experiência, e aí encontrou
objectos muito mais bem conservados. Entre outras coisas
descobriu uma faca de caça, bem afiada, com cuja lâmina logo
fez uma incisão num dedo. Sem se perturbar com isso, continuou
as suas experiências e verificou que podia cortar pedaços de
madeira da mesa e das cadeiras, com o seu novo brinquedo.
Durante algum tempo isso divertiu-o, mas por fim, fartando-se,
continuou a sua exploração. Num armário cheio de livros,
encontrou um com imagens ricamente coloridas - era um alfabeto
ilustrado, para crianças.
A. é de arqueiro Que o arco dispara.
B. é de boneca Que se chama Sara.
Os desenhos interessaram-no grandemente. Viu muitos
"macacos" com caras semelhantes à sua, e mais longe, na letra
"M", viu macaquinhos pequenos como aqueles que todos os dias
encontrava, saltando entre as ramadas da sua floresta
primitiva. Mas em parte alguma encontrou ilustrações que
lembrassem os da sua própria tribo; em todo o livro, nada
havia de semelhante a Kerchak, a Tublat ou a Kala.
Ao princípio tentou tirar das páginas as pequenas figuras,
mas logo compreendeu que não eram reais, embora não soubesse o
que poderiam ser e não tivesse palavras para as descrever. Os
barcos, e comboios, e vacas, e cavalos,

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não tinham qualquer significação para ele, mas todavia não lhe
pareceram tão intrigantes como as estranhas figurinhas que
apareciam abaixo e entre os desenhos coloridos - deviam ser
insectos, talvez, porque muitos tinham pernas, mas não
encontrou um só que tivesse olhos e boca. Era o seu primeiro
contacto com o alfabeto. e tinha mais de dez anos.
Evidentemente que nunca vira, antes, caracteres impressos,
nem falara com qualquer criatura viva que tivesse a menor
ideia sobre a existência de linguagem escrita. Não sabia que
fosse possível ler. Por isso não admirava que não pudesse
fazer qualquer ideia sobre a significação daquelas estranhas
figuras.
A cerca do meio do livro descobriu a sua velha inimiga,
Sabor, a leoa, e mais adiante viu Histah, a serpente. Aquilo
era maravilhoso e absorvente! Nunca antes, nos seus dez anos
de vida, encontrara uma coisa que lhe desse tanto prazer. E
tão absorvido estava que não notou a aproximação da noite
senão quando a escuridão já não lhe permitia ver.
Pôs o livro no armário onde o encontrara e fechou-o, porque
não queria que outro encontrasse e destruísse o seu tesouro.
Então saiu, na sombra crescente, e fechou a grande porta da
barraca tal como estivera antes de ele descobrir o segredo do
ferrolho. Mas, antes de sair, viu a faca que tinha atirado
para o chão, e levou-a consigo para a mostrar aos
companheiros.
Mal havia dado uma dúzia de passos na direcção da selva,

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quando um grande vulto surgiu diante dele, vindo das sombras
do matagal baixo. Ao princípio Tarzan julgou que era um dos
seus, mas imediatamente reconheceu Bolgani, o grande
chimpanzé. O vulto estava tão perto que não havia
possibilidade de fugir, e o rapaz compreendeu que tinha de
lutar pela sua vida. Sabia que os chimpanzés eram inimigos
mortais da sua tribo, e que nunca pediam nem davam quartel.
Se Tarzan fosse um gorila adulto, como os da sua idade na
tribo de Kerchak, teria sido mais do que bastante para
enfrentar o adversário. Mas era apenas um rapaz inglês, embora
espantosamente forte e corajoso, e poucas eram as suas
probabilidades de vencer o seu feroz antagonista. Nas suas
veias, porém, corria o sangue de uma raça de lutadores, e a
apoiar isso tinha o treino da sua curta vida entre os grandes
animais da selva.
Não conhecia o medo, e se o seu coração batia mais apressado
era apenas pela excitação da aventura. Se Lhe tivesse surgido
a oportunidade, teria sem dúvida fugido, porque o seu
entendimento lhe dizia que o antagonista era muito mais
poderoso do que ele. Mas esse entendimento dizia-lhe também
que não podia fugir, e assim dispôs-se ao combate, sem receio.
Foi ao encontro de Bolgani no momento em que este atacava,
batendo-lhe com os punhos fechados - tão inutilmente como se
fosse um insecto a bater num elefante. Mas tinha ainda na mão
a faca de caça que encontrara na barraca, e quando a fera
tentou agarrá-lo para o esmagar,

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o acaso fez com que Tarzan voltasse a lâmina na direcção do
grande peito peludo. Quando a faca lhe penetrou profundamente
no corpo, o chimpanzé gritou de dor e de raiva.
Mas agora o rapaz aprendera, nesse breve segundo, a usar
aquele brinquedo agudo e rebrilhante, de modo que, quando
Bolgani o arrastou para o chão, cravou-lhe a lâmina repetidas
vezes no peito, até ao cabo. O chimpanzé lutava à maneira da
sua raça, desferindo grandes pancadas com as mãos abertas e
mordendo com os grandes dentes. Por momentos rolaram no chão,
na fúria do combate. Tarzan continuava a vibrar golpes com a
faca, mas perdia sangue por muitas feridas e o seu braço tinha
cada vez menos força. Por fim, com uma convulsão espasmódica,
Tarzan, o jovem Lord Greystoke, ficou sem sentidos sobre o
terreno.
A uma milha de distância, na floresta, a tribo escutara os
gritos do chimpanzé. Como era hábito quando algum perigo os
ameaçava, Kerchak reuniu o seu grupo, em parte para mútua
defesa contra um inimigo comum, e noutra parte porque o
chimpanzé podia ter outros companheiros. Kerchak queria também
ver qual dos seus andava ainda por fora.
Em breve descobriram que Tarzan faltava, e Tublat opôs-se a
que fossem em socorro dele. O próprio Kerchak não gostava do
pequeno animal branco
de maneira que deu ouvidos a Tublat e, com um encolher dos
grandes ombros, voltou a estender-se sobre o monte de folhas
onde fizera a sua cama.

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o
Kala não pensava da mesma maneira. De facto, apenas soubera
que Tarzan estava ausente, lançara-se quase em voo, de ramo em
ramo, na direcção do ponto de onde vinham ainda os gritos do
chimpanzé. Tinha anoitecido completamente, mas a lua nascente
projectava a sua claridade pálida, recortando estranhas
sombras na floresta, contribuindo para dar um aspecto
fantástico à escuridão.
Como um grande fantasma, Kala avançava silenciosamente,
saltando de árvore em árvore, aproximando-se do cenário da
tragédia, que o seu instinto lhe dizia não ser longe. Os
gritos do chimpanzé diziam claramente que ele estava a travar
uma luta de morte com algum outro habitante da selva. Mas de
repente os gritos cessaram e um silêncio de morte pesou na
floresta.
Kala não compreendia, porque a voz de Bolgani nos últimos
gritos, traduzia a agonia do fim, mas nenhum som tinha vindo
pelo qual a macaca pudesse determinar a natureza do
adversário. Que o seu pequeno Tarzan pudesse ter vencido o
enorme chimpanzé, parecia-lhe impossível. Assim, ao chegar
perto do ponto de onde tinham vindo os ecos da luta, passou a
mover-se mais devagar e com extrema cautela, curvando-se sob
os ramos baixos e espreitando a escuridão manchada aqui e além
pelos raios do luar que passavam por entre o dossel de
folhagem.
Foi então que viu, num pequeno espaço descoberto, iluminado
pela lua, o seu pequeno Tarzan, caído e coberto de sangue, e
junto dele o corpo de um grande chimpanzé morto. Com um grito
rouco, Kala correu para Tarzan e tomou-o nos braços,

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apertando-o contra o peito e espiando algum sinal de vida.
Ouviu-o.
ouviu o fraco bater do pequeno coração.
Ternamente, levou-o de volta através da selva escura, até ao
ponto onde estava a tribo, e durante muitos dias e muitas
noites manteve-se ao lado dele, levando-lhe água e comida - e
afastando as moscas e outros insectos que queriam poisar nas
feridas. Nada podia fazer, além disso, a não ser lamber essas
feridas e conservá-las limpas, para que a natureza pudesse
exercer mais depressa a sua acção cicatrizante.
Nos primeiros dias Tarzan não quis comer, agitando-se a
espaços no delírio da febre. Tudo o que pedia era água, que
Kala lhe levava da única maneira que podia - na sua própria
boca. Nenhuma outra mãe, mesmo humana, poderia ter mostrado
maior dedicação e espírito de sacrifício do que aquela macaca
gigantesca, pelo pequeno órfão estranho que o destino confiara
à sua guarda. Por fim, a febre desceu e as feridas começaram a
cicatrizar. Nenhum queixume escapou dos lábios de Tarzan,
embora, por vezes, as dores fossem intensas. Uma dentada do
chimpanzé arrancara-lhe carne do peito, e três costelas haviam
sido quebradas pelas pancadas. Um braço fora cruelmente
mordido, também, e no pescoço mostrava arranhões fundos.
Com o estoicismo das criaturas que o haviam recolhido,
Tarzan suportava em silêncio o sofrimento, preferindo
arrastar-se para longe dos outros a deixá-los ver como estava.
Só o alegrava a companhia de Kala,

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mas agora ela demorava-se mais quando saía de junto dele, em
busca de comida. Durante dias e dias, o pobre animal só comera
o suficiente para se aguentar vivo, enquanto Tarzan tinha
estado pior, e em consequência disso ficara reduzido a uma
sombra de si mesmo.

CAPÍTULO 7

A luz do entendimento

Depois do que lhe pareceu uma eternidade, Tarzan voltou a
sentir-se com forças para andar, e a partir desse momento a
sua recuperação foi tão rápida que, ao cabo de mais um mês,
estava tão forte e activo como sempre. Durante a convalescença
tinha longamente meditado na sua luta com o chimpanzé, e a sua
primeira ideia foi ir procurar a maravilhosa arma que o
transformara, de pequena criatura indefesa, em vencedor de um
dos gigantes da selva. Estava também ansioso por voltar à
barraca e continuar a investigar as surpreendentes coisas que
lá havia.
uma manhã cedo, partiu sozinho para realizar o seu desejo.
Depois de uma breve busca encontrou os ossos, limpos de carne,
do seu adversário, e perto deles, meio escondida sob as folhas
caídas, achou a faca vermelha agora de ferrugem em
consequência da humidade do terreno e do sangue seco do
chimpanzé.

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Não gostou da modificação que via na arma, anteriormente
clara e rebrilhante, mas assim mesmo era uma arma formidável
que ele pensava usar com vantagem quando a ocasião se
apresentasse. Tinha em mente que não mais voltaria a fugir
diante dos ataques de Tublat.
Um momento depois estava diante da barraca e em poucos
minutos conseguiu manobrar o fecho e entrar. A sua primeira
ocupação foi estudar o mecanismo desse fecho, o que fez
examinando-o atentamente com a porta aberta. Queria saber
precisamente por que razão segurava o batente, e por que meios
o soltava quando ele lhe mexia. Descobriu então que podia
fechar a porta pelo lado de dentro
e foi o que fez para não correr o risco de ser molestado
durante as suas investigações. Começou uma busca sistemática
na barraca, mas a sua atenção não tardou a ser atraída para os
livros que pareciam exercer sobre ele uma estranha e poderosa
influência. Deixou tudo o mais para se dedicar apenas ao
quebra-cabeças que os livros significavam para ele. Para que
serviam, e que havia neles?
Entre os outros livros havia uma cartilha, alguns de
primeiras leituras para crianças, numerosos volumes ilustrados
e um grande dicionário. Examinou todos eles, mas foram as
ilustrações que mais o atraíram - embora os estranhos sinais
que cobriam as páginas, nos sítios onde não havia desenhos,
excitassem o seu pasmo e provocassem meditação profunda.

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Agachado sobre a mesa, na barraca que seu pai construíra - o
corpo moreno, nu e macio, curvado sobre os livros que segurava
nas mãos - deixava que o comprido cabelo negro lhe pendesse
para a cara, emoldurando a cabeça bem formada e os olhos
brilhantes e inteligentes. Nessa posição, Tarzan dos Macacos
representava uma imagem estranha e ao mesmo tempo cheia de
promessas, uma figura alegórica de primitivo abrindo o seu
caminho das trevas da ignorância para a luz do entendimento.
A sua face pequena estava tensa, absorta no estudo, porque
apanhara em parte, de uma forma nebulosa e vaga, os rudimentos
de uma ideia que talvez fosse a chave, a solução para o enigma
dos estranhos sinais. Tinha agora nas mãos uma cartilha,
aberta na página onde havia a imagem de um pequeno macaco
semelhante a ele mas coberto, com excepção das mãos e da cara,
por uma estranha pelagem colorida - assim Tarzan supunha serem
as calças e o casaco da figura. Sob a imagem havia cinco
pequenos sinais: "RAPAZ" E agora verificava que, no texto ao
alto da página, esses sinais eram repetidos várias vezes, por
vezes isolados mas, mais frequentemente, reunidos com outros.
ou na mesma sequência em que estavam sob a gravura.
Lentamente, foi folheando o livro, observando os desenhos e o
texto em busca da repetição exacta dos cinco sinais r-a-p-a-z.
Veio a encontrar essa repetição sob um desenho onde outro
pequeno macaco e um animal de quatro patas,

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bastante parecido com um chacal apareciam ao lado
um do outro. Os sinais eram:
"O RAPAZ E O CÃO". Ali estavam, os cinco sinais juntos que
sempre acompanhavam a figuração do pequeno macaco. E assim
Tarzan começou a progredir, muito lentamente - porque era uma
árdua e difícil tarefa essa a que se dedicara sem a conhecer,
uma tarefa que poderia parecer impossível a qualquer pessoa
civilizada, a de aprender a ler sem ter o mais ligeiro
conhecimento dos caracteres da linguagem ou da escrita, a mais
leve ideia de que tal coisa sequer existia.
Não o conseguiu num dia, nem numa semana, ou num mês, ou num
ano; mas devagar, muito devagar, aprendeu, depois de ter
compreendido as possibilidades latentes naqueles estranhos e
pequenos sinais, de maneira que, aos quinze anos, conhecia as
várias combinações de letras que indicavam cada imagem na
cartilha e em um ou dois dos livros de ilustrações. Não tinha,
decerto, nem a mais vaga ideia do uso de artigos e conjunções,
verbos ou pronomes de qualquer género.
Um dia, quando contava doze anos, achara uma porção de lápis
numa gaveta até então inexplorada, sob a mesa, e ao roçar um
deles no tampo da mesa ficara encantado ao notar a linha preta
que o lápis deixava ao passar. Trabalhou tão assiduamente que
a mesa não tardou a ficar coberta de círculos e linhas
irregulares, e a ponta do lápis completamente gasta até à
madeira.

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Então pegou noutro lápis, mas desta vez tinha em vista um
objectivo definido - tentar reproduzir os pequenos sinais que
existiam nas páginas dos livros. Era uma tarefa difícil,
porque segurava o lápis como alguém poderia segurar o cabo de
um punhal, o que não ajuda grandemente a escrever de maneira
legível.
Mas perseverou durante meses, sempre que lhe era possível ir
à barraca, até que por fim, à custa de repetidas experiências,
descobriu a melhor maneira de agarrar o lápis de forma a poder
dirigi-lo - e conseguiu reproduzir todos os pequenos sinais.
Assim começou a escrever.
Ao copiar os sinais aprendeu também outra coisa: o seu
número. Embora não soubesse contar como nós o fazemos, tinha
no entanto uma ideia de quantidade; a base dos seus cálculos
era o número de dedos de uma das suas mãos. As suas pesquisas,
nos vários livros, convenceram-no de que descobrira todas as
diferentes formas de sinais mais frequentemente repetidos em
combinações, e dispô-los em ordem com grande facilidade, em
consequência das inúmeras vezes em que observara o fascinante
alfabeto na cartilha. A sua educação progredia, mas as mais
importantes descobertas foram feitas na inextinguível reserva
do grande dicionário ilustrado, pois aprendia mais por meio de
imagens do que pelos textos, mesmo depois de ter apanhado a
significação dos sinais.
Quando descobriu a disposição das palavras por ordem
alfabética, deliciou-se a procurar as combinações

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que lhe eram familiares, e as palavras que as acompanhavam,
nas definições, levaram-no mais para a frente no matagal da
erudição.
Aos dezassete anos tinha aprendido a ler a cartilha, o livro
de primeiras leituras, e compreendera totalmente a verdadeira
e maravilhosa utilidade dos pequenos sinais. Deixou de se
sentir envergonhado do corpo sem pêlos ou da fisionomia
humana, pois agora a razão dizia-lhe que pertencia a uma raça
diferente da dos seus selváticos e peludos companheiros. Era
um H-O-M-E-M, eles eram M-A-C-A-C-O-S, a velha Sabor era uma
L-E-O-A, Histah uma S-E-R-P-E-N-T-E e Tabor era um
E-L-E-F-A-N-T-E. E assim aprendeu a ler.
A partir de então o progresso foi mais rápido. Com a ajuda
do grande dicionário e a activa inteligência de uma mente sã,
dotada, por herança, de um poder de raciocínio acima da média,
argutamente adivinhava muita coisa que não podia realmente
compreender, e era frequente que as suas hipóteses
correspondessem à verdade ou estivessem muito perto dela.
Havia grandes intervalos no seu estudo, causados pelos
hábitos errantes da sua tribo, mas mesmo quando estava longe
dos seus livros o cérebro activo
continuava a aprofundar os mistérios que o fascinavam. Cascas
de árvores, folhas lisas e até superfícies de terreno plano,
forneciam-lhe possibilidades de desenhar, com a ponta da sua
faca de caça, as lições que ia aprendendo. No entanto não
descuidava os mais duros deveres da sua vida, para seguir a
sua tendência de decifrar os mistérios dos livros.

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Continuava a treinar-se com a corda e brincava com a faca;
aprendera a manter a faca bem afiada, esfregando-a sobre
pedras lisas que molhava no rio ou no lago.
A tribo crescera desde que Tarzan viera para junto dos
gorilas, visto que, sob a chefia de Kerchak, haviam conseguido
assustar e expulsar as outras tribos, para fora daquela vasta
zona de florestas. Assim tinham abundância de comida e poucas
ou nenhumas incursões de vizinhos. Desta forma os jovens
machos tinham-se tornado adultos e, considerando mais cómodo
escolher companheiras na própria tribo, cresciam e
multiplicavam-se. Se capturavam uma fêmea de outra tribo,
traziam-na para o grupo de Kerchak, preferindo viver em boa
amizade com ele a estabelecerem-se por si mesmos ou
disputar-lhe a supremacia.
Por vezes, algum gorila mais feroz do que os seus
companheiros gostaria de tentar esta última alternativa, mas
nenhum aparecera ainda que pudesse derrotar o enorme e
ferocíssimo animal.
Tarzan tinha uma posição especial e peculiar, na tribo.
Pareciam considerá-lo como um deles, embora de certa maneira
diferente. Os machos mais velhos ignoravam-no por completo, ou
de tal modo o odiavam que, sem a sua espantosa rapidez, e
agilidade, e a protecção resoluta de Kala, decerto ele teria
sido eliminado em anos anteriores. Tublat era o seu inimigo
mais persistente, e no entanto foi através de Tublat que,
cerca dos treze anos, a perseguição dos que odiavam Tarzan

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cessou subitamente e ele foi deixado em paz, a não ser quando
algum dos outros endoidecia, possuído por uma daquelas fúrias
doidas e violentas que atacam os machos de muitas das mais
ferozes raças da selva. Nessas alturas ninguém estava seguro.
No dia em que Tarzan estabeleceu o seu direito a ser
respeitado, a tribo estava instalada num pequeno anfiteatro
natural que a selva deixara livre do encadeamento de lianas e
mato, numa depressão entre colinas baixas. O espaço aberto
tinha uma forma quase circular. Em volta erguiam-se os
poderosos gigantes da floresta virgem, e o chão, atapetado de
folhas, estava de tal maneira rodeado pelos troncos e pelo
mato, que a única entrada para a espécie de arena era através
dos ramos mais altos das árvores.
Aí, ao abrigo de inimigos, se reunia muitas vezes a tribo.
No meio do anfiteatro havia um desses estranhos montes de
terra, em forma de tambor, que os antropóides constroem para a
celebração de ritos especiais - tambores cujo som alguns
homens têm ouvido na espessura, mas ritos que nenhuma criatura
humana testemunhou ainda.
Alguns viajantes têm encontrado esses tambores dos grandes
macacos, e têm ouvido o som estranho das selváticas reuniões
desses senhores da floresta, mas Tarzan, Lord Greystoke, é sem
dúvida o único homem que tomou parte na feroz e enlouquecedora
festa do Dum-Dum.

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Desses primitivos ritos nasceram, decerto, muitos dos
aspectos dos modelos cerimoniais, porque através dos
incontáveis séculos, para além das últimas fronteiras da
humanidade nascente, os nossos ferozes e peludos antepassados
dançavam os rituais do Dum-Dum, ao ritmo dos tambores de
terra, sob a luz brilhante da lua tropical, nas profundidades
de selvas que continuam ainda imutáveis, iguais ao que eram
nos vagos e inimagináveis cenários de um passado morto e
esquecido.
No dia em que Tarzan conquistou a sua emancipação
definitiva, livrando-se das perseguições de que fora vítima
durante doze dos seus treze anos de vida, a tribo, agora
composta por uma centena de animais, avançara silenciosamente
entre as ramadas mais baixas das árvores da floresta, até
alcançar o anfiteatro.
Os ritos do Dum-Dum marcavam importantes acontecimentos na
vida da tribo - uma vitória, a captura de um inimigo, a morte
de alguma das poderosas feras da selva, a queda ou ascensão de
um rei.
E havia uma série de cerimónias. Naquele dia era a morte de
um gorila gigantesco, de outra tribo, e quando o povo de
Kerchak entrou na clareira, dois poderosos machos
transportavam o corpo do adversário vencido.
Depuseram o fardo diante do tambor de terra e sentaram-se ao
lado dele, como guardas, enquanto outros membros da comunidade
se instalavam sobre a erva espessa, para dormirem até que a
lua, subindo, desse o sinal para começarem a selvática orgia.
Durante horas reinou um silêncio quase total na clareira,

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apenas perturbado pelos gritos discordantes de alguns
papagaios de coloridas penas, ou pela passagem, por vezes
ruidosa, de centenas de outras aves da floresta que procuravam
o seu alimento entre as árvores musgosas.
Por fim, os grandes macacos começaram a agitar-se e em breve
formaram vasto círculo em volta do tambor de terra. As fêmeas
e as crias alinhavam-se também em círculo, atrás dos
primeiros.
Diante do tambor estavam três fêmeas velhas, cada uma delas
empunhando um ramo nodoso e comprido.
Lentamente, suavemente, as três fêmeas começaram a bater na
superfície ressoante do tambor
aumentando a frequência e a força das pancadas até atingirem
um ritmo selvagem e alucinante, cujo som devia ouvir-se a
muitas milhas de distância. Grandes feras suspenderam as suas
caçadas nocturnas, levantando a cabeça e enristando as
orelhas, para escutarem o grande rumor que indicava o Dum-Dum
dos gorilas.
Por vezes, uma dessas feras soltava o seu poderoso rugido,
como em resposta ao violento desafio dos antropóides, mas
nenhuma se aproximou para investigar ou atacar, pois os
gorilas, reunidos em todo o poder do número, enchiam de
respeito os outros habitantes da selva.
Quando o som do tambor subiu até se tornar ensurdecedor,
Kerchak saltou para o espaço aberto entre os machos de guarda
e as fêmeas que faziam ressoar o tambor. De pé, inclinou a
cabeça para trás e fitou os olhos ferozes na lua que surgia
acima das copas das árvores, ao mesmo tempo que batia,

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com os punhos fechados, no largo peito, e soltava os seus
gritos rugidores e apavorantes. Uma vez, duas, três vezes o
terrível grito ecoou na solidão. Então, curvando-se, Kerchak
correu silenciosamente em volta do círculo aberto,
afastando-se do corpo morto que estava poisado em terra - mas
sem que os seus olhos cruéis e malévolos deixassem de o fitar.
Outro macho pulou para a arena e, repetindo os brados
horríveis do rei, seguiu atrás dele. Outro e outro foram-nos
acompanhando, numa sucessão rápida, até que toda a selva
parecia ressoar com os repetidos e ferozes gritos.
Era o desafio e a caçada.
Quando todos os machos adultos se juntaram à linha dos que
giravam, dançando, o ataque começou. Kerchak, empunhando um
formidável cacete de entre uma porção deles, que tinham sido
antes reunidos, correu para o gorila morto e desferiu um
tremendo golpe, emitindo os grunhidos e rugidos de combate.
O soar do tambor era cada vez mais rápido e forte, e os
guerreiros, tendo vibrado cada um o seu golpe sobre o vencido,
juntavam-se à frenética ronda da Dança da Morte. O ritmo dos
tambores, agora infernal, parecia embriagá-los. Gritando
sempre, davam pulos enormes e rápidos. As presas surgiam nas
que se abriam ferozmente, e os grandes lábios, bocas e os
peitos, cobriam-se de espuma.
Durante meia hora a espantosa dança continuou, até que, a um
sinal de Kerchak, o som do tambor cessou bruscamente e as
velhas fêmeas fugiram, apressadas, para se refugiarem no
círculo exterior.

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Então os grandes machos lançaram-se, ao mesmo tempo, sobre o
que restava do inimigo cujo corpo havia sido transformado,
pelos golpes, numa repugnante massa sanguinolenta. Era difícil
apanharem carne em quantidade suficiente, de maneira que o
final adequado da orgia selvagem consistia em devorarem o
inimigo morto.
Grandes presas se cravavam na carcaça, rasgando grandes
pedaços de carne. Os mais poderosos apanhavam os bocados
melhores, enquanto as fêmeas, no círculo exterior, gritavam em
conjunto, esperando a sua oportunidade de se meterem e
arrancarem alguma diminuta febra ou um osso que pudessem roer
antes que tudo desaparecesse.
Tarzan, mais do que os gorilas, desejava e precisava comer
carne. Descendente de uma raça de carnívoros, nunca na sua
vida pudera satisfazer o seu apetite. Assim, naquele momento,
o seu corpo ágil e moreno deslizou entre o amontoado de
esfomeados gorilas, numa tentativa para obter um quinhão que
não poderia disputar pela força bruta. No flanco, metida numa
bainha que construíra toscamente - copiando uma das imagens
dos seus livros - levava a faca de mato que pertencera ao seu
desconhecido pai.
Por fim conseguiu chegar junto dos restos da carne que ia
desaparecendo rapidamente, e a lâmina da faca cortou um pedaço
maior do que ele teria podido esperar, um antebraço inteiro
que o poderoso KErchak tinha reservado para si e sobre o qual
poisara um dos grandes pés.

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Mas Kerchak estava tão absorvido pela função de devorar, que
não notou esse crime de lesa-majestade.
Assim, Tarzan emergiu da massa de grandes corpos peludos,
apertando contra o peito a sua presa. Entre os que estavam
atrás, tentando abrir caminho, encontrava-se o velho Tublat.
Havia sido dos primeiros a arrancar o seu pedaço de carne, mas
afastara-se para o comer com tranquilidade e agora voltava em
busca de mais. Foi assim que ele avistou Tarzan. Os olhos
pequenos e maus, de Tublat, briLharam de raiva ao distinguir o
objecto do seu ódio constante. Neles havia também a gula, a
cobiça pelo suculento quinhão que Tarzan levava.
Mas Tarzan viu no mesmo instante o seu inimigo, e
adivinhando o que ele ia fazer, saltou agilmente para um ramo
baixo, utilizando apenas uma das mãos - depois de ter tentado
em vão refugiar-se junto de Kala. Aí, segurando a presa entre
os dentes, trepou rapidamente, mas seguido de perto por
Tublat. Em curtos instantes, Tarzan trepou até aos ramos mais
altos do tronco gigantesco, onde o seu pesado perseguidor não
se atreveria a ir. E, do alto, pôs-se a fazer caretas e a
gritar insultos para o grande gorila que parara quinze metros
abaixo dele.
Foi então que Tublat endoideceu.
Com horríveis brados e rugidos voltou para o chão, entre as
fêmeas e as crias, cravando as grandes presas numa dezena de
pequenos pescoços, e arrancando pedaços de carne das costas e
dos seios das fêmeas que apanhava ao seu alcance. Sob a luz
brilhante do luar, Tarzan viu toda aquela explosão furiasa de
raiva.

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Viu as fêmeas e as crias fugirem para o abrigo das ramadas
das árvores - e depois os grandes machos, no centro da arena,
ao verem o demente que se dispunha a atacá-los também -
fugiram, desaparecendo nas sombras, como de comum acordo. Não
ficou um só gorila no centro da arena, além de Tublat e de uma
fêmea que já corria na direcção da árvore onde estava Tarzan.
A fêmea era Kala, e assim que Tarzan viu Tublat ganhar
terreno sobre ela, desceu com a rapidez de uma pedra que
caísse, de ramo em ramo, até ficar perto da sua mãe adoptiva.
Agora ela estava sob os ramos baixos, e a curta distância
acima estava Tarzan, curvado, à espera. Kala saltou,
segurando-se a uma ramada, mas quase sobre a cabeça de Tublat,
tão perto que o impulso dele o o levou para diante.
A macaca estaria salva, então, se a ramada não se houvesse
quebrado sob o seu peso, fazendo-a cair sobre Tublat e
derrubando este.
Ambos, Kala e Tublat, se levantaram ao mesmo tempo, mas por
muito rápidos que fossem Tarzan foi ainda mais rápido. Assim,
o grande macho enfurecido encontrou na sua frente o filho de
homem que se erguia entre ele e Kala. Nada poderia ter
agradado mais a Tublat e com um rugido de triunfo
lançou-se sobre o jovem Lord Greystoke. Mas as grandes presas
não conseguiram cravar-se naquela carne lisa e morena.
Uma forte mão estendeu-se para a garganta do gorila,
enquanto outra mergulhava a aguda faca, de caça,

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uma dezena de vezes no largo peito de Tublat. Os golpes tinham
a rapidez do raio, e só terminaram quando o enorme corpo caiu
sem vida. Então, Tarzan dos Macacos, poisando um pé sobre o
pescoço do seu inimigo de sempre, lançou a cabeça para trás e,
fitando o disco luminoso da lua, bradou o grande brado
selvagem da sua tribo.
Um a um, os gorilas desceram dos seus abrigos e fizeram
círculo em volta de Tarzan e do seu inimigo vencido. Quando
todos se juntaram, Tarzan voltou-se para eles.
- Eu sou Tarzan... - gritou. - Sou um grande lutador Que
todos respeitem Tarzan dos Macacos e Kala, sua mãe. Não há
nenhum entre vós, tão poderoso como Tarzan. Que os meus
inimigos se acautelem!
Fitando de frente os olhos vermelhos e maus de Kerchak, o
Lord Greystoke bateu no largo jovem peito e lançou mais uma
vez o seu agudo brado de desafio.

CAPÍTULO 8

O caçador nas altas ramadas

Na manhã seguinte à celebração do Dum-Dum, a tribo
encaminhou-se lentamente através da floresta, na direcção da
costa. O corpo de Tublat ficou onde tinha caído, porque os
gorilas da tribo não comem os seus próprios mortos. A marcha
foi uma tranquila busca de comida.

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Encontravam em abundância palmitos e ameixas cinzentas, como
também ananases e nozes que quebravam com os dentes, além de
pequenos mamíferos, pássaros, ovos e insectos.
Certa vez Sabor, a leoa, atravessando o caminho que seguiam,
fê-los procurar refúgio nas árvores.
Porque, se a leoa respeitava o seu número e as agudas
presas, púr seu lado os gorilas tinham igual respeito pela
cruel e poderosa ferocidade do grande felino. Tarzan ficou
sentado sobre um ramo baixo, exactamente acima do corpo
majestoso e fulvo que avançava silenciosamente pela selva
espessa.
Atirou um ananás selvagem contra o velho inimigo da sua
tribo. A fera parou e, voltando-se, olhou o vulto desafiante,
acima dela. Com um irado sacudir da longa cauda, mostrou os
grandes dentes amarelos, crispando a boca num esgar terrível
que lhe enrugava o focinho e reduzia os olhos a duas fendas
rebrilhantes de ódio. Com as orelhas deitadas para trás, fitou
de frente os olhos de Tarzan dos Macacos e fez ouvir o seu
rugido de desafio. Então, da segurança do ramo onde estava,
Tarzan respondeu com o brado terrível da sua tribo. Por
momentos continuaram a olhar-se, em silêncio. Depois o grande
gato voltou-se e mergulhou na selva.
Mas, na mente de Tarzan, um ousado plano formou-se
bruscamente. Tinha vencido o feroz Tublat, portanto era agora
um grande lutador. Ia seguir a pista de Sabor e matá-la-ia
também. Seria igualmente um poderoso caçador.

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No fundo do seu coração inglês havia o grande desejo de
cobrir a sua nudez com roupas, porque aprendera, através das
imagens dos livros, que todos os homens se cobriam assim, ao
passo que os macacos e gorilas andavam nus. As roupas,
portanto, deviam ser verdadeiramente um sinal de grandeza, a
marca da superioridade do homem sobre todos os outros animais.
Nenhuma outra razão poderia haver para que usassem tão
estranhas e feias coisas.
Muitas luas antes, quando ele era muito mais pequeno, havia
desejado a pele de Sabor, a leoa, ou de Numa, o leão, ou ainda
de Sheeta, a pantera, para cobrir o seu corpo sem pêlos de
forma a não se parecer mais com Histah, a serpente. Mas agora
sentia orgulho na sua pele, porque indicava a descendência de
uma raça poderosa. Entre os desejos contraditórios de
continuar orgulhosamente nu para provar a sua origem, ou
seguir os costumes dos seus semelhantes e usar roupas
desconfortáveis e feias, hesitava ainda. Enquanto a tribo
continuava o seu lento caminho através da floresta, depois da
passagem de Sabor, a mente de Tarzan estava cheia do seu
grande plano para matar a leoa, e durante muitos dias, a
partir de então, não pensou noutra coisa. Naquele momento,
porém, tinha outros e mais imediatos interesses que exigiam a
sua atenção.
Repentinamente o céu tinha escurecido, como se fosse noite.
Os rumores da selva cessaram; as árvores estavam imóveis, como
paralisadas na expectativa de um grande desastre iminente.
Toda a natureza esperava - mas não por muito tempo. Fraco, na
distância, começou a ouvir-se uma espécie de gemido baixo

86

e triste, que se aproximava mais e mais, tornando-se cada vez
mais forte. As grandes árvores curvaram-se ao mesmo tempo,
como se fossem empurradas por uma gigantesca mão.
Inclinavam-se cada vez mais, e no entanto continuava a
ouvir-se apenas o profundo e terrível gemido do vento.
Então, subitamente, os gigantes da selva reagiram, lançando
as suas altas copas como num protesto irado e ensurdecedor.
Uma luz viva, deslumbrante, rápida, saltou das nuvens escuras,
em cima. O troar do formidável trovão soltou o seu apavorante
desafio. E o dilúvio veio - como um inferno à solta sobre a
selva. Os gorilas, tremendo sob a chuva fria, anichavam-se na
base dos grandes troncos, Os raios fulgurantes sulcavam a
escuridão, mostrando, numa fracção de instante, as ramadas que
se agitavam doidamente, as árvores que se vergavam.
Aqui e além, alguns antigos patriarcas da floresta,
atingidos pelos raios, caíam e partiam-se entre as árvores em
volta, arrastando ramos e troncos das mais pequenas, como para
aumentar a confusão da selva tropical.
Ramadas, grandes e pequenas, passavam, como raios também,
entre as copas violentamente sacudidas, levando morte e
destruição a incontáveis habitantes do mundo da verdura.
Durante horas a tempestade continuou, sem afrouxar, e sempre
os gorilas, preocupados pelo pavor, se mantinham onde estavam,
em risco constante de serem atingidos pelos pesados ramos que
tombavam.

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Os clarões dos relâmpagos e o eco rolante dos trovões
paralisavam-nos de medo.
Até que a tempestade cessou, tão ràpidamente como
principiara. O vento deixou de uivar e o sol brilhou de novo -
a natureza sorria uma vez mais. As folhas e as ramadas
pingavam, flores de grande beleza, molhadas, rebrilhavam no
esplendor da luz que regressara. E, como a natureza esquecia,
as criaturas primitivas esqueciam também. A vida continuou,
como antes da grande escuridão e do grande medo.
Mas, para Tarzan, surgira uma luz que vinha explicar o
mistério das roupas. Como ele estaria quente e confortável, se
tivesse a cobri-lo a pele fulva de Sabor! E, desta maneira, se
acrescentou um outro incentivo à aventura.
Durante meses a tribo ficou perto da praia onde se erguia a
barraca de Tarzan. Os estudos dele absorveram uma grande parte
desse tempo, mas sempre, quando caminhava através da floresta,
tinha a sua corda preparada - e muitos foram os animais que
caíram, apanhados pelo nó corredio do laço prontamente
atirado. Certa vez o laço caiu sobre o curto pescoço de Horta,
o javali, mas este, num furioso impulso para recuperar a
liberdade fez cair Tarzan do alto da ramada de onde atirara o
laço. O poderoso animal voltou-se ao ouvir o ruído da queda e,
vendo apenas a presa fácil que lhe pareceu ser aquele jovem
macaco branco, baixou a cabeça e investiu.
Felizmente Tarzan não se magoara na queda, tendo a agilidade
de um gato selvagem.

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No mesmo instante levantou-se e saltou para outro ramo,
enquanto Horta, o javali, passava em vão, arrastado pelo
impulso. Foi assim que Tarzan aprendeu, por experiência, as
limitações e as possibilidades da sua estranha arma. Dessa vez
perdeu apenas uma longa corda - mas sabia que, se fosse Sabor
que o tivesse derrubado, as consequências seriam decerto muito
diferentes, pois poderia perder a vida na aventura.
Levou muitos dias para entrançar uma nova corda, mas quando
a terminou resolveu partir deliberadamente para caçar.
Ocultou-se estendido ao compri do sobre uma ramada acima da
trilha que conduzia à água. Vários animais pequenos passaram
em baixo, sem que ele os atacasse. A caça miúda não o
interessava. Precisava de um animal forte para experimentar a
eficácia do seu novo plano.
Por fim surgiu aquele que Tarzan desejava ver - Sabor, a
leoa. O corpo lustroso e gordo movia-se com uma graça
espantosa, músculos a desenhar-se sob a fulva pele. As grandes
patas almofadadas pisavam maciamente e sem ruído a trilha
estreita. Erguia a cabeça, numa atenção constantemente alerta.
A longa cauda ondulava. Aproximava-se, devagar, do ponto onde
Tarzan dos Macacos estava estendido sobre a forte ramada, as
laçadas da comprida corda prontas e à espera na sua mão.
Como uma figura de bronze, imóvel como a própria morte,
Tarzan esperava. Sabor passou em baixo. Estendeu uma das patas
para um passo mais. deu ainda outro passo, um terceiro, e
então o silencioso laço caiu sobre ela. Por uma fracção de
instante a laçada pareceu pairar sobre a fera, mas logo,

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quando Sabor ergueu a cabeça para ver de onde tinha vindo o
ténue ruído silvante da corda, a laçada caiu-lhe em volta do
pescoço. Com um puxão rápido, Tarzan esticou o nó corredio.
Logo deixou a corda e se segurou com ambas as mãos à ramada.
Sabor tinha sido apanhada.
Com um tremendo salto, a surpreendida fera tentou mergulhar
na selva - mas Tarzan não ia perder outra corda da mesma forma
como perdera a primeira, a experiência ensinara-o. A leoa deu
ainda outro salto, mas parou em pleno voo ao sentir que a
corda lhe apertava mais a garganta.
Deu uma volta completa no ar e tombou de costas.
Tarzan amarrara solidamente a outra extremidade da corda ao
tronco da árvore.
Até ali o plano tinha dado os resultados previstos, mas
quando ele agarrou a corda e, firmando-se em dois ramos fortes
que se bifurcavam, tentou puxar, verificou que prender a fera
à árvore, e enforcá-la, eram duas coisas muito diferentes.
Sabor era um feixe de músculos poderosos. e debatia-se, rugia,
cravava as garras no chão, mordia a terra. O peso da leoa era
enorme, e só Tantor, o elefante, tinha força para a puxar
quando ela cravava as garras no terreno.
Sabor estava agora de novo na trilha, e podia ver o culpado
da indignidade que se abatera sobre ela. Rosnando
furiosamente, lançou-se, saltou no ar, na direcção de Tarzan,
mas quando o grande corpo bateu contra a ramada onde o rapaz
tinha estado, ele já não se encontrava ali.

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Trepara para um ramo mais delgado, uns seis metros acima. Por
instantes Sabor ficou agarrada, suspensa, enquanto Tarzan
troçava dela e lhe atirava pequenos ramos contra o focinho
desprotegido.
Por fim, a fera deixou-se cair para o chão e Tarzan desceu
rapidamente para agarrar a corda.
Mas Sabor descobrira que era apenas uma corda delgada que a
prendia, e agarrando-a entre os poderosos dentes cortou-a
antes que Tarzan pudesse voltar a esticá-la. Tarzan ficou
profundamente irritado. O seu cuidadoso plano tinha-se gorado.
Pôs-se a gritar para o animal rugidor que estava em baixo, ao
mesmo tempo que Lhe fazia caretas.
Sabor andou de um lado para o outro, junto da árvore,
durante horas. Várias vezes se encolheu e pulou na direcção do
vulto dançante que a provocava - mas não teria conseguido mais
se tivesse tentado apanhar o vento que murmurava entre as
altas ramadas. Por fim Tarzan cansou-se daquilo e, com um
último brado de desafio, atirando um fruto maduro que se
esborrachou no focinho da fera, saltou rapidamente de árvore
em árvore, trinta metros acima do terreno, e dentro de pouco
tempo estava junto da sua tribo.
Aí contou os pormenores da sua aventura, com o peito inchado
e tal basófia, que impressionou mesmo os seus piores inimigos
- enquanto Kala, entusiasmada, dançava de alegria e de
orgulho.

91

CAPÍTULO 9

Homem e Homem

Tarzan dos macacos viveu a sua vida selvagem, na floresta
enorme, com pequenas modificações durante vários anos. Apenas
se tornara mais forte ainda, e mais sabedor, e aprendera nos
seus livros mais coisas sobre os estranhos mundos que existiam
algures, para além da selva primitiva.
No entanto, para ele, a vida nunca era monótona nem parada.
Havia sempre Pisah, os peixes, que ele podia apanhar nos rios
e nos pequenos lagos, e Sabor, com os seus numerosos primos,
para o manter alerta e dar interesse a cada instante que ele
passava no terreno. Por vezes as feras tentavam caçá-lo, mas
na maioria das vezes era ele quem as caçava. Em muitas
ocasiões, embora Tarzan nunca tivesse sido atingido pelas
garras agudas dos seus inimigos, seria difícil passar uma
folha espessa entre essas garras e a sua pele morena. Sabor, e
Numa, e Sheeta, eram rápidos, mas Tarzan dos Macacos era o
relâmpago. Tornou-se amigo de Tantor, o elefante. Como? Não se
sabe. Mas é facto conhecido, entre os habitantes da selva, que
em muitas noites luarentas Tarzan dos Macacos e Tantor, o
elefante, caminhavam juntos - e quando o terreno era limpo,

92

Tarzan montava o alto dorso do seu amigo.
Muitos dias, durante esses anos, foram vividos por Tarzan na
barraca da praia - onde continuavam ainda, intocados, os
esqueletos dos pais dele e do filho de Kala. Aos dezoito anos,
Tarzan lia com facilidade e compreendia quase tudo o que lia
nos muitos e variados volumes que existiam nas prateleiras.
Podia também escrever, com letras de imprensa, rápida e
claramente, mas não entendia a letra manuscrita. Embora
houvesse vários livros assim escritos, no seu tesouro, tão
poucos eram escritos em inglês que ele não viu vantagem em se
ocupar dessa outra forma de escrever, ainda que conseguisse
compreender alguns dos sinais.
Assim, aos dezoito anos, era um lord que não sabia falar
inglês, embora pudesse ler e escrever essa língua que era a
sua. Nunca havia encontrado uma criatura humana, além dele
próprio, porque no território onde vivia a sua tribo não
existiam grandes rios pelos quais viessem os indígenas do
interior. Altas montanhas fechavam esse território por três
lados, e a outra limitação era o mar. As florestas virgens e
os matagais impenetráveis que cobriam o chão, não tinham
atraído qualquer pioneiro de entre as feras humanas de além
das fronteiras.
Mas um dia, quando Tarzan dos Macacos estava na barraca,
sondando os mistérios de um novo livro - a antiga segurança da
selva foi destruída para sempre. Nos confins do território, a
Leste, um estranho cortejo apareceu, caminhando em fila,

93

na crista de uma das montanhas menos altas.
Na frente vinham cinquenta guerreiros negros, armados com
delgadas lanças de madeira, cujas pontas eram endurecidas a
fogo lento, e longos arcos, e flechas envenenadas. Às costas
traziam escudos ovais, no nariz grandes argolas, enquanto da
lã crespa e escura da cabeça se erguiam tufos de penas
coloridas. Tinham, tatuadas na fronte, três linhas paralelas,
de cores diferentes, e em cada seio três círculos
concêntricos. Os dentes amarelados estavam aguçados em ponta,
e os grandes lábios salientes acrescentavam ainda a baixa e
brutal bestialidade da sua aparência.
Seguindo-os, vinham várias centenas de mulheres e de
crianças, as primeiras trazendo à cabeça pesadas cargas de
panelas de barro, utensílios de casa, e marfim. Fechava a
marcha mais uma centena de guerreiros, em tudo semelhantes aos
da frente. A formação da coluna indicava que muito mais
profundamente temiam um ataque pela retaguarda do que
quaisquer inimigos desconhecidos que pudessem encontrar
adiante. E essa era de facto a verdade, pois que fugiam dos
soldados dos brancos. Tanto os tinham perseguido para lhes
roubar borracha e marfim - que finalmente, um dia, eles se
haviam revoltado contra os seus carrascos, matando um oficial
branco e um destacamento de tropas negras.
Durante muitos dias os negros canibais tinham-se fartado de
carne, mas a certa altura aparecera uma coluna de tropas,

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mais numerosa, e assaltara a aldeia durante a noite, para
vingar a morte dos companheiros. Nessa noite os soldados
negros do oficial branco - igualmente canibais - tinham
devorado muita carne, e aquele resto de uma tribo outrora
poderosa tinha fugido para a sombria selva
na direcção do desconhecido e da liberdade. Apenas, o que
significava liberdade e vida feliz para os negros selvagens,
significaria desespero e morte para muitos dos habitantes do
novo território.
Durante três dias o cortejo avançou lentamente através do
coração da floresta desconhecida e sem pistas, até que, na
manhã do quarto dia, descobriram uma reduzida área, perto da
margem de um pequeno rio, que parecia menos espessamente
coberta de mato do que qualquer outro terreno por onde haviam
passado antes.
Pararam ali e começaram a trabalhar, para construir a nova
aldeia. Ao cabo de um mês tinham aberto uma ampla clareira,
erguido cabanas e paliçadas, plantado milho, inhame e
tanchagem - e retomado
na nova terra, os velhos hábitos. Mas ali não havia homens
brancos, nem soldados, nem borracha ou marfim para serem
roubados pelos exploradores. Passaram várias luas antes que os
negros se aventurassem muito para além dos terrenos que
rodeavam a aldeia. Alguns deles tinham caído sob as garras de
Sabor, e porque a selva estava infestada de leões e panteras,
além de outros animais ferozes, os guerreiros negros não se
animavam a ir para fora da segurança das suas paliçadas.

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Mas um dia, Kulonga, filho do velho rei Mbonga, afastou-se
por entre o matagal denso, para Oeste. Avançava
cautelosamente, a sua delgada lança sempre pronta, o grande
escudo oval bem firme na mão esquerda e perto do seu corpo
negro. Às costas levava o arco, e na aljava presa ao escudo
tinha muitas finas setas, direitas, bem untadas com a
substância escura e espessa que tornava mortal a mais leve
picada.
A noite encontrou Kulonga muito longe das paliçadas da
aldeia de seu pai, mas ele continuou a caminhar para Oeste até
que, subindo para o tronco de uma grande árvore, construiu uma
tosca plataforma e se encolheu aí para dormir.
Três milhas para Oeste estava a tribo de Kerchak.
Muito cedo, na manhã seguinte, os gorilas estavam em
actividade, procurando comida. Tarzan, como habitualmente, fez
as suas buscas na direcção da barraca, de maneira que, caçando
e comendo durante o caminho, tinha o estômago cheio quando
alcançou a praia.
Os gorilas tinham-se entretanto dispersado, a um e um, a
dois e dois e a três e três, em todas as direcções, mas nunca
para além da distância a que poderiam ouvir algum sinal de
alarme. Kala seguia lentamente ao longo da pista deixada por
um elefante, na direcção de Leste, e estava ocupada a
procurar, debaixo de raízes apodrecidas, ou sob troncos
caídos, algum insecto ou pequeno animal, quando a ténue sombra
de um ruído estranho a pôs alerta. Por uns cinquenta metros na
sua frente a trilha era direita, e foi aí,

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sob o dossel verde das árvores, e foi aí que ela viu avançar,
silenciosamente, o vulto de uma estranha e temerosa criatura.
Era Kulonga. Kala não esperou. Voltando-se, moveu-se
rapidamente na direcção de onde viera. Não corria à
maneira dos animais da sua raça, quando não assustados ou
enfurecidos, pensava mais em evitar o encontro do que em
fugir. Kulonga, esse, correu.
Ali estava carne. Podia matar aquele gorila e banquetear-se
bem, nesse dia. Apressou-se, com a lança pronta para
arremessar. Dobrada uma volta da trilha viu novamente a macaca
noutra recta. Ergueu a lança, contraindo os músculos sob a
pele de ébano.
De repente, estendeu o braço e a lança partiu na direcção de
Kala. Um mau arremesso, porque a arma apenas roçou o alvo.
Com um brado de raiva e de dor, a macaca voltou-se contra o
seu atacante. Nesse instante já os seus companheiros acorriam,
tendo ouvido o brado, saltando rapidamente de ramo em ramo em
resposta ao grito de Kala, Enquanto ela se precipitava sobre o
negro, este pegou no arco e colocou-Lhe uma seta
com uma rapidez espantosa. O arco esticou-se e foi solto. A
seta acertou no coração do grande antropóide. Kala soltou
novo grito, grito rouco, grito de morte, e pesadamente, caiu
diante dos olhos espantados dos seus companheiros. Rugindo, os
gorilas precipitaram-se sobre Kulonga, mas o destro selvagem
já corria ao longo da trilha, veloz como um antílope em
pânico.

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Ouvira contar da ferocidade e da imensa força dos gorilas, e
o seu único desejo era afastar-se deles o mais depressa que
pudesse.
Os grandes animais seguiram-no, de tronco em tronco, durante
muito tempo, mas por fim... um a um foram abandonando a
perseguição e voltaram ao lugar da tragédia. Nenhum deles
tinha visto um homem, até então, além de Tarzan. Mas Tarzan
era branco, diferente, e consideravam-no como pertencendo à
tribo. Assim, estavam confusamente impressionados com aquela
estranha criatura que havia invadido a selva.
Na barraca, na praia distante, Tarzan ouviu os ténues ecos
da luta e, compreendendo que alguma coisa de grave acontecera,
apressou-se a correr na direcção do som. Quando chegou,
encontrou toda a tribo reunida em volta do corpo morto de
Kala, sua mãe.
A cólera e a dor de Tarzan não conheceram limites. Rugindo o
grande brado de desafio da tribo, bateu no amplo peito - e
depois caiu sobre o corpo de Kala e soluçou toda a profunda
pena do seu coração de solitário. Perder a única criatura que
lhe manifestara ternura e amor, era a maior tragédia que podia
acontecer-Lhe. Para ele, Kala não era uma macaca feroz e feia.
Para ele, Kala tinha sido boa, tinha sido bela! Sobre ela
derramara, sem o saber, todo o respeito e toda a devoção que
um rapaz inglês, normal, pode ter pela sua própria mãe. Nunca
conhecera outra, e assim dera a Kala, embora mudamente,

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tudo o que deveria ter pertencido à linda e adorável Lady
Alice - se ela tivesse vivido.
Depois da primeira explosão de dor, Tarzan dominou-se e,
interrogando os membros da tribo, que tinham assistido à morte
de Kala, soube tudo o que o escasso vocabulário dos gorilas
permitia comunicar. Era bastante, todavia, para ele. Sabia que
uma estranha criatura, sem pêlos, de pele negra - uma espécie
de macaco também - com penas coloridas espetadas na cabeça,
tinha lançado a morte por meio de um delgado ramo... e depois
fugira com a velocidade de Bara, o gamo, na direcção do sol
nascente.
Tarzan não esperou mais. Saltando para as ramadas das
árvores, lançou-se vertiginosamente através da floresta. Ele
conhecia as voltas da trilha dos elefantes, ao longo da qual o
assassino de Kala tinha fugido, e cortou a direito através da
floresta para interceptar o guerreiro negro que decerto
seguiria as tortuosidades da pista. Levava à ilharga a faca de
caça do seu ignorado pai, e sobre os ombros as voltas da sua
comprida corda. Uma hora depois baixou sobre a trilha e,
curvado, examinou atentamente o terreno.
Na lama da margem de um regato, encontrou pegadas iguais às
que só ele deixara até então na selva, mas muito maiores. O
seu coração bateu com mais força. Estaria na verdade a seguir
a pista de um HOMEM - alguém da sua própria raça?
Havia duas filas de pegadas, em direcções opostas. Portanto
a sua presa já passara por ali, no regresso ao longo da
trilha. Mas a segunda fila de pegadas, a do regresso,

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era muito recente. A lama esboroava-se ainda, nos bordos.
Tarzan saltou uma vez mais para as árvores, e com espantosa
velocidade, em silêncio, lançou-se sobre a trilha, a meia
altura das ramadas. Tinha percorrido talvez meia milha quando
avistou o guerreiro negro, de pé num pequeno espaço aberto.
Tinha nas mãos o arco, no qual colocara uma das suas setas
mortais. Em frente, no outro lado da pequena clareira, estava
Horta, o javali, que baixava a cabeça e espumava, pronto para
investir.
Tarzan olhou com pasmo para a estranha criatura abaixo dele
- tão semelhante a ele na estatura, e todavia tão diferente na
face e na cor. Nos seus livros vira imagens de negros, mas os
desenhos eram realmente coisas mortas em comparação com aquele
esbelto corpo de ébano, estuante de vida.
Quando o negro esticou a corda do seu arco, Tarzan
reconheceu nele, mais do que o Negro, o Arqueirro do seu
livro...
"A" é de arqueiro.
"Maravilhoso!" Tarzan quase traiu a sua presença, no pasmo
da descoberta. Mas começavam a acontecer coisas, em baixo. O
musculoso braço negro puxara a corda do arco... Horta, o
javali, investia. E então o guerreiro largou a pequena seta
envenenada... que Tarzan viu voar com a rapidez do pensamento
e cravar-se entre as cerdas do pescoço do javali.
Mal a seta partira e já Kulonga colocara outra no arco, mas
Horta, o javali, alcançou-o tão prontamente que ele não teve
tempo para disparar.

100

De um salto, o guerreiro negro passou sobre o corpo do
animal. Então, voltando-se com fantástica rapidez, cravou uma
segunda flecha no dorso de Horta. Logo depois Kulonga saltou
para uma árvore próxima.
Horta voltou-se para atacar de novo, deu talvez uma dúzia de
passos e caiu bruscamente. Por instantes o seu corpo
agitou-se, convulsivo. Depois ficou imóvel. Kulonga desceu da
árvore.
Com uma faca que lhe pendia à ilharga, cortou várias largas
fatias do corpo do javali. Então, acendendo uma fogueira a
meio da trilha, assou a carne e comeu quanto quis. Deixou o
resto onde tinha caído.
Tarzan era um espectador interessado. O seu desejo de matar
não se atenuara, mas o desejo de prender era talvez maior.
Seguiria aquele negro durante algum tempo, até saber de onde
ele viera, Podia matá-lo depois, à vontade, quando o arco e as
setas mortais tivessem sido postos de lado.
Quando Kulonga acabou de comer e desapareceu na próxima
curva da trilha, Tarzan saltou silenciosamente para o chão.
Com a sua faca, cortou pedaços de carne da carcaça de Horta,
mas não os cozinhou. Tinha visto fogo, mas apenas quando Ara,
o raio, destruira alguma grande árvore. O facto de alguma
criatura da selva poder produzir as garras vermelhas e
amarelas que consumiam os troncos deixando-os reduzidos a uma
poeira fina, grandemente surpreendeu Tarzan - incapaz de
compreender, também, por que razão o guerreiro negro estragara
a deliciosa comida metendo-a no calor das chamas.

101

Talvez Ara fosse um amigo, com quem o Arqueiro partilhava os
alimentos.
Fosse como fosse, Tarzan não estragaria boa carne de maneira
tão tola. Assim, comeu a grandes dentadas uma porção de carne
crua, enterrando o resto da carcaça ao lado da trilha, onde
pudesse encontrá-lo ao regressar.
Então Lord Greystoke, limpando os dedos engordurados, nas
coxas nùas, retomou a pista de Kulonga, filho de Mbonga, o
rei. Entretanto, na distante Londres, outro Lord Greystoke, o
irmão mais novo do pai do verdadeiro lord, mandava devolver ao
cozinheiro do seu clube umas costeletas que não estavam
suficientemente bem passadas, e quando acabou de almoçar
mergulhou as pontas dos dedos num recipiente de prata cheio de
água perfumada, limpando-os depois a um rectângulo de fino
damasco branco.
Durante todo o dia Tarzan seguiu Kulonga, pairando sobre
ele, nas árvores, como um espírito maligno. Duas vezes mais
ele o viu disparar as suas setas mortais - uma vez sobre
Dango, a hiena, e outra vez sobre Manu, o macaco. De ambas as
vezes o animal morreu quase instantaneamente, porque o veneno
de Kulonga era fresco e mortal.
Tarzan pensou muito sobre aquela excelente maneira de matar,
enquanto voava silenciosamente, de liana em liana, atrás da
sua presa. Compreendia que não era apenas a leve picada da
seta que podia tão rapidamente matar os animais selvagens da
floresta - que muitas vezes, nas suas lutas, eram
terrivelmente feridos mas em grande parte dos casos se
recompunham.

102

Não. Havia qualquer coisa misteriosa ligada às pequenas
setas de madeira, que podia provocar a morte com um simples
arranhão. Teria de estudar bem aquilo.
Nessa noite Kulonga dormiu sobre uma bifurcação de ramos,
numa árvore alta - e acima dele postou-se Tarzan dos Macacos.
Quando Kulonga acordou, viu que o seu arco e as suas flechas
haviam desaparecido. O guerreiro negro ficou furioso e
assustado, mas mais assustado que furioso. Procurou no chão,
sob a árvore, e procurou na árvore; mas não encontrou
vestígios do arco ou das flechas, nem do ladrão nocturno.
Kulonga sentiu-se tomado de pânico. Tinha atirado a sua
lança contra Kala, e não a havia recuperado. E agora, que o
arco e as flechas tinham desaparecido, a sua única arma era
uma simples faca. A esperança que Lhe restava era apenas a de
regressar à aldeia de Mbonga - tão depressa quanto as pernas
pudessem levá-lo. Sabia que não estava muito longe, e
lançou-se a correr ao longo da trilha.
De um maciço de folhagem, a alguns metros de distância,
emergiu Tarzan dos Macacos, que retomou a sua perseguição
silenciosa. O arco e as setas de Kulonga estavam bem.
amarrados no alto de uma árvore gigantesca, na base de cujo
tronco uma faca afiada arrancara um pedaço de casca. Um ramo
havia sido cortado, igualmente, a uns quinze metros de altura.
Assim Tarzan marcava as suas pistas na floresta, e assinalava
os seus esconderijos.

103

Quando Kulonga começou a correr, Tarzan aproximou-se de
forma a seguir quase directamente acima da cabeça do negro.
Levava a corda enrolada na sua mão direita; agora estava a
preparar-se para matar.
O momento apenas fora retardado porque Tarzan queria saber
qual o destino do guerreiro, e chegou a ocasião de saber
quando avistou na sua frente uma grande clareira, numa
extremidade da qual se erguiam pequenas barracas estranhas.
Nesse instante Tarzan estava exactamente acima de Kulonga. A
floresta terminava bruscamente, ali, e para além viam-se uns
duzentos metros de terrenos plantados, entre a selva e a
aldeia. Tarzan tinha de agir rapidamente, ou a presa
escapar-se-ia. Mas, na vida e no treino de Tarzan, pensamento
e acção seguiam-se tão rápidos que não havia espaço para a
sombra de uma hesitação, entre ambos.
Foi assim que, quando Kulonga emergiu da sombra das árvores,
uma corda delgada voou sobre ele, ondulante no espaço, vinda
dos ramos baixos de um forte tronco que se erguia nos limites
exactos dos campos de Mbonga. O filho do rei tinha dado meia
dúzia de passos na clareira quando o nó corredio lhe apertou o
pescoço. Tão rapidamente Tarzan dos Macacos puxou para trás a
sua presa, que o grito de Kulonga foi abafado na garganta.
Debatendo-se, o guerreiro negro foi prontamente arrastado até
ficar suspenso de um ramo, pelo pescoço, a meia altura.
Então Tarzan trepou mais, para uma ramada mais forte, içando
a vítima, ainda a estrebuchar, para o abrigo da folhagem da
árvore. Aí, amarrou solidamente a corda e, descendo,

104

cravou a sua faca de caça no coração de Kulonga.
Kala estava vingada.
Tarzan examinou o negro, atentamente, porque nunca tinha
visto, antes, uma criatura humana. A faca do guerreiro, com a
bainha, atraiu a sua atenção. Apropriou-se delas. Uma argola
de cobre, que rodeava um dos tornozelos de Kulonga, também lhe
agradou. Transferiu-a para o seu próprio tornozelo.
Depois examinou e admirou as tatuagens, na testa e no peito.
Investigou o toucado de penas e tirou-o também. Observou os
dentes aguçados. Mas então dispôs-se a cuidar de coisas
sérias, porque tinha fome e ali estava carne - carne de uma
presa abatida, que as leis da selva lhe permitiam comer.
Como poderemos julgar, por qual código, o homem-macaco, com
o coração... e a cabeça... e o corpo de um jovem inglês - mas
treinado como um animal selvagem?
Matara Tublat, a quem odiava e que o odiava
numa luta leal - e todavia nem sequer Lhe passara pela cabeça
a ideia de comer a carne de Tublat. Teria sido tão repugnante,
para ele, como o canibalismo para nós. Mas... quem era Kulonga
para que ele não pudesse devorá-lo tão livremente como a
Horta, o javali, ou a Bara o gamo?
Não Era apenas mais um dos incontáveis animais selvagens da
floresta, que se devoravam uns aos outros para satisfazer a
fome. Mas, de repente, uma estranha dúvida se apoderou de
Tarzan. Os livros não lhe haviam dito que ele era um homem?

105

E o Arqueiro não era igualmente um homem.
Seria natural que os homens se comessem uns aos outros? Não
sabia. Por que razão hesitava, então? Tentou cortar um pedaço
de carne, mas uma náusea profunda invadiu-o. Não compreendia.
Sabia apenas que não podia comer a carne daquele homem negro
- e assim um instinto hereditário, vindo do fundo das idades,
veio substituir-se às funções da sua mente primitiva e
salvou-o da culpa de violar uma lei humana, de cuja existência
não tinha qualquer ideia.
Rápido, baixou até ao chão o corpo de Kulonga, soltou a
corda que Lhe apertava o pescoço e voltou novamente para as
árvores.

CAPÍTULO 10

O fantasma do medo

De uma alta ramada, Tarzan observou a aldeia de pequenas e
estranhas barracas, e de campos curiosamente revolvidos. Viu
que, num ponto, a floresta tocava na aldeia - e para lá se
dirigiu, possuído por uma febre de curiosidade, no desejo de
observar animais da sua própria espécie, aprender mais sobre a
sua maneira de viver e examinar mais de perto as barracas de
estranho feitio onde viviam.

106

A sua existência selvagem, entre os ferozes animais da
floresta, não deixava lugar para considerar os negros senão
como inimigos. A semelhança de aspecto, com ele próprio, não o
conduzia a qualquer ideia errada de ser bem recebido por eles.
Tarzan dos Macacos não era um sentimental, e nada conhecia
da fraternidade humana. Tudo o que vivia fora da sua tribo
era-lhe forçosamente hostil
com poucas excepções entre as quais Tantor, o elefante, era
um exemplo marcante. Sentia tudo isto sem maldade e sem ódio.
Matar era a lei do mundo selvagem que ele conhecia. Poucos
eram os seus prazeres primitivos, mas o maior de todos era
seguramente caçar e matar. Assim, concedia aos outros o
direito de sentir os mesmos desejos que ele - ainda que ele
próprio pudesse ser o objecto da caça.
A sua estranha vida não o deixara azedado ou sanguinário. O
seu prazer de matar, ou o facto de matar alegremente, com um
sorriso nos lábios bem desenhados, não denunciavam uma
crueldade nata. Na maior parte das vezes matava para comer,
mas
porque era um homem, era frequente matar por prazer, coisa que
nenhum outro animal faz. Na verdade o homem é, entre todas as
criaturas, a única capaz de matar insensatamente e é
indiscriminadamente, pelo simples prazer de causar sofrimento
e destruição.
Quando matava por vingança, ou em defesa própria, fazia-o
sem histéricos impulsos, porque se tratava de uma coisa séria
que não admitia leviandades.

107

Assim, agora que se aproximava cautelosamente da aldeia de
Mbonga, estava perfeitamente preparado para matar ou para
morrer, se fosse descoberto. Movia-se em silêncio e alerta -
porque Kulonga o ensinara a grandemente respeitar as aguçadas
setas de madeira, que davam a morte de forma tão rápida e
certeira. Chegou finalmente a uma grande árvore. densamente
coberta de folhagem e da qual pendiam fortes lianas, em
profusão. Daquele abrigo quase impenetrável, acima da aldeia,
curvado, observou o espectáculo que tinha na sua frente,
maravilhando-se com cada aspecto daquela vida estranha e nova
para ele.
Entre as cubatas, crianças nuas corriam e brincavam.
Mulheres esmagavam palmitos secos em toscos vasos de pedra,
enquanto outras moldavam bolos, com a farinha. Nos campos,
podia ver ainda mais mulheres que ceifavam, ou semeavam, ou
colhiam plantas.
Todas usavam amplas tangas de ervas secas, em volta das
ancas, e muitas exibiam argolas de bronze ou de cobre; nos
tornozelos, nos braços ou nos pulsos. Em volta dos pescoços
negros podia ver fios de arame curiosamente enrolados,
enquanto alguns narizes estavam ornamentados com argolas
delgadas e grandes.
Tarzan dos Macacos olhava, num pasmo crescente, para aquelas
estranhas criaturas. Viu vários homens que dormiam à sombra,
mas nos limites da clareira podia avistar outros, armados, que
aparentemente guardavam a aldeia contra a possível surpresa de
um ataque inimigo.
Notou que só as mulheres trabalhavam.

108

Não havia um só homem curvado nas tarefas dos campos, ou a
executar qualquer actividade na aldeia. Por fim
os olhos de Tarzan fixaram-se numa mulher que estava
directamente abaixo da árvore.
Diante da mulher havia uma caldeira pequena, colocada sobre
uma fogueira onde o lume ardia
baixo. No interior da caldeira borbulhava uma espécie de
massa viscosa, espessa e avermelhada. A um lado encontrava-se
uma porção de setas de madeira, cujas pontas a mulher
mergulhava na massa fervente, alinhando-as depois sobre uma
estreita armação de ramos, no outro lado.
Tarzan dos Macacos estava fascinado. Era aquele o segredo da
terrível acção das delgadas setas do Arqueiro. Notou o extremo
cuidado da mulher, em que a massa viscosa não lhe tocasse as
mãos - e uma vez, quando uma partícula pequeníssima lhe
salpicou um dedo, viu-a meter a mão na água de uma selha e
esfregar a diminuta mancha com um punhado de folhas.
Tarzan nada sabia de venenos, mas o seu arguto raciocínio
dizia-lhe que era aquilo o que matava
e não a pequena seta que apenas transportava a massa viscosa
para o corpo das vítimas. Como ele gostaria de ter mais
daquelas setas portadoras de morte! Se a mulher deixasse o seu
trabalho por um instante, ele saltaria, apanharia todas as
setas e voltaria para a árvore, antes que a negra pudesse
respirar três vezes. Quando tentava imaginar um plano para
distrair a atenção da mulher, ouviu um forte brado que vinha
do outro lado da clareira. Olhou...

109

e viu um guerreiro em pé junto da árvore onde ele matara o
assassino de Kala, uma hora antes. O homem gritava e agitava a
lança acima da cabeça. Repetidas vezes apontava para qualquer
coisa que estava no chão, diante dele.
Toda a aldeia se movimentou, no mesmo instante. Homens
armados saltaram do interior de muitas das cubatas e correram
excitadamente para junto da sentinela. Atrás deles seguiam os
mais velhos, e depois as mulheres e as crianças. Num momento,
a aldeia ficou deserta.
Tarzan dos Macacos compreendeu que haviam encontrado o corpo
da sua vítima, mas isso interessou-o muito menos do que o
facto de ninguém ter ficado na aldeia para o impedir de se
apoderar das setas que cobiçava. Rápido e silencioso, saltou
para o chão, ao lado da caldeira que continha o veneno. Por
instantes ficou imóvel, os olhos rebrilhantes sondando o
interior da paliçada. Não se via quem quer que fosse. Notou a
porta aberta de uma cubata. Pensou que gostaria de espreitar
para o interior, e assim fez. Rápido, embora sempre alerta,
deslizou para a obscuridade da cubata.
Havia armas encostadas às paredes - compridas lanças, facas
de estranhos feitios, dois escudos estreitos. No meio do
compartimento havia uma panela de barro, e ao fundo uma cama
de ervas secas, coberta por uma esteira entrançada. No chão
viam-se crânios humanos. Tarzan mexeu em tudo, sopesou as
lanças, cheirou-as - o sentido do olfacto era extremamente
agudo nele. Decidiu que teria uma das lanças,

110

mas não podia levá-la daquela vez por causa das setas que ia
levar e o interessavam mais. Ia empilhando, no centro da
cubata, todas as coisas que tirava das paredes. Em cima delas
colocou o vaso de barro, de boca para baixo, e sobre o vaso
pôs uma das caveiras
adornando-a com o toucado de penas que tirara a Kulonga.
Então recuou e observou o seu trabalho, sorrindo. Tarzan dos
Macacos apreciava um gracejo.
Foi então que ouviu, lá fora, o rumor de muitas vozes, uivos
lamentosos e fundos gemidos. Sobressaltou-se. Ter-se-ia
demorado demasiadamente? Rápido, saltou para a porta e olhou
na direcção da única entrada da paliçada. Os negros ainda não
se avistavam, mas deviam estar perto. Podia ouvi-los, que se
aproximavam. Como um relâmpago, correu para junto das setas.
Apanhou todas as que podia transportar sob um braço, derrubou
a caldeira com um violento pontapé... e desapareceu entre a
folhagem da árvore, justamente quando os primeiros indígenas
entravam pela abertura da paliçada, no outro lado da clareira.
Logo a seguir, Tarzan voltou-se para espreitar, entre as
ramadas, o que se passava em baixo. Curvado, lembrava uma ave
de presa, pronta a lançar-se em voo ao primeiro sinal de
perigo.
Agora os indígenas enchiam a única rua da aldeia
e quatro deles traziam o corpo morto de Kulonga. Atrás vinham
as mulheres, soltando grandes brados e lamentações. E todos se
encaminhavam para a cubata de Kulonga - a mesma onde Tarzan
deixara a marca da sua primitiva fantasia.

111

Mas, apenas alguns deles entraram na cubata, logo bruscamente
saíram, numa excitada e apavorada confusão. Os outros
reuniram-se à porta, em grupo. Havia muita agitação, muitos
gestos, muito ruído de vozes. Então alguns guerreiros,
crispadas as mãos nas armas que empunhavam, avançaram e
olharam.
Por fim um homem velho, com muitos ornamentos de metal em
torno dos braços e das pernas, e trazendo ao pescoço um colar
feito de mãos humanas, ressequidas, entrou na cubata.
Era Mbonga, o rei, pai de Kulonga.
Durante momentos tudo ficou silencioso. até que Mbonga
reapareceu com uma expressão onde se misturavam a raiva e um
terror supersticioso. Disse algumas palavras aos guerreiros
reunidos, e no mesmo instante os homens correram através da
aldeia, observando minuciosamente cada cubata e cada recanto
no interior da paliçada. Mal começara a busca quando viram a
caldeira derrubada - e compreenderam que as setas haviam
desaparecido. Nada mais encontraram, e foi um grupo pasmado e
assustado que se juntou em volta do rei, pouco depois.
Mbonga nada podia explicar dos estranhos acontecimentos. A
descoberta do corpo ainda quente de Kulonga, exactamente nos
confins da aldeia e ao alcance de seu pai, era em si mesma
suficientemente misteriosa. Mas as coisas acontecidas na
aldeia, dentro da cubata de Kulonga, enchiam de apavorado
espanto os corações dos negros, e provocavam, nos seus
cérebros atrofiados, a formação de supersticiosas explicações.

112

Dividiram-se em pequenos grupos, falando em voz baixa e
olhando em volta com expressões de pavor.
Tarzan dos Macacos observou-os durante algum tempo, do alto
da grande árvore. No procedimento dos negros havia muita coisa
que ele não podia compreender, porque ignorava a superstição e
tinha apenas, do medo, uma concepção vaga. O sol ia alto, no
céu. Tarzan nada comera nesse dia, e estava à distância de
muitas milhas do ponto onde escondera os restos da carcaça de
Horta, o javali.
Assim, voltou as costas à aldeia de Mbonga e desapareceu na
vastidão da floresta densa.

CAPÍTULO 11

Rei dos macacos

Ainda não havia anoitecido quando se juntou à tribo,
embora tivesse parado para desenterrar e devorar os restos do
javali que escondera no dia anterior, e também para recuperar
o arco e as setas de Kulonga, que deixara numa árvore. Foi um
Tarzan bem carregado que saltou de entre as ramadas no meio da
tribo de Kerchak.
Inchado o amplo peito, narrou as glórias da sua aventura e
mostrou os despojos que conquistara. Kerchak grunhiu e
afastou-se, porque invejava aquele estranho membro da sua
tribo.

113

No seu cérebro pequeno e maldoso, procurava algum pretexto
para manifestar o seu ódio por Tarzan.
No dia seguinte, Tarzan começou a praticar com o arco e as
setas, logo às primeiras luzes do dia. Ao princípio perdeu
quase todas as setas que disparou, mas depois principiou a
saber dirigi-las e a acertar com frequência. Um mês depois já
atirava bastante bem. mas os seus treinos haviam-lhe custado
quase toda a provisão de setas.
A tribo continuava a encontrar comida abundante nas
vizinhanças da praia, e assim Tarzan dos Macacos alternava os
seus treinos de arqueiro com novas investigações nos volumes,
escolhidos mas pouco numerosos, que existiam na barraca. Foi
durante este período que ele encontrou, escondida ao fundo de
um dos armários, a pequena caixa metálica. A chave estava na
fechadura, e ao cabo de algumas experiências e tentativas
Tarzan conseguiu abrir a caixa. Aí encontrou a velha
fotografia de um homem novo, de cara lisa, um medalhão de
oiro, cravejado de diamantes e preso a uma corrente também de
oiro, algumas cartas e um pequeno livro.
Tarzan examinou tudo, minuciosamente.
Gostou sobretudo da fotografia, porque os olhos eram
risonhos e a face aberta e franca. Era a fotografia de seu
pai.
Também gostou do medalhão e colocou a corrente em volta do
pescoço, imitando os adornos que vira serem tão comuns entre
os negros que visitara. Os diamantes brilhavam estranhamente
sobre a sua pele lisa e morena.

114

Mal pôde decifrar as cartas, porque pouco conhecia da letra
manuscrita. De maneira que voltou a metê-las na caixa, com a
fotografia, e concentrou a sua atenção no pequeno livro. Este
estava quase completamente cheio, numa escrita cerrada, mas
embora reconhecesse muitos dos pequenos sinais, as combinações
em que lhe surgiam eram estranhas e incompreensíveis. Tarzan
tinha, havia já bastante tempo, aprendido a utilizar o
dicionário, mas verificou, com pena e perplexidade, que o
dicionário não o podia ajudar naquela emergência. Não
conseguiu encontrar uma só palavra das que estavam escritas no
livro, e assim voltou a metê-lo na caixa de metal - com a
ideia de sondar mais tarde aquele novo mistério.
Não sabia que aquele livro continha, nas suas páginas, o
segredo do seu nascimento, a resposta ao estranho enigma da
sua vida estranha. Era o diário de John Clayton, Lord
Greystoke, escrito em francês como era costume dele.
Tarzan repôs a caixa no armário, mas daí por diante recordou
muitas vezes a fotografia que vira. Era como se a guardasse no
seu coração - tal como mantinha, no cérebro, a ideia de
decifrar os mistérios do livro.
Mas naquele momento tinha coisas mais urgentes a tratar,
porque esgotara a sua reserva de setas e precisava de visitar
outra vez a aldeia dos negros, para a renovar. Partiu muito
cedo, na manhã seguinte, e viajando com grande rapidez chegou
ao seu destino antes do meio-dia.

115

Mais uma vez tomou posição na grande árvore e, como
anteriormente, viu as mulheres nos campos e a caldeira com o
veneno directamente abaixo dele.
Durante horas ficou estendido sobre os troncos, esperando a
sua oportunidade para saltar, sem ser visto, e apanhar as
setas que fora ali procurar. Mas agora nada acontecia que
fizesse com que os negros saíssem da aldeia. O dia chegou ao
fim, e Tarzan dos Macacos continuava a espreitar a mulher que
trabalhava sem desconfiar de que estava a ser vigiada.
Por fim, as mulheres que se ocupavam dos campos regressaram
à aldeia, e grupos de caçadores emergiram da floresta. Quando
todos entraram, as portas da paliçada foram fechadas e
trancadas. Havia agora uma quantidade de panelas de barro por
toda a aldeia. Em frente de cada cubata uma mulher vigiava a
comida que estava a preparar, e em muitas mãos viam-se bolos
de farinha de palmito.
De repente, porém, ouviram-se brados na extremidade da
clareira. Tarzan olhou. Era um grupo de caçadores que chegavam
mais tarde, vindos do Norte, e que arrastavam entre eles o
vulto de um animal que se debatia. Quando se aproximaram, as
portas foram abertas para que eles passassem, e então, quando
os outros viram a vítima da caçada, um grito selvagem subiu -
porque a presa era um homem.
Enquanto o infeliz era arrastado, sempre a debater-se,

116

as mulheres e as crianças atacaram-no com pedras e paus.
Tarzan dos Macacos, jovem e selvagem animal da selva, pasmava
ante a brutal crueldade da sua própria espécie. Entre todas as
feras
Sheeta, a pantera, era a única que torturava as suas
vítimas. Todos os outros animais tinham como regra dar uma
rápida morte aos vencidos. Tarzan conhecia apenas, através dos
seus livros, aspectos fragmentários e dispersos da maneira de
ser dos humanos.
Quando seguira Kulonga, ao longo da trilha da floresta,
tinha imaginado chegar a uma cidade de estranhas casas sobre
rodas, com grandes jorros de fumo negro a saírem de um tronco
cravado no telhado de uma delas - ou a um mar coberto de casas
flutuantes que, segundo lera, se chamavam de várias maneiras,
navios e barcos, vapores e botes. Ficara desapontado ao ver a
pobre aldeia dos negros, escondida na selva, sem uma só casa
que fosse tão grande como a sua barraca na praia distante.
Vira que aquela gente tinha maior maldade que os macacos, e
era tão cruel e selvagem como a própria Sabor. E começou a
formar uma triste ideia das criaturas da sua espécie.
Agora tinham amarrado a vítima a um grande poste, no centro
da aldeia, directamente em frente da cubata de Mbonga, e
formara-se um círculo dançante e gritante de guerreiros, em
torno, todos eles armados com rebrilhantes facas e lanças
ameaçadoras. Num círculo mais largo sentavam-se as mulheres,
gritando também e batendo em tambores.

117

Tarzan recordou-se do Dum-Dum, e compreendeu o que devia
esperar. Só não sabia se os negros se precipitariam sobre a
carne da vítima ainda viva. Os macacos não faziam tal coisa.
O círculo de guerreiros, em volta do cativo, foi-se
estreitando cada vez mais, e os guerreiros dançavam
freneticamente ao ritmo enlouquecedor dos tambores. De
repente, uma lança estendeu-se e picou a vítima. Foi o sinal
para cinquenta outras lanças. Olhos, orelhas, braços e pernas
foram varados. Cada polegada de corpo, sob a qual não havia um
órgão vital, tornou-se alvo das lanças cruéis. As mulheres e
as crianças gritavam de prazer, e os guerreiros lambiam os
grossos lábios na antecipação do próximo banquete. Cada um
tentava exceder o outro, na crueldade repugnante com que
torturava o prisioneiro ainda consciente.
Foi então que Tarzan dos Macacos viu a sua oportunidade.
Todos os olhos se fitavam no espectáculo do poste de tortura.
A luz do dia dera lugar à escuridão de uma noite sem lua, e só
as fogueiras, na vizinhança imediata da orgia de sangue, se
mantinham acesas para iluminarem a espantoza cena.
Sem ruído, Tarzan saltou para o chão macio, na extremidade
da aldeia. Rápido, apoderou-se das setas - todas, desta vez,
porque trouxera longas fibras para as amarrar em molho. Sem
pressas, amarrou-as e, quando se dispunha a partir, uma
tentação se apoderou dele. a tentação de se entregar a um dos
seus caprichos. Olhou em volta, procurando uma ideia para
espalhar a confusão entre aquelas estranhas,

118

grotescas e cruéis criaturas, deixando-Lhes uma prova mais de
que tinha estado ali.
Poisou o volume das setas sob a árvore e deslizou na sombra
até chegar à entrada da mesma cubata onde estivera quando da
sua primeira visita.
Dentro a escuridão era total, mas, tacteando, Tarzan não
tardou a encontrar o que procurava - e sem mais demora
voltou-se para a porta. Tinha dado apenas um passo, todavia,
quando o seu ouvido extremamente sensível captou um rumor de
movimento. Alguém se aproximava. e não tardou que o vulto de
uma mulher aparecesse à entrada da cubata.
Tarzan recuou, em total silêncio, até à parede mais
afastada, e a sua mão tocou no punho da faca de caça. A mulher
dirigiu-se rapidamente para o centro da cubata. Aí parou por
um instante, estendendo as mãos para encontrar o que
procurava. Era evidente que o que ela queria não se encontrava
no lugar habitual, porque se adiantou, aproximando-se da
parede junto da qual estava Tarzan. tão perto que ele pôde
sentir o calor animal do corpo nu. Tarzan levantou o braço
armado com a faca, mas então a mulher desviou-se para um lado
e não tardou que uma exclamação gutural indicasse ter
encontrado o que buscava. Voltou-se imediatamente e saiu da
cubata. Quando passou pela porta, Tarzan viu que ela levava na
mão uma panela de barro. Tarzan dirigiu-se também para a
porta, e na sombra viu que todas as mulheres da aldeia se
afadigavam, transportando vasos de barro que enchiam com água

119

e colocavam sobre umas quantas fogueiras, perto do poste onde
o prisioneiro moribundo cessara de se agitar e pendia, inerte,
massa sanguinolenta esgotada de sofrimento.
Escolhendo o momento em que ninguém estava perto, Tarzan
correu para o ponto onde deixara as setas, sob a árvore, na
extremidade da aldeia. Tal como fizera da primeira vez,
derrubou a caldeira do veneno antes de saltar, ágil como um
gato, para os ramos mais baixos do gigante da floresta. Em
silêncio, trepou até grande altura, até encontrar um ponto
onde, entre a folhagem, podia ver a cena que decorria em
baixo. As mulheres estavam agora a preparar o morto para ser
cozinhado nos vasos de barro, enquanto os homens descansavam
depois da fadiga da dança feroz. Havia uma relativa calma na
aldeia.
Então Tarzan ergueu na mão o que trouxera da cubata, e com
uma pontaria apurada por anos de atirar cocos e frutos, lançou
o objecto na direcção do grupo de selvagens. Caíu exactamente
no meio deles, sobre a cabeça de um a quem derrubou. Depois
rolou na direcção das mulheres e parou junto do corpo morto,
que ia ser devorado.
Todos olharam, espantados, por um instante... mas logo, como
num só impulso, correram a refugiar-se nas suas cubatas. O que
olhava para eles, do chão onde rolara, era um crânio humano...
um crânio que parecia ter caído directamente do céu escuro da
noite. Um espantoso milagre, bem próprio para incitar o
supersticioso terror dos negros.

120

Assim, Tarzan dos Macacos os deixava novamente apavorados com
aquela nova manifestação da presença de um poder diabólico e
invisível, que pairava na floresta em volta da aldeia.
Mais tarde, quando os negros descobriram a caldeira
derrubada e o desaparecimento das setas, começaram a cogitar
que haviam ofendido algum poderoso espírito, ao instalarem a
aldeia naquele ponto da selva sem que, primeiro, o
propiciassem com dádivas.
A partir dessa noite, uma oferta de comida era colocada
diariamente junto da grande árvore, no ponto de onde as setas
tinham desaparecido - numa tentativa para conciliar o espírito
irritado. Mas a semente do medo havia sido enterrada
profundamente...
e, sem que o soubesse, Tarzan dos Macacos tinha lançado os
fundamentos de muitas futuras desgraças, para ele próprio e
para a sua tribo.
Nessa noite Tarzan dormiu na floresta, não longe da aldeia,
e cedo, na manhã seguinte, partiu sem pressas, de regresso,
caçando enquanto passava. Apenas alguns frutos e insectos
recompensaram as suas buscas, e estava meio esfomeado quando,
olhando por cima de um tronco caído, viu Sabor, a leoa, no
meio da trilha, a menos de vinte passos de distância. Os
grandes olhos amarelos da fera fitavam-no com um brilho mau, e
a língua vermelha lambeu o focinho alongado - quando a leoa se
agachou e se adiantou devagar, quase rastejando, com o ventre
a roçar o chão. Tarzan não tentou fugir. Agradou-lhe a
oportunidade que, de facto, procurava havia dias,

121

Agora estava armado com qualquer coisa mais eficaz do que uma
corda. Rápido, empunhou o arco e colocou nele uma das setas;
quando Sabor saltou, a seta voou na direcção dela,
alcançando-a no ar. No mesmo instante Tarzan saltou de lado, e
quando a fera poisou no chão para além dele, outra seta untada
de morte foi cravar-se-lhe num flanco, profundamente. Com um
furioso rugido, Sabor voltou-se e atacou de novo... para ser
atingida por uma terceira seta que lhe acertou num olho. Mas,
desta vez, estava demasiadamente perto de Tarzan para que ele
pudesse esquivar o corpo.
Tarzan caiu sobre o grande corpo fulvo, mas empunhando a
faca e ferindo. Por um instante ficaram imóveis, mas o homem
compreendeu que o corpo inerte, pesando sobre ele, não
voltaria a atacar ninguém. Com dificuldade conseguiu
libertar-se do enorme peso, mas ao levantar-se, ao olhar para
o inimigo vencido pela sua destreza, invadiu-o uma onda de
alegria. Enchendo de ar o vasto peito, ao mesmo tempo que
erguia a bela cabeça, Tarzan lançou o forte brado de desafio
dos gorilas. A floresta repetiu, de eco em eco, o brado
selvagem. As aves imobilizaram-se nos ramos, e os animais
maiores afastaram-se silenciosamente, porque poucos de entre
eles, em toda a selva, se atreviam a enfrentar os grandes
antropóides.
Em Londres, outro Lord Greystoke falava aos da sua espécie,
na Câmara Alta, mas ninguém tremia ao ouvir a sua voz branda e
suave.

122

A carne de Sabor não era agradável de comer, nem mesmo para
Tarzan dos Macacos, mas a fome torna macia a carne dura, e
disfarça o mau gosto que possa ter. Assim, com o estômago
cheio, Tarzan estava pronto para voltar a dormir. Antes disso,
porém, queria esfolar a fera - porque fora também por essa
razão que tinha desejado destruir Sabor.
Habilmente, arrancou a grande pele, com uma prática que
adquirira com animais menores. Quando acabou a tarefa, levou o
seu troféu para os ramos de uma árvore alta e, instalando-se
com segurança sobre dois troncos bifurcados, mergulhou num
sono profundo e sem sonhos.
A falta de dormir, o exercício árduo e a barriga cheia,
fizeram com que Tarzan só acordasse perto do meio-dia, no dia
seguinte. Dirigiu-se imediatamente para a carcaça de Sabor, e
enfureceu-se ao ver que os ossos haviam sido limpos de carne,
por outros esfomeados habitantes da selva. Meia hora de
jornada, sem pressas, ao longo da floresta, fê-lo encontrar um
jovem gamo... e antes que a pequena criatura soubesse que um
inimigo se aproximava, uma seta cravara-se no seu pescoço. Tão
rápida foi a acção do veneno, que ao cabo de dois ou três
saltos o gamo tombou morto. Mais uma vez Tarzan se banqueteou,
mas desta vez não dormiu.
Em vez disso apressou-se na direcção do ponto onde ficara a
tribo, e quando chegou exibiu orgulhosamente a pele de Sabor,
a leoa.
- Olhem, macacos de Kerchak!... - bradou ele. - Vejam o que
fez Tarzan, o poderoso! Qual de entre vós matou alguma vez um
animal da família de Numa?

123

Tarzan é o mais forte, Tarzan não é um macaco, é... - mas aqui
teve de parar, porque na linguagem dos antropóides não existe
palavra que signifique "homem, e Tarzan apenas podia escrever
a palavra em inglês, mas não sabia pronunciá-la.
A tribo reunira-se em volta dele, para ver a prova da sua
magnífica proeza e para escutar as suas palavras. Apenas
Kerchak não se havia aproximado, remoendo o seu ódio e a sua
raiva. E então, de repente, alguma coisa estalou no pequeno
cérebro do antropóide. Com um rugido terrível, lançou-se sobre
os outros. Mordendo, batendo com as suas grandes mãos, matou e
feriu meia dúzia de gorilas, até que os restantes escaparam
para as árvores. Espumando e gritando de fúria, Kerchak olhou
em volta, procurando o objecto do seu ódio - e viu-o sentado
numa ramada próxima.
- Desce daí, poderoso Tarzan... - rugiu Kerchak: - Desce e
sente a força de um mais poderoso! Os grandes lutadores fogem
para as árvores, quando se aproxima o perigo?
Tranquilamente, Tarzan saltou para o chão. Quase sem
respirar, os outros gorilas espreitavam, dos seus refúgios,
quando Kerchak se lançou sobre o vulto comparativamente
pequeno de Tarzan.
Kerchak, de pé, tinha uma altura de mais de dois metros; os
enormes ombros pareciam redondos, cheios de poderosos
músculos. O pescoço curto era também uma rija massa muscular,
que excedia a largura da base do seu crânio, de maneira que a
cabeça parecia uma pequena bola emergindo de um monte de
carne.

124

Os grossos lábios crispados mostravam as grandes presas, e os
olhos pequenos, muito juntos, raiados de sangue, reflectiam a
sua furiosa loucura.
Diante dele estava Tarzan, também um animal fortemente
musculado, mas o zeu metro e oitenta de altura e os músculos
alongados - pareciam tristemente inadequados para a provação a
que ia ser submetido.
O arco e as setas estavam a alguma distância, onde ele os
deixara para mostrar aos companheiros a pele de Sabor, de
maneira que ia enfrentar Kerchak apenas com a sua faca de caça
e a sua inteligência, para opor à espantosa força do seu
inimigo. Quando Kerchak se lançou sobre ele, Tarzan tirou da
bainha a sua comprida faca e,.lançando também o seu brado de
combate, foi ao encontro do antagonista. Era demasiadamente
astuto para se deixar agarrar pelos grandes braços peludos, e,
quando iam chocar, Tarzan saltou de lado, agarrou um dos
grandes punhos de Kerchak e, ao mesmo tempo que esquivava o
ataque, cravou a faca, até ao punho, no peito do inimigo, sob
o coração.
Antes que Tarzan pudesse libertar a faca, o gorila saltou,
estendendo os braços para o agarrar e fazendo-o largar a arma.
Kerchak lançou um grande golpe, com a mão, dirigido à cabeça
de Tarzan - e, se tivesse acertado, decerto lha teria
esmigalhado, Mas Tarzan era demasiado rápido, e ao mesmo tempo
que esquivava o golpe, bateu, com uma força também terrível,
no estômago de Kerchak. O gorila cambaleou e, com a ferida
mortal que sofrera, esteve prestes a tombar -,

125

mas num espantoso esforço pôde ainda agarrar Tarzan entre os
braços.
Apertando Tarzan contra o peito, Kerchak procurava-lhe a
garganta, com os grandes dentes, mas as fortes mãos do homem
seguravam-lhe o pescoço, apertando e empurrando. Lutaram assim
durante momentos, e a grande força do gorila ia lentamente
prevalecendo. Os dentes dele estavam a centímetros da garganta
de Tarzan - quando, de repente, com um estremecimento
convulsivo, o gigantesco animal caiu no chão onde não tardou a
imobilizar-se.
Kerchak estava morto.
Recuperando a faca que já tantas vezes lhe permitira vencer
inimigos consideravelmente mais fortes do que ele, Tarzan dos
macacos poisou um dos pés sobre o pescoço do seu inimigo
vencido e, mais uma vez, o seu brado de desafio e de vitória
ecoou pela floresta.
E assim o jovem Lord Greystoke se tornou rei dos macacos...

CAPÍTULO 12

A razão do homem

Havia um membro da tribo de Tarzan que discutia a sua
autoridade. Era Terkoz, filho de Tublat, mas tal era o seu
medo da faca e das setas mortais do seu novo senhor,

126

que limitava as manifestações do seu desagrado a pequenas
desobediências e irritantes peculiaridades. Tarzan sabia, no
entanto, que o gorila apenas esperava a oportunidade de lhe
arrancar a chefia da tribo, de qualquer forma traiçoeira. Por
isso estava sempre em guarda contra todas as surpresas.
Durante meses, a vida da tribo continuou tal como antes, com
a diferença de que a maior inteligência de Tarzan, e a sua
habilidade como caçador, faziam com que todos vivessem em
maior abundância de comida. Assim a maioria dos gorilas estava
mais do que contente com a mudança de chefe. Tarzan
conduziu-os, de noite, aos campos dos homens negros. Aí,
avisados pela sabedoria superior do seu chefe, os gorilas
comeram apenas aquilo de que necessitavam, sem destruirem o
que não podiam comer, ao contrário do que fazia Manu, o macaco
pequeno, e muitos outros. Desta maneira, conquanto os negros
ficassem furiosos com as frequentes incursões nos seus campos,
não se desencorajavam de continuar a cultivá-los, como teriam
feito se Tarzan permitisse à sua tribo a destruição
indiscriminada.
No decorrer deste período Tarzan fez várias visitas
nocturnas à aldeia, onde frequentemente renovava a sua
provisão de setas. Não tardou a notar que havia sempre comida
junto do tronco da árvore que lhe servia de caminho, e ao cabo
de algumas hesitações começou a devorar o que os negros lá
deixavam. Quando os consternados selvagens verificaram que a
comida desaparecia durante a noite,

127

ficaram cheios de desolação e de medo, porque uma coisa era
propiciar, com alimentos, o espírito maligno - mas outra, e
diferente, era que esse espírito realmente entrasse na aldeia
e as comesse. Tal facto nunca tivera precedentes, e encheu as
suas mentes supersticiosas com todos os géneros de vagos
temores.
Mas isso não era tudo. A periódica desaparição das setas, e
as estranhas surpresas preparadas por mãos invisíveis,
haviam-nos conduzido a um tal estado de desespero que a vida
se tornara um insuportável fardo, na nova aldeia. Foi então
que Mbonga e os seus conselheiros começaram a falar em
abandonar a aldeia e procurar sítio para construir outra, mais
longe. Desta maneira os negros principiaram a internar-se cada
vez mais pela selva, na direcção do Sul, quando iam caçar e
procurar local para se estabelecerem longe do espírito que os
atormentava.
Mais frequentemente, a tribo de Tarzan foi molestada por
esses caçadores errantes. Agora a quietação e o isolamento da
selva primitiva era perturbado por novos e estranhos gritos.
Não mais haveria segurança para aves ou feras. Os homens
tinham chegado.
Outros animais percorriam a floresta, de dia e de noite -
grandes animais cruéis e ferozes - mas os mais fracos apenas
fugiam da sua imediata vizinhança, para voltarem quando
passava o perigo. Com o homem era diferente. Quando o homem
chega, muitos dos animais de grande porte se afastam da região
- para raramente voltarem.

128

Assim acontecera sempre com os grandes antropóides, que
fugiam do homem como o homem foge da peste.
Durante algum tempo a tribo de Tarzan ficou nas proximidades
da praia... porque o novo chefe recusava a ideia de se afastar
definitivamente dos tesouros que, para ele, existiam na
barraca. Mas quando, um dia, um membro da tribo descobriu um
numeroso bando de negros na margem do pequeno rio que havia
sido o seu abastecedor de água ao longo de muitas gerações - e
os viu ocupados a desbravar um largo espaço da floresta, e a
erguer choças - os macacos não quiseram ficar ali mais tempo.
Assim, Tarzan conduziu-os, em muitos dias de marcha, para o
interior, para um ponto da selva onde as criaturas humanas
nunca haviam penetrado.
Uma vez, em cada lua, Tarzan percorria esse longo caminho,
na sua rápida maneira de viajar saltando de ramo em ramo, para
passar um dia com os seus livros e para refazer a sua provisão
de setas. Esta última tarefa tornava-se cada vez mais difícil,
porque os negros tinham tomado o hábito de esconder as setas,
durante a noite, em celeiros ou em cubatas habitadas. Isto
tornava necessário que Tarzan espreitasse durante o dia, para
ver onde eles escondiam as setas. Por duas vezes entrara nas
cubatas, de noite, enquanto os respectivos ocupantes dormiam
nas suas esteiras, e se apoderara das setas que estavam junto
deles. Mas compreendia que o processo era perigoso, e começou
a apanhar caçadores solitários, com a sua longa corda,
despojando-os de armas e ornamentos - e deixando cair os
corpos do alto das árvores, para dentro da aldeia,

129

nas horas silenciosas das vigílias nocturnas.
Essas incursões de tal modo apavoravam os negros que, se não
fossem os intervalos de quase um mês entre as visitas de
Tarzan, intervalos que lhes davam a renovada esperança de que
a visita anterior tivesse sido a última, em breve teriam
abandonado também a nova aldeia.
Os selvagens ainda não haviam feito a descoberta da barraca
de Tarzan, na praia distante, mas ele vivia no constante
receio de que, enquanto estava longe, com a tribo, a
descobrissem e destruíssem os seus tesouros. E assim passava
cada vez mais tempo na vizinhança do último lar de seu pai - e
cada vez menos tempo com a tribo. Os membros da comunidade
começaram a sofrer as consequências do afastamento de Tarzan,
porque entre eles surgiam constantemente discórdias e
desordens que só o rei poderia resolver pacificamente.
Por fim, alguns dos macacos mais velhos falaram a Tarzan,
sobre esse assunto, e durante todo um mês ele não abandonou a
tribo. Os deveres do rei, entre os antropóides, não eram
muitos nem difíceis. Acontecia, por exemplo, que uma tarde
Thaka se apresentava, a queixar-se de que o velho Mungo Lhe
roubara a sua nova companheira. Então Tarzan chamava-os, a
todos, e se verificava que a fêmea preferia o seu novo senhor,
ordenava que as coisas ficassem como estavam, ou que Mungo
desse a Thaka, em troca, uma das suas filhas. Fosse qual fosse
a sua decisão, os gorilas aceitavam-na como definitiva,

130

e voltavam, satisfeitos, às suas ocupações. De outras vezes
era Tana que aparecia, gritando e apertando com as mãos um
flanco que sangrava. Gunto, o seu companheiro, havia-a mordido
cruelmente. Mas Gunto, chamado, queixava-se de que Tana era
preguiçosa e não lhe levava nozes nem insectos, nem lhe coçava
as costas. Tarzan repreendia ambos, severamente, ameaçando
Gunto com as setas mortais, se voltasse a maltratar Tana, e
obrigando Tana a prometer que passaria a cumprir melhor os
seus deveres de fêmea.
Assim corriam as coisas. Na maioria tratava-se de pequenas
discórdias familiares, que no entanto, se não tivessem sido
resolvidas, acabariam por originar lutas de grupos e o final
desmembramento da tribo. Mas Tarzan estava a sentir-se farto
daquilo, considerando que os seus deveres de chefe cerceavam a
sua própria liberdade. Pensava a cada instante na barraca e no
mar que o sol beijava - no fresco interior da casa, e nas
inesgotáveis maravilhas dos livros.
Ao crescer, passado o cabo da adolescência, sentia-se mais
afastado da tribo. Os interesses dos gorilas, e os seus, eram
cada vez mais diferentes. Os animais não podiam acompanhar a
sua evolução, nem podiam compreender estranhos e maravilhosos
sonhos que passavam pela mente do seu chefe humano. Tão
limitado era, na verdade, o vocabulário deles, que Tarzan nem
mesmo podia falar-lhes das inúmeras novas verdades que
descobrira, nem dos grandes campos de pensamento que as
leituras haviam rasgado ante os seus olhos ansiosos, nem das
ambições que agitavam a sua alma.

131

Já não tinha amigos na tribo, como antigamente. Uma criança
pode achar companhia em muitas criaturas estranhas e simples,
mas para um homem é preciso que exista alguma semelhança de
inteligência, como base para uma associação agradável. Se Kala
vivesse, Tarzan teria sacrificado tudo o mais para ficar junto
dela. Mas Kala morrera, e os amigos e companheiros da infância
de Tarzan tinham-se tornado animais sombrios e ferozes, tão
rudes que ele de longe preferia a solidão e a paz da sua
barraca, aos seus deveres como chefe de uma horda de feras.
O ódio e a inveja de Terkoz, filho de Tublat, haviam
contribuído muito para contrariar os desejos de Tarzan quanto
a renunciar à chefia da tribo. Teimoso como um inglês que era,
não podia convencer-se a retirar em face de tão malévolo
inimigo. Que Terkoz seria escolhido como chefe, se ele se
afastasse, Tarzan sabia-o bem, porque muitas vezes o feroz
gorila demonstrara a razão da supremacia física de que se
orgulhava, sobre os poucos machos que haviam ousado reagir
contra as suas brutalidades.
Tarzan teria gostado de vencer o feroz gorila sem utilizar a
faca ou as setas. No período posterior à adolescência, a sua
força e agilidade tinham-se desenvolvido de tal maneira que
ele acreditava poder dominar Terkoz numa luta a mãos nuas - se
não fosse a terrível vantagem que os dentes enormes e agudos
concediam ao antropóide, em relação a Tarzan. Mas o caso
resolveu-se um dia, independentemente da decisão de Tarzan e
pela simples força das circunstâncias. O futuro, ficar ou
partir, ficou aberto para ele.

132

De qualquer modo não haveria uma única mancha no seu brasão
selvagem.
O caso deu-se assim:
A tribo andava tranquilamente em busca de comida, espalhada
por uma área considerável, quando um grande grito se fez
ouvir, a distância, para leste do ponto onde Tarzan se
encontrava estendido ao comprido na margem de um límpido
regato, a tentar agarrar um esquivo peixe entre os seus dedos
rápidos e morenos.
Num mesmo impulso, a tribo lançou-se na direcção de onde
vinham os gritos, e aí encontraram Terkoz que, segurando uma
velha fêmea, lhe batia impiedosamente com as suas grandes
mãos. Tarzan aproximou-se e levantou uma das mãos, para que
Terkoz desistisse de bater, pois a fêmea não lhe pertencia -
era a companheira de um velho gorila cujos tempos de lutador
tinham passado havia muito e, por isso mesmo, não podia
proteger a sua família.
Terkoz sabia que estava a fazer uma coisa contrária às
regras da tribo, que proibiam maltratar uma fêmea alheia, mas
mau como era aproveitara-se da fraqueza do velho gorila para
castigar a fêmea que se recusara a entregar-lhe um pequeno
roedor apanhado por ela. Quando Terkoz viu que Tarzan se
dirigia para ele sem as flechas, continuou a bater na pobre
macaca, deliberadamente, para desafiar o chefe odiado.
Tarzan não repetiu o aviso, mas lançou-se imediatamente
sobre Terkoz que se pusera em guarda.

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Nunca Tarzan travara uma luta tão feroz, desde os tempos em
que, muitas luas antes, se batera contra Bolgani, o gigantesco
chimpanzé que tão gravemente o ferira e a quem ele tinha
vencido com um golpe da faca encontrada momentos antes.
Naquela luta, a faca de Tarzan mal contrabalançava os enormes
dentes de Terkoz, mas qualquer vantagem que o gorila pudesse
ter, em força bruta, era equilibrada pela rapidez e pela
agilidade do homem.
Na soma total de vantagens e desvantagens, no entanto, o
antropóide levava de certo modo a melhor, e se nenhuma
característica pessoal influenciasse a decisão final, Tarzan
dos Macacos, o jovem Lord Greystoke, teria morrido ali, como
havia vivido - uma criatura selvagem, desconhecida, na África
equatorial, Mas essa característica pessoal existia, era
aquela que o erguia muito acima dos seus companheiros na selva
- essa pequena faísca que explica a espantosa diferença entre
os homens e os animais... a razão do homem. Foi isso o que
salvou Tarzan de morrer sob os músculos de ferro de Terkoz.
Mal haviam combatido uma dezena de segundos quando rolaram
pelo chão, batendo, rasgando, despedaçando - dois grandes
animais da selva numa luta de morte. Terkoz tinha uma dúzia de
golpes na cabeça e no peito, e Tarzan sangrava em consequência
de uma dentada na cabeça. Mas até então o jovem inglês
conseguira manter as terríveis presas a distância do seu
pescoço.
A certa altura a luta afrouxou, por um instante, para que
ambos os antagonistas pudessem respirar, e nesse instante,

134

Tarzan formou um plano astuto. Mover-se-ia de maneira a
cavalgar o dorso de Terkoz, e então, agarrando-se com unhas e
dentes, vibraria golpes com a faca até que Terkoz morresse. A
manobra foi executada muito mais facilmente do que Tarzan
esperara, pois o estúpido Terkoz, sem compreender, não fez
qualquer esforço para a impedir. Só quando, finalmente,
percebeu que o adversário o havia agarrado de maneira a não o
deixar atacá-lo com os dentes ou com os punhos, Terkoz viu o
perigo.
Rápido, atirou-se para o chão, tão violentamente que Tarzan
teve de fazer um desesperado esforço para não largar a
posição. Para piorar as coisas, ao cravar a faca no dorso de
Terkoz, este rolou no terreno e a arma saltou da mão de
Tarzan, que se viu sem defesa. Durante minutos giraram assim.
Tarzan teve de largar o adversário duas ou três vezes, para
não ser esmagado sob o seu peso, mas conseguiu sempre retomar
a sua posição. Até que, mais por acaso do que por intenção, o
agarrou de tal maneira que não havia possibilidade de ser
sacudido. O seu braço passou sob a axila de Terkoz, e logo a
mão se fixou na nuca do gorila. Era o que em luta moderna se
chama "meio-golpe-de-Nelson", e que Tarzan aplicara sem saber.
Mas a sua razão de homem mostrou-lhe no mesmo instante a
vantagem do golpe... que para ele poderia representar a
diferença entre a vida e a morte. Assim, diligenciou e
conseguiu colocar o outro braço em posição semelhante, e um
momento depois o pescoço de Terkoz começou a estalar sob a
acção do "full-Nelson". Não havia agora fuga para o gorila.

135

Os dois adversários pareceram ficar imóveis, mas,
lentamente, a cabeça de Terkoz ia cedendo, vergando-se para o
peito.
Tarzan sabia qual seria o resultado. Não tardaria que as
vértebras do pescoço do antropóide se quebrassem. Então valeu
a Terkoz a mesma causa que o havia conduzido àquele extremo -
a razão do homem.
- Se eu o matar... - pensou Tarzan... - que vantagem terei
nisso, além de privar a tribo de um bom lutador? Se o matar,
Terkoz nada saberá da minha supremacia, ao passo que, vivo,
será um exemplo para os outros...
- Ka-goda?... - disse Tarzan, ao ouvido do adversário. Na
linguagem dos antropóides, a palavra significava: "Rendes-te? por instantes não houve resposta, e Tarzan aumentou a
pressão do golpe até que o gorila deixou escapar um agudo
grito de dor.
- Ka-goda?.. - repetiu Tarzan.
- Ka-goda!... - bradou Terkoz.
- Escutem... - disse então Tarzan, em voz forte. - Eu sou
Tarzan, rei dos macacos, poderoso caçador, poderoso lutador!
Em toda a selva não há outro tão forte como eu... - falava sem
largar o adversário, embora aliviando ligeiramente a terrível
pressão do golpe. - Ddisseste Ka-goda, toda a tribo ouviu. Não
voltas a lutar contra o teu rei ou contra a tua tribo, porque
se o fizeres matar-te-ei! Compreendeste?
- Huh!... - confirmou Terkoz.

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- Reconheceste-te vencido?
- Huh!... - rouquejou o gorila.
Então Tarzan largou-o, e minutos depois todos os grandes
antropóides tinham voltado às suas ocupações, como se nada se
houvesse passado que perturbasse a tranquilidade da floresta.
Mas, nos cérebros diminutos e rudes dos gorilas, tinha-se
gravado para sempre a convicção de que Tarzan era um poderoso
lutador e uma estranha criatura - estranha porque tinha podido
matar o seu inimigo e no entanto deixara-o viver.
Ao fim da tarde a tribo reuniu-se, como fazia sempre antes
que a escuridão descesse sobre a selva. Tarzan, tendo lavado
as suas feridas com a água do rio, chamou os velhos machos
para junto dele.
- Viram mais uma vez, hoje, que Tarzan é o maior entre
todos... - disse ele.
- Huh!... - responderam em coro. - Tarzan é o maior.
- Mas Tarzan... - continuou ele - ... não é um macaco. Não é
como a sua tribo. Os seus caminhos não são os da tribo... e
sim Tarzan vai voltar para o refúgio dos da sua espécie, junto
da margem do grande lago que não tem outro lado. Escolham
outro chefe, porque Tarzan não voltará.
E assim o jovem Lord Greystoke deu o primeiro passo na
direcção da meta que marcara a si mesmo - a descoberta de
outros homens, brancos como ele.

137

CAPÍTULO 13

A sua própria espécie

Na manhã seguinte, Tarzan, ainda ressentido das feridas
que sofrera na luta com Terkoz, partiu para Oeste, na direcção
do mar.
Viajou lentamente, dormindo na selva, nessa noite, e chegou
à barraca na manhã seguinte. Durante alguns dias pouco se
moveu, apenas o bastante para apanhar frutos e nozes com que
matar a fome. Ao cabo de dez dias estava completamente
restabelecido, conservando no entanto a marca, ainda não
cicatrizada por completo, da dentada que Terkoz Lhe dera na
cabeça. A marca começava acima do olho esquerdo e, dando a
volta à cabeça, por cima, ia até à orelha direita. Toda a pele
havia sido cortada.
Durante a sua convalescença tentou fazer uma cobertura com a
pele fulva de Sabor, que havia deixado na barraca. Mas nada
sabia da arte de curtir, e assim a pele secara e tornara-se
dura como uma tábua. Foi obrigado a abandonar a sua ideia.
Assim, decidiu usar os adornos tirados a um dos negros da
aldeia de Mbonga. Tarzan resolvera marcar de todas as formas a
sua evolução, e nada lhe parecia tão próprio da dignidade
humana como as roupas e os adornos.

138

Para tal fim, reuniu os ornamentos de braços e pernas que
tirara aos guerreiros negros vencidos pelo rápido e silencioso
laço de corda, e colocou-os em si mesmo, da maneira como vira
os negros usá-los. Em volta do pescoço a corrente de oiro, da
qual pendia o medalhão que fora de sua mãe - e onde
rebrilhavam diamantes. às costas a aljava com as setas
envenenadas, presa por uma tira de cabedal que passava sobre o
ombro direito. Em volta da cintura o cinto feito com tiras de
pele de gamo, de onde pendia, numa bainha que ele próprio
fizera, a faca de seu pai, No ombro esquerdo suspendeu o longo
arco que pertencera a Kulonga.
Era na realidade uma estranha figura de guerreiro, com os
cabelos negros caídos sobre os ombros, atrás, e cortados à
frente com uma faca, para não lhe taparem os olhos. O seu
vulto direito, esbelto, musculado como teria talvez sido o
mais forte dos gladiadores romanos - e todavia com a graça
leve de um deus grego - denunciava ao primeiro olhar a
espantosa combinação de enorme força e de prodigiosa
agilidade. Era uma perfeita personificação do homem da
natureza, caçador e guerreiro.
A bela e nobre cabeça, sobre os largos ombros, e o brilho de
viva inteligência nos olhos cinzentos, davam-lhe o aspecto de
um personagem mitológico, ou de um herói de um povo de
guerreiros.
Mas Tarzan não pensava nessas coisas. Preocupava-o a ideia
de não ter roupas que claramente indicassem, a todos os
habitantes da floresta, que era um homem e não um macaco - e
por vezes tinha dúvidas sobre se não viria a tornar-se
realmente um macaco.

139

Não começava a ter pêlos na cara? Todos os gorilas os tinham,
mas os negros eram completamente desprovidos desses pêlos,
salvo raras excepções... Na verdade vira, nos livros, figuras
de homens brancos com cabelos em volta dos lábios, nas faces e
no queixo - mas assim mesmo tinha medo. Passou a humedecer a
sua afiada faca e raspar a barba incipiente, quase todos os
dias, para arrancar aquele sinal degradante da parecença com
os gorilas.
Foi desta maneira que Tarzan aprendeu a barbear-se, de um
modo tosco e doloroso, mas, todavia, eficaz.
Quando voltou a sentir-se em plena força, depois da sua
feroz luta com Terkoz, Tarzan partiu, certa manhã, na direcção
da aldeia de Mbonga. Caminhava descuidadamente ao longo de uma
trilha da selva, em vez de saltar de ramo em ramo - quando de
súbito se encontrou frente a frente com um guerreiro negro. A
expressão de surpresa, na cara do selvagem, foi quase cómica,
e antes que Tarzan pudesse empunhar o seu arco, o negro
voltou-se e fugiu desesperadamente, gritando como para avisar
outros que vinham atrás.
Tarzan saltou para as ramadas, em perseguição, e momentos
depois avistava os vultos que corriam como doidos. Eram três,
e fugiam em fila, uns atrás dos outros, através do mato denso.
Tarzan passou-lhes à frente, com facilidade, sem que os negros
se apercebessem da sua silenciosa passagem por cima deles...

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e sem que vissem, instantes mais tarde, o vulto curvado sobre
um ramo, na sua frente.
Tarzan deixou passar os dois primeiros, mas quando o
terceiro corria em baixo, ofegante, a corda silenciosa
envolveu-lhe o pescoço negro. Um rápido puxão esticou a corda.
A vítima soltou um brado de agonia, e os outros
voltaram-se... para verem o companheiro subir no espaço, como
por magia, e desaparecer lentamente entre a folhagem de uma
árvore. Gritando de pavor, retomaram a corrida com ainda maior
velocidade, se tal Lhes era possível.
Tarzan acabou com a vida do prisioneiro, rápida e
silenciosamente; tirou-lhe as armas e os adornos e - com
encantada satisfação - apoderou-se de uma espécie de tanga em
pele de gamo, que vestiu imediatamente. Agora, na verdade,
estava vestido como um homem devia estar. Ninguém poderia pôr
em dúvida a sua origem. Por momentos pensou em que lhe
agradaria voltar à tribo para exibir aquelas novas galas.
Colocando o corpo sobre um dos largos ombros, avançou mais
lentamente, por entre as árvores, na direcção da paliçada que
cercava a aldeia. Precisava de mais setas.
Ao aproximar-se da paliçada viu um grupo excitado que
rodeava os dois fugitivos, os quais, trémulos de pavor e de
fadiga, mal podiam reproduzir os fantásticos pormenores da sua
aventura. Explicavam que Mirando, seguindo alguns metros,
adiante deles, Lhes surgira subitamente, aos gritos, dizendo
que um terrível guerreiro, branco e nu, o perseguia.

141

Então todos os três haviam corrido na direcção da aldeia, tão
depressa quanto podiam. Mais uma vez tinham escutado os gritos
de Mirando, e ao olharem para trás tinham visto a coisa mais
horrível - o corpo do companheiro que subia no ar, na direcção
das árvores, agitando as pernas e os braços.., e tendo a
língua pendente para fora da boca aberta. Não tinham ouvido
mais ruídos, nem tinham visto quem quer que fosse.
Os outros negros começaram a sentir-se possuídos por um medo
que não tardaria a ser pânico, mas o velho Mbonga, prudente e
sabedor, aparentou grande incredulidade em relação à história,
atribuindo-a a uma invenção do receio dos dois homens em face
de um perigo real.
- Contam-nos uma grande história... - disse ele - ... porque
não se atrevem a dizer a verdade. Não querem confessar que
fugiram quando o leão saltou sobre Mirando e o levou. São
cobardes!
Mbonga mal tinha acabado de falar quando todos ouviram um
violento quebrar de ramos, nas árvores acima deles. Os negros
olharam para cima, e o que viram fez com que o próprio Mbonga
estremecesse de pavor. Rodopiando no ar vinha o corpo morto de
Mirando, que caíu com um baque surdo junto deles. Num mesmo
movimento os negros fugiram... e não pararam até que o último
de entre eles desapareceu nas sombras da selva próxima.
Então Tarzan saltou para o chão, renovou a sua provisão de
setas e comeu os alimentos com que os negros continuavam

142

a tentar propiciar o "espírito maligno", e apaziguar a sua
cólera. Antes de partir, Tarzan levou o corpo de Mirando até à
entrada da paliçada, e colocou-o de maneira que a face morta
parecia espreitar a pista que conduzia à selva.
Tarzan voltou, sempre caçando, na direcção da barraca da
praia.
Só ao cabo de muitas tentativas os apavorados negros
conseguiram entrar na aldeia, passando diante da cara do
companheiro morto, que parecia sorrir para eles. Quando viram
que a comida e as setas haviam desaparecido, ficaram com a
certeza daquilo de que já suspeitavam - de que Mirando tinha
encontrado o espírito maligno da selva. Essa parecia-lhes a
única explicação lógica. Todos os que viam o espírito...
morriam. Não era certo que nenhum, dos que ainda estavam
vivos, o vira? Portanto, aqueles que haviam morrido eram os
que o tinham visto... e que tinham pago com a vida a ousadia.
Enquanto lhe fornecessem setas e comida, o espírito maligno
não lhes faria mal, a não ser que pretendessem vê-lo. Assim,
Mbonga ordenou que, juntamente com a comida, deviam também
fazer umas ofertas de setas para aquele Munango-Keewati - e
isso foi sempre feito, a partir de então.
Se alguém passar por essa distante aldeia de negros, poderá
ainda ver, diante de uma pequena cubata construída fora da
paliçada, um recipiente de ferro contendo comida, e uma aljava
cheia de setas envenenadas.
Quando Tarzan alcançou a praia onde se erguia a sua barraca,

143

um estranho espectáculo se lhe deparou. Nas águas calmas da
angra protegida pelo promontório, flutuava um grande navio, e
um pequeno bote estava varado na areia. Mas, o que era mais
maravilhoso, vários homens, brancos como ele, moviam-se entre
a praia e a barraca. Tarzan verificou que, sob muitos
aspectos, eles eram iguais aos homens dos seus livros
ilustrados. Aproximou-se mais, através das árvores, até ficar
muito perto, acima deles.
Eram dez homens, fortes, tisnados pelo sol, com expressões
brutais. Estavam agora reunidos junto do bote e falavam em
vozes coléricas, ruidosamente, com muitos gestos e muito
brandir de punhos. A certa altura um deles, um homem baixo, de
cara astuta, barba negra, que recordou a Tarzan o focinho de
Pamba, o rato, poisou uma das mãos sobre o ombro de um tipo
alto e forte, que estava junto dele - uma espécie de gigante
com quem os outros estavam a discutir. O homem baixo apontava
para o lado de terra, e assim o gigante teve de voltar as
costas aos outros, para olhar na direcção indicada. Quando ele
se voltou, o cara-de-rato tirou um revólver ,do cinto e
disparou-lho nas costas, à queima-roupa.
O gigante levantou as mãos acima da cabeça, os joelhos
dobraram-se-lhe... e sem um grito tombou de bruços na areia,
morto. A detonação da arma, a primeira que Tarzan ouvira
alguma vez, encheu-o de espanto, mas nem mesmo esse som
estranho sobressaltou os seus nervos saudáveis, causando-lhe
qualquer sombra de receio. No entanto o procedimento dos
desconhecidos brancos era, para ele,

144

origem de profunda perturbação. Franziu o cenho, pensando
atentamente. Fizera bem em não ter cedido ao seu primeiro
impulso de correr e saudar aqueles homens brancos, como
irmãos. Era evidente que não existiam diferenças entre eles e
os negros selvagens... não eram mais civilizados do que os
macacos, nem menos cruéis do que Sabor.
Por momentos os outros ficaram a olhar para o cara-de-rato e
para o gigante caído na areia, morto. Então um deles riu-se e
deu uma palmada nas costas do traiçoeiro assassino.
Continuaram a falar e a gesticular, mas já sem discutir.
Depois empurraram o bote para a água, saltaram dentro dele e
afastaram-se, remando, na direcção do navio, em cujo convés
Tarzan podia ver outros vultos que se moviam.
Quando os homens subiram a bordo, Tarzan saltou para o chão,
escondido com um tronco, e deslizou para dentro da barraca...
onde verificou que tudo havia sido revolvido. Os livros e os
lápis estavam espalhados pelo chão. As armas, e os escudos, e
outras pequenas coisas que constituíam o seu tesouro, estavam
caídas também.
Ao ver o que eles tinham feito, uma grande cólera invadiu
Tarzan, e a cicatriz na testa tornou-se avermelhada na pele
morena. Rápido, correu para o armário e procurou no fundo da
prateleira inferior. Soltou um suspiro de alívio ao encontrar
a pequena caixa de metal, e abrindo-a viu que os seus maiores
tesouros não haviam sido tocados. A fotografia do homem novo,
do sorriso alegre e bondoso, e o pequeno livro cheio de
misteriosas palavras, estavam intactas.

145

Mas... que era aquilo? O ouvido apurado de Tarzan captara um
som leve mas desconhecido. Correndo para a janela, Tarzan viu
que estavam a descer, do navio, um outro bote, além daquele
que estava já na água. Logo depois viu vários vultos que saíam
do navio e tomavam lugar nos botes.
Voltavam, e agora em maior número.
Por momentos Tarzan continuou a observar, enquanto caixas e
volumes eram também descidos para os botes. Então, quando
estes começavam a afastar-se do navio, Tarzan apanhou um
pedaço de papel e, com um lápis, desenhou algumas linhas de
caracteres de imprensa, fortes e quase perfeitos. Pregou o
papel na porta da barraca, com uma lasca de madeira aguçada -
e apanhando a sua preciosa caixa, as setas, tantos arcos e
lanças quantos podia transportar, transpôs a porta e
desapareceu na floresta.
Quando os dois barcos vararam na areia doirada, uma estranha
mistura de gente desembarcou. Eram cerca de vinte criaturas,
ao todo, quinze delas com a rude e brutal aparência de homens
do mar. As outras cinco eram de uma espécie bem diferente.
Uma era um homem idoso, com cabelos brancos e óculos de aros
grossos. Os seus ombros, ligeiramente curvados, estavam
envolvidos num casaco comprido, mal ajeitado ao corpo mas de
imaculada limpeza... e usava um lustroso chapéu de seda que
acrescentava mais ainda a incongruência do trajo numa selva
africana. O segundo membro do grupo era um homem novo e alto,
vestido de branco, e logo atrás dele vinha outro sujeito
idoso, de testa muito alta e modos excitados.

146

Depois destes vinha uma negra corpulenta, vestida de cores
berrantes. Os seus olhos grandes moviam-se, num terror
evidente, primeiro fitando a selva e a seguir fitando os
marinheiros que descarregavam as caixas e volumes vindos no
barco.
O último componente do grupo era uma jovem com cerca de
dezanove anos, e foi o rapaz de branco, à proa do bote, quem a
levantou no ar e a depôs brandamente sobre a areia seca. Ela
esboçou um lindo e corajoso sorriso de agradecimento, mas
nenhum deles falou. Em silêncio, todo o grupo avançou na
direcção da barraca. Era flagrante que, quaisquer que fossem
as suas intenções, tudo havia sido decidido antes de deixarem
o navio. Aproximaram-se da porta da barraca, os marinheiros
transportando as caixas e os volumes, e mais atrás os outros
cinco, tão diferentes deles. Os marinheiros poisaram as
cargas, e então um avistou o aviso que Tarzan colocara.
- Que é isto aqui, camaradas?... - exclamou ele.
- Este papel não estava aqui há uma hora, pelas - barbas do
diabo!
Os outros marinheiros juntaram-se, espreitando por cima dos
ombros dos primeiros, mas porque poucos deles sabiam ler - e
os que sabiam só o faziam com grande dificuldade - um
voltou-se para o velho do chapéu alto.
- Eh, professor!... - bradou. - Venha cá ler este raio desta
coisa!

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O sujeito idoso aproximou-se, devagar, do grupo de
marinheiros, seguidos pelos outros quatro. Ajeitou os óculos,
olhou para o papel e afastou-se, murmurando em voz baixa:
- Notável... Muito notável!
- Eh, velho fóssil!.. - gritou o marinheiro que o havia
chamado. - Você pensa que o chamei para você ler para si?
Venha cá e leia em voz alta, velho lagostim!
O sujeito idoso parou e logo voltou para trás, dizendo:
- Oh! Claro, com certeza, meu caro... Mil desculpas. Foi uma
distracção minha, evidentemente. Notável... Muito notável!
Voltou a ler, e sem dúvida se teria afastado novamente se o
marinheiro o não agarrasse pela gola, berrando:
- Lê em voz alta, velho idiota de uma figa!
- Oh! Claro, claro... com certeza... - balbuciou o
professor, ajeitando outra vez os óculos antes de ler em voz
alta:
"ESTA É A CASA DE TARZAN, VENCEDOR DE FERAS E DE MUITOS
NEGROS. NÃO ESTRAGUEM AS COISAS QUE PERTENCEM A TARZAN, TARZAN
VIGIA. Tarzan dos Macacos"!
- Mas quem raio é Tarzan?... - grunhiu o marinheiro que até
então tinha falado.
- é evidente que fala inglês... - comentou o jovem vestido
de branco.
- Mas que quer dizer Tarzan dos Macacos?... - quase chorou a
rapariga.

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- Não sei, miss Porter... - volveu o jovem... - a não ser
que tenhamos encontrado um macaco fugido do Zoo de Londres...
que trouxesse uma educação inglesa para o seu lar na selva.
Que lhe parece, professor Porter?... - acrescentou,
voltando-se para o homem idoso.
O professor Arquimedes Q. Porter voltou a endireitar os
óculos.
- Oh, claro... realmente... Sim, claro... Muito notável! Mas
nada mais posso acrescentar ao que já disse para elucidar este
caso momentoso... - e o professor voltou-se lentamente na
direcção da selva.
- Mas, pai... - exclamou a rapariga. - tu ainda não disseste
nada!
- Tut, tut, criança... tut, tut... - volveu o professor num
tom bondoso e indulgente. - Não preocupes a tua linda
cabecinha com tais complicados e absurdos problemas... - e de
novo se afastou, devagar mas agora noutra direcção, os olhos
fitos no terreno a seus pés, as mãos cruzadas sob as abas do
fraque.
- Eu cá penso que o velho imbecil não sabe mais do que
nós... - declarou o marinheiro que tinha cara de rato.
- Fale delicadamente! - bradou o jovem, empalidecendo de
cólera ao ouvir as palavras insultantes do marinheiro. - Vocês
assassinaram os nossos oficiais e roubaram-nos! Nós estamos em
vosso poder... Mas você vai tratar o professor Porter e miss
Porter com o devido respeito, ou mato-o com as minhas mãos,
quer esteja armado quer não!...

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- E o jovem aproximou-se tanto do cara-de-rato que este,
embora armado com dois revólveres e uma faca, recuou. - Não
passa de um miserável cobarde, e não se atreveria a disparar
sobre alguém a não ser pelas costas. Não se atreve a disparar
contra mim, mesmo nessas condições... - concluiu o rapaz,
voltando as costas ao marinheiro e afastando-se
tranquilamente, como para o experimentar.
A mão do marinheiro deslizou, sorrateira, para a coronha de
um dos seus revólveres. Os olhos malévolos fitavam com raiva
as costas do jovem inglês. Os seus companheiros fitavam-no,
mas ele hesitava ainda. No fundo, era ainda mais cobarde do
que William Cecil Clayton julgara.
Dois olhos atentos vigiavam todos os movimentos do grupo,
por entre a folhagem de uma árvore próxima. Tarzan vira a
surpresa causada pelo seu aviso, e embora não pudesse entender
a linguagem falada daquela estranha gente, os gestos e as
expressões diziam-lhe muito. O acto do cara-de-rato, ao matar
pelas costas um dos seus companheiros, provocara uma forte
hostilidade em Tarzan, E agora, que o vira discutir com aquele
jovem de tão bom aspecto, a sua animosidade acentuava-se ainda
mais.
Tarzan nunca vira, antes, os efeitos de uma arma de fogo,
embora os seus livros lhe tivessem ensinado alguma coisa sobre
elas, mas quando viu o cara-de-rato poisar a mão na coronha do
revólver, pensou na cena que presenciara pouco tempo antes - e
naturalmente compreendeu que o jovem ia morrer como tinha
morrido o corpulento marinheiro.

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Assim, colocou uma seta no arco e apontou para o assassino,
mas a folhagem era tão densa que a seta seria decerto desviada
por algum pequeno ramo. Poisou o arco, agarrou uma das
compridas lanças e arremessou-a.
Clayton tinha dado meia dúzia de passos; o cara-de-rato
empunhara o seu revólver; os outros olhavam. O professor
Porter já desaparecera na selva, seguido pelo agitado Samuel
T. Philander, seu secretário e assistente. Esmeralda, a negra,
estava ocupada a escolher, de entre as pilhas de volumes e
caixas junto da barraca, as bagagens da sua senhora, e miss
Porter voltara-se para seguir Clayton quando qualquer coisa a
fez olhar para trás, na direcção do marinheiro. E então três
coisas aconteceram quase simultâneamente.
O marinheiro levantou a arma e apontou-a para as costas de
Clayton, miss Porter soltou um grito - e uma comprida lança,
com uma ponta metálica, surgiu como um raio, vinda de cima, e
atravessou de lado a lado o ombro direito do cara-de-rato.
O revólver detonou inofensivamente, para o ar, e o
marinheiro caíu com um brado de dor e de apavorada surpresa.
Clayton voltou-se e correu. Os outros marinheiros, de armas em
punho, tinham-se agrupado, aterrorizados, e olhavam para a
selva. O ferido gemia e retorcia-se, no chão. Clayton, sem que
o vissem, apanhou o revólver caído e meteu-o sob a camisa.
Depois fez como os marinheiros e olhou, espantado, na direcção
da floresta.
- Quem poderia ter sido?...

151

- sussurrou Jane Porter, de olhos muito abertos, ao lado de
William Clayton.
- Suponho que Tarzan dos Macacos está realmente alerta... -
volveu ele, num tom de dúvida. - Mas na verdade não sei para
quem seria apontada aquela lança. Se foi para Snipes, então o
homem da selva é de facto um amigo. Mas... por Deus! Onde
estão o seu pai e o sr. Philander? Há alguma coisa ou alguém,
na selva, e seja quem for está armado... Eh! Professor! Sr.
Philander!... - bradou Clayton. Não obtendo resposta, olhou
preocupado para a rapariga e acrescentou: - Que podemos fazer,
miss Porter? Não é possível deixá-la aqui, sozinha com estes
rufiões... e por outro lado não pode aventurar-se na selva,
comigo. No entanto é preciso que alguém vá em procura de seu
pai. É mais do que capaz de vaguear sem rumo, indiferente ao
perigo e ao caminho, e o sr. Philander é apenas ligeiramente
menos prático do que ele. Desculpe a minha franqueza, mas as
nossas vidas estão em grande risco, e quando conseguirmos
encontrar seu pai é preciso fazer alguma coisa que lhe dê a
entender os perigos a que se expõe, e a expõe também, em
consequência da sua distracção permanente...
- Estou de acordo consigo e não me ofendeu... - retorquiu a
rapariga. - Meu pai sacrificaria a vida por mim, sem a menor
hesitação... sob condição de poder pensar em tão
insignificante assunto durante um momento. Há apenas uma forma
de tê-lo em segurança... e é amarrá-lo a um tronco. Não tem o
menor sentido prático...

152

- Tenho uma ideia... - disse Clayton. - Sabe servir-se de um
revólver, não?
- Sim... Porquê?
- Tenho um... Com a arma, você e Esmeralda estarão em
relativa segurança, na barraca, enquanto eu procuro seu pai e
o sr. Philander. Chame essa mulher, para que eu possa
afastar-me. Eles não devem estar longe.
Jane recebeu o revólver, fez o que Clayton lhe dizia..., e
quando este último viu a porta fechar-se atrás delas,
voltou-se para a selva. Alguns dos marinheiros estavam a
arrancar a lança do ombro do ferido. Clayton aproximou-se e
perguntou se lhe podiam emprestar um revólver para ir em busca
do professor.
O cara-de-rato, ao verificar que não estava morto, tinha
recuperado a sua ferocidade cobarde, e com uma série de
furiosas pragas dirigidas a Clayton, recusou, em nome dos
outros, ceder qualquer arma.
Snipes, assim se chamava, tomara o lugar de chefe depois de
ter assassinado o gigante, e tão pouco tempo decorrera, desde
então, que nenhum dos outros havia ainda discutido a sua
autoridade.
A única resposta de Clayton foi um encolher de ombros, mas
antes de partir apanhou a lança que ferira Snipes e, armado
dessa maneira primitiva, o filho do então Lord Greystoke
internou-se pela selva densa. Repetidas vezes chamou em voz
alta pelos desaparecidos. As duas mulheres, na barraca da
praia, ouviram a sua voz afastar-se gradualmente,

153

até ser abafada pelos mil ruídos da floresta primitiva.
Quando o professor Porter e o seu assistente Philander,
depois de muita insistência por parte do segundo, retomaram
finalmente o caminho que supunham conduzir à praia, estavam
completamente perdidos no labirinto selvagem da floresta
densa, tão perdidos quanto era possível a qualquer criatura
humana - embora ambos o ignorassem. Foi por simples acaso da
sorte que tomaram a direcção da costa ocidental, em vez de se
encaminharem para Zanzibar, no outro lado do continente negro.
Quando, algum tempo depois, chegaram a uma praia - não
conseguiram avistar qualquer barraca, nem sinais de vida.
Philander tinha a certeza de que se encontravam a norte do
sítio de onde haviam partido, quando na verdade estavam apenas
a duzentos metros para o sul desse ponto.
Nenhum dos dois irremediáveis teóricos teve a simples ideia
prática de gritar, para tentar atrair a atenção dos seus
amigos. Em vez disso, com a perfeita segurança que o
raciocínio dedutivo, mesmo a partir de uma base errada, dá a
quem o pratica, o sr. Samuel T. Philander agarrou um braço do
professor Arquimedes Q. Porter e conduziu-o para o sul, apesar
dos débeis protestos do velho cientista. A direcção geral do
caminho que seguiam era a da cidade do Cabo, a apenas mil e
quinhentas milhas de distância - embora lhes fosse possível, o
que apenas vagamente sabiam, encontrar antes disso alguns
lugares civilizados.

154

Quando Jane e Esmeralda se encontraram em segurança por
detrás da porta da barraca, o primeiro pensamento da negra foi
barricar a entrada pelo lado de dentro. Com esta ideia em
mente voltou-se, para procurar meios de a pôr em execução.
Mas, ao primeiro olhar que relanceou em volta, soltou um grito
de pavor e, como uma criança pequena, a robusta mulher foi
esconder a cara no ombro de Jane. Esta, voltando-se também ao
ouvir o grito, compreendeu a causa: estendido no chão, diante
delas, estava o esqueleto esbranquiçado de um homem... e havia
outro esqueleto estendido sobre a cama.
- Em que horrível lugar nos encontramos?... - exclamou a
jovem, pasmada mas sem qualquer expressão de pânico.
Por fim, libertando-se de Esmeralda que continuava a gritar,
Jane dirigiu-se ao pequeno berço junto da cama, sabendo o que
ia encontrar mesmo antes de ver o pequeno esqueleto em toda a
sua patética fragilidade. Que terrível tragédia revelavam
aqueles pobres ossos! A jovem estremeceu ao pensar nos
acontecimentos que podiam esperá-la, e aos seus amigos,
naquela barraca de má sorte, talvez visitada por misteriosas
criaturas hostis. Depressa, batendo no chão, impaciente, com
os seus pequenos pés, tratou de sacudir as ideias sombrias e,
voltando-se para Esmeralda, emprazou-a a calar-se.
- Pára com isso, Esmeralda! Pára imediatamente! Estás a
tornar tudo pior do que é...
Mas a sua voz, ao princípio vibrante e resoluta, terminou em
tom mais baixo, com uma pequena tremura,

155

quando Jane pensou nos três homens, dos quais elas dependiam
para defesa e protecção, e que vagueavam nas profundidades da
selva. Pouco depois, a jovem verificou que a porta estava
munida de uma pesada tranca de madeira, no lado de dentro, e
ao cabo de esforços conjugados as duas mulheres conseguiram
colocar a tranca no seu lugar - pela primeira vez nos últimos
vinte anos.
Então sentaram-se num banco, nos braços uma da outra - e
esperaram.

156

CAPÍTULO 14

À mercê da selva

Depois de Clayton ter desaparecido na floresta, os
marinheiros, amotinados do Arrow, puseram-se a discutir sobre
o que fariam a seguir. Numa coisa estavam de acordo, todos
eles, e era em voltarem imediatamente para bordo do Arrow,
onde ao menos estariam ao abrigo de inimigos invisíveis que
atiravam lanças. E assim, enquanto Jane Porter e Esmeralda se
barricavam na casa de madeira, os cobardes rufiões remavam
apressadamente para o Arrow, nos dois botes que os haviam
levado para terra.
Tarzan tinha visto, em curto espaço de tempo, tanta coisa
nova... que a sua cabeça era um turbilhão de maravilhado
pasmo.

156

Mas a coisa mais maravilhosa de todas, para ele, era a face
da linda rapariga branca.
Ali estava alguém, pelo menos, que era da sua própria
espécie. Disso tinha a certeza; e o homem novo, e também os
dois homens idosos. Esses correspondiam igualmente à ideia que
ele fizera da sua gente.
Mas sem dúvida eram tão ferozes e cruéis como os outros
homens que ele tinha visto. O facto de serem os únicos que não
tinham armas, podia explicar que os não visse matar algum dos
outros. Seriam seguramente diferentes se tivessem armas.
Tarzan vira que o homem novo havia apanhado o revólver caído
da mão do cara-de-rato, e o escondera junto da pele. E também
o vira entregar sub-repticiamente a arma à rapariga, quando
ela tinha entrado na barraca.
Nada compreendia quanto às causas do que tinha visto; mas,
fosse como fosse, gostava do rapaz e dos dois velhos, e quanto
à jovem sentia uma impressão estranha, que não podia definir.
A negra gorda devia ter qualquer ligação com a rapariga, e
assim Tarzan também gostava dela.
Pelos marinheiros, e em especial por Snipes, sentia um
profundo ódio. Compreendera, pelos gestos de ameaça e pelas
expressões de maldade, que eram inimigos dos outros - e assim
resolveu vigiar de perto. Tarzan não sabia por que razão os
homens se haviam internado na selva, mas nunca pensou que
alguém pudesse perder-se na espessura do mato,

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que para ele era tão sem segredos como, para nós, a rua que
conduz à nossa casa.
Quando viu os marinheiros afastarem-se na direcção do navio,
e se convenceu de que a jovem e a sua companheira estavam em
segurança na barraca, Tarzan seguiu o rapaz que desaparecera
na selva, com a ideia de ver o que ele iria fazer. Saltou de
ramo em ramo, na direcção que Clayton tomara, e não tardou a
ouvir, a distância, os brados com que ele chamava os seus
companheiros. Pouco depois Tarzan alcançou o homem branco, sem
se mostrar, e viu-o apoiado a um tronco, limpando o suor da
testa, ofegante e esgotado. Escondido atrás da folhagem densa,
o filho da selva observou atentamente aquele exemplar da sua
raça. De quando em quando, Clayton chamava os seus
companheiros, e Tarzan compreendeu que ele andava em busca dos
mais velhos. Preparava-se para ir também em procura deles,
quando distinguiu o movimento furtivo de um corpo delgado e
fulvo, que atravessava a selva na direcção de Clayton. Era
Sheeta, a pantera.
Tarzan podia ouvir o leve dobrar das ervas sob as patas de
Sheeta, e espantou-se ao ver que o rapaz branco não captava o
aviso. Seria possível que não o ouvisse? Nunca, antes, o filho
da selva vira Sheeta avançar tão despreocupadamente sobre uma
presa.
Não, o homem branco não ouvia. Sheeta curvava-se para
saltar... quando, poderoso e terrível, o grande brado de
desafio dos macacos, rasgou o silêncio da floresta. Sheeta deu
meia volta, rápida, e desapareceu no mato. Clayton
endireitou-se, sentindo o sangue gelar-se-lhe nas veias.

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Em toda a sua vida, nunca ouvira um som tão estranho e
aterrador. Não era um cobarde, mas, se algum homem sentiu os
dedos frios do medo apertarem-lhe o coração, William Cecil
Clayton, filho mais velho do então Lord Greystoke, foi esse
homem, nesse dia, na obscuridade da selva africana.
O ruído de um corpo aparentemente grande, atravessando o
mato, tão perto dele, e o ressoar daquele espantoso brado que
vinha da espessura das árvores, puseram à prova a coragem de
Clayton. Mas ele não podia saber que devia a vida a essa voz
poderosa, nem que a criatura que soltara o brado era seu primo
- o verdadeiro Lord Greystoke.
A tarde findava, e Clayton, cansado e desanimado, sentia-se
dilacerado pela dúvida, quanto ao que poderia ou deveria
fazer... se continuar em busca do professor Porter, com a
quase certeza de perder a vida na selva, durante a noite... ou
se voltar à barraca onde, ao menos, serviria para proteger
Jane contra os perigos que a ameaçavam por todos os lados. Não
queria voltar sem ter encontrado o pai da jovem... mas
apavorava-o a ideia de a deixar indefesa, entregue aos
amotinados do Arrow e aos perigos desconhecidos da selva.
Era também possível que o professor e Philander tivessem
voltado. Sim, isso era o mais provável. Pelo menos devia ir
verificar a possibilidade, antes de continuar o que parecia
ser uma busca inútil. Começou a caminhar através da selva, na
direcção em que supunha estar a barraca.

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Com grande surpresa, Tarzan viu-o avançar numa direcção que
provavelmente o levaria, quase a direito, à aldeia de Mbonga.
Compreendeu no mesmo instante que o rapaz estava desorientado,
perdido. Para Tarzan, era quase incompreensível. O seu
raciocínio dizia-lhe que nenhum homem se encaminharia para a
aldeia dos cruéis negros, armado apenas com uma lança, que a
julgar pela forma desajeitada como a empunhava, devia ser uma
arma a que não estava habituado. Também não ia a seguir a
pista dos dois outros homens. Tinha-a atravessado bastante
antes e afastara-se dela, embora para Tarzan essa pista fosse
claramente visível.
O filho da selva sentia-se perplexo. A selva destruiria em
pouco tempo aquele homem, se não fosse guiado na direcção da
praia. Sim, ali estava Numa, o leão, que o espreitava a uma
distância não maior que doze passos. Clayton, desta vez, ouviu
a fera que avançava por um caminho paralelo ao seu... e ouviu
o poderoso rugido. Parou, erguendo a lança e voltando-se para
o mato, na direcção de onde o rugido viera.
As sombras tornavam-se mais densas, a noite descia.
Deus! Ia morrer ali, sozinho, entre as garras de uma fera,
dilacerado e rasgado, sentindo o hálito quente do animal
bafejar-lhe a cara, enquanto uma das enormes patas o
imobilizava? Por um instante tudo ficou imóvel. Clayton
parecia transformado em pedra, empunhando a lança. Depois um
leve ruído, quando o leão se preparou para saltar. E Clayton
avistou o grande corpo ágil e musculoso, a juba espessa, O
leão quase rastejava, roçando o ventre pelo terreno.

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Parou, a uns seis metros de distância, firmando as patas no
chão, para saltar. O homem esperava, com medo de atirar a
lança, sem possibilidade de fugir.
Ouviu um rumor nas árvores, acima dele. Pensou que algum
outro perigo o ameaçava, mas não se atreveu a desfitar os
olhos reluzentes, amarelados, da fera. Distinguiu um som agudo
e breve, como o que faria, ao quebrar-se, bruscamente, a corda
de uma guitarra, e no mesmo instante uma curta flecha apareceu
cravada no dorso fulvo do leão. Com um rugido de raiva e de
dor, a fera saltou... Sem saber como, por instinto, Clayton
desviou o corpo... e quando se voltou para enfrentar de novo o
poderoso animal, ficou a olhar, espantado. Quase no mesmo
instante em que o leão ia saltar pela segunda vez, um gigante
meio nu caiu da árvore, exactamente sobre ele. Com fulminante
rapidez, um braço moreno que parecia todo feito de músculos,
agarrou o pescoço da fera, levantando-a com a mesma facilidade
com que Clayton teria levantado um pequeno cão de estimação.
A cena que então se passou, na obscuridade quase completa,
ficou gravada para sempre na mente do inglês. O homem que
estava na sua frente era a personificação da perfeição física
e da força muscular. Todavia, não foram esses atributos que
lhe valeram na luta, porque Numa, o leão, era mais poderoso. O
que lhe deu a vitória foi o raciocínio pronto, uma pasmosa
agilidade e a lâmina comprida e afiada de uma faca de caça. O
braço direito apertava o pescoço da fera,

161

enquanto a mão esquerda mergulhava a faca, repetidas vezes, no
flanco desprotegido do animal, atrás da espádua esquerda. O
leão, erguido nas patas traseiras, rasgava o ar, inutilmente,
com as suas grandes garras. Se a luta tivesse durado um pouco
mais, o resultado poderia talvez ter sido diferente, mas tudo
se passara com tal rapidez que o leão tombou, ferido de morte,
antes de ter conseguido refazer-se da surpresa.
Então o estranho homem pôs-se de pé sobre a bela e selvática
carcaça e, inclinando a cabeça para trás soltou novamente o
poderoso brado que um momento antes tanto sobressaltara
Clayton. O inglês não conseguia dominar o seu pasmo.
Tinha na sua frente um homem muito novo, tendo apenas uma
curta tanga de pele de gamo a velar-lhe a nudez, e alguns
adornos bárbaros em volta das pernas e dos braços. Sobre o
peito, um medalhão cravejado de diamantes reluzia na pele
morena. A faca de caça voltara para a bainha, e o desconhecido
apanhava agora o arco e as setas, que atirara para o chão
antes de atacar a fera.
Clayton falou-lhe, em inglês, agradecendo-lhe a corajosa
intervenção e cumprimentando-o pela destreza, e espantosa
força, que demonstrara... mas a única resposta foi um olhar
firme e um vago encolher dos poderosos ombros - o que podia
significar descaso pelo serviço prestado, ou simplesmente
ignorância da língua.
Tendo colocado ao ombro o arco e a aljava, o filho da selva
- Clayton não sabia como classificá-lo -,

162

voltou a empunhar a faca e, habilmente, cortou várias tiras de
carne da carcaça do leão. Então, sentando-se sobre os
calcanhares, começou a comer, depois de indicar por gestos, a
Clayton, que comesse também. Os fortes dentes muito brancos
cravavam-se na carne crua, com aparente prazer, mas Clayton
não conseguiu imitá-lo. Observava-o agora, e a certa altura
teve a ideia de que o estranho jovem poderia ser Tarzan dos
Macacos, cujo aviso ele vira na porta da barraca, nessa mesma
manhã. Se fosse, então devia falar inglês.
Clayton tentou novamente falar com o seu salvador. Mas as
respostas, embora orais, eram dadas numa estranha linguagem
que lembrava o tagarelar dos macacos, de mistura com o grunhir
das feras.
Não, aquele homem não podia ser Tarzan dos Macacos, porque
era evidente o seu desconhecimento do inglês.
Quando Tarzan acabou a sua refeição, levantou-se e,
apontando numa direcção muito diferente da que Clayton seguira
até ali, pôs-se a caminho. Clayton, espantado e confuso,
hesitou em segui-lo, pensando que o seu estranho companheiro o
queria conduzir mais para o interior da floresta. Mas o jovem
selvagem - assim parecia claramente ao inglês, agora - notando
a hesitação, voltou atrás e agarrou-o pelo casaco, puxando-o
até se convencer de que Clayton compreendera que devia
segui-lo. Então deixou-o, para que ele o seguisse
voluntariamente.
O inglês julgou compreender que estava prisioneiro e que não
tinha outra solução que não fosse seguir o seu captor.


163

Assim, caminharam lentamente através da selva, enquanto a
escuridão se tornava cada vez mais densa. Os passos leves das
feras, na espessura, misturavam-se com os gritos dos animais
nocturnos, que Clayton sentia rodearem-no na treva. De
repente, o inglês ouviu a detonação distante de uma arma de
fogo - e depois o silêncio.
Na barraca da praia, duas mulheres apavoradas agarravam-se
uma à outra, encolhidas, enquanto a noite as envolvia. A negra
soluçava histericamente, amaldiçoando o dia em que partira da
sua distante Maryland, enquanto a jovem branca, de olhos
enxutos e dominando os nervos tanto quanto podia, se sentia
invadida pelo medo e por sombrios pressentimentos. Não receava
mais por ela, todavia, do que pelos três homens que sabia
vaguearem nas insondáveis profundezas da selva - de onde
chegavam até ela, quase incessantemente, ecos de gritos e de
rugidos dos animais ferozes que caçavam na noite.
Foi então que ouviram o som surdo de uma forte pancada
contra um dos lados da barraca. Jane pôde distinguir o rumor
de grandes patas, no terreno lá fora. Por instantes fez-se
silêncio, e a própria selva parecia ter-se aquietado. Depois
ouviu distintamente a fera a farejar a porta, a dois passos do
ponto onde ela e Esmeralda se encontravam. Estremeceu e
aproximou-se mais da mulher.
- Cala-te... - sussurrou. - Cala-te, Esmeralda.
Parecia-lhe que os soluços e os gemidos da negra haviam
atraído a atenção do animal que andava na noite, e do qual
apenas a parede as separava.

164

Som de garras que arranhavam a porta. A fera tentava forçar
a entrada. Mas o som interrompeu-se, e novamente distinguiram
o rumor de passos. O rumor deteve-se em frente da janela, onde
os olhos de Jane se fixaram angustiosamente.
- Meu Deus!... - murmurou, ao ver o vulto que se desenhava
através dos rijos ramos fortemente entrançados, sobre o fundo
claro do luar que iluminava o mar e a praia. Era a cabeça de
uma enorme leoa, cujos olhos amarelos e fosforescentes
espreitavam.
- Esmeralda, olha! Pelo amor de Deus... que vamos nós fazer?
Olha..., A janela! Esmeralda!
fitou o rectângulo enluarado - no momento exacto em que a
leoa rugia.
Murmurou, apavorada:
- Oh, São Gabriel!... - e caíu no chão, sem sentidos.
Durante o que pareceu a Jane uma eternidade, a fera ficou
imóvel, as patas poisadas na base da janela, olhando. Depois
experimentou o entrançado, com as garras. Jane quase tinha
deixado de respirar... quando a leoa deixou a janela. Mas não
tardou que voltasse a arranhar a porta, desta vez com mais
força, parecendo enfurecida ao encontrar resistência. Jane não
conhecia a tremenda resistência daquela porta, laboriosamente
construída. Se a conhecesse, teria menos medo de que a fera
conseguisse entrar por ali. John Clayton, ao construir tal
porta, também não teria podido imaginar que, vinte anos mais
tarde, uma linda rapariga americana, ainda por nascer,

165

nessa altura, viria um dia a ser protegida das garras de uma
fera, em consequência do seu trabalho. Durante quase meia hora
a leoa farejou e arranhou a porta, alternadamente. Por fim
desistiu e Jane ouviu-a que se aproximava novamente da janela,
sob a qual se imobilizou por um instante antes de saltar, com
todo o seu peso, contra o engradado. Jane ouviu que os ramos
rangiam sob o choque. No entanto, embora talvez enfraquecidos
pelo tempo, resistiram, e a leoa caíu no chão.
Mas uma vez mais, e outra, a fera repetiu o seu ataque - até
que, finalmente, Jane, apavorada, viu que uma parte do
engradado cedia. No instante seguinte, o focinho e uma das
enormes patas da leoa surgiram na abertura. Devagar, o
poderoso pescoço foi empurrando, quebrando os fortes ramos. O
corpo enorme não tardaria a passar. Como que em transe,
hipnotizada, a jovem erguera-se e fitava os olhos da leoa. Por
fim gritou, sacudindo a negra:
- Esmeralda! Ajuda-me, ou estamos perdidas!
A negra abriu os olhos... e a primeira coisa que viu foi o
focinho da fera. Bradou, num tom agudo:
- Oh, meu São Gabriel!
A pobre mulher pesava uns bons cento e quarenta quilos... e
sem forças nem coragem para se pôr de pé, gatinhou pesadamente
na direcção de um armário, onde, antes de desmaiar novamente,
não conseguiu introduzir senão a cara. No entanto, o grito e a
grotesca fuga tinham surpreendido a leoa, que por instantes se
imobilizou. Com o novo desmaio de Esmeralda, porém,

166

a fera retomou os seus esforços para passar pela abertura.
Pálida, encostada à parede ao fundo da casa, Jane via o
buraco alargar-se, lenta mas inexoravelmente.
Num gesto de angústia:levou as mãos ao peito...
e foi então que sentiu os contornos da arma que Clayton lhe
entregara e ela havia escondido sob a blusa. Rápida, empunhou
o revólver e, apontando-o para a cabeça da leoa, apertou o
gatilho. Houve um jacto de lume, o estrondo da detonação e um
rugido de dor soltado pela leoa. Jane Porter viu a cabeça da
fera desaparecer da abertura... e então deixou cair o
revólver, e desmaiou também.
Mas a leoa não estava morta. A bala apenas lhe abrira uma
dolorosa ferida na espádua. Fora a surpresa, juntamente com o
clarão súbito do tiro e a ressoante detonação, que a tinham
feito recuar momentaneamente. No instante seguinte estava de
novo a tentar forçar a passagem, com redobrada fúria mas com
menor poder, pois o membro ferido ficara quase inutilizado.
Via a sua presa, as duas mulheres imóveis, estendidas no chão.
Não havia mais resistência a vencer... a carne que ela
desejava estava ao seu alcance. Era só preciso passar...
Passou a cabeça, passou uma das enormes patas.
Cautelosamente, adiantou a outra pata, do lado em que fora
ferida. Um instante mais e a fera estaria dentro da barraca.
Foi isso o que Jane viu, logo que reabriu os olhos...

167

CAPÍTULO 15

O deus da floresta

Quando Clayton ouviu o eco de um tiro distante, sentiu-se
invadido pela angústia. Sabia que podia ter sido disparado por
um dos marinheiros... mas o facto de haver dado o revólver a
Jane, juntamente com a tensão dos seus próprios nervos,
deu-lhe a certeza de que a jovem corria grande perigo. Talvez
naquele exacto momento estivesse a tentar defender-se contra
homem ou fera. Clayton apenas podia fazer conjecturas sobre o
que estaria a pensar o seu captor. Mas tinha ouvido também a
detonação e, de algum modo, parecia impressionado por isso,
porque apressou o passo de tal forma que Clayton, sem ver o
caminho, caiu duas dezenas de vezes numa dezena de minutos...
Incapaz de acompanhar o passo do filho da selva foi ficando
cada vez mais para trás. Receando ficar irremediavelmente
perdido, chamou em voz alta e teve a satisfação de ver o seu
guia saltar para o chão, levemente, a seu lado, vindo das
ramadas das árvores.
Por momentos, Tarzan olhou-o atentamente, como que hesitando
sobre a melhor coisa a fazer. Mas logo, curvando-se diante de
Clayton, indicou-lhe por gestos que se agarrasse ao seu
pescoço. Um momento depois,

168

levando às costas o jovem inglês, Tarzan saltou para as
árvores.
Clayton nunca mais esqueceria aqueles minutos que se
seguiram. A uma altura que lhe pareceu vertiginosa, foi
transportado com espantosa rapidez pelo homem da selva, que
saltava de ramo em ramo com fantástica velocidade, passando de
uma árvore para a outra, suspenso de lianas ou de ramadas que
baloiçavam e que Tarzan agarrava sempre, embora o luar mal
conseguisse passar através do espesso dossel de folhas. Depois
da primeira sensação de medo, Clayton passou para um
sentimento de pasmada admiração, e de inveja por aqueles
formidáveis músculos - e pelo instinto ou conhecimento que
parecia guiar o deus da floresta através da escuridão quase
total, tão fácil e seguramente como ele encontraria o seu
caminho numa bem iluminada rua de Londres.
Só aqui e além o luar penetrava na selva, iluminando, aos
olhos pasmados de Clayton, a estranha pista que seguiam. Em
tais alturas, o jovem inglês sentia a respiração faltar-lhe ao
olhar para o que lhe parecia um abismo, em baixo. Tarzan
avançava pelo caminho mais fácil para ele, entre a folhagem
menos espessa - e isso significava, por vezes, mais de trinta
metros acima do chão.
Todavia, apesar de Clayton julgar que avançavam mais
depressa do que o vento, Tarzan ia relativamente devagar,
escolhendo a passagem ao longo de ramadas que pudessem
suportar o duplo peso. Alcançaram finalmente a clareira antes
da praia.

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O apurado ouvido de Tarzan reconheceu prontamente o ruído
feito pelas patas de Sabor ao arranhar o engradado da janela,
com as suas grandes garras. Clayton, nesse momento, teve a
impressão de que o filho da selva mergulhava, levando-o, de
uma altura de várias dezenas de metros, tão rápida foi a
descida de Tarzan. No entanto mal sentiu algum abalo quando
tocaram no terreno. E, quando o inglês se desprendeu dele,
Tarzan correu como um gamo para o outro lado da barraca.
O inglês seguiu-o, a tempo de ver o corpo de uma fera que se
introduzia através da janela e só tinha do lado de fora as
patas traseiras e a longa cauda.
Quando Jane abriu os olhos e compreendeu o perigo que a
ameaçava, o seu corajoso coração perdeu os últimos restos de
esperança. Mas foi então que, com maravilhado pasmo, viu que a
leoa era lentamente puxada para trás - e distinguiu lá fora,
ao luar, as cabeças e os ombros de dois homens.
Quando Clayton deu também a volta à barraca e avistou parte
do corpo da fera, viu também o seu fantástico companheiro que,
tendo agarrado com as duas mãos a cauda da leoa, fincara os
pés na parede da barraca para, com a sua força incomparável,
puxar o animal. Clayton ajudou-o no mesmo instante, e o homem
da selva disse qualquer coisa que ele não entendeu mas que, a
julgar pelo tom imperioso, devia ser uma ordem.
Por fim, os esforços combinados, de ambos, conseguiram
arrastar para fora o corpo fulvo da leoa...

170

e só nesse instante surgiu na mente de Clayton uma ideia
ainda vaga sobre a coragem magnífica daquele homem:Quase nu,
servindo-se apenas das mãos, a estranha criatura puxava pela
cauda uma enorme fera, devoradora de homens, para salvar uma
rapariga que não conhecia sequer. Era, em verdade, a última
palavra em heroísmo. Pelo que dizia respeito a Clayton, o caso
era diferente - porque, para ele, tratava-se da mulher a quem
amava. Embora soubesse que a leoa os mataria a ambos, tinha-a
puxado com todas as suas forças, para salvar Jane Porter. Mas
nesse momento redobrou a luta entre o seu companheiro e o
grande leão de juba negra... e começou a sentir-se mais
seguro. Tarzan continuava a gritar ordens que Clayton não
conseguia compreender. Tentava dizer ao estúpido homem branco
para cravar as flechas envenenadas no dorso e nos flancos de
Sabor, e para tentar feri-la no coração com a comprida faca
que ele trazia à cintura.
Mas o homem não entendia e Tarzan não se atrevia a largar a
cauda da leoa para fazer ele próprio essas coisas - pois sabia
que o fraco homem branco nunca poderia, sozinho, segurar a
poderosa Sabor, por um instante que fosse. Lentamente, a leoa
ia emergindo da janela. Por fim, as espáduas passaram.
Então Clayton assistiu a uma inacreditável proeza.
Tarzan, que furiosamente procurava a maneira de dominar,
sozinho, a fera enraivecida, lembrara-se bruscamente da sua
luta com Terkoz. E, quando as poderosas espáduas saíram pela
janela à qual Sabor ficara ainda segura com as garras, Tarzan
largou de repente a cauda do animal.

171

Com a rapidez de ataque de uma serpente, lançou-se sobre o
dorso de Sabor, e os seus musculosos braços aplicaram à fera o
"full-Nelson com que ele havia vencido o gorila. Com um
rugido, a leoa tentou libertar-se, caindo pesadamente sobre
Tarzan, mas ele não a largou.
Rasgando a terra e o ar com as garras abertas, Sabor rolou
no chão, com grandes rugidos furiosos. Mas, com força cada vez
maior, os braços de ferro dobravam pouco a pouco a cabeça
fulva, sobre o largo peito. Agora as poderosas mãos de Tarzan
tinham os dedos presos uma na outra, e a pressão aumentava na
proporção em que as tentativas da leoa se tornavam
progressivamente mais fracas.
Por fim Clayton viu os tremendos músculos de Tarzan
contraírem-se num último esforço, desenhados sob a pele morena
à luz do luar. Um momento ainda, e as vértebras da leoa
quebraram-se, com um ruído seco.
No mesmo instante Tarzan largou a fera morta e, pela
terceira vez nessa noite, Clayton ouviu o selvático brado de
vitória dos grandes gorilas... logo seguido por um grito
apavorado de Jane:
- Cecil... Sr. Clayton! Que foi isto?
Correndo para a porta da barraca, Clayton gritou que tudo
estava bem, que o perigo passara e ela podia abrir a porta.
Tão depressa quanto pôde, Jane levantou a pesada tranca.
- Que... que foi este rugido horrível?

172

- Um grito de vitória, soltado pelo homem que lhe salvou a
vida, miss Porter. Espere, vou chamá-lo para que possa
agradecer-lhe...
A assustada jovem não queria ficar só, e acompanhou Clayton
ao outro lado da barraca onde, diante da janela arrombada,
estava o corpo morto da leoa.
Mas Tarzan dos Macacos havia desaparecido.
Clayton chamou várias vezes, sem obter resposta, e então
ambos voltaram para a relativa segurança da barraca.
- Que rugido espantoso... - repetiu Jane. - Tremo só de o
recordar. Não me diga que uma garganta humana pôde emitir tal
som...
- Pois pôde, miss Porter... - volveu Clayton. - Ou pelo
menos, se não foi uma garganta humana, foi a garganta de um
deus da floresta.
E então Clayton contou do que lhe acontecera com o homem
selvagem, de como por duas vezes o estranho companheiro lhe
salvara a vida. Falou da imensa força, e da agilidade, e da
coragem - e da pele morena, e da bela face de forte expressão.
- Não consigo compreender, na verdade... - concluiu. - Ao
princípio pensei que fosse Tarzan dos Macacos... mas não pode
ser, porque não fala nem entende inglês.
- Seja quem for... - disse a jovem - devemos-lhe a vida e
que Deus o abençoe e lhe dê segurança na sua selva...
- "Amen..." - murmurou Clayton, gravemente.
- Pelo amor do bom Deus... Não... não estou morta?

173

Voltaram-se ao mesmo tempo e viram Esmeralda, sentada no
chão, os grandes olhos muito abertos fitando tudo... como se
fosse possível estar ainda ali.
E então a reacção chegou, para Jane Porter. Atirou-se para
cima da cama, rindo e soluçando histericamente.

CAPÍTULO 16

"Notável"

Só, várias milhas ao sul da barraca, na faixa de areia de
uma praia, dois homens discutiam. Diante deles estendia-se o
vasto Atlântico. Atrás era o Continente Negro. Em volta a
escuridão e a selva.
Animais selvagens rugiam e rosnavam; ruídos estranhos,
fantásticos e ameaçadores, chegavam aos ouvidos dos dois
homens. Tinham caminhado muitas milhas, em busca do sítio de
onde haviam partido, mas seguindo sempre na direcção errada.
Estavam tão irremediavelmente perdidos como se, de repente,
houvessem sido transportados para um mundo diferente.
Em tal ocasião, na verdade, cada célula das suas
inteligências combinadas devia concentrar-se na grande e
momentosa questão - a questão de vida ou de morte que era o
seu regresso à barraca perdida não sabiam em que praia.

174

Samuel T. Philander estava a falar.
- Mas, meu caro professor... - dizia ele. - eu continuo a
pensar que, sem as vitórias de Fernando e Isabel sobre os
mouros, em Espanha e no século XV, o mundo estaria hoje mil
anos adiantado em relação ao que está. Os mouros eram uma raça
essencialmente tolerante, de vistas largas, uma raça liberal
de agricultores, mercadores, artífices e artistas... o
perfeito tipo das criaturas que tornaram possível uma
civilização tal como a encontramos actualmente na América e na
Europa... Ao passo que os espanhóis...
- Tut, tut caro sr. Philander... - interrompeu o professor
Porter. - A religião deles impedia positivamente as
possibilidades que você sugere. O islamismo foi, e será
sempre, uma pedra no caminho do progresso científico que
marcou...
- Céus! Professor!... - exclamou o sr. Philander, que olhava
para a floresta próxima. - Parece que se aproxima alguém...
O professor Arquimedes Q. Porter voltou-se na direcção
indicada pelo míope sr. Philander.
- Tut, tut, sr. Philander... - queixou-se ele. - Quantas
vezes lhe tenho dito para tentar conseguir a total
concentração das suas faculdades mentais sobre os momentosos
problemas que naturalmente ocupam todos os grandes espíritos?
Verifico com desgosto uma flagrante quebra de cortesia, ao
interromper a minha douta dissertação para chamar a minha
atenção para um simples quadrúpede do género "Felis"... Como
eu estava a dizer...

175

- Céus... professor! Um leão?... - bradou Philander
esforçando a sua curta vista na direcção do vulto.
- Sim, sim, sr. Philander... - cortou novamente o professor.
- Se insiste em empregar termos vulgares nos seus discursos, é
um "leão". Mas, como eu dizia...
- Deus nos acuda, professor... - gemeu Philander.
- Permita-me sugerir-lhe que os mouros vencidos no século XV
continuarão nessa lamentável situação pelo menos por enquanto,
mesmo se nós adiarmos a discussão sobre tal calamidade e
dermos alguma atenção à "Felis carnivora"...
Entretanto o leão aproximara-se, com calma dignidade, até
uns dez passos dos dois homens - e parecia observá-los
curiosamente. O luar iluminava o areal, e o estranho grupo
recortava-se, nítido, sobre o fundo claro da areia.
- Estranhamente censurável... - declarou o professor Porter,
com uma leve nota de irritação na sua voz. - Nunca na minha
vida, sr. Philander, tive conhecimento de que esses animais
pudessem andar à solta fora das jaulas. Não deixarei de
apresentar... uma vigorosa reclamação aos directores do Jardim
Zoológico de onde este veio!
- Tem toda a razão, professor... - concordou Philander. -
Quanto mais depressa o fizer, melhor será. Vamos ocupar-nos
disso imediatamente.
E, segurando o professor por um braço, o sr. Philander
partiu na direcção que lhes permitiria pôr a maior distância
entre eles e o leão.

176

Haviam percorriDo apenas uma dúzia de metros, quando o sr.
Philander olhou para trás e verificou, horrorizado, que o leão
os seguia. Agarrou com mais força o braço do professor, e
caminhou mais depressa.
- Como eu dizia, sr. Philander... - insistia o professor
Porter.
- Ele continua a seguir-nos, professor!... - gemeu
Philander, começando a correr à vez que o leão apressara
também os passos.
- Tut, tut, sr. Philander... Uma tal pressa é perfeitamente
imprópria de pessoas eruditas. Que pensariam de nós os nossos
amigos, se por acaso passassem por estes lados e vissem a
nossa frívola maneira de proceder? Por favor, retomemos a
nossa compostura...
Philander olhou mais uma vez para trás e viu que a fera
corria agora atrás deles, parecendo divertir-se com a
perseguição. Então largou o braço do professor e lançou-se
numa corrida desesperada, que não teria envergonhado um
desportista universitário.
- Como eu dizia, sr. Philander... - gritou o professor,
correndo por sua vez ao notar que os cruéis olhos amarelos da
fera se aproximavam demasiadamente.
Com as abas do fraque a ondular ao vento, e o lustroso
chapéu de seda um tanto às três pancadas, o professor
Arquimedes Q. Porter corria agora com a possível rapidez, no
encalço do seu assistente e amigo. Diante deles, a selva
alongava-se, em ponta, sobre um estreito promontório, e era
para o abrigo das árvores que o sr. Philander dirigia os seus
pulos desordenados -,

177

enquanto, das sombras dessas mesmas ramadas, dois olhos
atentos espreitavam a cena, com interesse.
Tarzan dos Macacos sorria, ao ver o velho jogo da selva.
Sabia que os dois homens estavam em relativa segurança, quanto
a um possível ataque do leão. O facto de Numa não ter há muito
saltado sobre eles, significava claramente que tinha a barriga
cheia. Era possível que a fera os seguisse até ter outra vez
fome, mas o mais provável era que se cansasse daquele
divertimento e se afastasse para o seu covil na selva... a não
ser que se enfurecesse por qualquer motivo.
Na verdade, o único perigo estava em que um dos dois homens
tropeçasse e caísse, porque então Numa saltaria sobre ele e o
prazer de matar seria uma tentação demasiado forte. Assim,
Tarzan desceu agilmente para uma ramada mais baixa, noutra
árvore que ficava na direcção exacta seguida pelos fugitivos.
E, quando Samuel T. Philander, ofegante e congestionado,
tentava escalar o tronco - Tarzan estendeu um braço e,
segurando-o pela gola do casaco, puxou-o para o seu lado. Um
momento depois foi a vez de o professor ficar ao alcance da
mão forte e protectora, e também ele foi içado para a árvore
- no momento justo em que Numa, vendo escaparem-se as suas
presas, saltava para as derrubar.
Por instantes os dois homens ficaram agarrados ao forte
ramo,. arfantes, enquanto Tarzan, sentado sobre os
calcanhares, se apoiava ligeiramente ao tronco da árvore,

178

olhando-os com divertida curiosidade. Foi o professor o
primeiro a quebrar o silêncio.
- Sinto-me magoado, sr. Philander, por ver que estou uma tal
falta de coragem viril em face de um animal inferior, e que,
pela sua incrível timidez, me tenha forçado a um esforço
físico muito distante dos meus hábitos, para ter ocasião de
continuar a dizer-lhe o que penso sobre o assunto que
inclusivamente deveria ocupar-nos. Como eu afirmava, no
momento em que me interrompeu com lamentável descortesia, os
mouros...
- Professor Arquimedes T. Porter... - cortou bruscamente o
sr. Philander -... chegou a altura em que a paciência se torna
um crime e a violência nos surge com o manto da virtude.
Acusou-me de cobardia! Insinuou que tinha corrido
exclusivamente no propósito de me alcançar, não para escapar
às garras do leão! Cuidado, professor Arquimedes Q. Porter!
Sou um homem desesperado! Saturado de longa e dolorosa
sujeição, o próprio verme se revolta!
- Tut, tut... sr. Philander... - adomestou o professor. -
Está a esquecer-se de si mesmo...
- Não estou a esquecer-me de coisa nenhuma, professor... mas
acredite que posso verdadeiramente esquecer-me do respeito
devido à sua posição no mundo da ciência, e aos seus cabelos
brancos!
O professor não respondeu, durante alguns minutos. A
escuridão não deixava ver o sombrio sorriso que lhe enrugava
mais a face enrugada. Por fim disse, agressivo:
- Escute, Primitivo Philander... Se é uma briga,

179

que procura, tire o casaco, desçamos ambos daqui e eu dou-lhe
um soco nas ventas, como já fiz uma vez, há sessenta anos, na
ruela por detrás do Porky Evans!
- Oh!. - exclamou o espantado sr. Philander. - Céus, como é
agradável ouvi-lo! Quando você se torna humano, Arquimedes,
torna-se um excelente companheiro! Mas há uns bons vinte anos
que nunca... mais voltou a ser humano!
O professor estendeu timidamente a frágil e velha mão
trémula, na escuridão, e poisou-a no ombro do seu amigo de
sempre.
- Desculpe, Sam... - murmurou ele, brandamente. - Não foi
ainda há vinte anos, e só Deus sabe como tenho tentado ser
humano, por amor de Jane e por amizade quanto a você. desde
que Ele me levou a outra Jane.
O sr. Philander levantou uma das mãos, para bater
suavemente, com amizade, naquela que se poisava sobre o seu
ombro - e nenhuma outra mensagem seria mais clara entre
aqueles dois velhos camaradas.
Ficaram ambos em silêncio, por algum tempo.
Em baixo, o leão andava excitadamente de um lado para o
outro. O terceiro vulto, sobre a árvore, estava mergulhado na
sombra. Também ele se mantinha calado - imóvel como uma figura
esculpida no próprio tronco.
- Você puxou-me para aqui exactamente a tempo. - disse o
professor, por fim. - Quero agradecer-lhe. Salvou-me a vida.

180

- Não fui eu quem o puxou, professor... - respondeu o sr.
Philander. - Deus louvado! A excitação do momento fez-me
esquecer que também eu fui içado por alguém. alguém que deve
estar perto de nós, nesta árvore.
- Hem?... - exclamou o professor. - Tem a certeza disso,
Philander?
- Absoluta certeza, professor, e creio que devemos
agradecer, ambos, a essa pessoa. Talvez esteja aí a seu lado,
professor.
- Como? Tut, tut, Philander... - murmurou o professor
Porter, chegando-se mais para o amigo.
Foi nesse momento que Tarzan dos Macacos, achando que Numa
já andava há demasiado tempo em volta da árvore, ergueu a bela
cabeça e lançou para os céus - e para os ouvidos apavorados
dos dois homens - o formidável grito de desafio dos
antropóides. Os dois amigos, trémulos e agarrados, em precária
posição, sobre o ramo da árvore, viram o leão deter-se no seu
caminhar agitado, quando soou o tremendo grito, e então
internar-se rapidamente na selva onde logo desapareceu.
- Até o leão tremeu de medo... - sussurrou o sr. Philander.
- Notável... Muito notável. - murmurou o professor,
agarrando-se ao companheiro para recuperar o equilíbrio que o
susto pusera em grave perigo.
Desafortunadamente para o professor e para o amigo, o centro
de gravidade do digno sr. Philander também se havia deslocado.
de maneira que bastou o pequeno impulso adicional para
determinar o desastre.

181

Ambos oscilaram sobre o ramo, gritando de maneira pouco
académica. e ambos caíram, agarrados um ao outro.
Decorreu algum tempo antes que eles se movessem, pois
estavam convencidos de que qualquer movimento revelaria as
múltiplas fracturas que decerto haviam sofrido. Por fim, o
professor Porter tentou estender uma perna, e teve a feliz
surpresa de ver que o membro inferior se comportava como antes
da queda. Então estendeu a outra perna.
- Notável, muito notável. - murmurou.
- Graças a Deus, professor. - murmurou Philander. - Não está
morto?
- Tut, tut... Não sei ainda, com perfeita certeza...
Com infinitas cautelas, o professor agitou o braço direito.
e verificou com alegria que estava intacto.
Fez o mesmo com o braço esquerdo. sem sentir qualquer dor:
Chegou mesmo a acenar, experimentalmente.
- Notável, muito notável... - repetiu.
- Para quem está a fazer sinais?... - perguntou Philander,
excitado.
O professor Porter deixou passar sem resposta a pergunta
pueril. e levantou brandamente a cabeça, inclinando o pescoço
em várias direcções.
- Notável. - voltou a repetir. - Tudo intacto.
O sr. Philander não se movera de onde tinha caído.
Não se atrevia. Como poderia mover-se, se seguramente tinha
braços e pernas partidos? Um dos seus olhos estava mergulhado
na terra macia. O outro, de soslaio, mirava as estranhas
contorções do pescoço do professor.

182

- Que tristeza... - comentou o sr. Philander, a meia voz. -
Concussão cerebral, tendo como consequência uma aberração
completa. Que tristeza! Um homem ainda tão novo!
O professor Porter rolou sobre si mesmo e colocou-se de
bruços; devagar, foi arqueando as costas até dar a ideia de um
gato nas proximidades de um cão a ladrar. Depois sentou-se e
apalpou várias regiões da sua anatomia.
- Tudo em ordem. - declarou. - Notável.
Logo depois levantou-se e, relanceando os olhos para o vulto
prostrado de Samuel T. Philander, disse:
- Tut, tut, sr. Philander... Não é altura de se entregar a
atitudes de preguiça. Temos de nos pôr a caminho!
Philander conseguiu arrancar da lama o seu olho direito, e
fitou o professor, com raiva. Depois tentou levantar-se. e não
ficou pouco surpreendido ao ver que podia fazê-lo sem custo.
Estava ainda furioso, todavia, ante a cruel injustiça da
insinuação do professor, e ia lançar um comentário ácido.
quando avistou um vulto que lhe pareceu enorme, e que os
observava atentamente. Entretanto o professor Porter
recuperara o seu chapéu de seda, que colocara sobre a cabeça
depois de o limpar cuidadosamente com a manga do fraque.
Quando notou que Philander apontava para qualquer coisa que
estava atrás dele, voltou-se e viu um gigante,

183

vestido apenas com uma tanga de pele e alguns adornos
metálicos, que os olhava.
- Muito boas-noites, sir. - disse o professor Arquimedes Q.
Porter, levantando o chapéu alto.
Em resposta o gigante fez-lhes sinal para que o seguissem, e
começou a caminhar ao longo da praia na direcção de onde eles
tinham exactamente vindo.
- Creio que é de elementar boa educação segui-lo. - disse
Philander.
- Tut, tut. - replicou o professor. - Não há muito que você
apresentava argumentos bastante lógicos a favor da teoria de
que devíamos seguir para o Sul. Mostrei-me céptico, mas você
conseguiu convencer-me. Portanto, tenho a certeza de que é
para o Sul que devemos ir, para encontrar os nossos amigos.
Desta forma, sigo para o Sul.
- Mas, professor Porter, este homem deve conhecer o caminho,
melhor do que nós. Suponho-o um indígena destes lugares. Pelo
menos devemos segui-lo durante algum tempo.
- Nada disso, sr. Philander... - redarguiu o professor. - Eu
sou um homem difícil de convencer, mas quando me convenço, as
minhas decisões são inalteráveis. Continuarei na direcção
certa, ainda que tenha de dar a volta ao Continente Africano
para chegar ao meu destino.
Continuariam a discutir se Tarzan não tivesse voltado para
junto deles, coisa que fez assim que notou o facto de não ser
seguido. De novo acenou para que o acompanhasssem, mas eles
não se moveram.

184

Então Tarzan perdeu a paciência, ante tais provas de
estúpida ignorância. Agarrou por um ombro o assustado sr.
Philander, e antes que o digno homem percebesse se ia ser
assassinado ou apenas aleijado para toda a vida, amarrou-lhe
ao pescoço uma extremidade da sua comprida corda.
- Sr. Philander!... - exclamou o professor. - Tut, tut. É
perfeitamente inacreditável que se submeta a tão indigno
tratamento.
Mas, mal tinha acabado de falar quando, por sua vez, foi
agarrado e preso pelo pescoço, com a mesma corda. Então Tarzan
partiu para o Norte, levando a reboque o apavorado professor e
o seu não menos apavorado secretário.
Em total silêncio, caminharam durante o que pareceu, aos
dois velhos desesperançados e cansados, bem infinitas horas.
Mas por fim, quando galgaram uma elevação de terreno ficaram
doidos de alegria ao avistarem a barraca, a menos de cem
metros de distância.
Aí, Tarzan soltou-os e, apontando para a barraca,
desapareceu na selva.
- Notável. Muito notável... - declarou o professor. - Mas
bem vê, sr. Philander, que eu tinha razão como é costume. Sem
a sua inexplicável teimosia, teríamos podido escapar a uma
série de experiências humilhantes, para não dizer perigosas.
Espero que de futuro encare os assuntos com um aspecto mais
prático e revelador de maior maturidade!
Samuel T. Philander estava demasiadamente satisfeito com o
desfecho feliz da sua aventura,

185

para se irritar com os sarcasmos do professor. Agarrou o amigo
por um braço e apressou-se a levá-lo na direcção da barraca.
Foi um grupo quase alegre, de gente abandonada, que voltou a
reunir-se ali. Amanheceu quando ainda estavam a contar as
várias aventuras, e a tecer hipóteses sobre a identidade do
estranho protector que haviam encontrado naquela região
selvagem. Esmeralda afirmava a pés juntos que se tratava com
certeza de um anjo do Senhor, enviado especialmente para velar
por eles. Clayton riu-se:
- Se o visse devorar a carne crua do leão, não o
consideraria decerto o seu anjo da guarda, Esmeralda!
- E nada havia de celestial na sua voz. - declarou Jane
Porter, estremecendo ainda ao recordar o espantoso rugido que
se seguira à morte da leoa.
- Nem procedeu de acordo com as minhas ideias preconcebidas
a respeito dos divinos mensageiros. - observou o professor. -
Esse... hum... cavalheiro. amarrou dois cientistas
respeitáveis, pelo pescoço, e conduziu-os através da selva,
como se fossem vacas.

186

CAPÍTULo 17

Funerais

Porque já era dia claro os componentes do grupo,
nenhum dos quais comera ou dormira desde a noite anterior,
começaram a tratar de preparar uma refeição. Os amotinados do
Arrow tinham-lhes deixado uma pequena porção de carne seca,
sopas e vegetais enlatados, biscoitos, farinha, chá, e café.
e tudo isso foi apressadamente cozinhado para satisfazer os
esfomeados apetites.
A tarefa seguinte consistia em tornar habitável a barraca, e
para isso tornava-se necessário, sem mais demora, remover os
pobres restos da tragédia que passara ali em época decerto
remota. O professor Porter e o sr. Philander fizeram um exame
atento e minucioso dos esqueletos. Os dois maiores -
concluíram eles - tinham pertencido a um homem e a uma mulher,
de uma das mais evoluídas espécies da raça branca. Ao pequeno
esqueleto prestaram apenas uma atenção passageira, visto que a
sua presença no berço indicava claramente ter sido um filho do
infeliz casal.
Quando preparavam o esqueleto do homem, para o funeral,
Clayton descobriu, num dos ossos dos dedos, um anel de oiro,
maciço. Pegou-Lhe, para o examinar, e soltou uma exclamação de
espanto, porque o anel tinha o brasão da casa de Greystoke.

187

Ao mesmo tempo Jane descobria os livros no armário, e
abrindo um deles viu, na primeira página, o nome de John
Clayton, Londres. Num segundo livro que abriu apressadamente,
viu um nome apenas, "Greystoke".
- Sr. Clayton!... - exclamou ela. - Que significa isto?
Nestes livros está o nome de pessoas da sua família!
- E aqui... - volveu ele, gravemente. - está o grande anel
da casa de Greystoke, que se perdeu desde que meu tio John
Clayton, o anterior Lord Greystoke... desapareceu...
presumivelmente no mar.
- Mas como explica que estas coisas estejam aqui, nesta
selva africana?
- Só há uma explicação, miss Porter. O falecido Lord
Greystoke não morreu afogado. Morreu aqui, nesta barraca, e
estes pobres ossos são tudo o que resta do que nele havia de
mortal.
- Então... aquilo ali... deve ter sido Lady Greystoke... -
murmurou Jane, reverente, indicando os ossos sobre a cama.
- A bela Lady Alice... - disse Clayton -, de cujas numerosas
virtudes e encantos pessoais muitas vezes ouvi falar a meus
pais. Pobre senhora...
Com profunda reverência e solenidade, os restos mortais de
Lord e Lady Greystoke foram enterrados perto da pequena
barraca, e entre ambos foi sepultado o diminuto esqueleto da
cria de Kala, a macaca. Quando o sr. Philander envolvia os
ossos da criança num pedaço de lona de vela,

188

examinou atentamente o crânio. Então chamou o professor
Porter, e os dois discutiram em voz baixa, durante alguns
minutos.
- Notável... Muito notável... - murmurou o professor.
- Deus louvado!... - exclamou Philander. - Devemos informar
imediatamente o sr. Clayton, sobre isto...
- Tut, tut, sr. Philander. - admoestou o professor
Arquimedes Q, Porter. - Deixemos que o passado morto enterre
os seus mortos...
E assim o velho professor repetiu as suas orações diante
daquela estranha sepultura, enquanto os seus companheiros se
mantinham silenciosos, de cabeça descoberta e curvada, à sua
volta. Das árvores, Tarzan dos Macacos observava a solene
cerimónia - mas sobretudo observava a linda face e a graciosa
figura de Jane Porter.
No seu peito selvagem e livre, agitavam-se novas emoções que
ele não conseguia entender. Não compreendia por que razão
sentia tanto interesse por aquela gente - por que motivo se
dera ao laborioso trabalho de salvar os três homens. Mas sabia
instintivamente qual a razão por que havia afastado Sabor da
carne macia daquela rapariga estranha.
Sem dúvida que os homens eram estúpidos, e ridículos, e
assustadiços. Mesmo Manu, o macaquito, era
mais inteligente do que eles. Se eram assim as criaturas da
sua espécie, duvidava de que o seu orgulho de raça tivesse
fundamento, Mas a rapariga - oh, essa era diferente.

189

Aqui Tarzan não se permitia raciocinar. Sabia, por natural
instinto, que ela havia sido criada para ser protegida... tal
como ele fora criado para a proteger.
Maravilhou-se de os ver abrirem um grande buraco no chão,
para enterrarem velhos ossos secos. Não fazia sentido, porque
ninguém desejaria roubar ossos secos. Se tivessem alguma carne
agarrada, Tarzan compreenderia, pois só assim a carne podia
ficar fora do alcance de Dango, a hiena, e dos outros gatunos
da selva.
Quando a sepultura ficou cheia e coberta de terra, o pequeno
grupo encaminhou-se para a barraca. Esmeralda, ainda a chorar
copiosamente pelos dois mortos de quem antes nunca ouvira
falar e que tinham morrido vinte anos antes, olhou por acaso
na direcção do porto, e imediatamente as suas lágrimas
cessaram.
- Olhem para aqueles malvados patifes brancos, além!... -
gritou ela, apontando para o Arrow. - Vão abandonar-nos aqui,
nesta maldita ilha!
E na verdade o Arrow estava a ser dirigido para o mar largo,
devagar, através da entrada da angra.
- Prometeram deixar-nos armas de fogo e munições... Os
impiedosos malvados... - murmurou Clayton.
- É obra desse a quem chamam Snipes, tenho a certeza... -
disse Jane. - King era um facínora, mas tinha um resto de
sentido humano. Se não o tivessem assassinado, ele teria feito
com que nos deixassem providos do necessário, antes de nos
abandonarem ao nosso destino.
- Lamento que não nos tenham visitado antes de partirem... -
disse o professor. - Eu tinha pensado em propor-lhes que nos
deixassem ficar o tesouro... porque se o perder serei um homem
arruinado.
Jane olhou com tristeza para o pai.
- Não te preocupes... Não serviria de nada, pois foi
exactamente por causa do tesouro que eles assassinaram os
oficiais e nos abandonaram aqui.
- Tut, tut, criança... És uma boa menina, mas sem qualquer
experiência de assuntos práticos... - volveu o professor. E,
dando meia volta, afastou-se na direcção da selva, de cabeça
curvada e as mãos cruzadas nas costas.
A filha olhou-o, com um patético sorriso. Depois,
voltando-se para o sr. Philander, sussurrou:
- Por favor, não o deixe afastar-se como fez ontem. Bem sabe
que todos dependemos de si para o vigiar.
- Torna-se mais difícil de manobrar em cada dia que passa...
- respondeu Philander, suspirando e abanando a cabeça. - Creio
que vai agora queixar-se, junto dos directores do Zoo, de que
um dos leões andava à solta ontem à noite. Bem vê o que eu
tenho de enfrentar, miss Jane.
- Sim, sr. Philander... Mas, embora todos o adoremos, só o
senhor pode realmente orientá-lo. Apesar do que lhe diz, ele
respeita a sua grande cultura

191

e tem imensa confiança no seu julgamento. O pobre querido não
distingue erudição de sensatez.
Então, o sr. Philander, com uma expressão um tanto
intrigada, voltou-se para seguir o professor Porter, tentando
resolver se devia sentir-se magoado ou lisonjeado pelo
cumprimento um tanto estranho da jovem.
Tarzan tinha visto a consternação do pequeno grupo ao verem
que o Arrow se fazia ao mar.
Assim, e porque o navio era também uma novidade para ele,
resolveu apressar-se ao longo do promontório que abrigava o
porto, para o observar mais de perto e fazer uma ideia da
direcção que ele seguia.
Saltando velozmente de árvore em árvore, alcançou o extremo
do promontório no momento em que o Arrow saía da passagem - e
assim pôde examinar a uma distância relativamente curta, as
maravilhas daquela estranha casa flutuante. Cerca de uma
vintena de homens andavam de um lado para o outro, no convés,
içando e puxando cordas. Soprava uma brisa leve, e o navio
atravessara a passagem com pouco velame, mas agora que estavam
no mar todas as velas eram içadas.
O homem da selva observava as graciosas evoluções do navio,
com maravilhada admiração - pensando que gostaria de ir a
bordo. A certa altura, os seus olhos penetrantes distinguiram
uma ténue coluna de fumo na linha do horizonte, e pasmou
quanto às possíveis causas de tal coisa surgindo da grande
extensão de água.

192

Quase ao mesmo tempo, o vigia do Arrow, por certo avistou
também o fumo, porque Tarzan viu os homens afadigarem-se
novamente, mas agora para colher ou arriar as velas. O navio
pareceu imobilizar-se, mas pouco a pouco começou a
aproximar-se novamente de terra. Um homem, à proa, mergulhava
a cada instante na água uma corda a cuja extremidade estava
preso um pequeno objecto. Tarzan nunca tinha visto uma sonda,
e não compreendeu a vantagem daquilo.
Por fim o navio parou, a âncora foi descida e todas as velas
arriadas. No convés, a azáfama aumentara, Um bote foi descido
para o mar, e nesse bote embarcaram uma grande mala. Então um
grupo de marinheiros fez força de remos e dirigiu o bote
exactamente para diante do ponto onde Tarzan estava curvado
entre as ramadas de uma grande árvore. À popa do bote que se
aproximava, Tarzan reconheceu o cara-de-rato.
Poucos minutos depois o bote varou na areia. Os homens
desembarcaram e transportaram a grande mala para a praia.
Estavam do lado norte do promontório, de maneira que não
podiam ser vistos desde a barraca.
Os homens discutiram, coléricos, durante algum tempo, dePois
o cara-de-rato e alguns dos seus companheiros subiram o
pequeno talude sobre o qual se erguia a árvore onde estava
Tarzan. Olharam em volta.
- Este é um bom lugar... - disse o cara-de-rato, indicando
um ponto exactamente junto da árvore.

193

- tão bom como qualquer outro... - retorquiu um dos
companheiros dele. - De qualquer maneira, se eles nos apanham
com o tesouro a bordo, confiscam-no. Podemos enterrá-lo aqui.
Talvez alguns de nós escapem da forca e possam vir aqui
buscá-lo...
O cara-de-rato pôs-se a chamar os homens que tinham ficado
junto do bote, e eles aproximaram-se devagar, trazendo
picaretas e pás.
- Aviem-se!... - berrou Snipes.
- Cala a boca, camarão. - ripostou um dos outros, com um
grito. - Estás convencido de que és algum almirante?
- Aqui sou o capitão e é melhor que entendas isso,
imbecil!... - grunhiu Snipes, soltando a seguir uma enfiada de
pragas.
- Calma, rapazes. - interveio um dos que não tinham ainda
falado. - Não conseguiremos nada se nos voltarmos uns contra
os outros.
- Está certo... - respondeu o que protestara contra o tom
autoritário de Snipes -, mas não vou consentir que ninguém
comece a dar-se ares de chefe.
- Cavem aqui, vocês. - disse Snipes, indicando um ponto
abaixo da árvore. - E enquanto vocês cavam, Peter pode fazer
um mapa do lugar, para podermos encontrá-lo mais tarde. Tom e
Bill. levem outros dois e vão buscar a mala!
- E tu o que fazes?... - perguntou o que já havia
recalcitrado. - Dás ordens a eito?
- Andem com isso. - resmungou Snipes. - Acham que o capitão
também vai cavar com uma pá?
Todos os homens o fitaram, zangados. Nenhum deles gostava de
Snipes, e aquela exibição de autoridade,

194

depois de ter assassinado King, que era o verdadeiro chefe do
motim, só servia para aumentar a chama do ódio.
- Queres dizer que não vais pegar numa pá e
dar uma ajuda neste trabalho? O teu ombro não está
assim tão mal como isso!
- Não, nem de longe... - retorquiu Snipes, tocando
nervosamente na coronha do revólver.
- Então, pelo inferno. - Exclamou Tarrant, o homem que
falara antes -, Se não pegas na pá, ficas com a picareta!
E, enquanto falava, o homem levantou a picareta acima da
cabeça e baixou-a, num golpe furioso, destroçando a cabeça de
Snipes. Por momentos, os outros ficaram a olhar. Depois um
deles disse:
- Foi bem feito, era o que ele estava a pedir...
Recomeçaram a trabalhar, mas porque o terreno era brando
puseram de lado as picaretas e empunharam as pás. Ninguém mais
fez comentários, mas pareciam mais satisfeitos do que estavam
desde que Snipes assumira o comando. Quando tiveram uma vala
grande bastante para que nela coubesse a mala, Tarrant sugeriu
que a alargassem um pouco mais Para enterrarem ali o corpo de
Snipes, acima da mala.
- Pode ajudar a enganar alguém que se lembre de começar a
cavar neste sítio... - explicou ele.
Os outros viram que a ideia era ardilosa, e assim aumentaram
a largura, o comprimento e a profundidade do buraco, ao centro
do qual fizeram outra cova onde coubesse a mala. Embrulharam
esta, em lona de vela,

195

e desceram-na para essa cova, o que deixou a tampa da mala a
cerca de um pé de profundidade relativamente ao terreno.
Taparam-na com terra, que pisaram bem para que o fundo da cova
que ia ser sepultura ficasse bastante liso. Então dois dos
homens empurraram o corpo do cara-de-rato, depois de lhe
tirarem as armas e outras coisas que vários membros do grupo
cobiçavam. A sepultura também foi cheia com terra até não
caber mais. A terra que sobrou foi espalhada em redor, e
cobriram a superfície com ramos secos, ao acaso, para fazer
desaparecer todos os vestígios de haverem revolvido o terreno.
Feito o trabalho, voltaram para o bote e remaram rapidamente
na direcção do Arrow. O vento aumentara consideravelmente de
intensidade. A coluna de fumo parecia agora muito maior e
via-se distintamente. Os amotinados não perderam mais tempo.
Içando todas as velas, partiram com rumo a Sudoeste.
Tarzan, espectador interessado de tudo o que se havia
passado, continuou imóvel, a meditar nas estranhas acções
daquela estranha gente. Os homens eram na verdade mais
estúpidos e mais cruéis do que os animais da selva! Que
conteria aquela mala que eles haviam enterrado? Se não a
queriam, por que razão não a haviam lançado ao mar,
simplesmente Teria sido muito mais fácil. Mas, reflectindo,
Tarzan chegou à conclusão de que eles queriam a mala.
Tinham-na escondido porque pensavam vir buscá-la ali, mais
tarde.

196

Tarzan saltou para o chão e começou a examinar o terreno em
volta da cova. Procurava alguma coisa que aquela gente tivesse
deixado cair e lhe agradasse.
Não tardou a descobrir uma das pás, coberta pelo mato que os
homens haviam esgalhado sobre a sepultura. Agarrou a pá e
tentou utilizá-la como tinha visto os marinheiros fazerem. Era
um trabalho desagradável e Tarzan magoava os pés nus, mas ele
insistiu até destapar parcialmente o corpo. Então agarrou
Snipes, pelos pés, e puxou-o para o lado.
Continuou a cavar até desenterrar a mala, puxou-a também
para fora. Então encheu de terra o buraco mais pequeno, voltou
a colocar o corpo do cara-de-rato no lugar onde estivera, e
cobriu-o com terra, em volta e por cima, espalhando novamente
mato como vira fazer. Quatro marinheiros tinham suado sob o
peso da mala. Tarzan aproximou-se dela e levantou-a como se se
tratasse de um caixote vazio. Depois, levando às costas a pá,
presa na corda, afastou-se, com a pesada mala, e internou-se
pela parte mais densa da selva.
Não lhe era fácil seguir pelas árvores com aquela carga,
mais pelo feitio incómodo do que pelo peso. Seguiu ao longo
das trilhas, caminhando bastante depressa. Durante várias
horas caminhou para nordeste, até alcançar uma quase
impenetrável muralha de espessa vegetação entrelaçada. Então,
mau grado a carga, saltou por cima do mato rasteiro - e de
ramo em ramo, um quarto de hora mais tarde emergia no
anfiteatro dos macacos, onde celebravam os ritos do Dum-Dum.

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Perto do centro da clareira, a curta distância do tambor de
terra, começou a cavar o chão. O trabalho era agora mais
difícil do que voltar a revolver a terra já revolvida, mas
Tarzan insistiu até abrir um buraco suficientemente profundo
para lá poder enterrar a mala e eficazmente a esconder. Mas
para que tivera tanto trabalho, sem sequer conhecer o conteúdo
da mala?
Tarzan tinha a figura e o cérebro de um homem, mas quanto a
treino e a ambiente, era um gorila. O seu cérebro dizia-lhe
que a mala continha qualquer coisa valiosa, senão os homens
não a teriam escondido. O seu treino ensinara-o a imitar tudo
o que era novo ou invulgar, e agora a curiosidade natural, que
é comum aos homens e aos macacos, incitava-o a abrir a mala e
examinar o seu conteúdo.
Todavia, o forte fecho e as maciças tiras de ferro que
defendiam a mala resistiram igualmente à sua astúcia e à sua
tremenda força. Resolveu enterrar a mala sem satisfazer a sua
curiosidade. Quando, deslocando-se rapidamente, chegou de novo
perto da barraca, era noite - e noite escura.
Mas, dentro da barraca havia luz, pois Clayton encontrara
uma lata de óleo que se mantivera intacta durante vinte anos,
e parte das provisões deixadas a John e a Alice, por Black
Michael. As lanternas também se conservavam utilizáveis, e
assim o interior da barraca aparecia tão iluminado como de
dia, ante os olhos pasmados de Tarzan.
Muitas vezes ele tinha pensado na exacta utilização das
lanternas. A leitura e as imagens tinham -Lhe dito o que eram,
mas ele não fazia ideia de como conseguir

198

que elas dessem a maravilhosa luz que algumas imagens
mostravam, espalhada sobre todos os objectos em volta.
Ao aproximar-se da janela mais próxima da porta, viu que a
barraca havia sido dividida em dois compartimentos, por uma
grosseira separação feita com ramos e lona de velas. No
compartimento da frente estavam os três homens, os dois mais
velhos mergulhados numa discussão, e o mais novo, encostado à
parede e sentado sobre um banco improvisado, absorvido na
leitura de um dos livros de Tarzan.
Mas Tarzán não estava particularmente interessado nos
homens, e assim encaminhou-se para a outra janela.
Ali estava a rapariga. Como ela era bonita... e como a sua
pele muito branca parecia ser macia e delicada!
Ela estava a escrever sobre a própria mesa de Tarzan, perto
da janela. Sobre um monte de ervas secas, ao fundo do
compartimento, a negra dormia. Durante quase uma hora, Tarzan
esteve a olhar Jane, enquanto ela escrevia. Desejava
ardentemente falar-lhe, mas não se atrevia a tentá-lo porque
estava convencido de que ela, como o rapaz, não o
compreenderia, e receava assustá-la.
Por fim, Jane levantou-se, deixando o manuscrito sobre a
mesa. Dirigiu-se para a cama, sobre a qual havia espalhado
várias camadas de ervas macias, que compôs. Então soltou a
massa de cabelos doirados que lhe cobria a cabeça e que, como
uma cascata iluminada pelo sol poente, lhe emoldurou a face.

199

Tarzan sentia-se enfeitiçado. A jovem apagou a lanterna, e
toda a barraca mergulhou em escuridão total. O homem da selva
continuou imóvel. Curvado sob a janela, esperou, à escuta,
durante meia hora. Por fim ouviu o som ritmado e calmo da
respiração, que denuncia o sono.
Cautelosamente, introduziu a mão pelo buraco que Sabor
abrira no engradado da janela, e com a mesma cautela tacteou a
mesa. Por fim apanhou o manuscrito de Jane e retirou o braço,
trazendo o precioso tesouro.
Dobrou as folhas e guardou-as na aljava, com as flechas.
Entãopareceu fundir-se na escuridão da selva, tão suave e
silenciosamente como uma sombra.

CAP´ÍTULO 18

O tributo da selva

Cedo, na manhã seguinte, Tarzan acordou - e o seu primeiro
pensamento do novo dia, tal como o último do dia anterior, foi
para a preciosa carta que guardara na sua aljava. Apressou-se
a ir buscá-la, esperando, contra toda a esperança, que pudesse
ler o que a bela rapariga branca escrevera na véspera à noite.
Ao primeiro relance de olhos, teve um amargo desapontamento.

200

Nunca, antes, desejara tanto alguma coisa como agora
desejava poder interpretar a mensagem daquela jovem deusa de
cabelos de oiro, que tão inesperadamente surgira na sua vida.
Que importância tinha o facto de a carta não lhe ser
destinada?
Era a expressão do pensamento dela e isso bastava para
Tarzan, Mas agora chocava contra aqueles caracteres estranhos,
torcidos, como nunca tinha visto! Estavam mesmo inclinados
numa direcção diferente da que ele conhecia através da letra
de imprensa, e das letras manuscritas nas poucas cartas que
encontrara. Até os pequenos sinais do livro de capa preta lhe
pareciam velhos conhecimentos de tantas vezes
ter tentado decifrar a sua significação, apesar de a
disposição em que se encontravam não significar nada para ele.
Durante mais de vinte minutos esteve a olhar para a carta,
num tenso esforço de atenção - até que os caracteres começaram
a tomar formas familiares, ainda que retorcidas. Sim, ali
estavam os seus velhos amigos, mas com estranhos aspectos.
Compreendeu uma palavra aqui, outra além. O seu coração batia
com força, alegremente. Podia ler, e havia de ler. Meia hora
mais e já estava a abrir caminho por entre aquele labirinto de
sinais bicudos e delicados. Excepto quanto a uma palavra ou
outra mais complicada, o resto era quase fácil de decifrar.
Eis o que ele leu:

"CosTA OCIDEnTAL AFRICANA CERCA DE 10 graus DE LATITUDE SUL
(Segundo diz o sr. Clayton). 3 (?) de Fevereiro de 1909.

201

"Querida Hazel:

Parece loucura escrever-lhe uma carta que talvez nunca
chegue às suas mãos, mas tenho de contar a alguém as nossas
terríveis experiências desde que partimos da Europa no
malfadado Arrow.
Se nunca mais voltarmos à civilização, como agora parece
provável, isto será, pelo menos, um breve registo dos
acontecimentos que conduziram ao nosso fim, seja ele qual for.
Como sabe, nós devíamos iniciar uma expedição científica no
Congo. Meu pai mantinha, aparentemente, uma estranha teoria
sobre uma civilização inimaginavelmente antiga, vestígios da
qual existiam ainda, enterrados algures no vale do Congo. Mas,
depois de havermos principiado a viagem, a verdade surgiu.
Ao que parece, um catador de livros, que tem uma livraria e
loja de antiguidades em Baltimore, descobriu, entre as folhas
de um velho manuscrito espanhol, uma carta escrita em 1550,
relatando as aventuras da tripulação amotinada de um galeão
espanhol que partira de Espanha para a América do Sul, com um
vasto tesouro de dobrões e peças de oiro.
O autor da carta pertencera à tripulação, e a carta era
dirigida a um filho que, nessa altura, era contramestre a
bordo de um navio mercante também espanhol. Muitos anos haviam
decorrido desde que os acontecimentos, aos quais a carta se
referia, se tinham tornado conhecidos, e o velho tornara-se
entretanto cidadão respeitável, numa pequena cidade de
Espanha.

202

Mas o amor pelo oiro era ainda tão forte, nele, que arriscou
tudo para indicar ao filho a maneira de obter uma fabulosa
fortuna para ambos.
O autor contava como, a apenas uma semana de viagem, a
tripulação se havia amotinado, matando os oficiais e todos os
que se opunham aos seus desígnios. Mas, com esse mesmo acto,
tinham-se condenado a si próprios, pois que nenhum deles
conhecia a arte de conduzir um navio no alto mar.
Foram arrastados pelos ventos e pelas correntes, sem saberem
para onde, durante dois meses, até que, doentes e moribundos
em consequência do escorbuto, da fome e da sede, haviam
encalhado numa pequena ilhota.
O galeão foi levado, pelas vagas, para uma praia onde se
desmantelou ...mas não antes que os sobreviventes, em número
de dez, pudessem salvar uma das grandes malas que continham o
tesouro. Enterraram a mala, na ilha, e durante três anos ali
viveram, sempre na esperança de serem socorridos. Mas, um a
um, foram adoecendo e morrendo, até que ficou apenas vivo o
autor da carta.
Os homens haviam construído um bote, com os destroços do
galeão, mas porque não faziam a mais pequena ideia da
localização da ilha, nunca se tinham atrevido a fazer-se ao
mar.
No entanto, quando ficou completamente só, o isolamento
pesou de tal maneira na mente do único sobrevivente - que, sem
poder aguentar mais, preferindo morrer no mar a endoidecer na
ilha deserta, partiu no seu pequeno bote,

203

ao cabo de um ano de solidão.
Afortunadamente fez rumo ao Norte, e uma semana depois
estava na linha de navegação seguida pelos navios mercantes
espanhóis, entre as Índias Ocidentais e a Espanha. Foi então
recolhido por um desses navios, que regressava à Europa.
Contou aos seus salvadores que o navio em que seguia havia
naufragado, com perda quase total de corpos e bens. Apenas um
punhado de homens tinha sobrevivido, mas todos, excepto ele
próprio, haviam morrido na ilha. Não falou do motim a bordo,
nem do tesouro enterrado.
O capitão do navio mercante disse-lhe que, a julgar pela
posição em que o tinham encontrado, e considerando os ventos
dominantes durante a última semana, a ilhota devia pertencer
ao arquipélago de Cabo Verde, ao largo da costa de África, a
cerca de 16 ou 17 graus de latitude Norte.
A carta descrevia minuciosamente a ilha, bem como a
localização do tesouro, e era acompanhada pelo mapa mais tosco
e minúsculo, que se possa imaginar. Árvores e rochas estavam
marcados com X, para indicar o ponto exacto onde a mala havia
sido enterrada.
Quando meu pai explicou a verdadeira natureza da expedição,
senti-me desolada: porque conhecia bem até que ponto ele é um
visionário sem espírito prático. Temi que ele tivesse sido
ludibriado, mas uma vez, especialmente quando me confessou que
pagara mil dólares pelo mapa e a carta.

204

Para aumentar a minha preocupação, soube que ele pedira dez
mil dólares mais, a Robert Canler, assinando recibos por essa
quantia.
O sr. Canler não exigiu qualquer espécie de garantia, e você
sabe, minha querida, o que significará, para mim, se meu pai
não puder resgatar os recibos. Oh, como eu detesto esse homem!
Todos nós tentámos ver o caso pelo lado menos desanimador,
mas o sr. Philander, e o sr. Clayton - este juntou-se a nós,
em Londres, só pelo prazer da aventura - sentiam-se tão
cépticos como eu.
Para encurtar a história... encontrámos a ilha e o tesouro,
uma grande mala de madeira de carvalho, precintada de ferro,
embrulhada em grande porção de lona oleada, e tão sólida e
forte como quando fora enterrada ali, cerca de quatro séculos
antes.
Estava "totalmente cheia de moedas de oiro#, e era tão
pesada que quatro homens vergavam sob o seu peso.
Essa horrível coisa trouxe apenas crimes e desgraças, a
todos os que lidaram com ela, porque três dias depois de
termos partido da ilhota, a nossa própria tripulação
amotinou-se, assassinando os oficiais. Foi a mais terrível
experiência pela qual passei, e nem posso escrever a tal
respeito. Os amotinados queriam também matar-nos, mas um
deles, o chefe, de nome King, não o consentiu. Assim,
navegaram para o Sul, ao longo da costa africana, até
encontrarem um porto natural, deserto, e aqui desembarcaram e
nos deixaram.

205

Partiram hoje, levando o tesouro, mas o sr. Clayton diz que
eles vão ter a mesma sorte dos amotinados do velho galeão,
porque King, o único que entendia alguma coisa de navegação,
foi assassinado na praia, por um dos outros, no próprio dia em
que chegámos.
Gostaria que você conhecesse o sr. Clayton. É o companheiro
mais simpático que se possa imaginar, e ou me engano muito ou
ele se apaixonou por mim. É o único filho de Lord Greystoke, e
algum dia herdará o título e a fortuna. Além disso, ele
próprio é muito rico, mas o facto de vir a ser um lord
entristece-me bastante - você sabe o que eu sempre pensei a
respeito das raparigas americanas que casam com titulares
estrangeiros. Se ele fosse apenas um gentleman americano...
A culpa não é dele, pobre rapaz, e em tudo, excepto no
nascimento, ele faria honra ao meu país, e isto é o mais alto
cumprimento que posso fazer a um homem.
Passámos pelas mais estranhas experiências, desde que
desembarcámos aqui. O pai e o sr. Philander perderam-se na
selva e foram perseguidos por um verdadeiro leão. O sr.
Clayton perdeu-se também e foi atacado por duas vezes por
animais selvagens. Esmeralda e eu estivemos encurraladas numa
velha barraca, por uma leoa enfurecida e esfomeada. Foi
terribilíssimom, como diria Esmeralda. Mas o mais estranho de
tudo isto foi a maravilhosa criatura que nos salvou a todos.
Eu não o vi, mas o sr. Clayton, e meupai, e o sr. Philander,

206

viram-no. Dizem que é um homem branco, belo como um deus, com
a pele bronzeada pelo sol, a força de um elefante, ágil como
um macaco e corajoso como um leão. Não fala inglês, e depois
das suas espantosas proezas desaparece tão rápida e
misteriosamente como se fosse apenas um espírito.
Temos um outro fantástico vizinho, que escreveu um aviso, em
inglês, e o colocou na porta da barraca onde nós tínhamos
entrado, avisando-nos para não destruirmos as suas coisas.
Assinou "Tarzan dos Macacos". Nunca o vimos, mas supomos que
ele anda por aqui, Um dos marinheiros tentou ferir o sr.
Clayton pelas costas, com um tiro, e uma lança feriu-o num
ombro, fazendo-o falhar a pontaria. A lança foi atirada por
alguém invisível, oculto na selva. Os marinheiros deixaram-nos
uma pequena provisão de comida, e assim, porque dispomos
apenas de um revólver e de três balas, não sabemos como
conseguir carne. Mas, o sr. Philander diz que nos podemos
manter indefinidamente com as nozes e frutos selvagens que
abundam na floresta.
Estou muito cansada, agora, e vou estender-me na engraçada
cama feita com ervas que o sr. Clayton apanhou para mim, Mas
continuarei a escrever dia a dia, conforme se forem
desenrolando os acontecimentos.

Com afecto JANE PORTER

PARA HAZEL STRONG, BALTIMORE, EUA.

207

Tarzan ficou sentado, a pensar, durante bastante tempo,
depois de ter concluído a leitura da carta. Havia ali tantas
coisas novas e maravilhosas, que no seu cérebro se formara
como que um turbilhão, ao tentar compreendê-las todas.
Ao que parecia não sabiam que ele era Tarzan dos Macacos.
Dir-Lhes-ia. Construíra numa árvore um tosco abrigo de folhas
e ramos, sob o qual, protegidos da chuva, colocara os pequenos
tesouros que trouxera da barraca. Entre essas coisas havia
alguns lápis. Pegou num e, sob a assinatura de Jane Porter,
escreveu:
"EU SOU TARZAN DOS MACACOS".
Pensou que isso seria suficiente. Mais tarde reporia a carta
sobre a mesa de onde a tirara. Quanto à comida, pensou também
que não teriam de preocupar-se. Ele trataria disso. E assim
fez.
Na manhã seguinte, Jane encontrou a carta no lugar exacto de
onde desaparecera duas noites antes. Ficou intrigada, mas
quando viu as palavras escritas em letra de imprensa, sob a
sua assinatura, sentiu um calafrio percorrê-la. Mostrou a
carta, ou antes, a última página da carta, a Clayton.
- E pensar... - disse ela. - que essa estranha criatura
esteve provavelmente a espreitar-me quando eu escrevia. Oh!
Estremeço, só de imaginar isso!
- Mas ele deve ser amigo. - tranquilizou Clayton. -
Restituiulhe a carta, não fez qualquer
ameaça. e, a não ser que eu esteja enganado, deixou uma prova
substancial da sua amizade, esta noite,

208

À porta da barraca. Quando saí, vi um porco selvagem que tinha
sido abatido pouco antes.
Daí por diante, era raro passar um dia em que não aparecesse
à porta uma peça de caça, ou outros alimentos. De uma vez foi
um pequeno gamo, de outra vez uma porção de bolos cozinhados -
que Tarzan fora buscar à aldeia de Mbonga - e houve uma manhã
em que encontraram um leopardo morto, e noutra um leão.
Tarzan sentia um grande prazer em caçar para aqueles
desconhecidos. Parecia-lhe que não podia haver satisfação
maior, para ele, do que trabalhar para o bem-estar e a
protecção da bela rapariga. Alguma vez se aventuraria a
aparecer em pleno e a falar-Lhes por intermédio dos pequenos
sinais
- que eram familiares para eles e para Tarzan. Mas não lhe era
fácil dominar a sua timidez de criatura selvagem, e assim os
dias seguiam-se uns aos outros sem que ele pusesse em prática
as suas boas intenções. O grupo da barraca, tornado audacioso
pelo hábito, aventurava-se cada vez mais longe pela selva, em
busca de nozes e outros frutos. Era raro o dia que o professor
Porter, na sua permanente indiferença por tudo o que o
cercava, não estivesse a dois passos da morte. O Sr.
philander, que nunca fora o que se poderia chamar um homem
robusto, estava deitádo, reduzido à sombra de uma sombra, pela
angústia dos constantes esforços para proteger o professor.

209

Passou um mês, e Tarzan tomou finalmente a resolução de
aparecer no acampamento durante o dia. Era de manhã cedo, e
Clayton afastara-se até à extremidade do promontório, na
esperança de avistar algum navio. Reunira ali uma boa porção
de lenha, pronta para arder como sinal no caso de algum
penacho de fumo, ou alguma vela, surgir no horizonte. O
professor Porter vagueava pela praia, ao sul da barraca,
acompanhado pelo sr. Philander que insistia com ele para que
voltassem, antes de se tornarem novamente divertimento para
alguma fera. Afastados os homens, Jane e Esmeralda tinham
penetrado na selva, em busca de frutos, e sem darem por isso
foram-se afastando da barraca.
Tarzan esperou em silêncio, junto da porta, pelo regresso
deles. Os seus pensamentos concentravam-se na bela rapariga
branca. Agora pensava sempre nela. Fazia conjecturas sobre se
ela teria medo ao vê-lo, e essa ideia quase o levou a adiar
ainda uma vez o seu plano.
Começava a impacientar-se, desejoso de a olhar e de estar
perto dela, talvez de lhe tocar. Não tinha qualquer espécie de
religião, mas sentia-se inclinado a adorá-la como a uma
divindade. Enquanto esperava começou a escrever uma mensagem
para ela. Não saberia dizer se a sua ideia era entregar-lhe em
mão aquela mensagem, mas sentia um profundo prazer em exprimir
com letras o seu pensamento - o que não era ideia totalmente
incivilizada. Escreveu:

210

"Sou Tarzan dos Macacos e quero-a. Pertenço-lhe. É minha...
Vivemos sempre aqui, juntos, na minha casa. Eu trago-lhe os
melhores frutos, a carne mais macia que há na selva, e caço
para si. Sou o maior dos lutadores da selva, e o mais
poderoso. Luto por Jane Porter, eu vi na carta. Quando
encontrar isto saberá que é para si, e que Tarzan dos Macacos
ama."

Enquanto esperava, em pé junto da porta, já depois de
escrever a mensagem, o seu ouvido apurado registou um ruído
familiar, o da passagem de um gorila ao longo dos ramos baixos
das árvores, na floresta. Por instantes ficou atento... e logo
a seguir veio da selva um grito agudo, de mulher. Deixando
cair no chão a mensagem que escrevera - a sua primeira carta
de amor - Tarzan lançou-se para a frente, como um raio.
Clayton também ouviu o grito, e o professor Porter, e o sr.
Philander, e minutos depois chegavam à barraca, ofegantes,
gritando uns aos outros uma torrente de perguntas. Um relance
de olhos para dentro da barraca confirmou os seus piores
receios. Jane e Esmeralda não estavam ali. No mesmo instante
Clayton, seguido pelos dois velhos, correu para a selva,
gritando o nome de Jane. Durante meia hora correram ao acaso,
até que, por simples sorte, encontraram o corpo caído, de
Esmeralda. Clayton ajoelhou ao lado dela, tocando-lhe o pulso.
Estava viva. Então sacudiu-a, gritando-lhe aos ouvidos:
- Esmeralda! Pelo amor de Deus, onde está Miss Porter? Que
aconteceu?

211

Lentamente, Esmeralda abriu os olhos. Viu Clayton, viu a
selva à sua volta.
- São Gabriel!... - gritou, antes de desmaiar outra vez.
- Que fazemos, sr. Clayton?... - perguntou o velho
professor. - Aonde vamos procurar? Deus não pode ter-me tirado
a minha filha!
- Primeiro temos de despertar Esmeralda... - volveu Clayton.
- Ela poderá contar-nos o que se passou... Esmeralda!... -
voltou a gritar, voltando também a sacudir a negra.
- Oh, São Gabriel! Quero morrer!... - soluçou a pobre
mulher, sem abrir os olhos. - Quero morrer, São Gabriel! Não
me deixes ver outra vez a cara horrível!
- Vamos, Esmeralda... - bradou Clayton, desesperado. - Não
sou São Gabriel! Sou eu... Clayton! Abra os olhos!
Esmeralda obedeceu.
- Oh, São Gabriel! Graças ao Senhor!
- Onde está miss Porter? O que aconteceu?.. - perguntou
Clayton.
- Miss Jane não está aqui?... - exclamou Esmeralda,
sentando-se no chão com uma rapidez pasmosa para alguém do seu
peso. - Oh, céus... Lembro-me agora... Ele deve tê-la
levado...
- Mas quem a levou?... - gritou o professor.
- Um grande gigante, todo cheio de pêlos...
- Um gorila, Esmeralda?... - perguntou o sr. Philander,
enquanto os outros continham a respiração no horror da ideia.

212

- Pensei que fosse o diabo... mas acho que devia ser um
gorila desses... Oh, a minha pobre menina, minha pobre
querida!
Clayton deixou a negra a soluçar perdidamente e pôs-se em
busca de uma pista, mas nada descobriu a não ser uma confusão
de ervas pisadas, em volta.
Os seus conhecimentos em tal matéria eram demasiadamente
escassos para que pudesse compreender o que via.
Durante todo o resto do dia procuraram através da selva, mas
com o cair da noite foram forçados a desistir, desesperados e
sem forças, porque nem sequer sabiam em que direcção o animal
levàra Jane. Era noite escura quando alcançaram a barraca é
entraram, em silêncio. Só ao cabo de algum tempo o professor
se resolveu a falar. Mas agora a sua voz não era a do erudito
fabricando teorias sobre o abstracto e o inexplicável. As suas
palavras foram as de um homem de acção, resoluto mas
angustiado, tão cheio de desespero que Clayton sentiu
apertar-se-lhe o coração.
- Vou estender-me e tentar dormir... - disse o velho. -
Amanhã cedo, assim que houver luz, levarei as provisões que
puder transportar e irei em busca de Jane. Não voltarei sem
ela.
Os seus companheiros não responderam imediatamente. Cada
qual estava mergulhado em pensamentos angustiosos, e ambos
sabiam, tal como o velho professor, o que significavam as
últimas palavras dele - o professor Porter não regressaria da
selva... Por fim, Clayton levantou-se e poisou brandamente

213

uma das mãos sobre um ombro de Porter.
- Eu irei consigo...
- Sabia que diria isso, sr. Clayton... que quereria ir
também. Mas não deve ir. Jane está para além da possibilidade
de ser socorrida pelos homens, agora. Mas a que foi a minha
querida filha não ficará sozinha e sem amigos nessa espantosa
selva. As mesmas folhas nos cobrirão, as mesmas chuvas cairão
sobre nós... E o espírito da outra Jane, se vier a
encontrar-nos... ver-nos-á juntos na morte, como juntos
estivemos na vida... Não, sr. Clayton... Só eu devo ir, porque
ela era a minha filha... tudo quanto eu tinha, neste mundo,
para amar.
- Irei consigo... - reafirmou Clayton, simplesmente.
O velho levantou a cabeça, olhando a face enérgica e
simpática de Clayton. Talvez lesse aí o amor que o jovem
sentia por Jane... Ele próprio vivera tão absorvido pelo
estudo que nunca havia pensado e notado as pequenas coisas...
os pormenores que, para um homem de espírito mais prático,
indicariam a afeição nascente entre Clayton e Jane. Mas nesse
momento entendeu.
- Como quiser... - disse.
- Conte também comigo... - declarou Philander.
- Não, meu querido e velho amigo... - respondeu o professor.
- Não podemos ir todos. Seria uma crueldade deixar aqui,
sozinha, a pobre Esmeralda e três não conseguiriam mais do que
um... Já há tantes coisas mortas nessa floresta. Tentemos
dormir...

214

CAPÍTulo 19

O apelo do primitivo

Desde que Tarzan deixara a tribo dos grandes antropóides
entre os quais crescera as desavenças eram constantes. Terkoz
mostrou ser um chefe caprichoso, de modo qe muitos dos gorilas
um a um dos mais velhos e mais fracos com os quais ele se
revelava especialmente brutal, internaram-se mais pela selva
e levaram as suas famílias para uma relativa segurança, em
busca de calma Mas, por fim, os que ficaram foram levados ao
desespero pela constante crueldade de Terkoz que aconteceu, um
deles se lembrou do que Tarzan lhes dissera ao partir:
"Se tiverem um chefe cruel, não façam como fazem os outros
macacos, não tentem lutar com ele um a um. Em vez disso,
ataquem-no dois ou três ao mesmo tempo. Se fizerem assim,
nenhum chefe ousará fazer o que não deve, pois dois ou três
podem matar qualquer chefe.
E o gorila que se lembrou deste conselho repetiu-o a vários
dos seus companheiros, de maneira que, quando Terkoz regressou
nesse dia, encontrou a calorosa recepção à sua espera.

215

Não houve formalidades. Assim que Terkoz se aproximou, cinco
poderosos machos saltaram sobre ele.
No fundo, Terkoz era um cobarde, como o são todos os
brutamontes, macacos ou homens. Não se dispôs a lutar e a
morrer, e libertando-se como pôde fugiu a toda a pressa para a
selva. Duas outras tentativas que fez para se juntar à tribo,
tiveram o mesmo acolhimento. Até que, espumando de raiva e
ódio, desapareceu.
Durante vários dias vagueou sem rumo, remoendo a sua fúria e
procurando algum adversário mais fraco sobre o qual pudesse
descarregá-la. Foi nesta disposição que o feroz antropóide,
saltando de árvore para árvore, descobriu inesperadamente duas
mulheres, na selva. Estava exactamente por cima delas, quando
as avistou. A primeira noção que Jane teve da presença dele,
foi quando o gigante peludo saltou para o chão, junto dela, e
a jovem viu a horrível cabeça e a boca enorme, quase a
roçá-la. Deixou escapar um grito agudo, quando o animal a
segurou por um braço... e sentiu-se arrastada na direcção dos
dentes aguçados que Lhe procuravam o pescoço, Mas, ao sentir a
pele de Jane, macia e branca, outro instinto dominou o
antropóide.
As suas fêmeas haviam ficado com a tribo, precisava de
outras que as substituíssem. Aquela macaca branca e sem pêlos
seria a primeira. Assim, atirou-a brutalmente para cima de um
dos gigantescos ombros e saltou para uma árvore, levando-a.
Os brados de terror, de Esmeralda, haviam-se confundido com
os de Jane. Logo depois, como sempre acontecia em situações

216

que exigiam presença de espírito, Esmeralda desmaiou.
Mas Jane não mergulhou na inconsciência. Sem dúvida que
aquela cabeça pavorosa, tão perto da sua, e o hálito
repugnante da boca feroz, a paralisavam de medo. Mas tinha a
mente lúcida e compreendia o que estava a acontecer-lhe. Com o
que lhe parecia ser espantosa rapidez, o animal levava-a
através da floresta, mas Jane não gritava nem se debatia. O
súbito aparecimento do gorila, confundira-a de tal modo que
ela supunha estar a ser conduzida na direcção da praia. Por
isso reservava a voz e as energias para quando estivesse
bastante perto da barraca... e pudesse ter esperança de que a
ouvissem.
No entanto, ao contrário do que supunha, a jovem estava a
ser levada para as profundidades da selva.
O grito que trouxera Clayton e os dois velhos, a tropeçarem
por entre o mato, guiara Tarzan directamente ao ponto onde
estava Esmeralda. Mas não era Esmeralda a razão principal do
seu interesse, embora, debruçando-se sobre ela, tivesse
verificado que estava ilesa. Por um momento observou o terreno
e as árvores, em redor, até que o macaco que havia nele em
consequência de treino e de ambiente, combinado com o homem
inteligente que era por direito de nascimento, reconstituiram
o que se passara, com tanta clareza como se tivessem visto.
Então Tarzan saltou para as árvores, seguindo uma pista que
nenhuns outros olhos humanos poderiam distinguir, e ainda
menos compreender.
Nas extremidades dos ramos, de onde o antropóide salta

217

entre uma árvore e outra, há vestígios que indicam a passagem,
mas quase nenhuns indicando a direcção. A pressão é sempre
dirigida para baixo, quer o macaco entre ou saia de uma
árvore.,,i, Perto do centro da copa, onde as marcas da
passagem são mais fracas, a direcção está claramente indicada.
Num ramo, uma lagarta havia sido esmagada por um dos grandes
pés do fugitivo, e Tarzan sabia, por instinto, onde esse pé
iria poisar-se no salto seguinte.
Aí ia encontrar um sinal, por muito pequeno que fosse, do
verme esmagado. Noutro ponto, um curto pedaço de casca, de um
ramo, fora arrancado pela mão do antropóide, e a direcção do
rasgão era a direcção da passagem. Alguma forte ramada, ou o
próprio tronco da árvore, tinha sido roçada pelo corpo do
gorila, e uns quantos pêlos marcavam a pista. Tarzan nem
sequer precisava de afrouxar a velocidade, para notar estes
indícios. Via-os claramente. Mas o olfacto dava a pista mais
simples, porque Tarzan ia contra o vento...e o vento
trazia-lhe o cheiro do gorila, que Tarzan conhecia e captava
com a segurança de um farejador de pistas - Há quem acredite
que os animais inferiores são mais bem dotados, quanto ao
olfacto, do que o homem, mas trata-se apenas de treino. A
sobrevivência do homem não depende grandemente dos seus
sentidos. O raciocínio substitui-os, e assim os sentidos
atrofiam-se - tal como se atrofiam, por carência de uso, os
músculos que movem as orelhas e pele da cabeça.

218

Com Tarzan não acontecia assim. Desde muito pequeno, a sua
sobrevivência dependera da capacidade de ver, e de ouvir, e de
cheirar, e do tacto, e do paladar, muito mais do que do órgão
da razão, de desenvolvimento mais lento. O sentido menos
desenvolvido, em Tarzan, era o do paladar, pois podia comer
magníficos frutos, ou carne crua um tanto deteriorada, com
quase igual prazer... Nisso, porém, não fazia grande diferença
dos mais civilizados apreciadores de boa mesa...
Quase silenciosamente, o homem da selva seguia no encalço de
Terkoz e da sua presa... mas assim mesmo o fugitivo ouviu-o e
aumentou a sua velocidade. Haviam percorrido cerca de três
milhas quando Tarzan o alcançou. Então, compreendendo que
seria inútil continuar a fugir, Terkoz saltou para o chão,
numa pequena clareira...
para poder voltar-se e lutar... ou fugir sozinho se visse que
o adversário era demasiadamente poderoso para ele. Continuava
a segurar Jane quando Tarzan saltou também para a clareira,
com a agilidade de um leopardo.
Ao ver que o seu perseguidor era Tarzan, Terkoz incluiu
instintivamente que aquela que ele raptara era a fêmea do seu
inimigo, visto que pertenciam ambos à mesma espécie - brancos
e sem pêlos. Era a oportunidade para uma dupla vingança sobre
aquele que uma vez o derrotara. Para Jane, a aparição daquele
deus da floresta... era como um vinho generoso para alguém
prestes a desfalecer. Pelas descrições que Clayton, o pai
dela, e o sr. Philander tinham feito, compreendeu que devia
ser a mesma maravilhosa criatura que os salvara,

219

e viu em Tarzan, no mesmo instante, um protector e um amigo.
Mas quando Terkoz, empurrando-a violentamente, se dispôs a
lutar, a jovem viu melhor a espantosa corpulência do gorila...
e estremeceu. Haveria alguma força capaz de vencer aquele
inimigo?
Os dois adversários atacaram-se com fúria. Os grandes
caninos do gorila enfrentavam a faca de Tarzan. Jane, apoiada
a um tronco, muito pálida, tinha as mãos sobre o peito
ofegante, e nos seus olhos havia uma expressão onde se
misturavam o horror, a fascinação, o medo e a admiração. Era
como se assistisse à luta entre um gorila e um homem
primitivos, disputando uma fêmea - ela.
Quando os grandes músculos das costas e dos ombros do homem
se contraíram sob a pele morena, e as mãos agarraram o pescoço
do antropóide, afastando a ameaça dos caninos... a capa de
séculos de civilização e de cultura desprendeu-se dos olhos da
jovem de Baltimore. Quando a longa faca se cravou dúzias de
vezes no largo peito de Terkoz, sobre o coração, e o gorila
enorme rolou no chão, morto, foi uma mulher primitiva que
correu, de braços estendidos, para o homem primitivo que
lutara por ela - e vencera.
E Tarzan?
Tarzan fez o que nenhum homem precisa de aprender para poder
fazer... Tomou-a nos braços e beijou-a... beijou longamente os
lábios que se lhe ofereciam. Por instantes Jane ficou nos
braços dele com os olhos semicerrados.

220

Por um momento, o primeiro na sua jovem vida, compreendeu o
que significava o amor.
Mas, com a mesma rapidez com que tombara, o véu subiu de
novo, e um sentimento de vergonha fez com que Jane corasse
intensamente e se libertasse, dos braços de Tarzan, e
escondesse a face entre as mãos. Tarzan ficara surpreendido ao
sentir junto dele a jovem a quem se habituara a amar como uma
bela e maravilhosa abstracção... e agora surpreendia-se ao ver
que ela lhe fugia. Aproximou-se dela e agarrou-a por um braço.
Jane resistiu, batendo com as suas pequenas mãos no peito
dele.
Tarzan não compreendia. Um instante antes tinha pensado em
levar a rapariga branca para a barraca, para junto dos seus
companheiros... mas esse instante estava agora perdido num
passado de coisas que tinham sido mas não voltariam a ser. No
intervalo entre esse momento e o momento presente... tivera-a
nos braços, beijara-a... ela tinha-o beijado. E o beijo dela
marcara-o profundamente, fizera dele um Tarzan diferente.
Voltou a agarrar-lhe um braço... ela voltou a repeli-lo. E
então Tarzan fez o que o seu primeiro antepassado teria feito.
Tomou Jane nos braços e levou-a para a selva...
Cedo, na manhã seguinte, os quatro que estavam na barraca da
praia ouviram o som rolante do troar do canhão. Clayton foi o
primeiro a correr para fora... e viu, para além da entrada da
angra, dois navios ancorados. Um deles era o Arrow, o outro um
pequeno cruzador francês.

221

As amuradas do navio de guerra estavam pejadas de homens que
olhavam para terra, e Clayton compreendeu, tal como os outros,
que entretanto se haviam reunido a ele, que o canhão tinha
sido disparado para chamar a atenção deles, se ainda
estivessem na barraca.
Os dois navios estavam a considerável distância da praia, e
era duvidoso que mesmo os binóculos permitissem localizar o
pequeno grupo que, na praia, acenava. Esmeralda tirara o seu
grande avental vermelho e agitava-o desesperadamente acima da
cabeça, Mas Clayton, receando ainda que não os vissem, correu
na direcção do promontório, onde deixara a lenha preparada.
Pareceu-lhe que o mato e a lenha levavam uma eternidade para
começarem a arder, mas por fim as chamas subiram de vários
lugares ao mesmo tempo.
Clayton correu para a ponta extrema do promontório, e ficou
estarrecido ao ver que o Arrow se dispunha a partir, e que o
cruzador já começara a afastar-se. Considerava já toda a
esperança perdida, quando a grande coluna de fumo,
erguendo-se acima das árvores, densa e escura, atraiu a
atenção de um vigia, a bordo do cruzador. No mesmo instante
uma dúzia de binóculos se voltaram para a praia, e não tardou
que os dois barcos manobrassem. O Arrow ficou a derivar
lentamente para o mar, enquanto o navio de guerra se
aproximava mais da margem. A alguma distância parou, e um
escaler foi descido e seguiu para a praia. Quando varou na
areia, o jovem oficial desembarcou.

222

- Monsieur, Clayton, não é verdade? - perguntou.
- Graças a Deus que vieram - respondeu Clayton. - E talvez
ainda não seja tarde.
- Que quer dizer, Monsieur?... - Perguntou o oficial.
Clayton contou do rapto de Jane Porter e da necessidade de
homens armados para a procurarem.
- Mon Dieu!... - exclamou tristemente. - Ontem não seria
demasiado tarde... mas hoje talvez seja melhor que a pobre
menina não se encontre... É horrível, Monsieur...
Outros escaleres do cruzador tinham sido postos na água, e
Clayton tendo indicado ao oficial a entrada da angra, embarcou
também. Minutos depois, os escaleres, guiados por aquele onde
ia Clayton, transpunham a passagem... e não tardaram a varar
no areal perto do ponto onde se encontravam o professor Porter
e o sr. Philander, com a soluçante Esmeralda.
Entre os oficiais que vinham no último escaler, estava o
comandante do cruzador. Tendo ouvido a narrativa do rapto de
Jane Porter, generosamente pediu voluntários para acompanharem
o professor e Clayton. Não houve, entre aqueles simpáticos
franceses, tanto oficiais como marinheiros, um só que não
pedisse, por seu turno, para tomar parte na expedição.
O comandante escolheu vinte homens e dois oficiais, os
tenentes d'Arnot e Charpentier. Um dos escaleres voltou ao
cruzador, para ir buscar provisões, munições e carabinas,

223

os homens estavam já armados com revólveres.
Então, às perguntas de Clayton sobre como acontecera
ancorarem ali e dispararem o canhão de sinais, o comandante,
capitão Dufrane, explicou que um mês antes haviam avistado o
Arrow, todas as velas abertas e navegando para sudoeste.
Tinham-lhe feito sinal para parar, mas os homens do Arrow
haviam ainda aumentado o velame, para fugir. O cruzador
seguira-o até ao anoitecer, disparando várias vezes... mas na
manhã seguinte o Arrow desaparecera. Então o navio de guerra
continuara o seu cruzeiro ao longo da costa, durante várias
semanas - e quase haviam esquecido o incidente do Arrow
quando, certa manhã, dias antes, o vigia avistara um grande
veleiro que parecia seguir à deriva, com mar muito cavado.
O cruzador aproximara-se, e todos ficaram surpreendidos ao
ver que se tratava do mesmo navio que lhes fugira umas semanas
antes. Todavia u mastro estava quebrado, e nos outros as velas
encon travam-se reduzidas a farrapos. Com o mar como estava,
era difícil e perigoso enviar uma tripulação para bordo do
Arrow, onde não se viam sinais de vida. Mantiveram-se a
distância, esperando que o tempo melhorasse... mas avistaram
então um vulto que, agarrado à amurada, fazia sinais, agitando
desordenadamente os braços. Sem mais demora o escaler foi
posto na água, e uma tripulação de presa, embora reduzida, fez
a tentativa, coroada de êxito de abordar o Arrow. O
espectáculo que se deparou aos franceses,

224

quando entraram a bordo, era espantoso. Uma dúzia de mortos e
moribundos rolava no convés, ao sabor dos balanços do navio.
Dois dos mortos pareciam ter sido parcialmente devorados, como
por lobos.
Os marinheiros franceses não tardaram a pôr o navio num rumo
mais conveniente para aguentar o temporal. Os sobreviventes da
tripulação foram levados para os seus beliches, em baixo, e os
mortos, embrulhados em encerados, foram estendidos no convés
para que os companheiros pudessem identificá-los antes de
lançarem os corpos ao mar.
Nenhum dos vivos estava consciente quando os franceses
chegaram ao convés do Arrow. Mesmo o desgraçado que conseguira
fazer sinais, mergulhara na inconsciência antes de saber se os
seus sinais tinham sido vistos.
O oficial francês não tardou a compreender as causas da
situação terrível em que se encontrava aquela gente; quando
mandou procurar água e brandy, para tentar reanimar os
doentes, verificou que nada disso existia a bordo, assim como
não havia qualquer espécie de comida. Fez sinais para o
cruzador, para que mandassem água, medicamentos e provisões, e
outro escaler realizou a perigosa viagem até ao Arrow. Depois
de tratados, alguns dos homens recuperaram a consciência, e
então contaram a história. O leitor já a conhece, em parte,
até ao momento em que o Arrow partiu, depois de alguns homens
terem assassinado Snipes a quem enterraram sobre a mala do
tesouro.

225

Ao que parecia, a perseguição movida pelo cruzador de tal modo
aterrara os amotinados, que haviam, durante a noite, feito
rumo através do Atlântico, rumo esse que mantiveram depois,
por vários dias. Mas, ao verificarem que tinham apenas uma
escassa provisão de água e de comida, haviam voltado para
Leste. Sem ninguém a bordo que entendesse de navegação, a cada
momento surgiam disputas. Ao cabo de três dias de viagem para
Leste, como não encontrassem terra, tinham mudado o rumo para
Norte, receosos de que os grandes ventos dominantes os
arrastassem para o extremo Sul do continente africano.
Durante dois dias mantiveram uma direcção nor -nordeste, até
que apanharam uma calmaria que os deteve uma semana. A água
tinha-se acabado, e a comida duraria apenas mais um dia. As
coisas foram então de mal a pior. Um homem endoideceu e
atirou-se ao mar. Outro cortou as veias para beber o próprio
sangue. Quando este último morreu, atiraram-no também ao
mar... embora alguns dos homens quisessem conservar o corpo. A
fome começava a transformá-los em verdadeiras feras.
Dois dias antes de terem sido novamente vistos pelo
cruzador, ninguém estava em condições de manobrar o navio.
Três homens morreram, e na manhã seguinte dois deles
apareceram meio devorados...
Os vivos olhavam uns para os outros, ferozmente, como
animais de presa. Mas a tortura maior era ainda a sede...
E então aparecera o cruzador.

226

Quando todos os que ainda podiam resistir começaram a ganhar
forças, a verdade toda foi contada ao comandante francês; mas
os homens eram demasiado ignorantes para saberem dizer em que
ponto da costa haviam abandonado o professor e os seus
companheiros. Assim, o cruzador tinha navegado lentamente,
sempre à vista de terra, disparando por vezes o canhão de
sinais e observando atentamente a margem. De noite, os
franceses ancoravam para não deixarem por inspeccionar
qualquer parte, mesmo pequena, da costa... e assim, na noite
anterior tinham chegado ao ponto onde se encontravam aqueles a
quem procuravam...
Quando o comandante acabou de contar a sua história, e
Clayton fez um resumo do que tinha acontecido ao pequeno
grupo, o escaler voltou, com as provisões e as armas. Assim,
minutos depois, os marinheiros e os dois oficiais franceses,
juntamente com o professor Porter e Clayton, partiram para a
malfadada e desesperançada busca através da selva densa...

CAPÍTULO 20

Hereditariedade

Quando Jane compreendeu que estava a ser como cativa, pela
estranha criatura da selva que a arrancara das garras do

227


gorila, debateu-se desesperadamente, para fugir. Mas os fortes
braços, que a seguravam tão facilmente como se ela fosse uma
criança de dias, limitaram-se a apertá-la um pouco mais.
Assim, Jane desistiu dos esforços inúteis e ficou quieta,
olhando, por entre as pálpebras semicerradas, a cara do homem
que caminhava, com fantástica facilidade, por entre o mato
espesso. E a face que via era de extraordinária beleza.
O tipo perfeito da masculinidade forte, sem qualquer
vestígio marcado por desregramentos ou por brutais e
degradantes paixões. Embora Tarzan matasse homens e feras,
matava como um caçador, sem ódio - excepto nas raras ocasiões
em que matava por franca aversão, mas nunca pela aversão feita
de maldade sombria e vil, essa que marca as feições com as
suas linhas crispadas e cruéis. Quando matava, mais
frequentemente sorria do que tomava expressões de raiva - e o
sorriso é o fundamento da beleza. Uma coisa que a jovem notara
especialmente quando vira Tarzan lançar-se sobre Terkoz, fora
marcade um vermelho vivo que lhe sulcava a testa desde acima
do olho esquerdo até ao cabelo. agora, ao observá-lo de perto,
via que esse traço vermelho desaparecera, e apenas uma fina
lista esbranquiçada indicava o ponto onde ela tinha estado.
Porque ela se mantinha quieta nos seus braços, Tarzan
descontraiu os músculos, ligeiramente. A certa altura fitou-a
nos olhos e sorriu, e a jovem teve de cerrar as pálpebras

228

para não ver aquela face bela e atraente.
E Tarzan lançou-se para as árvores. Jane, pasmada por não
sentir medo, começou a compreender que, sob muitos aspectos,
nunca se sentira tão segura como nos braços daquele homem da
selva que a levava Deus sabia para que destino, internando-se
mais e mais pela floresta virgem. Quando, de olhos fechados,
se punha a imaginar um futuro que essa mesma imaginação
tornava ameaçador e terrível, bastava-lhe abrir os olhos e
fitar a nobre face tão perto da sua, para que todos os
terrores se dissipassem.
Não, ele nunca poderia fazer-Lhe mal... Tinha a certeza
disso quando olhava as nobres feições e o franco olhar
daquele homem da selva... A espantosa jornada continuou
através do que parecia a Jane uma sólida muralha de verdura -
mas que se abria à passagem do belo deus da selva, para logo
se fechar atrás dele. Era raro que algum ramo roçasse por ela,
e no entanto, à frente e atrás, em cima e em baixo, nada mais
via do que um entrançado de ramos de lianas, de aspecto
impenetrável.
Enquanto avançava, Tarzan revolvia na mente muitos estranhos
e novos pensamentos. Ali estava um problema como nunca se lhe
havia deparado outro - e ele sentia, mais do que raciocinava,
a necessidade de o enfrentar como homem, não como macaco. Os
livres movimentos através da floresta, a meio das árvores,
ajudavam-no a acalmar os primeiros ímpetos da paixão do seu
amor recém-descoberto. Agora evocava o que poderia ter sido a
sorte da rapariga branca,

229

se ele não a houvesse arrancado das garras de Terkoz. Sabia
por que razão o gorila não a matara, e começava a comparar as
suas próprias intenções com as de Terkoz. Decerto que era a
lei da selva... o macho apoderar-se da fêmea pela força. Mas
podia ele, Tarzan, deixar-se guiar por essa lei? Não era ele
um HOMEM? Mas que faziam os homens? Isso intrigava-o, porque
não sabia.
Desejaria ter perguntado à jovem, ter-lhe pedido... Mas
lembrou-se de que ela já respondera, na sua pobre tentativa
para o repelir.
Mas agora chegavam ao seu destino, e Tarzan, levando Jane
entre os braços fortes, saltou ágil e brandamente para a arena
onde os grandes macacos celebravam as suas reuniões e se
entregavam à selvática orgia do Dum-Dum. Embora tivessem
percorrido muitas milhas, era ainda a meio da tarde e o
anfiteatro estava iluminado pela luz do sol que se coava por
entre a folhagem espessa. A erva fresca parecia convidar ao
repouso. Os milhares de ruídos da selva distinguiam-se apenas
como vagos sons amortecidos e distantes, ampliando-se e
esmorecendo como um rumor de vagas numa praia remota.
Uma estranha sensação de sonhadora paz envolveu Jane, ao
sentar-se sobre a erva macia onde Tar zan a poisara. Olhou
para o grande vulto erguido na sua frente, e à sensação de paz
acrescentou-se uma ainda mais estranha sensação de perfeita
segurança Enquanto ela o observava por entre as pálpebras.

230

Tarzan atravessou a clareira circular, na direcção das
árvores do lado oposto. Jane notou a majestosa graciosidade
das atitudes dele, a perfeita simetria da figura magnífica, e
a firmeza da bela cabeça sobre os largos ombros.
Era uma criatura perfeita... Não poderia existir baixeza ou
crueldade sob aquela aparência de jovem deus helénico. Jane
pensou que nunca um homem como aquele pisara a terra - desde
que Deus criara o primeiro homem, à sua própria imagem e
semelhança. Num impulso forte, Tarzan saltou para as árvores e
desapareceu. Jane pôs-se a pensar aonde teria ele ido.
Tê-la-ia deixado ali, abandonada ao seu destino, no coração da
selva? Olhou em volta, nervosamente. Cada liana e cada moita
pareciam esconder algum animal selvagem que a espreitava,
pronto a rasgá-la com as garras e os dentes. Cada ruído lhe
trazia à mente a ideia de um grande corpo de fera, sinuoso e
cruel. Como tudo era diferente, agora que Tarzan se afastara!
Durante minutos, que pareceram horas à assustada jovem,
ficou sentada, imóvel, de nervos tensos, esperando o ataque
das criaturas da selva... que poria fim à sua angústia. Quase
desejava os dentes aguçados que a mergulhariam na
inconsciência... libertando-a do medo! Ouviu de súbito um
leve ruído, atrás dela. Ergueu-se de um salto, deixando
escapar um grito e voltando-se para enfrentar o seu fim. E viu
Tarzan, os braços carregados de frutos magníficos e Jane
cambaleou e teria caído se Tarzan, largando a sua carga,

231

não a amparasse. A jovem não desmaiou, mas agarrou-se a ele,
desesperadamente, trémula como uma corça assustada. Tarzan
afagou-lhe os cabelos e tentou tranquilizá-la - como Kala
fizera tantas vezes quando, ainda pequeno, ele se assustava
por causa de Sabor, a leoa, ou de Histah, a serpente. Beijou-a
levemente, na testa. Jane não se moveu, mas fechou os olhos e
suspirou.
Ela não podia analisar as suas sensações, nem desejava
fazê-lo. Bastava-lhe sentir-se em segurança naqueles braços
fortes, e deixar aos fados o seu destino. As últimas horas
haviam-na ensinado a confiar naquele homem da selva, mais do
que teria confiado em alguns, poucos, dos homens que conhecia.
Ao pensar na estranheza de tudo isso, começou a compreender
que talvez tivesse aprendido também uma outra coisa que
realmente nunca havia conhecido antes - o amor. Sorriu,
pensativa.
E, ainda sorrindo, afastou-se de Tarzan. Olhando para ele,
com uma expressão meio sorridente e meio intrigada, que lhe
dava à face uma beleza rara, apontou para os frutos espalhados
no chão e sentou-se sobre o tambor de terra dos antropóides,
porque a fome começava a reclamar os seus direitos.
Tarzan apanhou prontamente os frutos e colocou-os junto
dela. Então, sentando-se também sobre o tambor, começou a
abrir e preparar os frutos, com a faca, para ela comer.
Comeram ambos em silêncio, olhando-se de quando em quando,
até que Jane soltou uma risada alegre que Tarzan secundou no
mesmo instante.

232

- Gostaria que soubesse falar inglês... - disse ela.
Tarzan abanou a cabeça, com uma expressão de tristeza que
quase apagou o riso do olhar. Então Jane tentou falar-lhe em
francês, e depois em alemão. Mas voltou a rir-se, agora das
suas próprias tentativas para se exprimir na segunda língua.
- De qualquer modo... - comentou a jovem, em inglês... -
você compreende o meu alemão da mesma forma que o compreendiam
em Berlim.
Tarzan tinha tomado uma decisão sobre qual seria o seu
procedimento futuro. Tivera tempo para recordar tudo o que
lera nos livros, sobre o que faziam os homens e as mulheres.
Agiria tal como supunha que agiriam os homens dos livros, se
estivessem no seu lugar.
Levantou-se e encaminhou-se novamente para as árvores, mas
primeiro tentou explicar a Jane, por sinais, que voltaria em
breve. Conseguiu-o, porque Jane compreendeu e não teve medo
quando o viu desaparecer. Apenas tinha uma sensação de
isolamento, o olhar para o ponto onde ele havia desaparecido,
e continuava a fitar esse ponto desejosa de vê-lo regressar.
Como da outra vez, foi avisada da presença de Tarzan por um
ligeiro ruído, atrás dela, e voltou-se. O homem da selva vinha
agora carregado com um braçado de ramos, que poisou no chão
antes de voltar à selva para reaparecer ainda com uma grande
quantidade de ervas macias e fetos. Fez ainda mais duas
viagens, para reunir todo o material que queria.

233

Então espalhou os fetos e as ervas no chão, até formar uma
cama lisa e fofa, e sobre a cama dispôs os ramos que trouxera,
de ambos os lados, inclinando-os até que as extremidades
superiores se tocassem, cerca de um metro acima. Cobriu então
os ramos com grandes folhas - e com mais folhas e ramos tapou
uma das extremidades do pequeno abrigo que construira.
Quando acabou, voltou a sentar-se sobre o tambor de terra,
ao lado de Jane, e tentaram falar por sinais. A magnífica
medalha de oiro, cravejada de diamantes, que Tarzan usava,
suspensa de uma corrente também de oiro que lhe rodeava o
pescoço, intrigava profundamente Jane. Apontou para a medalha,
e Tarzan, tirando a corrente por cima da cabeça, entregou-lha.
Jane viu que a medalha era obra de um hábil artífice. Os
diamantes, de intenso brilho e soberbamente montados,
mostravam, pela lapidação, serem antigos. A jovem notou também
que o medalhão se abria, e carregando sobre a mola oculta viu
que as duas metades se abriam de facto, mostrando, cada uma,
uma preciosa miniatura sobre marfim. De um lado estava
representada uma mulher de invulgar beleza, e do outro um
homem que poderia ser o retrato daquele que estava sentado ao
lado de Jane, com apenas uma subtil diferença de expressão,
dificilmente definível.
A jovem voltou-se para Tarzan e viu que ele se debruçava
para ela, fitando com pasmo as miniaturas. Tarzan estendeu a
mão e tomou o medalhão entre os dedos, examinando a pintura
com evidentes sinais de surpresa e interesse.

234

Era flagrante que nunca a vira antes, nem mesmo supusera que o
medalhão pudesse abrir-se. Este facto deu motivos de meditação
a Jane... levando-a a tentar imaginar de que maneira a
preciosa jóia estava na posse de uma criatura selvagem, na
inexplorada selva africana. Mais espantoso ainda era que a
jóia contivesse o retrato de alguém que poderia ser irmão, ou
mais possivelmente pai daquele semideus primitivo.
Tarzan estava ainda a olhar fixamente para as suas faces.
Logo depois, porém, retirando a aljava do ombro, despejou as
setas no chão e tirou do fundo uma coisa embrulhada em folhas
macias e atada com ervas compridas. Cuidadosamente, foi
abrindo as sucessivas camadas de folhas, até ficar com uma
fotografia. Então, apontando para a miniatura do medalhão,
entregou a fotografia a Jane, colocando ao lado o retrato de
homem.
A fotografia ainda impressionou mais a jovem, porque era
evidentemente outro retrato do mesmo homem que estava
representado na jóia, ao lado da bela mulher. Tarzan fitava-a
com uma expressão de pasmo, quando Jane olhou para ele.
Parecia esboçar uma pergunta, nos lábios.
Jane apontou para a miniatura, depois para a fotografia e a
seguir para ele, como para indicar que os dois retratos eram
iguais entre si e iguais a ele também. Mas Tarzan abanou a
bela cabeça, encolheu os poderosos ombros e, retomando a
fotografia, voltou a embrulhá-la cuidadosamente e guardou-a no
fundo da aljava.

235

Durante alguns momentos ficaram sentados, em silêncio. Ele
tinha os olhos fitos no terreno, e a jovem dava voltas ao
medalhão, tentando encontrar alguma indicação que pudesse
identificar o seu anterior dono. Por fim, Jane pensou numa
explicação simples...
O medalhão pertencera a Lord Greystoke, e os retratos eram
dele próprio e de Lady Alice. O homem da selva encontrara-o,
simplesmente, na barraca perto da praia. Parecia-lhe
incompreensível não ter pensado antes nessa explicação. Mas
explicar a espantosa semelhança entre Lord Greystoke e aquele
semideus da floresta, excedia a sua capacidade, e não era
estranho que não pudesse imaginar a verdade - que aquele homem
da selva era realmente um nobre inglês.
Por fim Tarzan levantou a cabeça e observou a jovem que
estava ainda a examinar o medalhão. Ele não podia saber qual a
significação daqueles retratos no interior da jóia, mas
entendia o fascinado interesse reflectido na face da linda
rapariga a seu lado. Jane notou que ele a olhava, e pensando
que queria recuperar o medalhão, entregou-lho. Tarzan pegou na
corrente de oiro, com as duas mãos, e colocou-a em volta do
pescoço da jovem, sorrindo ao ver a surpresa dela ante a
inesperada oferta.
Jane abanou a cabeça, repetidas vezes, e teria tirado a
corrente de oiro, com o medalhão, se Tarzan não a impedisse de
tal coisa. Quando a jovem insistiu, ele segurou-lhe ambas as
mãos.
Por fim ela desistiu e, com um riso leve, pegou no medalhão
e levou-o aos lábios.

236

Tarzan não entendeu exactamente o que o gesto significava, mas
calculou, e bem, que era uma maneira de agradecer a prenda.
Então levantou-se e, pegando por sua vez no medalhão,
curvou-se gravemente, como um galã de outros tempos, e
beijou-o no mesmo sítio onde Jane poisara os lábios.
Foi um pequeno cumprimento cortês e galante, feito com a
graça e a dignidade que vinham do facto de ser um gesto
natural e simples. Era talvez a ignorada marca do seu
nascimento aristocrático, um instinto hereditário de elegante
graciosidade que nem mesmo anos de vida selvagem podiam
apagar.
Escurecia, agora. Voltaram a comer os frutos que
representavam para eles, ao mesmo tempo, alimento e bebida.
Então Tarzan levantou-se e, apontando a Jane o abrigo que
construira, fez-lhe sinal para entrar. Pela primeira vez, em
longas horas, uma sensação de medo envolveu Jane, e Tarzan
percebeu que a jovem se encolhia, como para se afastar dele. O
contacto com èla, durante metade do dia, tornara Tarzan um
homem diferente do que era ao acordar ao sol dessa manhã.
Agora, em cada fibra do seu ser, a hereditariedade falava mais
alto do que os hábitos de sempre. Nessa rápida transição não
se transformara de homem da selva em gentleman, mas pelo menos
os instintos do gentleman predominavam - e acima de tudo havia
o desejo de agradar à jovem a quem amava, e de parecer bem
ante ela. Assim, Tarzan fez a única coisa que sabia poder
tranquilizar Jane. Tirou da bainha a sua faca de caça

237

e entregou-lha, pegando-lhe pela extremidade aguçada da
lâmina.
Jane compreendeu e, aceitando a faca, entrou no abrigo e
estendeu-se sobre as ervas macias, enquanto Tarzan se estendia
também - no terreno, à entrada. E assim o sol nascente os
encontrou, na manhã seguinte.
Quando Jane acordou, nos primeiros instantes não recordou os
acontecimentos do dia anterior - e olhou com espanto o que a
rodeava... o pequeno abrigo de ramos, a erva macia que lhe
servira de cama, a paisagem desconhecida que avistava pela
abertura, a seus pés. Mas pouco a pouco as circunstâncias da
sua situação foram surgindo. E então uma impressão de
maravilhado pasmo nasceu nela - e uma grande onda de gratidão
porque tinha em verdade corrido um terrível perigo, e todavia
estava ilesa.
Moveu-se para a entrada do abrigo, em busca de Tarzan. Ele
tinha-se afastado, mas desta vez Jane não teve medo porque
sabia que havia de voltar. Na erva, à entrada do abrigo, viu a
marca do corpo de Tarzan, no lugar onde estivera estendido
toda a noite, para velar por ela. O facto de o saber ali era o
que lhe havia permitido dormir em tão profunda paz e
segurança. Perto dele, quem poderia ter medo? Jane pensou se
haveria no mundo algum outro homem junto do qual uma rapariga
pudesse sentir-se tão segura como no coração da selva
africana. Nem mesmo os leões e as panteras a assustavam agora.

238

Levantou os olhos e viu Tarzan saltar suavemente de uma
árvore próxima. Ao notar que ela o fitava, a face dele
iluminou-se com aquele radioso e franco sorriso que
conquistara a confiança de Jane, no dia anterior. Quando
Tarzan se aproximou, o coração de Jane bateu com mais força, e
os seus olhos brilharam como nunca haviam brilhado à
aproximação de qualquer homem. Ele tinha ido novamente colher
frutos, que estendeu no chão à entrada do abrigo. Mais uma vez
se sentaram lado a lado, para comer.
Jane conjecturava sobre quais seriam os planos dele.
Levá-la-ia para a barraca da praia, ou mantê-la-ia ali? E, de
repente, sentiu que esta hipótese não a preocupava
grandemente. Se assim aconteçesse, não se importaria!
Compreendeu que se sentia completamente satisfeita, sentada
ali, ao lado daquele gigante sorridente, a comer deliciosos
frutos, naquele paraíso silvestre, nas profundezas da selva
africana - que se sentia satisfeita e muito feliz. Não
conseguia entender isto. A razão dizia-lhe que devia sentir-se
torturada pela ansiedade, acabrunhada pelo medo, dilacerada
por ideias sombrias. Mas, em vez disso, o seu coração parecia
cantar, e ela sorria em face do sorriso do homem junto dela.
Quando acabaram de comer, Tarzan entrou no abrigo e
recuperou a sua faca. Jane tinha-a esquecido inteiramente...
porque esquecera o medo que a levara a aceitá-la. Fazendo-lhe
sinal para que o seguisse, Tarzan encaminhou-se para as
árvores, na orla do anfiteatro, e segurando-a com um braço
saltou para as ramadas.

239

Jane compreendeu que ele ia levá-la de volta para a sua
gente, e não conseguiu entender a súbita sensação de
isolamento e de pena que a invadia.
Durante horas avançaram assim, devagar. Tarzan não se
apressava, tentava prolongar o doce pra zer daquela jornada,
manter aqueles braços queridos em volta do seu pescoço, tanto
tempo quanto possível; e assim tomou uma direcção bastante ao
sul do caminho directo para a praia. Por várias vezes se
detiveram, para breves repousos de que ele não precisava, e ao
meio dia ficaram, cerca de uma hora, junto de um claro regato
onde saciaram a sede, e comeram. Foi quase ao sol-pôr que
chegaram à clareira. Tarzan, saltando para o chão junto de uma
grande árvore, afastou as ervas altas e apontou para a barraca
na praia.
Jane tomou a mão dele, para que Tarzan foßse também e ela
pudesse dizer a seu pai que aquele homem a salvara da morte e
de pior ainda que a morte, e que velara por ela, tão
cuidadosamente como uma boa mãe o poderia ter feito. Mas de
novo a timidez do homem da selva, diante de pessoas
civilizadas, o reteve. Recuou, abanando a cabeça. Jane
aproximou-se dele, fitando-o com olhos suplicantes.
Estranhamente, não podia suportar a ideia de o ver voltar
sozinho para a selva.
Mas Tarzan continuou a abanar a cabeça até que por fim, a
atraíu a si, muito suavemente, e se curvou para a beijar - mas
fitou-a nos olhos e esperou, para saber se Jane aceitaria o
beijo ou se o repeliria.

240

Um instante apenas... a jovem hesitou. Mas logo compreendeu a
verdade e, lançando-lhe os braços em volta do pescoço, puxou a
face dele e beijou-o - sem falso pudor.
- Amo-te... amo-te... - murmurou ela.
De muito longe, chegou até eles o eco de várias detonações.
Ambos levantaram a cabeça.
O sr. Philander e Esmeralda apareceram à porta da barraca.
Do ponto onde Tarzan e a jovem se encontravam, não podiam
ver os dois navios ancorados na baía. Tarzan apontou na
direcção de onde tinham vindo os ecos dos tiros, depois tocou
no seu próprio peito e voltou a apontar. Jane compreendeu.
Tarzan ia partir, ela soube instintivamente que partia por
pensar se a sua gente estava em perigo. Tarzan beijou-a outra
vez.
- Volta... volta para mim... - sussurrou Jane. - Esperarei
por ti, sempre.
Ele desapareceu na espessura e Jane voltou-se para
atravessar a clareira, na direcção da barraca. O sr. Philander
foi o primeiro a avistá-la... mas era ao lusco-fusco e o sr.
Philander era muito curto de vista.
- Depressa, Esmeralda!... - gritou ele. - Para a barraca...
- É uma leoa... Deus seja louvado...
Esmeralda não perdeu tempo a verificar se o sr. Philander
vira bem. A voz dele bastou. Estava dentro da barraca e tinha
a porta fechada e trancada antes que ele acabasse de dizer
"Deus louvado!..."

241

Exclamação que, na verdade, era devida ao facto de compreender
que Esmeralda o tinha deixado do lado de fora... do mesmo lado
onde estava a leoa. Bateu furiosamente na porta, gritando:
- Esmeralda! Deixe-me entrar! Estou... a ser devorado por
uma leoa!
Esmeralda pensou que o barulho na porta era feito pela leoa
que queria devorá-la também, e assim, como era seu costume,
desmaiou. O sr. Philander relanceou um olhar apavorado por
cima de um ombro. Horror! A fera aproximava-se! Tentou trepar
pela parede exterior da barraca e conseguiu agarrar-se à beira
da cobertura de ramos e folhas. Por instantes ficou assim,
suspenso, agitando-se como um gato agarrado a uma corda de
estender roupa... mas os ramos a que ele se agarrava acabaram
por ceder, e o sr. Philander caíu no chão... de costas.
Nesse instante, uma recordação de antigas leituras sobre
história natural surgiu-lhe na memória. Lembrava-se de que as
feras se desinteressam dos vultos caídos e imóveis...
fingindo-se mortos... Ou julgava lembrar-se... Fosse como
fosse, o sr. Philander deixou-se ficar tal como havia caído,
mas porque os seus braços e pernas se haviam estendido
rigidamente para cima, no momento da queda, a atitude dele
estava longe de ser impressionante.
Jane estivera a observar aquelas cabriolas, com alguma
surpresa. Mas não pôde conter o riso... um pequeno riso
abafado... que todavia bastou para que o sr. Philander rolasse
sobre si mesmo e espreitasse. Por fim avistou-a.

242

- Jane!... - exclamou ele. - Jane Porter! Deus seja louvado!
Levantou-se precipitadamente e correu para Jane... sem poder
acreditar que fosse ela... e viva.
- Deus seja louvado! De onde veio? Onde esteve? Como?...
- Tréguas, sr. Philander... - interrompeu ela. - Não posso
responder a tantas perguntas!
- Bem, bem... - volveu o sr. Philander. - Deus seja louvado!
Estou tão surpreendido e tão contente por vê-la sã e salva...
que mal sei o que digo... Mas venha... venha e conte-me o que
lhe aconteceu...

243

CAPÍTuLO 21

A aldeia da tortura

Enquanto a pequena expedição de marinheiros abria
penosamente caminho através da selva densa, procurando
vestígios de Jane Porter, a inutilidade da empresa foi-se
tornando cada vez mais flagrante. Mas o desgosto do velho
professor, e a expressão de desespero do jovem inglês,
impediram o generoso d'Arnot de dar ordens para regressarem.
Pensou que talvez houvesse uma ténue possibilidade de
encontrar o corpo da jovem, ou o que dele restasse - porque
estava convencido de que Jane Porter havia sido devorada pelas
feras. Dispôs os seus homens em formação de guerrilha,

243

a partir do ponto onde havia sido encontrada a desmaiada
Esmeralda, e a larga linha de marinheiros continuou a avançar,
suando e ofegando, através da intrincada barreira de lianas e
mato. Era um avanço lento. O meio-dia surpreendeu-os a poucas
milhas ainda para o interior da selva. Pararam, para um breve
repouso, e quando retomaram a caminhada foram encontrar, pouco
adiante, uma pista bem marcada.
Era uma antiga pista de elefantes - e d'Arnot depois de
consultar o professor e Clayton, resolveu seguir por aí. A
pista conduzia para Nordeste, e a coluna passou a avançar em
fila indiana. O tenente d'Arnot ia à frente, caminhando em
passo rápido porque a trilha era relativamente aberta. Logo
atrás dele seguia o professor Porter, mas, não podendo
acompanhar o passo do jovem oficial, foi-se atrasando. Assim,
d'Arnot seguia uns cem metros adiante da coluna - quando,
bruscamente, meia dúzia de guerreiros negros surgiram à sua
volta.
D'Arnot soltou um brado de aviso, para os seus homens,
quando os negros atacaram, mas antes de poder empunhar o
revólver foi derrubado e arrastado para a selva. O brado
alarmara os marinheiros, uma dezena dos quais se lançou em
corrida, ultrapassando o professor, em socorro do seu oficial.
Não sabiam a causa do grito, mas tinham a certeza de que havia
sido um alarme devido a algum perigo inesperado. Tinham
passado para além do ponto onde d'Arnot fora atacado... quando
uma lança veio de entre a espessura e varou um homem, e logo
depois uma chuva de flechas se abateu sobre os outros.

244

Levantando as armas, dispararam para o mato, na direcção de
onde tinham vindo as flechas.
Entretanto o resto da coluna tinha-se aproximado, e rajadas
de balas foram disparadas, umas atrás das outras, sobre o
inimigo invisível. Tinha sido o eco ,desses tiros o que
chegara aos ouvidos de Tarzan e de Jane.
O tenente Chargentier, que vinha na retaguarda da coluna,
apareceu a correr e, tendo ouvido os pormenores da emboscada,
ordenou aos homens que o seguissem e internou-se ousadamente
pela selva. Um instante depois combatiam corpo a corpo com uns
cinquenta guerreiros da aldeia de Mbonga. Balas e flechas
voavam, rápidas e numerosas. Estranhas Facas africanas e
coronhas de carabinas confundiam-se em luta sangrenta, mas não
tardou que os indígenas fugissem para a selva, deixando os
franceses a contar as suas perdas. Dos vinte, quatro estavam
mortos, doze estavam feridos com maior ou menor gravidade, e o
tenente d'Arnot havia desaparecido. Anoitecia rapidamente, e a
situação tornou-se ainda pior quando não puderam encontrar a
trilha de elefantes por onde tinham vindo.
Havia apenas uma coisa a fazer, que era acampar onde estavam
e esperar pela manhã. O tenente Charpentier ordenou que
abrissem uma clareira, cortando o mato e formando um parapeito
circular em volta do acampamento. Este trabalho só ficou
concluído quando era totalmente noite. Os homens haviam
acendido uma grande fogueira, no centro do terreno,

245

para poderem terminá-lo. Quando tudo ficou em relativa
segurança contra ataques de feras ou de selvagens, o tenente
Charpentier colocou sentinelas em redor. Os outros homens,
cansados e esfomeados, estenderam-se no chão, para dormir.
Os gemidos dos feridos, de mistura com o rosnar das feras
que haviam sido atraídas pelo ruído e pela luz, impediu o sono
a quase todos. Era um grupo cansado, esfomeado e desanimado, o
que esperava pela manhã.
Os negros que haviam agarrado d'Arnot, não tinham esperado
para tomar parte no combate que se seguiu. Em vez disso
arrastaram o prisioneiro através da selva e, retomando a
trilha bastante para além do cenário da luta, afastaram-se
apressadamente. O rumor do combate mal se ouvia na distância,
quando d'Arnot avistou uma clareira ampla no extremo da qual
se erguia uma aldeia de cubatas, defendida por uma paliçada.
Era ao anoitecer, mas os guerreiros que guardavam a entrada
da paliçada viram o pequeno grupo de negros que se
aproximavam, trazendo um prisioneiro. Ressoou um grande brado,
no interior da paliçada, e uma multidão de mulheres e de
crianças correu ao encontro do grupo.
E então começou, para o jovem oficial francês, a mais
espantosa experiência que um homem pode encontrar neste mundo
- a recepção de um prisioneiro branco, numa aldeia de negros
canibais.
Para aumentar a ferocidade selvagem dos negros cruéis,

246

havia a recordação odiosa das barbaridades ainda mais cruéis
cometidas sobre eles pelos oficiais brancos de um país do
centro da Europa - barbaridades que tinham posto em fuga o que
restava de uma tribo antes poderosa.
Caíram sobre d'Arnot com unhas e dentes, batendo-lhe com
paus e pedras, arranhando com unhas como garras. Cada pedaço
de roupa lhe foi arrancado, e as furiosas pancadas caíam-lhe
sobre a pele nua e arrepiada. Mas nem uma só vez o francês
deixou escapar um grito de dor. Rezava em silêncio... para ser
rapidamente libertado da tortura.
No entanto, a morte pela qual ele rezava não lhe seria
facilmente dada. Não tardou que os guerreiros afastassem, com
brutais empurrões, as mulheres e as crianças. O prisioneiro
tinha de ser poupado para um divertimento mais alto, e
dominados os primeiros impulsos de fúria, a multidão
contentava-se agora em insultá-lo e cuspiu sobre ele.
Chegaram ao centro da aldeia, e aí d'Arnot foi solidamente
amarrado a um poste... do qual não saíra até então nenhum
homem vivo. Algumas das mulheres dispersaram-se, correndo para
as várias cubatas, para irem buscar vasilhas e água, enquanto
outras acendiam uma fila de fogueiras sobre as quais pedaços
do festim seriam cozidos, enquanto o resto seria seco,
lentamente, em fatias, para uso futuro, porque esperavam que
outros guerreiros voltassem, com muitos prisioneiros. As
festas foram adiadas, esperando o regresso dos que haviam
ficado para combater os brancos, de maneira que era bastante

247

tarde quando se reuniram e o círculo da dança da morte começou
a girar em volta do condenado.
Meio inconsciente, em consequência do cansaço e do
sofrimento, d'Arnot observava, por entre as pálpebras
dolorosas, o que lhe parecia ser uma divagação delirante, ou
algum horrível pesadelo do qual não tardaria a despertar. As
faces brutais, besuntadas de cor - as grandes bocas de grossos
lábios pendentes - os dentes amarelos e aguçados - os olhos
rolantes, demoníacos - os negros corpos luzidios - as
lanças... Era impossível que tais criaturas existissem neste
mundo, e ele estava seguramente a sonhar.
Os corpos rodopiantes, dos selvagens, aproximavam-se,
apertavam o círculo. Uma lança saltou e feriu-o num braço. A
dor aguda, e o sangue quente que começou a correr da ferida,
disseram-lhe da pavorosa realidade da sua desesperada
situação. Outra lança, e outra ainda, vieram feri-lo. Fechou
os olhos e cerrou os dentes - não gritaria. Era um soldado da
França, e demonstraria àqueles selvagens de que maneira morre
um oficial e um gentleman.

Tarzan dos Macacos não precisava que lhe explicassem a
história daqueles tiros distantes. Sentindo ainda nos lábios o
calor dos beijos de Jane, saltava com incrível rapidez através
da selva, a direito, na direcção da aldeia de Mbonga. Não o
interessava localizar o ponto da escaramuça, porque sabia que
em breve teria terminado.

248

Não podia ajudar os que tinham morrido, e os que haviam
escapado não precisavam de ajuda.
Apressava-se para socorrer os que não tinham morrido nem
escapado... e sabia que iria encontrá-los amarrados ao grande
poste no centro da aldeia de Mbonga. Muitas vezes Tarzan vira
os bandos de guerreiros de Mbonga, que voltavam do norte
trazendo prisioneiros, e as mesmas cenas repetiam-se sempre em
volta do poste, ao clarão oscilante das fogueiras. Sabia,
também, que raras vezes os negros perdiam muito tempo antes de
consumarem o horrível destino daqueles a quem capturavam.
Duvidava de que lhe fosse possível chegar a tempo de fazer
mais alguma coisa do que vingar as vítimas.
Continuava a sua viagem espantosamente rápida. A noite
desceu e ele seguia sempre através dos ramos mais altos das
árvores, onde o magnífico luar tropical iluminava o caminho
por entre as copas que suavemente baloiçavam. A certa altura
avistou, ao longe, o reflexo avermelhado de um clarão, à
direita da trilha. Devia ser a fogueira do acampamento que os
dois homens haviam instalado antes de serem atacados - Tarzan
nada sabia sobre a presença dos marinheiros.
Estava tão seguro do seu conhecimento da selva que não
alterou o seu rumo e passou à distância de meia milha do
clarão... que era a fogueira do acampamento dos franceses.
Alguns minutos mais, e Tarzan alcançou as árvores que
dominavam a aldeia de Mbonga. Oh, não era ainda demasiado
tarde! Ou seria? Não poderia dizê-lo.

249

O vulto amarrado ao poste estava imóvel, e todavia os
guerreiros negros estavam apenas a espicaçá-lo.
Tarzan conhecia os costumes dos negros. O golpe mortal ainda
não fora vibrado. Quase podia indicar, com um minuto de
aproximação, o ponto até onde evoluira a dança. Dentro de
instantes a faca de Mbonga cortaria uma das orelhas da vítima
- e isso significaria o princípio do fim. Depois, em pouco
tempo, a vítima seria reduzida a uma informe massa
sanguinolenta.
Talvez houvesse ainda, nessa altura, uma centelha de vida,
mas então o único desejo seria a morte.
O poste estava talvez a uns doze metros da árvore mais
próxima. Tarzan preparou a sua corda... e de súbito, o grande
brado de desafio do homem selvagem - o mesmo brado dos gorilas
gigantescos - dominou os gritos dos guerreiros. Os dançarinos
imobilizaram-se, como transformados subitamente em pedra. A
corda silvou no ar, sobre as cabeças dos negros, invisível à
luz vacilante das fogueiras.
D'Arnot abriu os olhos. Um negro enorme, que estava diante
dele, saltou para trás como se fosse empurrado por uma
invisível e poderosa mão. Debatendo-se e gritando, o negro foi
arrastado, rolando de um lado para o outro, para a sombra
densa:sob as árvores. Os outros, de olhos espantados,
paralisados de horror, fitavam-no. Sob as árvores, o corpo
ergueu-se verticalmente e, quando desapareceu na folhagem, os
que olhavam fugiram em todas as direcções, com brados de
pavor.
D'Arnot ficou só.

250

Era um homem de coragem, mas sentira um longo arrepio
eriçar-lhe os cabelos, ao ouvir o grito terrível e fantástico.
Quando o guerreiro negro desaparecera entre as ramadas da
árvore, agitando-se em espasmos convulsivos, d'Arnot voltou a
estremecer, como se os dedos gelados da morte lhe tivessem
tocado, viscosos e apavorantes. Olhou para o grande tronco e
pareceu-lhe ver um movimento entre as folhas. Os ramos
curvavam-se, como se o peso de um corpo... ouviu-se um som
raspante e o negro caiu no terreno - ficando imóvel no sítio
onde tombara.
Imediatamente atrás do negro surgiu o corpo de um homem
branco, mas esse caiu depois. D'Arnot viu um jovem gigante, de
poderosos membros alongados, emergir das sombras no clarão das
fogueiras, e correr para ele. Que significaria aquilo? Quem
poderia ser? Outra criatura de morte e de destruição, sem
dúvida. D'Arnot esperou. Os seus olhos não desfitaram a face
do belo gigant, e os olhos deste, claros e francos, não se
desviaram dos dele.
D'Arnot sentiu-se subitamente tranquilo, mas ainda sem muita
esperança. Aquela face não podia esconder um coração cruel.
Sem uma palavra, Tarzan cortou as cordas que prendiam o
francês. Esgotado pelo sofrimento e pela perda de sangue, o
oficial teria caído se um forte braço o não amparasse.
Sentiu-se erguido do chão. Teve depois a estranha senssação de
voar. E perdeu os sentidos...

251

CAPÍTULO 22

A busca

Quando a manhã rompeu sobre o pequeno acampamento dos
franceses, no coração da selva, encontrou um grupo de homens
tristes e desencorajados. Logo que houve luz bastante para ver
o terreno em volta, o tenente Charpentier enviou os homens em
várias direcções, em grupos de três, para localizarem a
trilha. Dez minutos depois tinham-na encontrado, e a expedição
retomou o caminho da praia. O avanço era lento, pois
transportavam os corpos dos seis mortos - dois homens haviam
sucumbido durante a noite - e alguns dos feridos precisavam de
ajuda para caminhar, mesmo vagarosamente.
Charpentier resolvera voltar para ir buscar reforços, com os
quais pudesse seguir a pista dos indígenas e salvar d'Arnot.
Só ao fim da tarde os homens exaustos alcançaram a clareira
perto da praia, mas para dois deles o regresso deu-lhes tanta
felicidade que todos os seus sofrimentos foram esquecidos no
mesmo instante. Quando o grupo emergiu da selva, a primeira
pessoa que o professor Porter e Clayton avistaram... foi Jane,
junto da porta da barraca.
Com um pequeno grito de alegria e de alívio, a jovem correu
para eles, abraçando-se ao pai e soluçando -,

252

as primeiras lágrimas que chorava desde que haviam sido
abandonados naquela terra selvagem. O professor Porter lutou,
como um homem, para dominar as suas próprias emoções, mas a
tensão de nervos e a fraqueza da idade eram demasiadas para
ele. Escondendo a velha face no ombro da filha, chorou
longamente, como uma criança.
Jane levou-o para a barraca e os franceses encaminharam-se
para a praia, de onde vários dos seus companheiros já vinham
ao encontro deles. Clayton, desejando deixar sós o pai e a
filha, juntou-se aos marinheiros e ficou a falar com os
oficiais, até que o escaler se afastou com rumo ao cruzador
onde o tenente Charpentier ia relatar o infeliz desfecho da
luta.
Então Clayton voltou lentamente para a barraca. Sentia o
coração cheio de alegria. A mulher a quem amava estava salva.
Não sabia por que espécie de milagre ela tinha sido poupada.
Vê-la ali, viva, parecia-lhe quase inacreditável.
Quando se aproximava da barraca, viu que Jane saía. Ao
vê-lo, a jovem correu ao seu encontro.
- Jane!... - exclamou Clayton. - Deus foi bom para nós,
realmente... Conte-me como pôde escapar... que forma tomou a
Providência para a salvar... para nós.
Ele nunca a tratara pelo seu nome próprio. Quarenta e oito
horas antes, Jane teria sentido um indizível prazer ao
ouvi-lo... mas agora aquilo assustava-a.
- Sr. Clayton... - disse, calma, estendendo-lhe a mão.

253

- Primeiro deixe-me agradecer-lhe a sua cavalheiresca
dedicação por meu pai. Ele contou-me como foi nobre o seu
procedimento, o seu espírito de sacrifício. Nunca poderei
pagar-lhe isso.
Clayton notou que ela não retribuira o cumprimento familiar,
mas isso não o surpreendeu. Ela tinha decerto sofrido muito.
Não era o momento de lhe falar do seu amor.
- Já estou pago... - respondeu. - Basta-me vê-la, e a seu
pai, ambos salvos, outra vez reunidos. Creio que não
aguentaria por muito tempo a sua desgarradora e silenciosa
tristeza. Foi a mais triste experiência da minha vida, miss
Porter... e havia a acrescentar ainda o meu próprio
sofrimento, o maior que já senti. Mas seu pai estava tão
desesperançado... que fazia dó. Aprendi, ao vê-lo, que nenhum
amor, mesmo o de um homem por sua mulher, pode ser tão
profundo, tão desinteressado, tão despido de egoísmo como o
amor de um pai por sua filha.
A jovem baixou a cabeça. Havia uma pergunta que ela queria
fazer... mas parecia-lhe quase sacrílega em face do amor
daqueles dois homens e do terrível sofrimento que eles haviam
suportado... enquanto ela ria, feliz, sentada junto daquele
jovem semideus da selva, comendo frutos deliciosos e fitando
com amor olhos que lhe correspondiam.
Mas o amor é um estranho amo, e a natureza é ainda mais
estranha. Fez a pergunta.
- Onde está o homem da selva, que foi socorrê-los? Por que
não voltou?

254

- Não compreendo... - disse Clayton. - A quem se refere?
- Ao que salvou cada um de nós... ao que me salvou do
gorila!
- Oh!... - exclamou Clayton, surpreendido. - Foi ele quem a
salvou? Não me contou a sua aventura, bem sabe.
- Mas o homem da selva... - insistiu Jane. - Não o viu?
Quando ouvimos os tiros, muito ao longe, deixou-me. Tínhamos
exactamente chegado à clareira... e ele partiu na direcção de
onde vinham os tiros. Sei que foi socorrê-los.
O tom dela era quase ansioso... a sua atitude era de emoção
reprimida. Clayton não pôde deixar de notar isso - de fazer
conjecturas sobre o que tanto a impelia a saber do paradeiro
da estranha criatura. Todavia, um sentimento de apreensão,
quanto a um desgosto iminente, invadio-o, e no seu coração,
sem que ele o soubesse, nascia uma impressão de ciúme e de
suspeita em relação ao homem da selva, a quem devia a vida.
- Não o vimos... - respondeu, brandamente. - Não foi ter
connosco... - e acrescentou, depois de uma pausa meditativa: -
Talvez fosse juntar-se à sua própria tribo... os que nos
atacaram...
Não sabia por que motivo dissera aquilo, em que não
acreditava. A jovem olhou-o com espanto.
- Não!... - exclamou Jane, com uma veemência que surpreendeu
Clayton. - Isso não pode ser! Os outros são selvagens!

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Clayton pareceu intrigado.
- Ele é uma estranha criatura da selva, também meio
selvagem... miss Porter. Não fala nem entende qualquer língua
civilizada, e os seus ornamentos e armas são os dos selvagens
da Costa Ocidental... - falava agora rapidamente. - Num raio
de muitas centenas de milhas não existem outras criaturas
humanas além dos selvagens, miss Porter: Ele deve pertencer à
tribo que nos atacou, ou a qualquer outra igualmente selvagem
- talvez mesmo seja um canibal...
Jane empalideceu.
- Não acredita nisso... - disse ele, entre dentes.
- Não é verdade! Verá que ele vai aparecer e demonstrar-lhe
que se engana, sr. Clayton. Não o conhece como eu. Digo-lhe
que é um gentleman!
Clayton era um homem generoso e cavalheiresco, mas alguma
coisa, na impulsiva defesa que Jane fazia do homem da selva,
agitava nele um ciúme irracional. Num momento esqueceu o que
todos deviam ao belo semideus da floresta, e respondeu num tom
desdenhoso:
- Talvez tenha razão, miss Porter, mas não creio que
qualquer de nós precise de se preocupar com esse comedor de
carne crua. Talvez se trate de algum meio demente abandonado
aqui... que nos esquecerá mais depressa, mas não mais
seguramente, do que nós o esqueceremos. É apenas um animal da
selva, miss Porter.
A jovem não respondeu, mas sentiu o coraçãooprimido. Sabia
que Clayton dizia simplesmente o que pensava,

256

e pela primeira vez começou a analisar a estrutura em que se
baseava o seu amor recém-descoberto, e a examinar de forma
crítica o homem que despertara esse amor. Encaminhou-se
lentamente para a barraca, imaginando o jovem e belo semideus
a seu lado, no grande salão de um transatlântico. Via-o a
comer com as mãos, mordendo os alimentos como um animal de
presa e limpando às coxas os dedos engordurados. Via-o quando
o apresentasse aos seus amigos - rude, iletrado, primitivo...
E contraiu-se... como sob um choque, estremecendo.
Tinha alcançado o seu quarto e sentou-se sobre a cama
coberta de fetos e ervas. Levou a mão ao peito e sentiu os
contornos do medalhão. Puxou o medalhão para fora, segurando-o
na palma da mão, a cabeça curvada e os olhos molhados de
lágrimas. Então, levando a jóia aos lábios e beijando-a,
escondeu a cara entre os fetos, soluçante.
- Um animal?... Então que eu me transforme também num
animal... porque, seja quem for, amo-o e pertenço-lhe...

Não voltou a ver Clayton, nesse dia. Esmeralda trouxe-lhe o
jantar... e Jane mandou-a dizer a seu pai que não se sentia
bem, estava a sofrer a reacção da sua aventura.
Na manhã seguinte, Clayton partiu muito cedo, com a coluna
de socorros que ia em busca do tenente d'Arnot. Desta vez eram
duzentos homens armados, com dez oficiais, dois cirurgiões e
provisões para uma semana. Levavam equipamento para acampar,
macas, estas últimas para transportarem doentes ou feridos.

257

Era uma coluna de homens resolutos e furiosos - uma coluna
punitiva, tanto como de socorro. Pouco depois do meio-dia
chegaram ao local onde se travara a escaramuça, pois agora
percorriam uma trilha conhecida e não perdiam tempo a explorar
o terreno. Desse local, a pista dos elefantes conduzia
directamente à aldeia de Mbonga. Eram apenas duas horas da
tarde quando a cabeça da coluna fez alto na orla da clareira.
O tenente Charpentier, que comandava, destacou imediatamente
uma parte das suas forças, através da selva, para o outro lado
da aldeia. Outro destacamento foi enviado para um ponto em
frente da porta da paliçada, enquanto o terceiro grupo, com os
restantes homens, tomava posições do lado sul da clareira.
Havia sido combinado que o grupo destacado do lado norte, e
que seria o último a alcançar a posição, iniciaria o ataque, e
que os primeiros tiros seriam o sinal para um assalto
simultâneo, por todos os lados, a fim de tentarem tomar a
aldeia de um só golpe. Durante cerca de meia hora os homens
sobre as ordens directas de Charpentier estiveram atentos,
curvados entre o mato denso, esperando o sinal.
Para eles, foi como se decorressem horas. Podiam ver
indígenas nos campos,e outros que saíam ou entravam pelas
portas da paliçada. Por fim veio mais uma descarga de
carabinas, e quase no mesmo instante partiram rajadas de
balas, da selva, a Norte e ao sul.

258

Os indígenas que trabalhavam nos campos largaram tudo e
correram como doidos para a paliçada, As balas dos franceses
dizimavam-nos, e os marinheiros saltavam sobre os corpos
caídos e corriam para as portas. Tão súbito e inesperado foi o
ataque dos brancos, que antes que os nativos pudessem atingir
a paliçada e trancar as portas, no instante seguinte, a aldeia
estava cheia de homens armados que lutavam corpo a corpo, numa
indizível confusão. Durante breves minutos os negros aguentam
o choque, à entrada da rua principal da aldeia, mas as
carabinas, os revólveres e as espadas dos franceses, dizimaram
os lanceiros e abateram os arqueiros antes que estes pudessem
utilizar os arcos. Não tardou que o combate se transformasse
numa debandada selvagem dos negros, e logo numa chacina,
porque os marinheiros tinham visto pedaços de uniforme de
d'Arnot, usados por alguns dos guerreiros que os enfrentavam.
Pouparam as crianças e mulheres a quem não tiveram de matar em
defesa própria, e quando finalmente pararam, ofegantes,
cobertos de sangue e de suor, foi porque na aldeia não havia
um só guerreiro vivo em condições de resistir. Cuidadosamente,
revistaram cada cubata e cada recanto da aldeia, mas sem
encontrar sinais de d'Arnot. Interrogaram os prisioneiros, por
sinais, até que um dos marinheiros que servira no Congo
francês, descobriu que os negros entendiam essa espécie de
dialecto bastardo, que passa por linguagem entre os brancos e
as mais abjectas tribos da costa. Mas assim mesmo nada puderam
saber a respeito de d'Arnot. Em resposta às perguntas,

259

conseguiam apenas olhares assustados e gestos de excitação...
e acabaram por se convencer de que essa atitude denunciava a
culpa dos negros... osdemónios que haviam assassinado e comido
o oficial francês, duas noites antes.
Perdidas todas as esperanças, acamparam na pró pria aldeia,
durante essa noite. Os presos foram metidos em três cubatas,
fortemente vigiados. Colocaram sentinelas junto da porta da
paliçada... e finalmente a aldeia mergulhou no silêncio - com
excepção dos gemidos das negras que choravam os seus mortos.
Na manhã seguinte, os franceses iniciaram a marcha de
regresso. A ideia inicial havia sido lançar fogo à aldeia, mas
puseram-na de parte. Os prisioneiros foram deixados, gemendo e
chorando mas com tectos para se abrigarem e a paliçada para os
defender dos animais da selva.
Lentamente, a expedição partiu pelo caminho por onde viera
no dia anterior. Dez macas carregadas demoravam a marcha. Em
oito delas seguiam os feridos mais graves, e as duas restantes
transportavam os mortos. Clayton e o tenente Charpentier
fechavam a marcha; o inglês caminhava em silêncio, respeitando
a dor do outro. D'Arnot e Charpentier tinham sido amigos e
companheiros desde a adolescência.
Clayton supunha compreender que o francês sentia mais
agudamente o seu desgosto porque a morte de d'Arnot havia sido
inútil, pois Jane havia sido socorrida antes que d'Arnot

260

caísse em poder dos selvagens, e também porque o sacrifício do
amigo fora feito fora do cumprimento do seu dever, para valer
a desconhecidos. Mas, quando falou nisso ao tenente
Charpentier, este abanou a cabeça.
- Não, Monsieur... - disse ele. - D'Arnot teria escolhido
morrer assim. Eu lamento não ter podido morrer por ele, ou ao
menos com ele. Gostaria que o tivesse conhecido melhor,
Monsieur. Era realmente um oficial e um gentleman - um título
que a muitos é concedido, mas que por poucos é merecido. Não
morreu inútilmente, porque a sua morte, ao tentar salvar uma
rapariga americana, desconhecida, fará com que nós, seus
amigos e camaradas, encaremos mais corajosamente o nosso
próprio fim, venha ele como vier.
Clayton não respondeu, mas dentro dele nasceu um novo
respeito pelos franceses, que permaneceu vivo para sempre.
Era bastante tarde quando alcançaram a barraca e a praia. Um
único tiro, antes de emergirem da selva, anunciou aos que
estavam no acampamento, como aos que estavam nos navios, que a
expedição chegara demasiadamente tarde. Havia sido combinado
que, quando estivessem a uma ou duas milhas do acampamento, um
tiro seria disparado para comunicar um fracasso, três para
significar um êxito total, e dois se não tivessem encontrado
vestígios de d'Arnot ou dos negros raptores.
Foi um grupo silencioso e solene que os esperou, e nenhumas
palavras foram trocadas enquanto os mortos e os feridos eram
embarcados em escaleres e piedosamente levados para o
cruzador.

261

Clayton, exausto por cinco dias de marcha através da selva,
pelos efeitos de dois combates com os negros, dirigiu-se para
a barraca a fim de comer alguma coisa e estender-se na
relativa comodidade da sua cama de erva, depois de duas noites
passadas na floresta.
Jane estava à porta.
- O pobre tenente... - disse ela. - Encontraram-se vestígios
dele?
- Chegámos demasiado tarde, miss Porter... - volveu Clayton,
tristemente.
- Conte-me o que se passou... - pediu ela.
- Não posso, miss Porter. É demasiado horrível.
- Quer dizer... que o torturaram?
- Não sei o que lhe fizeram antes de o matar... - murmurou
Clayton.
- Antes de o matar? Quer dizer que...? Oh; eles não...
Estava a pensar no que Clayton dissera quanto à possível
ligação entre o homem ia selva e a tribo... e não conseguia
articular a hedionda palavra.
- Sim, miss Porter... Eram... canibais... - volveu Clayton,
quase duramente porque também ele pensara no homem da selva e
o ciúme voltava a dominá-lo. E acrescentou, azedamente: -
Quando o seu semideus a deixou... ia provavelmente juntar-se
ao banquete...
Lamentou as suas palavras logo que as disse, sem todavia
saber até que ponto magoara Jane. Lamentava a sua deslealdade
para com alguém que salvara a vida de cada um deles,

262

e não causara dano nenhum, Mas Jane ergueu a cabeça.
- Só poderia haver uma resposta adequada à sua afirmação...
- disse ela, friamente. - e lamento não ser um homem, para
poder dar-lha!
Voltou-lhe as costas e entrou na barraca. Clayton era um
inglês, e assim a jovem teve tempo para se afastar antes que
ele pudesse pensar numa resposta. Murmurou, consigo mesmo:
- Creio que me chamou mentiroso... e creio também que o
mereci... Clayton, meu rapaz... É certo que estás cansado e
enervado, mas não há razão para fazeres papel de imbecil. É
melhor ir deitar-me...
Antes de se deitar, porém, chamou Jane, através da divisória
feita com a lona de vela. Queria apresentar desculpas, mas foi
como se tentasse falar com a Esfinge. Então escreveu umas
palavras, num pedaço de papel que meteu sob a divisória.
Jane viu o papel e ignorou-o, porque estava irritada e
magoada; mas acabou por pegar-lhe e ler, porque era uma
mulher.

"Querida Miss Porter:

Não tinha a menor razão para insinuar o que disse. A minha
única desculpa é ter os nervos tensos - o que não é desculpa.
Por favor, tente pensar que eu não disse. Tenho imensa pena.
Não teria desejado magoá-la, a si, entre todas as criaturas
do mundo. Diga que me perdoa.

William Cecil Clayton"

263

- Ele pensou-o, senão nunca o diria...: - raciocinou a
jovem. - Mas não pode ser verdade! Eu sei que não é verdade!
Uma frase da carta assustava-a: "Não teria desejado
magoá-la, a si, entre todas as criaturas do mundo..."
Uma semana antes, essa frase tê-la-ia encantado. Agora
deprimia-a. Desejava nunca ter encontrado Clayton. Lamentava
ter conhecido o semideus da floresta... Não, isso não
lamentava! Pelo contrário... E havia ainda aquela outra nota
que ela descobrira na relva, no dia seguinte ao seu regresso
uma nota amorosa assinada "Tarzan dos Macacos". Quem seria
esse outro admirador? Se fosse mais um dos selvagens
habitantes da floresta, o que não faria ele para a conquistar?
- Esmeralda! Acorda!... - exclamou. - Irrita-me que estejas
a dormir despreocupadamente, sabendo que o mundo está cheio de
ansiedades...
- São Gabriel!... - exclamou Esmeralda, sentando-se. - O que
há agora, miss Jane? Algum "hiponoceronte"?
- Tolice minha, Esmeralda... Não há nada... Vamos, dorme...
Acordada ainda és pior do que a dormir...
- Sim, querida menina... mas o que tem? Está assim a
modos... esta noite!
- Oh, Esmeralda! Estou simplesmente a ser horrível, mais
nada... Não me dês atenção... dorme...
- Sim, querida... Mas vá também dormir... Tem os nervos em
ponta...: e não admira... com todos esses "rinapótamos" e
papadores de homens... de que o senhor Philander tem falado...

264

Não admira nada, não...
Jane riu-se, atravessou o quarto, beijou a boa Esmeralda e
desejou-lhe boas-noites...

CAPÍTULO 23

Irmãos homens

Quando d'Arnot recuperou os sentidos, viu que estava
estendido sob um abrigo em forma de "A", numa cama de ervas e
fetos. Aos seus pés, uma abertura mostrava-lhe uma mancha de
verdura, e um pouco para além a muralha densa da selva e da
floresta.
Sentia-se dorido e fraco... e enquanto ia retomando a
consciência das coisas... ia também sentindo as dores agudas
de muitas feridas, além de outras dores... nos ossos e nos
músculos... como consequência das pancadas brutais que
recebera. O simples gesto de voltar a cabeça causava-lhe uma
agonia dolorosa, de tal maneira que se manteve imóvel e com os
olhos fechados, durante muito tempo.
Tentava ligar os pormenores da sua aventura, até ao momento
em que perdera os sentidos... a fim de ver se isso poderia
explicar a situação em que se encontrava naquele momento - sem
sequer saber se estava entre amigos ou inimigos. Por fim,
recordou-se de toda a cena horrível, no poste,

265

e finalmente lembrou-se do estranho homem branco em cujos
braços desmaiara.
D'Arnot não fazia ideia do que o destino lhe reservava. Não
podia ver, ou ouvir, quaisquer sinais de vida, à sua volta. O
incessante murmúrio da selva, o roçagar de biliões de folhas,
o zumbir dos insectos; as vozes dos pássaros e dos macacos,
tudo parecia fundir-se num estranho sussurro embalador - como
se ele estivesse, de longe, a escutar os incontáveis ruídos da
vida selvagem, que lhe chegavam apenas com um eco indistinto.
Por fim mergulhou num sono calmo, do qual só despertou ao
entardecer.
Teve novamente a vaga sensação de pasmo que marcara o seu
primeiro despertar, mas desta vez não tardou a recordar o
passado recente. Olhando através da abertura, a seus pés, viu
o vulto de um homem sentado sobre os calcanhares. O dorso
largo e musculoso estava voltado para ele, mas, apesar da pele
bronzeada, d'Arnot compreendeu que eram as costas de um homem
branco - e deu graças a Deus.
O francês chamou, em voz fraca. O homem ergueu-se, voltou-se
e encaminhou-se para o abrigo. Tinha uma face estranhamente
bela, a mais bela - pensou d'Arnot - que vira alguma vez.
Curvando-se, o homem entrou no abrigo e, de mãos no chão,
aproximou-se do ferido, colocando a mão forte e fresca sobre a
testa dele.
D'Arnot falou-lhe em francês, mas o homem apenas abanou a
cabeça, com uma expressão que parecia de tristeza. D'Arnot
tentou o inglês, mas a resposta foi a mesma.

266

Italiano, espanhol e alemão, não obtiveram melhor resultado.
D'Arnot conhecia algumas palavras de norueguês, russo e
grego... e podia falar o dialecto de uma das tribos negras da
Costa - mas o homem continuava a não compreender. Depois de
examinar as feridas de D'Arnot, o desconhecido saiu do abrigo
e desapareceu. Minutos depois estava de volta, trazendo frutos
e um vegetal oco, que lembrava um cantil, e estava cheio de
água.
D'Arnot comeu e bebeu pouco. Estava surpreendido por não ter
febre. Mais uma vez tentou conversar com o seu estranho
enfermeiro, mas a tentativa foi inútil. De súbito, o homem
saiu apressadamente do abrigo, para voltar com vários pedaços
de casca de árvores e, o que era espantoso, um lápis.
Sentando-se junto de d'Arnot, escreveu por momentos na face
lisa, interior, de um dos pedaços de casca. Depois entregou ao
francês o que escrevera. D'Arnot ficou pasmado ao ver, em
claros caracteres de imprensa, uma frase em inglês:
"Sou Tarzan dos Macacos. Quem é você? Pode ler esta
linguagem?"
D'Arnot pegou no lápis, mas deteve-se. Aquele estranho homem
escrevia inglês - era evidentemente um inglês. Dísse:
- Sim, leio inglês. E falo, também. Agora podemos
conversar... Primeiro, deixe-me agradecer-lhe tudo o que fez
por mim.
O desconhecido abanou a cabeça, apontando para o lápis e
para a casca de árvore.

267

- Meu Deus!... - exclamou d'Arnot. - Se você é inglês, por
que razão não pode falar inglês?
E de repente pensou - o homem era mudo, possivelmente
surdo-mudo. Então escreveu, no pedaço de cortiça, em inglês:
"Sou Paul d'Arnot, tenente da armada francesa. Agradeço-lhe
o que fez por mim, Salvou-me a vida; e tudo o que eu tenho lhe
pertence. Posso perguntar-lhe como é possível escrever inglês
e não o falar?
A resposta de Tarzan surpreendeu ainda mais d'Arnot.
"Falo apenas a linguagem da minha tribo - os grandes macacos
que eram de Kerchak. Conheço alguma coisa da linguagem de
Tantor, o elefante, e de Numa, o leão. Entendo a fala das
outras criaturas da selva. Nunca falei com uma pessoa humana,
a não ser uma vez, com Jane Porter, por sinais. Mas é a
primeira vez que falo com um homem da minha espécie, através
de palavras escritas."
D'Arnot sentia-se intrigado. Parecia-lhe inacreditável que
pudesse existir no mundo um homem que nunca tivesse falado com
outro homem, e ainda mais impossível que essa criatura
soubesse ler e escrever. Olhou de novo para o que Tarzan
escrevera... "a não ser uma vez, com Jane Porter..." Era a
rapariga americana que havia sido levada para a selva, por um
gorila. Uma súbita ideia lhe ocorreu - aquele era o gorila!
Pegou no lápis e escreveu:
"onde está Jane Porter?"
Tarzan respondeu, em baixo:

268

"Na companhia dos seus, na barraca de Tarzan dos Macacos."
"Está viva, então? Onde esteve? Que lhe aconteceu?"
"está viva. Foi levada por Terkoz, para ser sua fêmea. Mas
Tarzan dos Macacos matou Terkoz e libertou Jane antes que ele
pudesse fazer-lhe mal. Em toda a selva, ninguém pode enfrentar
Tarzan dos Macacos, em luta, e viver. Eu sou Tarzan dos
Macacos, poderoso lutador."
D'Arnot escreveu:
"Alegra-me que ela esteja salva. Escrever é cansativo, para
mim. Vou descansar."
E Tarzan:
"Sim, descanse. Quando estiver bem, levá-lo-ei para a sua
gente."
Durante muitos dias d'Arnot ficou estendido na sua cama de
fetos e ervas macias. Ao segundo dia viera a febre. O francês
pensou que as feridas se haviam infectado, e compreendeu que
ia morrer. Teve então uma ideia - e admirou-se de não a ter
tido antes. Chamou Tarzan e indicou-lhe, por sinais, que
queria escrever. Tarzan foi buscar o lápis e as cascas de
árvore, e d'Arnot escreveu:
"Pode ir aonde está a minha gente, e trazê-la aqui?
Escreverei uma mensagem que lhes entregará, e eles
segui-lo-ão."
Tarzan abanou a cabeça e escreveu, por sua vez:
"Pensei nisso, no primeiro dia. Mas não me atrevi. Os
grandes macacos vêm aqui, por vezes, e se o encontrarem,
sozinho e ferido, matá-lo-ão."

269

D'Arnot voltou-se de lado e fechou os olhos. Não desejava
morrer, mas sentia que ia morrer porq a febre era cada vez
mais alta. Durante essa noite esteve inconsciente.
Delirou durante três dias, e Tarzan esteve sentado ao lado
dele, molhando-lhe a cabeça e as mãos: lavando-lhe as feridas.
Ao quarto dia, a febre desapareceu tão bruscamente como viera,
mas deixou d'Arnot reduzido a uma sombra de si mesmo, muito
fraco. Tarzan tinha de o soerguer para que ele pudesse beber
água.
A febre não fora consequência de infecção, como d'Arnot
pensara, mas um desses acessos vulgares entre os brancos, em
África - que mata... ou desaparece bruscamente, como no caso
do francês. Dois dias depois d'Arnot podia caminhar pelo
anfiteatro; Tarzan amparava-o, para impedi-lo de cair.
Sentaram-se à sombra de uma grande árvore e Tarzan foi
buscar o lápis e o singular "papel", para que pudessem
conversar. D'Arnot foi o primeiro a escrever:
"Que poderei fazer, para lhe pagar tudo o que fez por mim?"
E Tarzan, em resposta:
"Ensine-me a falar a linguagem dos homens":
E assim d'Arnot começou imediatamente, apontando vários
objectos familiares e repetindo os seus nomes, em francês.
Pensou que lhe seria mais fácil ensinar a Tarzan a sua própria
língua, visto ser, evidentemente, a que ele próprio conhecia
melhor.

270

Isso nada significava para Tarzan, pois não podia diferençar
uma língua da outra. Quando apontava a palavra "man" (homem),
que escrevera sobre a casca de árvore, d'Arnot explicava-lhe
que aquilo pronunciava "homem". Da mesma forma foi ensinado a
pronunciar "ape" (macaco), como "singe"... - e "tree"
(árvore), como "arbr"#.
Era um estudante tão atento e ávido de saber que em dois
dias já podia dizer em francês, pequenas frases que
correspondiam aos sinais escritos em inglês. Dizia, com uma
pronúncia engraçada: "Isso é uma árvore", ou "isto é erva", ou
"tenho fome". Mas d'Arnot verificou que não era fácil
ensiná-lo a construir frases em francês, na base da construção
inglesa.
O tenente escrevia pequenas lições para ele, em inglês, e
Tarzan repetia-as em francês, mas a tradução à letra tinha
como consequência um francês muito pobre, e Tarzan sentia-se
por vezes confundido.
D'Arnot compreendeu que havia cometido um erro, mas
parecia-lhe tarde de mais para voltar atrás e refazer tudo,
forçando Tarzan a esquecer o que havia aprendido,
especialmente porque estavam a aproximar-se de um ponto em que
teriam a possibilidade de conversar.
No terceiro dia depois de ter desaparecido a febre, Tarzan
escreveu uma mensagem, perguntando a d'Arnot se se sentia
bastante forte para ser levado até à praia. Tarzan estava tão
ansioso como d'Arnot por partir, porque desejava voltar a ver
Jane.
Por essa mesma razão havia sido duro, para ele, ficar
durante todos aqueles dias junto do francês,

271

e o facto de o ter feito falava ainda mais alto, sobre a sua
nobreza de carácter, do que a sua corajosa intervenção para
salvar d'Arnot das garras de Mbonga.
D'Arnot, que ansiava por tentar a jornada, escreveu:
"Não pode levar-me ao longo de tão grande distância,
através da selva."
Tarzan riu-se.
- "Mais oui!"... - exclamou ele. E d'Arnot riu. também, ao
ouvi-lo pronunciar uma frase que ele próprio usava
frequentemente.
Partiram... e d'Arnot maravilhou-se, tal como Clayton e
Jane, diante da espantosa força e da prodigiosa agilidade do
homem da selva. A meio da tarde chegaram à clareira, e quando
Tarzan saltou para o chão, dos ramos da última árvore, o
coração batia-lhe com força no peito, na alegria antecipada de
voltar a ver Jane.
Não estava ninguém fora da barraca, e d'Arnot ficou
espantado ao ver que tanto o cruzador como o Arrow haviam
levantado ferro. Em volta deles havia um ambiente de solidão -
que os impressionou, a ambos, enquanto caminhavam para a
barraca. Nenhum deles falou, mas ambos sabiam, antes de abrir
a porta, o que iam encontrar. Tarzan levantou o fecho e
empurrou o sólido batente, que girou sobre os gonzos de
madeira. A barraca estava deserta.
Voltaram-se e olharam um para o outro. D'Arnot sabia que os
seus companheiros o tinham considerado morto. Mas Tarzan
pensava apenas na mulher que beijara com amor,

272

e agora fugira, enquanto ele cuidava de um dos seus. Uma
grande amargura encheu-lhe o coração. Partiria, iria para as
profundezas da selva, juntar-se-ia à sua tribo. Nunca mais
veria alguém da sua própria espécie, e não suportava a ideia
de voltar àquela barraca. Deixá-la-ia para sempre...
juntamente com grandes esperanças que embalara, de encontrar a
sua própria raça e ser um homem entre os homens.
E o francês D'Arnot? Que seria dele? Poderia arranjar-se,
viver, como Tarzan o tinha feito. Tarzan não queria voltar a
vê-lo. Queria afastar-se de tudo o que pudesse recordar-lhe
Jane.
Enquanto Tarzan ficava parado no limiar, entregue a sombrios
pensamentos, d'Arnot entrou na barraca. Viu que muita coisa
havia sido deixada. Reconheceu vários objectos vindos do
cruzador - um fogão de acampamento, utensílios de cozinha, um
rifle e muitas munições, comida enlatada, mantas, duas
cadeiras e uma cama de campanha - além de vários livros e
jornais, quaze todos americanos.
- Devem pensar em voltar... - pensou d'Arnot.
Aproximou-se da mesa que John Clayton construira tantos anos
antes, para servír de secretária, e viu duas cartas
endereçadas a Tarzan dos Macacos. Uma, cujo endereço indicava
letra de homem, estava aberta. A outra, decerto escrita por
mão de mulher, estava fechada.
- Tem aqui duas mensagens para si, Tarzan!... - exclamou
d'Arnot, voltando-se para a porta - mas o seu companheiro
tinha desaparecido.

273

D'Arnot dirigiu-se à porta e olhou para fora. Não viu
Tarzan. Chamou e não obteve resposta.
- "Mon Dieu!"... - murmurou d'Arnot. - Deixou-me... sinto
que me deixou. Voltou para a sua selva e abandonou-me aqui...
E então recordou a expressão da face de Tarzan ao ver que a
barraca estava deserta - a expressão que o caçador vê nos
olhos do gamo ferido. O semideus da selva recebera um duro
golpe, d'Arnot compreendia isso. Mas porquê? Não conseguia
entender. O francês olhou em volta. A horrível solidão do
lugar começou a torturar-lhe os nervos, já enfraquecidos pelas
provações, o sofrimento e a doença. Ficar ali, sozinho naquela
selva pavorosa, nunca mais ouvir uma voz humana, nem ver uma
face humana - em constante receio dos animais selvagens e dos
homens ainda mais selvagens que os animais - preso da solidão
e do desespero... Era horrível.

A distância, para Leste, Tarzan dos Macacos saltava através
das ramagens, a meia altura das copas, de regresso à sua
tribo. Nunca antes viajara com tão grande velocidade. Sentia
que ia a fugir de si mesmo - que, lançado como um esquilo
através da floresta, escapava aos seus próprios pensamentos.
Mas, por muito depressa que fosse... encontrava-os sempre a
acompanhá-lo.
Passou por cima do corpo fulvo e sinuoso de Sabor, a leoa,
que ia em direcção oposta - na direcção da barraca, pensou
Tarzan. Que poderia d'Arnot contra Sabor - ou contra Bolgani,
o grande chimpanzé, se ele o atacasse - ou contra Numa,

274

o leão... ou a cruel Sheeta?
Tarzan deteve-se no seu voo. E perguntou a si mesmo, em voz
alta:
- Que és tu, Tarzan? Um macaco ou um homem? Se és um macaco
farás o que fazem os macacos... deixarás que uma criatura da
tua espécie morra na selva, se o teu desejo for afastar-te...
Mas se és um homem voltarás para defender outro homem, teu
irmão... Não deverás fugir das criaturas da tua espécie, só
porque uma dessas criaturas fugiu de ti...

D'Arnot fechou a porta dabarraca. Sentia os nervos tensos.
Mesmo os homens corajosos - e d'Arnot era um homem corajoso -
sentem por vezes medo, na solidão.
Carregou um dos rifles e colocou-o ao seu alcance. Então
aproximou-se da secretária e pegou na carta dirigida a Tarzan,
a que estava aberta. Talvez contivesse alguma indicação,
informando que a partida era temporária. Pensou que não
violava qualquer regra, se a lesse... Tirou a carta do
sobrescrito e leu:

"Para Tarzan dos Macacos.

Agradecemos-lhe ter-nos permitido utilizar a sua barraca, e
lamentamos que não nos desse o prazer de o vermos para lhe
agradecer pessoalmente.
Nada ficou estragado, e deixamos-lhe várias coisas que podem
aumentar o seu conforto e segurança nesta casa solitária.

275

Se conhece o estranho homem branco que nos salvou a vida
tantas vezes, e nos trouxe comida, se puder falar com ele,
diga-lhe da nossa gratidão também, pela sua bondade.
Partimos dentro de uma hora, para não mais voltarmos
queremos que ambos saibam que sempre lhes ficaremos gratos
pelo que fizeram por estranhos, no vosso território, e que
teríamos feito mil coisas para os recompensar, se nos tivessem
dado essa oportunidade.

Respeitosamente William Cecil Clayton

- Para não mais voltar... - murmurou d'Arnot, deixando-se
cair de bruços sobre a cama de campanha.
Uma hora mais tarde levantou-se, sobressaltado, à escuta...
Alguém estava a tentar entrar. Caía a noite, e no interior da
barraca a escuridão era densa... Mas d'Arnot podia ver o fecho
levantar-se... Sentiu um arrepio, que lhe eriçou os cabelos.
Suavemente, a porta abriu-se até que uma estreita fresta
mostrou um vulto que estava no outro lado.
D'Arnot apontou o rifle para a frincha da porta - e
disparou.

276

CAPÍTuLO 24

O tesouro perdido

Quando a expedição voltou, depois da malograda tentativa
para socorrer d'Arnot, o capitão Dufranne mostrou-se ansioso
por levantar ferro o mais depressa possível, e todos, com
excepção de Jane, concordaram.
- Não... - disse ela, resolutamente. - Não irei... porque há
dois amigos que estão na selva e voltarão ainda, a contar que
os esperemos. Não deve partir, capitão Dufranne, porque um
desses amigos é o seu oficial, e o outro é o homem da
floresta, que salvoa a vida a todos e cada um dos companheiros
de meu pai. Deixou-me na orla da selva, há dois dias, e partiu
em socorro de meu pai e do sr. Clayton, como supunha - mas
ficou para salvar o tenente d'Arnot... disso podem ter a mais
absoluta certeza. Se ele tivesse chegado tarde para socorrer o
tenente, já estaria de volta, agora. O facto de ele não ter
voltado é prova suficiente, para mim, de que se demora porque
o tenente está ferido - ou de que teve de seguir os seus
raptores até muito mais longe do que a aldeia que os seus
marinheiros atacaram.
- Mas, miss Porter... - argumentou o capitão... -
encontrámos na aldeia os farrapos do uniforme

277

do tenente d'Arnot, e as coisas que levava consigo quando
partiu. E os nativos mostraram grande excitação, quando foram
interrogados sobre a sorte do pobre oficial branco.
- Sim, capitão, mas não afirmaram que ele estava morto... e
quanto aos objectos em poder deles... bem, homens muito mais
civilizados do que esses negros roubam aos prisioneiros tudo o
que eles têm de valor, quer tencionem matá-los, quer não.
Mesmo os soldados do meu país, na guerra da Secessão, roubavam
não apenas os vivos, mas os mortos. Concordo que é uma forte
prova circunstancial, mas não é positiva.
- Talvez o seu homem da selva fosse capturado ou assassinado
pelos selvagens... - sugeriu o capitão Dufranne.
A jovem riu-se.
- Não o conhece... - respondeu ela, enquanto uma pequena
sensação de orgulho a invadia, ao pensar que falava do homem a
quem amava.
- Reconheço que valeria a pena esperar por esse seu
super-homem... - riu o capitão. - Gostaria de o conhecer, sem
dúvida.
- Então espere por ele, capitão... - insistiu a jovem. - É
isso o que eu tenciono fazer.
O francês teria ficado profundamente surpreendido, se
pudesse interpretar a verdadeira significação das palavras de
Jane. Iam a caminhar desde a praia, na direcção da barraca,
enquanto conversavam, e pouco depois reuniram-se ao pequeno
grupo sentado em bancos de campanha, à sombra de uma grande
árvore próxima do abrigo.

278

O grupo era formado pelo professor Porter, Philander,
Clayton, o tenente Charpentier e mais dois oficiiais. Um pouco
atrás estava Esmeralda, que de quando em vez emitia a sua
opinião e fazia comentários, com a liberdade natural numa
velha criada que fazia parte da família.
Os oficiais levantaram-se e cumprimentaram, quando o seu
superior se aproximou, e Clayton ofereceu o seu banco a Jane.
- Temos vindo a discutir o destino do pobre d'Arnot... -
disse o capitão Dufranne. - Miss Porter insiste em afirmar que
não temos provas positivas da sua morte - e de facto não
temos. Por outro lado, declara que a ausência prolongada do
vosso poderoso deus da selva... significa que d'Arnot está
ainda a precisar da ajuda dele, ou por estar ferido, ou por
estar ainda preso numa aldeia de nativos, mais distante.
- Foi sugerido... - disse o tenente Charpentier... - que
esse homem da selva pode pertencer à própria tribo que nos
atacou... e que partiu para ajudar os seus companheiros.
Jane olhou de relance para Clayton.
- Isso parece consideravelmente mais razoável... - declarou
o professor.
- Não concordo... - objectou Philander. - Ele teve todas as
oportunidades para nos fazer mal, ou para conduzir a tribo
contra nós. Em vez disso, durante toda a nossa longa estadia
aqui, mostrou-se permanentemente ocupado em proteger-nos e até
em nos abastecer de comida.

279

- Isso é verdade... - interveio Clayton -, mas não devemos
desprezar o facto de que, excepto ele, as únicas criaturas
humanas, num raio de centenas de milhas, são canibais. Ele
estava armado exactamente como os negros, o que prova que tem
algum género de ligação com eles, e o facto de ser apenas um,
contra, possivelmente, milhares, sugere que essas relações não
podem ser senão amigáveis.
- Parece portanto improvável que ele não tenha ligação com
os negros... - observou o capitão -...e até que não pertença à
tribo.
- De outro modo... - lembrou-se um dos dois oficiais -, como
poderia ele ter vivido bastante tempo, entre os habitantes da
selva, feras e homens, para se mostrar tão eficiente no
conhecimento da selva e no uso das armas indígenas?
- Estão a julgar conforme as vossas próprias regras,
senhores... - afirmou Jane. - Um vulgar homem branco, como
qualquer dos senhores... perdão, não era isso o que eu queria
dizer... mesmo um homem branco acima do vulgar, em força e
inteligência, não poderia, garanto-lhes, viver um só ano que
fosse, sozinho e quase nu nesta selva tropical. Mas esse homem
não só excede, em muito, os brancos civilizados, em força e
agilidade... Excede também os atletas e desportistas mais bem
treinados... da mesma maneira como estes podem exceder as
capacidades de um recém-nascido. E a sua coragem e ferocidade,

280

em combate, são maiores do que as de qualquer grande animal da
selva.
- Ele conquistou, pelo menos, uma dedicada defensora, miss
Porter... - comentou o capitão, rindo. - Tenho a certeza de
que todos os presentes enfrentariam cem vezes a morte, mesmo
sob as formas mais terríveis, para merecer o tributo de uma
pessoa tão leal... e tão bela!
- Não se admirariam de eu o defender... - retorquiu a jovem
-, se pudessem tê-lo visto, como eu vi, lutar em minha
defesa... contra esse pavoroso e gigantesco gorila. Se
tivessem visto os poderosos músculos, tensos sob a pele
morena, afastarem os dentes da fera... também o julgariam
invencível. Atacou o gorila e matou-o... um animal grande como
um "grizzly", sem um sinal de medo ou de hesitação... Se o
vissem, considerá-lo-iam sobre-humano! E se, por fim, tivessem
podido ver a forma cavalheiresca como tratou uma rapariga
diferente, de um mundo diferente, teriam nele a mesma absoluta
confiança que eu tenho.
- Ganhou a sua causa, bela advogada... - exclamou o capitão.
- O tribunal aqui reunido considera o acusado isento de culpa,
e o cruzador esperará uns dias mais, para que ele possa ter a
oportunidade de aparecer e agradecer à divina Portia
*(personagem famosa, de uma peça de Shakespeare).
- Por amor de Deus, querida... - gritou Esmeralda. - Não vão
todos dizer-me que querem ficar aqui, nesta maldita terra de
"carnivais", quando podemos todos embarcar nesse navio!

281

Não vão dizer-me isso, querida!
- Devias envergonhar-te, Esmeralda... - exclamou Jane. - É
assim que agradeces ao homem que duas vezes te salvou a vida?
- Está bem, miss Jane, seja lá como diz... Mas esse valente
rapaz não nos salvou para ficarmos aqui... salvou-nos para a
gente se ir embora... E vai ficar danado quando vir que não há
senso comum e que continuamos depois de ele nos dar a a
oportunidade de fugir... Espero não ter de dormir mais uma só
noite neste jardim "zoológico"... e ouvir todos esses barulhos
que vêm da selva, mal escurece... esses barulhos da solidão...
- Não a censuro nem um pouquinho, Esmeralda... - disse
Clayton -, e penso que acertou em cheio ao chamar-lhes
"barulhos da solidão". Nunca fui capaz de encontrar a palavra
que os definisse assim tão bem.
- Creio que você e Esmeralda podem ir dormir a bordo do
cruzador... - volveu Jane, sarcástica. - Que pensaria se
"tivesse" de viver toda a sua vida na selva, como fez o nosso
homem da floresta?
- Penso que seria um desastre como criatura da selva... -
riu Clayton. - Esses ruídos nocturnos arrepiam-me os cabelos.
Suponho que devia envergonhar-me de confessar isto, mas é
verdade.
- Não sei dessas coisas... - comentou o tenente Charpentier.
- Nunca dei muita atenção ao medo ou a assuntos desses...
Nunca tentei determinar se era cobarde ou corajoso. Mas, nessa
noite que passámos na selva,

282

depois de levarem o pobre d'Arnot ao ouvir os incontáveis sons
que subiam e desciam como vagas... comecei a pensar que era
realmente um cobarde. Não era o rugir ou o rosnar das grandes
feras que me impressionava tanto... Eram os ruídos furtivos,
que surgiam bruscamente perto de nós e nos deixavam à espera,
em vão, que se repetissem... o rumor indefinível de um grande
corpo que se movia em quase completo silêncio... e o
conhecimento de não termos maneira de saber se a fera... ou o
que fosse... continuava a aproximar-se depois de termos
deixado de a ouvir... Eram esses sons... e os olhos... "Mon
Dieu!" Hei-de sentir sempre, na escuridão, a presença desses
olhos... daqueles que vemos e dos que não podemos ver...
Todos se calaram, por momentos. Por fim, Jane disse, num
murmúrio:
- E é aí que ele está... Esses olhos espreitá-los-ão esta
noite, a "ele" e ao vosso amigo tenente d'Arnot. Podem
abandoná-los, senhores, sem ao menos lhes oferecerem o auxílio
passivo de esperarem uns dias mais?
- Tut, tut, criança... - disse o professor. - O capitão
Dufranne está disposto a ficar, e pela minha parte concordo
inteiramente... como sempre fiz para satisfazer os teus
caprichos infantis.
- Podemos utilizar o dia de amanhã na recuperação da mala...
- sugeriu o sr. Philander.
- Muito bem, excelente ideia, meu amigo... - volveu o
professor. - Quase tinha esquecido o tesouro. Talvez o capitão
Dufranne possa ceder-nos alguns homens, para nos ajudar,

283

e um dos prisioneiros para nos indicar o ponto onde enterraram
a mala.
- Com certeza, meu caro professor... - declarou o capitão. -
Estamos todos às suas ordens.
Assim, ficou combinado que, no dia seguinte, o tenente
Charpentier comandaria um destacamento de dez homens, e
levando um dos prisioneiros como guia, iriam desenterrar a
mala do tesouro. Quanto ao cruzador, permaneceria durante mais
uma semana no porto. Passado esse prazo, era de considerar que
o tenente d'Arnot estava morto, e que o homem da selva não
voltaria enquanto eles ali estivessem. Então os dois navios
levantariam ferro.
O professor Porter não acompanhou os homens que iam buscar o
tesouro, no dia seguinte... mas quando os viu voltar de mãos
vazias, cerca do meio-dia, correu ao encontro deles -
completamente esquecida a sua habitual indiferença, agora
substituída por uma nervosa agitação.
- Onde está o tesouro?... - gritou ele para Clayton, a uma
distância de uns trinta metros.
Clayton abanou a cabeça e, ao chegar junto do professor,
explicou:
- Desapareceu!
- Desapareceu? Não pode ser! Quem poderia tê-lo levado?... -
bradou Porter.
- Só Deus o sabe, professor... - respondeu Clayton. -
Podíamos pensar que o homem que nos guiou estava a mentir
quanto à localização, mas a sua surpresa e consternação, ao
ver que a mala não estava enterrada debaixo da sepultura de
Snipes, um homem a quem os outros assassinaram,

284

foram demasiadamente flagrantes para que pudessem ser
fingidas. As pás demonstraram que "alguma" coisa havia estado
enterrada debaixo do corpo, porque havia ali um buraco e havia
sido tapado com terra solta.
- Mas quem poderia tê-lo levado?... - repetiu o professor.
- As suspeitas poderiam naturalmente recair sobre os
marinheiros do cruzador... - disse o tenente Charpentier -,
mas acontece que o segundo-tenente Janviers me afirma que
nenhum homem teve licença para desembarcar, que de facto
nenhum desembarcou, desde que ancorámos, a não ser sob o
comando de um oficial. Não sei se suspeitaria dos nossos
marinheiros, mas alegra-me o facto de não haver sequer a
possibilidade de uma suspeita.
- Nunca teria pensado em suspeitar de homens a quem tanto
devemos... - respondeu o professor. - Seria o mesmo que
suspeitar do sr. Clayton, ou do sr. Philander, pessoas a quem
muito estimo.
Os franceses sorriram, tanto os soldados como os oficiais.
Era evidente que se sentiam aliviados com aquelas palavras.
- O tesouro já foi levado há tempo... - continuou Clayton. -
O corpo desmanchou-se quando o levantámos... o que indica que,
quem levou o tesouro, o fez quando o cadáver estava ainda
enterrado há pouco... por isso que o encontrámos aparentemente
intacto.
- Deviam ser vários... - disse Jane, que se aproximara.

285

- Eram precisos quatro homens para levantar a mala...
- Com certeza!... - exclamou Clayton. - Deve ter sido obra
de um grupo de negros. Provavelmente um deles viu os homens
enterrarem a mala... Foi chamar outros e desenterraram-na,
levando-a.
- As conjecturas são inúteis... - murmurou o professor,
tristemente: - A mala desapareceu e nunca mais a veremos, nem
ao tesouro que continha.
Só Jane sabia o que essa perda significava para seu pai... e
ninguém ali sabia o que poderia significar para ela.

Seis dias depois, o capitão Dufranne avisou de que partiriam
na manhã seguinte, cedo. Jane teria suplicado uma nova
espera... se não tivesse também começado a pensar que o seu
semideus apaixonado não voltaria. Mau grado seu, começara a
sentir dúvidas e receios. A sensatez dos argumentos dos
oficiais franceses, desinteressados e imparciais, convencia-a
contra a sua vontade. Nunca poderia acreditar que o belo homem
da selva fosse um canibal, mas acabou por lhe parecer possível
que ele tivesse sido adoptado como membro de alguma tribo.
Também não acreditava que ele estivesse morto. Era
impossível pensar que aquele corpo perfeito, estuante de vida,
deixasse de existir... Enquanto estes pensamentos invadiam
Jane, outros, igualmente indesejados, se impunham à sua mente.
Se o homem da selva pertencia a uma tribo selvagem, tinha
decerto uma mulher também selvagem - ou uma dúzia, talvez - e
filhos mestiços... A jovem tremia ao pensar nisto...

286

e quando lhe disseram que o cruzador partia no dia seguinte,
ficou quase contente.
Foi todavia ela quem sugeriu que armas, munições, provisões
e comodidades fossem deixados na barraca, aparentemente
destinados a essa criatura intangível que assinava "Tarzan dos
Macacos", e ao tenente d'Arnot, se ainda estivesse vivo - mas
na realidade, assim o esperava, destinados ao belo semideus da
selva, embora pudesse, como tantos outros ídolos, ter apenas
pés de barro.
E, no último instante, deixou uma mensagem para ele, que Lhe
seria transmitida por Tarzan dos Macacos. Foi a última a
deixar a barraca, aonde voltou sob um pretexto qualquer quando
já iam todos a caminho do escaler. Ajoelhou-se junto da cama
onde tinha dormido tantas noites, e rezou pela segurança do
seu homem primitivo. Depois beijou repetidas vezes o medalhão,
murmurando:
- Amo-te... e porque te amo confio em ti... Mas, ainda que
não confiasse, continuaria a amar-te... Se tivesses voltado, e
não houvesse:para nós outra solução, teria ido contigo para a
selva - para sempre..."

CAPÍTULO 25

Posto avançado da civilização

No mesmo instante em que d'Arnot disparou, o batente foi
empurrado para dentro e o vulto de um homem caíu,

287

ficando estendido no chão da barraca. No seu impulso de
pânico, o francês voltou a erguer a arma, para disparar
segunda vez, mas de repente a claridade vaga que entrava pela
porta aberta permitiu-lhe ver que o homem era um branco... e
no instante seguinte d'Arnot compreendeu que tinha ferido o
seu amigo e protector, Tarzan dos Macacos.
Com um brado de angústia, d'Arnot precipitou-se para o
ferido e, ajoelhando junto dele, soergueu-lhe a cabeça,
gritando o seu nome. Não teve resposta, e então encostou a
cabeça ao coração de Tarzan. Foi com indizível alegria que
ouviu o bater compassado e forte.
Cuidadosamente, não sem grande dificuldade, estendeu Tarzan
sobre a cama de campanha e, tendo fechado e trancado a porta,
acendeu uma das lanternas e examinou a ferida. A bala acertara
de raspão na cabeça do homem da selva. Era uma ferida feia mas
superficial, e não havia qualquer indicação de fractura.
D'Arnot deixou escapar um fundo suspiro de alívio e começou a
limpar o sangue da cara de Tarzan, banhando-a com água.
Não tardou que a água fria reanimasse Tarzan.
Um instante depois abriu os olhos e fitou d'Arnot com uma
expressão de surpresa. O francês tinha-lhe ligado a cabeça,
com tiras de pano molhado, e ao ver que Tarzan despertava
levantou-se e escreveu num papel, sobre a mesa, uma rápida
mensagem que entregou ao seu amigo, explicando o erro terrível
que cometera e como se sentia grato a Deus porque a ferida não
era grave.

288

Tarzan leu a mensagem e, sentando-se na beira da cama de
campanha, riu com vontade.
- Isto não é nada... - disse ele, em francês.
E, como o seu vocabulário não lhe parecesse suficiente,
escreveu por seu turno:
"Devia ter visto o que me fez Bolgani, e o que me fizeram
Kerchak e Terkoz, antes de eu os matar. Se visse, rir-se-ia
deste arranhão."
Então d'Arnot entregou a Tarzan as duas mensagens que
encontrara e lhe eram dirigidas. O homem da selva leu a
primeira, com uma expressão de tristeza. Depois pegou na
segunda, cujo sobrescrito estava fechado, e observou-a
atentamente, procurando descobrir como se abria - pois nunca
vira, antes, um sobrescrito fechado. Por fim, entregou-a a
d'Arnot.
O francês tinha estado a observá-lo, e compreendera que o
sobrescrito o intrigava. Era estranho... ver um homem branco
para quem um sobrescrito constituía um mistério. D'Arnot abriu
o sobrescrito e entregou a carta a Tarzan. Então, sentando-se
num dos bancos de campanha, o homem da selva estendeu a carta
na sua frente e leu:

"Para Tarzan dos Macacos.

Antes de partir, deixe-me acrescentar os meus agradecimentos
aos do sr. Clayton, pela bondade que teve em nos consentir a
utilização da sua casa. Foi um grande pesar, para nós, nunca o
termos visto, para nos tornarmos amigos. Gostaríamos muito de
ter podido agradecer-lhe pessoalmente, e de o conhecer.

289

Há uma outra pessoa a quem eu gostaria de agradecer também,
mas essa pessoa não voltou - embora eu não possa acreditar que
tenha morrido. Não sei o nome dele. É o gigante branco que
usava o medalhão de oiro.
Se o conhece e sabe falar a língua dele, transmita-lhe o meu
reconhecimento e diga-lhe que esperámos durante sete dias o
seu regresso. Diga-lhe também que na minha casa, na América,
em Baltimore, haverá sempre alguém para o receber com alegria,
se ele quiser lá ir.
Encontrei a mensagem que escreveu, entre as ervas, sob uma
árvore perto da barraca. Não sei como pôde começar a amar-me,
porque nunca falámos um com o outro, e sinto a maior das penas
se for verdade, porque já dei o meu coração a outro homem.
Mas saiba que serei sempre sua amiga.

JANE PORTER"

Tarzan ficou sentado, em silêncio, durante perto de uma
hora, com os olhos fitos no chão. Era evidente, depois de ler
as duas cartas, que não tinham compreendido que ele e Tarzan
dos Macacos eram a mesma e única pessoa.
Repetia constantemente, na memória, a frase que lera:
"... dei o meu coração a outro homem..."
Então ela não o amava! Como podia ter fingido amor, tê-lo
erguido a tão grande altura de esperança para depois o
mergulhar em tal profundidade de desespero?

290

Talvez que os beijos dela fossem apenas demonstrações de
amizade. Como poderia ele saber, se nada conhecia da maneira
de ser das pessoas humanas?
Levantou-se bruscamente e, dando as boas-noites a d'Arnot -
como aprendera a fazer - deixou-se cair sobre a cama de ervas
e de fetos - que tinha sido a de Jane Porter.
Por seu lado, d'Arnot apagou a lanterna e estendeu-se na
cama de campanha.
Durante uma semana pouco mais fizeram do que descansar.
D'Arnot continuou a ensinar francês a Tarzan, e ao fim dessa
semana os dois homens podiam conversar sem dificuldades de
maior. Uma noite, quando estavam sentados no interior da
barraca, antes de se deitarem, Tarzan voltou-se para d'Arnot.
- Onde é a América?... - perguntou ele.
D'Arnot apontou para Noroeste, dizendo:
- A muitos milhares de milhas de distância, do outro lado do
mar. Porquê?
- Quero ir lá.
D'Arnot abanou a cabeça.
- É impossível, meu amigo... - disse ele.
Tarzan levantou-se e, dirigindo-se a um dos armários,
regressou trazendo uma geografia que mostrava sinais de ter
sido muito lida. Abrindo as páginas onde havia um mapa do
mundo, disse:
- Nunca entendi bem isto. Explique-me, por favor.
Quando d'Arnot explicou, indicando que a cor azul
representava toda a água que havia sobre a Terra, e que as
manchas de outras cores significavam ilhas e continentes,

291

Tarzan pediu-lhe para apontar o sítio onde ambos se
encontravam.
D'Arnot assim fez.
- E agora aponte o sítio onde está a América... - pediu
Tarzan.
Quando Tarzan poisou o dedo sobre a América do Norte, Tarzan
sorriu e pôs a mão sobre as duas páginas, cobrindo o grande
Oceano entre os dois continentes.
- Não é muito longe... - disse ele. - Não chega à largura da
minha mão.
D'Arnot riu-se. Como poderia ele fazê-lo compreender? Pegou
num lápis e marcou um pequeno ponto na costa africana.
- Este pequeno ponto... - explicou -, é milhares de vezes
maior, em relação a este mapa, do que toda esta região é em
relação à Terra. Compreende agora a distância?
Tarzan ficou pensativo, durante longos momentos.
- Vivem homens brancos em África?... - perguntou.
- Sim.
- Onde estão os mais próximos?
D'Arnot apontou um lugar, no mapa, um pouco ao norte.
- Tão perto?... - exclamou Tarzan, surpreendido.
- Sim... mas não é tão perto.
- E eles têm grandes barcos para atravessar o mar?
- Têm.
- Bem, partiremos amanhã... - declarou Tarzan.

292

D'Arnot voltou a sorrir e a abanar a cabeça.
- É demasiado longe... - respondeu. - Morreríamos antes de
lá chegar.
- Quer ficar aqui para sempre?... - perguntou Tarzan.
- Não.
- Então partiremos amanhã. Já não gosto disto aqui. Prefiro
morrer a ficar.
- Pois seja... - volveu d'Arnot, com um encolher de ombros.
- Eu não sei bem, "mon ami"... mas creio que também prefiro
morrer a ficar aqui. Se você vai, eu irei consigo.
- Então está decidido... - concluiu Tarzan. - Parto amanhã
para a América.
- Como poderá chegar à América, sem dinheiro?... - perguntou
d'Arnot.
- O que é dinheiro?
A explicação foi longa, e Tarzan ficou apenas com um
conhecimento imperfeito do que significava o dinheiro.
- Como é que os homens conseguem dinheiro?... - perguntou,
por fim.
- Trabalham para o ganhar.
- Muito bem. Trabalharei para o ganhar.
- Não, meu amigo... - declarou d'Arnot. - Não precisa de se
preocupar com dinheiro, nem de trabalhar para o conseguir. Eu
tenho bastante dinheiro para dois - ou para vinte. Muito mais
do que convém a um homem... e você terá todo aquele de que
precisar... se alguma vez alcançarmos a civilização.
Assim, na manhã seguinte partiram para o Norte,

293

ao longo do litoral. Cada um deles levava um rifle e munições,
além de mantas, comida e utensílios de cozinha. Estes últimos
pareceram a Tarzan servir apenas para atravancar, e atirou-os
fora.
- Mas você precisa de aprender a comer alimentos cozinhados,
meu amigo... - objectou d'Arnot. - Os homens civilizados não
comem carne crua.
- Haverá tempo bastante, quando chegar à civilização... -
volveu Tarzan. - Não gosto dessas coisas, e só servem para
estragar o sabor da boa carne.

Durante um mês caminharam para o Norte - por vezes
encontrando comida abundante, de outras vezes passando fome em
dias consecutivos. Não encontraram indígenas nem foram
incomodados pelas feras. A viagem era um milagre de
facilidade.
Tarzan fazia muitas perguntas, e aprendia rapidamente.
D'Arnot ensinou-lhe muitos dos requintes da civilização - até
mesmo a usar um garfo e uma faca. Mas acontecia que Tarzan
largava essas complicadas coisas e, pegando na carne entre as
fortes mãos morenas, rasgava-a, entre os dentes brancos, como
um animal selvagem. Então d'Arnot protestava, dizendo:
- Não deve comer como um animal, Tarzan... enquanto eu estou
a tentar transformá-lo num gentleman! Mon Dieu! Os gentleman
não fazem isso - é horrível!
Tarzan sorria, como uma criança apanhada em falta, e pegava
outra vez na faca e no garfo... embora detestasse tais coisas.
Durante a viagem, falou a d'Arnot na grande mala que vira os
marinheiros enterrarem. Contou-lhe como a desenterrara e a
levara para o anfiteatro onde se reuniam os macacos,
escondendo-a aí.
- Deve ser a mala do tesouro do professor Porter... - disse
d'Arnot. - Foi pena... mas claro, você não sabia.
Então Tarzan recordou-se da carta que lera, a carta dirigida
por Jane à sua amiga distante - e compreendeu qual era o
conteúdo da mala e o que significava para Jane.
- Amanhã iremos buscar a mala... - declarou ele a d'Arnot.
- Voltar atrás?... - Exclamou o francês. - Mas meu amigo,
estamos a caminho há três semanas...
Seriam precisas outras três para voltar, e depois, com esse
enorme peso que, como diz, exigia os esforços conjuntos de
quatro homens, para ser transportado, decorreriam meses antes
de chegarmos aonde estamos.
- É preciso fazer isso, amigo... - insistiu Tarzan. - Você
segue a caminho da civilização, e eu vou buscar o tesouro.
Sozinho, poderei viajar muito mais depressa.
- Tenho um plano melhor, Tarzan!... - exclamou d'Arnot. -
Continuaremos juntos até ao primeiro estabelecimento de
brancos, e aí fretamos um barco e descemos a costa para ir
buscar o tesouro que então poderemos transportar facilmente.
Será mais fácil e mais seguro, e não tornará necessário que
nos separemos. Que pensa deste plano?
- Está bem... - respondeu Tarzan. - O tesouro lá estará,

294 295

seja quando for que o procuremos. E, embora eu pudesse ir
buscá-lo agora e voltar no espaço de pouco mais de uma lua...
sentir-me-ei mais seguro, a seu respeito, não o deixando
sozinho na trilha. Quando vejo até que ponto você é indefeso,
d'Arnot espanto-me de que a raça humana tenha podido resistir
ao longo das idades, como lhe disse. Sabor, só ela, podia
matar um milhar de homens como você.
D'Arnot riu-se.
- Virá a ter uma ideia melhor dos seus semelhantes... quando
vir os exércitos e os navios, as grandes cidades, os poderosos
trabalhos de engenharia. Então compreenderá que é o cérebro,
não os músculos, o que torna o animal humano mais forte do que
as grandes feras da selva. Só e sem armas, um homem não pode
enfrentar uma fera. Mas dez homens juntos podem somar a sua
inteligência e a sua força contra os inimigos, ao passo que as
feras, incapazes de raciocinar, nunca pensarão em se aliar
contra os homens. De outra forma, Tarzan... como teria você
podido sobreviver na selva?
- Tem razão, d'Arnot... Se Kerchak se houvesse aliado a
Tublat, naquela noite do Dum-Dum, teria sido o meu fim. Mas
Kerchak não via o suficiente para aproveitar essa
possibilidade. Mesmo Kala, minha mãe, nunca previa nada. Comia
o que precisava e quando precisava, e ainda que encontrasse
comida para se alimentar várias vezes, não aproveitaria senão
a que pudesse utilizar naquele instante. Lembro-me de que ela
me achava tolo por transportar provisões que ia juntando...
embora ficasse contente por poder comê-las quando,

296

no prosseguimento da jornada, não encontrávamos mais.
- Conheceu sua mãe, Tarzan?... - perguntou d'Arnot,
surpreendido.
- Sim. Era uma esplêndida macaca, maior do que eu e pesando
duas vezes mais.
- E o seu pai?
- Não o conheci. Kala disse-me que era um macaco branco e
sem pêlos, como eu. Sei agora que deve ter sido um homem
branco.
D'Arnot olhou, longa e atentamente, para o seu companheiro.
- Tarzan... - disse ele, por fim -... é impossível que Kala,
a macaca, fosse sua mãe. Se tal coisa pudesse acontecer, o que
ponho em dúvida, você teria herdado algumas das
características dos macacos, o que não é verdade. Você é
puramente homem e, direi mesmo, é filho de pais
excepcionalmente inteligentes e de alto nascimento. Não tem
qualquer indício sobre o seu passado?
- Nenhum.
- Não encontrou, na barráca, qualquer escrito que pudesse
informar sobre os seus primitivos ocupantes?
- Li tudo o que havia na barraca, com excepção de um livro
que sei agora estar escrito numa língua que não é a inglesa.
Talvez você possa lê-lo.
Tarzan tirou o pequeno livro de capa negra, do interior da
sua aljava, e entregou-o ao companheiro. D'Arnot olhou para a
primeira página e disse:

297

- Este é o diário de John Clayton, Lord>> Greystoke, um
nobre inglês, e está escrito em francês...
Então d'Arnot leu o diário que havia sido escrito vinte anos
antes e que registava os pormenores da história que nós já
conhecemos - a história da aventura, sofrimentos e penas de
John Clayton e de sua mulher Alice, desde o dia em que tinham
partido de Inglaterra até uma hora antes de John Clayton ser
abatido por Kerchak.
D'Arnot leu em voz alta, e por vezes a voz embargava-se-lhe
e era forçado a parar, impressionado pela infinita
desesperança que se adivinhava entre as linhas. Olhava de
quando em quando para Tarzan, mas o homem da selva estava
sentado sobre os calcanhares, de olhos postos no chão, imóvel
como uma escultura em pedra.
Só quando havia alguma referência ao bebé, o tom do diário
se afastava da expressão de desespero que se insinuara, pouco
a pouco, depois dos primeiros dois meses de vida na barraca.
Nesses pontos havia quase que uma nota de felicidade reprimida
- ainda mais triste do que o resto. Um dos apontamentos
revelava quase esperança:

"Hoje o nosso menino completa seis meses. Está sentado no
colo de Alice, ao lado da mesa onde eu estou a escrever - uma
criança saudável, feliz e perfeita. Por vezes, contra toda a
esperança, imagino-o crescido, ocupando no mundo o lugar de
seu pai - o segundo John Clayton - e acrescentando novas
honras à casa de Greystoke.

298

Neste instante, como para dar ao que escrevo a força do seu
acordo, agarrou a minha pena nos seus deditos gordos,
sujando-os e deixando as marcas sobre a página."
E ali, na margem da página, estavam as impressões
digitais,.parcialmente esborratadas, de quatro deditos
infantis e de metade de um polegar.
Quando d'Arnot acabou de ler o diário, os dois homens
ficaram em silêncio durante alguns minutos. Mas, logo depois,
o francês perguntou, excitado:
- Que diz a isto, Tarzan dos Macacos? Não lhe parece que
este livro esclarece o mistério da sua ascendência? Homem,
você é Lord Greystoke!
Tarzan abanou a cabeça.
- O livro fala só de uma criança... - respondeu. - E o
esqueleto dessa criança esteve no berço, onde morreu a chorar
com fome, desde a primeira vez que eu entrei na barraca até
que o professor Porter e os seus companheiros o enterraram,
entre o pai e a mãe, no terreno em frente. Não... Essa era a
criança de quem o livro fala - e o mistério da minha origem
está mais denso do que nunca. Ultimamente tenho pensado,
muitas vezes, na possibilidade de ter nascido na barraca. Mas
não... Receio bem que Kala me tenha dito a verdade... -
concluiu, tristemente.
D'Arnot abanou a cabeça. Não estava convencido e na sua
mente estabeleceu-se a determinação de provar a exactidão da
sua teoria - porque descobrira a chave, única, capaz de abrir
a porta do mistério, ou de a fechar para sempre sobre os
domínios do indecifrável.

299

Uma semana mais tarde os dois homens alcançaram uma clareira
na floresta. À distância viram várias construções, rodeadas
por uma forte paliçada. Entre eles e a paliçada, na vasta
clareira, estendiam-se terras lavradas nas quais vários negros
trabalhavam.
Os dois homens pararam na orla da selva. Tarzan colocou no
seu arco uma flecha envenenada, mas d'Arnot poisou-lhe uma das
mãos num braço.
- Que vai fazer, Tarzan?
- Eles tentarão matar-nos assim que nos virem... - respondeu
Tarzan. - Prefiro ser eu a matar.
- Talvez sejam amigos...
- São negros... - atalhou Tarzan, levantando o arco.
- Não deve fazer isso, Tarzan!... - exclamou d'Arnot. - Os
brancos não matam assim, sem mais nem menos. Meu Deus! Você
tem ainda muito que aprender! Lamento o rufião que se meter
consigo, homem da selva, quando eu o levar para Paris. Vou ter
muito que fazer para que você não acabe na guilhotina!
Tarzan baixou o arco e sorriu.
- Não sei por que razão devia matar os negros, na minha
selva, e não devo matá-los aqui. Suponha que Numa, o leão, nos
surge pela frente, pronto a atacar. Talvez eu deva dizer-lhe:
- Bons-dias, Msieu Numa... Como vai Madame Numa? É assim?

300

- Espere que os negros o ataquem... - volveu d'Arnot, rindo
-, e então poderá matá-los. Não conclua que os homens são seus
inimigos, antes de ter provas disso.
- Está bem... - retorquiu Tarzan. - Então vamos
aproximar-nos para que nos matem... - e avançou em linha recta
através do campo, a cabeça erguida e o sol tropical a iluminar
a sua pele morena.
Atrás dele ia d'arnot, vestido com alguma roupa que Clayton
deixara na barraca depois de os oficiais do cruzador lhe terem
proporcionado a maneira de se vestir mais correctamente.
A certa altura um dos negros levantou a cabeça e, ao ver
Tarzan, deu meia volta e fugiu, gritando, na direcção da
paliçada. No instante seguinte o ar vibrava de gritos de pavor
dos negros fugitivos, mas antes que eles alcançassem a
paliçada apareceu um homem branco, empunhando um rifle, como a
querer saber a causa da berraria. O que viu fê-lo levar a arma
à cara... e Tarzan dos Macacos teria sentido outra vez uma
bala no corpo, se d'Arnot não bradasse com toda a força dos
pulmões:
- Não atire! Somos amigos!
- Façam alto, então!
- Páre, Tarzan... - disse d'Arnot. - Ele julga-nos inimigos.
Tarzan abrandou o passo, e ao lado de d'Arnot encaminhou-se
para onde estava o homem branco. Este olhava-os, num espantado
pasmo.
- Que homens são vocês?... - perguntou ele, em francês.

301

- Homens brancos... - volveu d'Arnot. - Andámos perdidos na
selva, durante muito tempo.
O homem baixou a arma e adiantou-se, de mão estendida.
- Sou o padre Constantine, da missão francesa aqui
instalada...: - disse ele -, e tenho muito prazer em dar-lhes
as boas-vindas.
- Este é o sr. Tarzan, padre Constantine... - respondeu
d'Arnot. E acrescentou, enquanto o padre estendia a mão a
Tarzan: - E eu sou Paul dArnot, tenente da marinha francesa.
Padre Constantine apertou a mão que Tarzan lhe estendia
imitando o gesto dele, e num relance de olhos notou o soberbo
físico e a bela face do gigante.
Foi assim que Tarzan chegou a um posto avançado da
civilização.
Demoraram-se ali durante uma semana, e o homem da selva,
observador atento, aprendeu muita coisa sobre os modos dos
brancos. Entretanto, mulheres negras costuraram roupas de lona
branca para ele e para d'Arnot, a fim de que pudessem
continuar a jornada correctamente vestidos.

CAPÍTULO 26

Civilização

Mais um mês de viagem levou-os até um pequeno grupo de
edifícios na foz de um largo rio, e aí Tarzan viu muitas

302

embarcações, e de novo se sentiu dominado pela antiga timidez
da criatura selvagem na presença de homens civilizados.
Gradualmente, foi-se habituando aos estranhos ruídos e às
estranhas maneiras da civilização, de maneira que, naquela
altura, ninguém poderia saber que, dois curtos meses antes,
aquele belo francês, imaculadamente vestido de branco, que ria
e conversava animadamente - saltava de árvore em árvore
através de uma floresta primitiva, meio nu, sempre pronto a
cair sobre algum animal da selva, para o devorar, cru, com
excelente apetite.
Tarzan manejava agora o garfo e a faca - que um mês antes
ainda o irritavam - com um à vontade igual ao do bem educado
d'Arnot. Tinha-se mostrado um aluno tão atento e tão
inteligente, que o jovem francês se dedicara, de alma e
coração, a fazer de Tarzan dos Macacos um verdadeiro
gentleman... pelo menos no que dizia respeito a boas maneiras
e correcção de linguagem.
- Deus fez de si um gentleman por natureza, meu amigo... -
dissera d'Arnot -... mas temos de conseguir que os seus
desígnios sejam visíveis na aparência.
Logo que chegaram ao pequeno porto, d'Arnot telegrafara aos
seus superiores, a informar de que estava vivo e são - e a
pedir uma licença de três meses, que lhe havia sido concedida.
Tinha também telegrafado aos seus banqueiros para lhe
remeterem fundos. A espera de um mês, que a ambos contrariou,

302

foi devida à impossibilidade de fretarem um barco para
voltarem ao sul, em busca do tesouro. Durante a demora na
pequena cidade costeira, Monsieur Tarzan provocou o
maravilhoso pasmo de brancos e de negros, em consequência de
várias ocorrências que para ele não tinham qualquer
importância.
De uma vez um negro gigantesco, endoidecido pelo álcool,
tinha perdido completamente a cabeça e aterrorizara a pequena
cidade, até que a sua má estrela o levara aonde o simpático
francês descansava na varanda do hotel. Galgando os degraus da
varanda, e brandindo uma faca, o negro precipitou-se para um
grupo de quatro homens que, sentados a uma das mesas,
saboreavam o inevitável absinto.
Com brados de alarme, os quatro homens puseram-se em fuga -
e então o negro avistou Tarzan. Soltando uma espécie de rugido
- enquanto meia centena de cabeças espreitavam para ver morrer
o pobre francês, tão simpático e tão novo - o negro lançou-se
ao ataque. Tarzan enfrentou o assalto, com o sorriso que lhe
encurvava os lábios sempre que surgia a perspectiva de uma
luta.
Quando o negro saltou sobre ele, músculos de ferro
prenderam-lhe o braço armado, e um breve gesto bastou para
deixar-lhe a mão pendente de um osso quebrado.
Com a dor e a surpresa, a loucura do álcool deixou o negro,
e enquanto Tarzan voltava a sentar-se calmamente, o homem
fugiu na direcção do bairro gritando de pavor.
De outra vez, quando Tarzan e d'Arnot jantavam em companhia
de outros brancos, a conversa recaiu sobre leões e caçadas aos
leões...

304

o que era natural porque a cidadezita estava construída
praticamente na orla da selva, e a vizinhança das feras era
bastante próxima para que fosse assunto de conversa.
Dividiam-se as opiniões sobre a bravura do rei dos animais -
afirmando alguns que o leão era na realidade um bicho cobarde,
mas concordando todos em que era com uma sensação de segurança
que empunhavam os seus rifles "Express"... quando o rei da
selva rugia, durante a noite, nas proximidades de um
acampamento.
Tarzan e d'Arnot haviam combinado que o passado do primeiro
deveria ser mantido em segredo, e só o oficial francês
conhecia a familiaridade do seu amigo com as feras da
floresta.
- Monsieur Tarzan não nos deu a sua opinião... - disse um
dos do grupo. - Um homem tão excepcionalmente corajoso e que
viveu durante anos em África, como suponho, deve ter
experiência quanto a leões...não é verdade?
- Alguma... - volveu Tarzan, secamente. - A bastante para
saber que cada um dos senhores deve ter razão ao avaliar as
características dos leões que encontrou. Mas da mesma maneira
se poderiam avaliar todos os negros por esse que há dias
perdeu a cabeça, ou pensar que todos os brancos são cobardes,
por ter encontrado um branco que o era. Há tanto
individualismo, entre os animais inferiores, como há entre
nós. Podemos encontrar um leão que seja tímido... e que fuja
de nós. Mas podemos encontrar outro, de outro género...

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e então os nossos amigos ficarão a fazer conjecturas sobre os
motivos por que não regressamos da selva. Quanto a mim,
considero sempre que um leão é um animal feroz, e assim nunca
sou apanhado desprecavido.
- Deve haver pouco prazer na caça... - volveu o que falava
primeiro -, quando temos medo do animal que caçamos.
D'Arnot sorriu. Tarzan... com medo!
- Não sei exactamente o que entende por medo... - disse
Tarzan. - Tal como os leões, o medo é uma coisa que difere de
homem para homem... mas, para mim, o único prazer da caça é o
conhecimento de que o animal caçado tem tanto poder para me
fazer mal, como eu tenho para lhe fazer mal, a ele. Se eu
fosse caçar levando um par de rifles, um criado com mais
armas, e vinte ou trinta batedores - tudo contra um leão -
pensaria que a fera tinha poucas probabilidades do seu lado, e
o prazer da caça seria diminuído na exacta proporção da
segurança que eu sentisse.
- Então devo concluir que Monsieur Tarzan preferiria ir nu
para a selva, armado apenas com uma faca, para matar o rei dos
animais... - riu o outro, com uma leve ponta de ironia sob a
delicadeza das maneiras.
- E um pedaço de corda... - acrescentou Tarzan.
Nesse exacto momento o rugido de um leão fez-se ouvir na
selva não muito distante, como um desafio.
- Aí tem a sua oportunidade, Monsieur Tarzan... - Disse o
francês.

306

- Não tenho fome... - volveu Tarzan, simplesmente.
Todos se riram, menos d'Arnot. Só ele sabia que um animal da
selva tinha exposto a sua simples razão, pelos lábios de
Tarzan.
- Mas tem receio, como qualquer de nós teria, de ir atacar
essa fera armado com uma faca e um pedaço de corda, nu... Não
é assim?
- Não... - disse Tarzan. - Só um tolo faz qualquer coisa sem
motivo.
- Cinco mil francos constituem um motivo... - declarou o
outro. - Aposto essa quantia em como não poderá trazer um
leão, da selva, nas condições que indicámos - nu e armado com
uma corda e uma faca, sem mais.
Tarzan olhou para d'Arnot e fez um aceno afirmativo.
- Suba a aposta para dez mil... - disse d'Arnot.
- Está feito... - retorquiu o outro.
Tarzan levantou-se.
- Deixarei a minha roupa na extremidade da povoação, para
que, se voltar depois de amanhecer, possa ter alguma coisa que
vestir ao atravessar as ruas.
- Não está a pensar em ir agora, de noite... - exclamou o
apostador.
- Por que não?... - volveu Tarzan. - Numa caça de noite,
será mais fácil encontrá-lo.
- Não... não quero ter a sua morte na consciência! Já seria
perfeita loucura se fosse durante o dia.

307

- Vou agora... - afirmou Tarzan, encaminhando-se para o seu
quarto a fim de ir buscar a faca e a corda.
Os homens acompanharam-no até à orla da floresta, onde ele
deixou as roupas numa pequena barraca. Mas, quando ele se
dispôs a entrar na escuridão do mato, tentaram dissuadi-lo. E
o que apostara foi o que mais insistiu em abandonarem a louca
aventura.
- Concordo em que perdi e os dez mil francos são seus... mas
não teime em executar uma tentativa da qual só pode resultar a
sua morte!
Tarzan riu-se, e no instante seguinte havia desaparecido na
selva. Os homens ficaram silenciosos durante algum tempo.
Depois, devagar, encaminharam-se de volta à varanda do hotel.
Logo que entrou na selva, Tarzan saltou para as árvores - e
foi com uma sensação de exultante e redescoberta liberdade que
se lançou de ramo em ramo. Aquela era a vida de que ele
gostava. A civilização nada tinha que se assemelhasse àquilo,
na sua esfera restrita e fechada, limitada por estreitos
convencionalismos. As roupas eram uma inibição e um incómodo.
Finalmente, sentia-se de novo livre. De certa maneira não
havia compreendido até que ponto estivera prisioneiro. Como
lhe seria fácil dirigir-se para a costa e depois seguir para o
Sul, na direcção da sua barraca e da "sua" selva...
Estava a avançar contra o vento e, a certa altura, captou o
cheiro de Numa.

308

O seu ouvido apurado distinguiu o rumor familiar dos pés
almofadados da fera, o roçar de um corpo alongado e fulvo, por
entre o mato.
Tarzan aproximou-se rapidamente do leão, espreitando-o
silenciosamente até que o viu atravessar um curto espaço
iluminado pelo luar. Então a corda silvou, pronta e certeira,
e apanhou o pescoço do animal. Tal como fizera dezenas de
vezes, Tarzan amarrou a ponta da corda a um sólido ramo, e
enquanto a fera se debatia, raivosamente, para se libertar,
saltou para o chão, atrás dela, cavalgou-lhe o dorso e
cravou-lhe a faca no coração, numa dezena de golpes mortais.
Então, com um pé sobre a carcaça de Numa, levantou a cabeça
e soltou o espantoso brado de vitória da sua tribo selvagem.
Por momentos, Tarzan manteve-se irresoluto, dividido entre
contraditórias emoções - entre a sua gratidão e lealdade para
d'Arnot, e o desejo de regressar à grande liberdade da selva.
Por fim, a visão de uma bela face e de uns lábios quentes,
juntos aos seus, apagou a imagem da selva. Tarzan colocou ao
ombro a carcaça de Numa, e mais uma vez seguiu o caminho das
árvores.
Os homens tinham-se mantido durante uma hora quase em
silêncio, na varanda do hotel. Debalde haviam tentado
conversar sobre vários assuntos, mas a ideia dominante em
todos eles não tardava a pôr fim à conversa.
- Mon ßieur!... - exclamou por fim o que havia apostado. -
Não posso suportar isto por mais tempo.

309

Vou para a selva, com a minha Express, e trarei de volta esse
doido!
- Vou com você... - disse outro.
- E eu também... - declararam os restantes, em coro.
Como se a sugestão tivesse quebrado o feitiço de um horrível
pesadelo, cada qual correu apressadamente para os seus
aposentos, e minutos depois seguiam a caminho da selva, todos
fortemente armados.
- Deus! Que foi isto?... - exclamou subitamente um deles, um
inglês, quando o eco distante do brado de Tarzan lhes chegou
aos ouvidos.
- Já ouvi isto uma vez, noutra ocasião... - disse um belga
-, quando estive na região dos gorilas. Os meus carregadores
disseram-me que era o brado de um dos gigantescos machos, a
anunciar uma vitória.
D'Arnot recordou a descrição feita por Clayton, do terrível
brado de Tarzan, e esboçou um sorriso a despeito da horrível
impressão que lhe causava a ideia de que o pavoroso som
pudesse sair de uma garganta humana - da garganta do seu
amigo.
Quando o grupo se deteve finalmente na orla da selva,
discutindo a melhor distribuição das suas forças, foram
sobressaltados por um riso baixo, perto deles. Voltando-se
viram o vulto gigantesco que se aproximava conduzindo um leão
morto, sobre os largos ombros.
O próprio d'Arnot ficou petrificado, porque lhe parecia
impossível que Tarzan tivesse tão prontamente abatido um leão,
com as armas que levava, ou que,

310

sozinho, pudesse ter transportado tão grande peso através do
mato. Os outros juntaram-se em volta de Tarzan, crivando-o de
perguntas, mas a única resposta foi um riso alegre, que tirava
importância à proeza.
Para Tarzan, eram como se elogiassem um magarefe pelo seu
heroísmo ao matar uma vaca. Tão frequentemente ele matara para
comer, ou para se defender, que o acto nada tinha de notável
aos seus olhos. Mas era na verdade um herói aos olhos daqueles
homens - embora habituados a caçar feras.
Acidentalmente, ganhara dez mil francos, porque d'Arnot
insistiu em que ele os aceitasse. Este aspecto era importante
para Tarzan, que começava exactamente a compreender o poder
das pequenas peças de metal, ou dos rectângulos de papel, que
mudavam constantemente de mãos entre as criaturas humanas,
quer passeassem, ou comessem, ou se vestissem, ou bebessem -
praticamente a cada instante.
Tarzan compreendia agora que, sem dinheiro, se pode morrer.
D'Arnot dissera-lhe para não se preocupar, pois dispunha de
bastante dinheiro para ambos, mas o homem da selva estava a
aprender muitas coisas, entre elas que os brancos olhavam com
desdém para aqueles que aceitavam dinheiro sem darem, em
troca, alguma coisa de igual valor.
Pouco tempo depois do episódio do leão, d'Arnot, conseguiu
fretar um antigo rebocador, para a viagem, ao longo da costa,
até à angra de Tarzan. Foi uma manhã alegre para ambos, quando
o pequeno barco se fez ao mar.

311

A viagem foi despida de incidentes, e na manhã seguinte ao
dia em que o barco lançou ferro diante da praia onde se erguia
a barraca, Tarzan, de novo com o seu aspecto de homem da selva
- e levando uma pá - partiu sozinho para o anfiteatro dos
macacos, onde estava o tesouro. Regressou tarde no dia
seguinte, trazendo a grande mala sobre um ombro e ao amanhecer
o barco saiu da angra e tomou o rumo do Norte.
Três semanas mais tarde, d'Arnot e Tarzan eram passageiros a
bordo de um navio francês que ia para Marselha... e, depois de
uns dias na cidade, seguiram para Paris.
O homem da selva estava ansioso por partir para a América,
mas d'Arnot insistiu em que ele devia acompanhá-lo a Paris,
primeiro, sem todavia revelar a natureza da urgente
necessidade que servia de base ao seu desejo.
Uma das primeiras coisas que d'Arnot fez, na capital, foi
combinar uma visita a um velho amigo, alto funcionário da
polícia, e levar Tarzan. Habilmente, d'Arnot conduziu a
conversa ponto por ponto, até que o amigo explicou ao
interessado Tarzan muitos dos processos em uso para apanhar e
identificar criminosos. O papel representado pelas impressões
digitais, nessa fascinante técnica, foi um dos que mais
interessou Tarzan.
- Mas de que servem essas impressões digitais... - perguntou
Tarzan -, se ao cabo de uns anos as linhas mudam, pelo
desgaste dos tecidos e a sua substituição por outros?

312

- Essas linhas nunca mudam... - respondeu o
inspector. - Desde a infância até à senilidade, as
impressões digitais de um indivíduo mudam apenas
em tamanho, a não ser que haja destruição violenta
de tecidos, por ferimentos ou amputação. Mas, se se
tomam as impressões digitais dos cinco dedos, só
uma amputação total poderia evitar a identificação.
- É maravilhoso... - comentou d'Arnot. - Gostaria de ver o
aspecto das minhas impressões digitais.
- O que é fácil... - volveu o inspector, chamando um
assistente a quem deu breves ordens.
O assistente saiu e voltou pouco depois, trazendo uma caixa
de madeira que colocou sobre a secretária do seu superior.
- Num omento teremos as suas impressões digitais - disse o
amigo de d'Arnot.
Abriu a caixa e tirou de dentro dela um rectângulo de vidro,
um tubo de tinta de borracha espessa, um cilindro de borracha
e alguns cartões brancos. Espremendo um pouco de tinta sobre o
vidro, espalhou-a com o cilindro de borracha até deixar o
vidro coberto por uma camada ténue mas uniforme, de tinta.
- Coloque os quatro dedos da sua mão direita sobre o
vidro... - disse ele a d'Arnot. - Agora o polegar... Exacto.
Aplique os quatro dedos, da mesma forma, sobre este cartão...
um pouco mais à direita, para deixarmos lugar para a mão
esquerda... O polegar... Muito bem... Agora fazemos o mesmo
com a outra mão...

313

- Curioso... - disse d'Arnot. - Experimente você agora,
Tarzan. Vejamos o que parecem as suas impressões digitais.
Tarzan submeteu-se de bom grado à operação, formulando
várias perguntas.
- As impressões digitais mostram as características rácicas?
Quero dizer, indicam se se trata de um negro ou de um ariano?
- Creio que não... - volveu o inspector.
- As impressões digitais de um antropóide... seriam
diferentes das de um homem?
- Provavelmente. As do antropóide são muito mais simples do
que as de um organismo superior.
- Mas... por exemplo... o cruzamento entre uma macaca e um
homem... um mestiço... mostraria as características das duas
raças?
- Creio que sim, mas esta ciência não progrediu ainda
bastante para ser exacta em tais aspectos. Eu não confiaria
noutros resultados além dos de distinguir entre indivíduos.
Sob esse aspecto é infalível. Nunca duas pessoas tiveram
linhas idênticas em todos os dedos, e é muito duvidoso que uma
só impressão digital tenha um "duplicado" exacto.
- A verificação exige muito tempo, ou é muito laboriosa?...
- perguntou d'Arnot.
- Habitualmente é rápida e fácil, se as impressões forem
nítidas.
D'Arnot tirou do bolso um pequeno livro de capa negra e
começou a folheá-lo. Tarzan olhava-o, surpreendido. Como tinha
ele aquele livro? D'Arnot parou de folhear, na página onde
havia cinco pequenos sinais. Entregou ao inspector o livro
aberto.

314

- Estas impressões digitais são iguais às minhas ou às de
Monsieur Tarzan... ou semelhantes a quaisquer delas?
O inspector tirou uma poderosa lente, da gaveta da
secretária, e examinou as três amostras, cuidadosamente,
tomando notas num bloco de apontamentos. Tarzan compreendia
agora o significado daquela visita. A resposta ao enigma da
sua vida... podia estar ali, naquelas pequenas manchas.
Inclinou-se para a frente, na cadeira, tenso - mas de repente
descontraiu-se, sentou-se mais comodamente e sorriu.
D'Arnot olhou para ele, surpreendido.
- Esquece que, durante vinte anos, o corpo da criança que
marcou essas dedadas esteve na barraca de seu pai... e que eu
sempre lá o vi... - disse Tarzan, amargamente.
O inspector olhou-o, atónito.
- Continue o seu exame, capitão... - pediu d'Arnot. - Depois
lhe contaremos toda a história se Monsieur Tarzan concordar.
Tarzan fez um aceno afirmativo, mas comentou:
- É loucura, meu caro d'Arnot. Esses pequenos dedos estão
enterrados na costa ocidental de África.
- Não sei, Tarzan... - respondeu d'Arnot. - É possível...
Mas se você não é o filho de John Clayton, então em nome de
que santo apareceu nessa selva esquecida por Deus, onde nunca
esteve qualquer outro homem branco além de John Clayton?
- Esquece Kala... - disse Tarzan.
- Nem sequer a considero como hipótese... - volveu d'Arnot.

315

Enquanto falavam, os dois amigos haviam-se aproximado da
janela que dava sobre o "boulevard". Por instantes observaram
o movimento, em baixo, cada qual mergulhado nos seus
pensamentos.
- "e A comparação leva bastante tempo..." - pensou d'Arnot,
voltando-se e vendo que o capitão folheava o diário.
Tossiu. O oficial levantou os olhos e recomendou-lhe
silêncio, com um gesto. D'Arnot voltou a olhar pela janela,
mas não tardou que o capitão os chamasse. Ambos se
aproximaram.
- Meus senhores... - disse o capitão-inspector... é evidente
que há muita coisa em jogo, que pode depender, mais ou menos
amplamente, da absoluta exactidão desta comparação. Assim,
peço-lhes para deixarem o assunto nas minhas mãos, até que o
sr. Desquerc, o nosso perito, regresse. Tardará apenas uns
dias.
- Tinha julgado possível uma resposta, agora... - disse
d'Arnot. - Monsieur Tarzan parte amanhã para a América.
- Prometo-lhe que poderá telegrafar-lhe uma informação
exacta dentro de duas semanas... - respondeu o oficial. - Não
me atrevo a dizer qual seja, embora encontre semelhanças. E
melhor deixar a solução para o sr. Desquerc.

316

CAPÍTULO 27

Novamente o gigante

Um táxi parou diante de uma residência antiga, nos
arredores de Baltimore, e um homem de cerca de quarenta anos,
bem constituído e de feições fortes e regulares, apeou-se,
pagou ao motorista e dispensou-o. Um momento depois, esse
mesmo homem entrava na biblioteca da antiga casa.
- Ah, o sr. Canler!... - exclamou um sujeito idoso,
levantando-se para o cumprimentar.
- Boas-noites, meu caro professor... - disse o visitante,
cordialmente, estendendo-lhe a mão.
- Quem lhe abriu a porta?... - perguntou o professor.
- Esmeralda.
- Então ela informará Jane da sua chegada.
- Não, professor... - atalhou Canler. - Vim principalmente
para falar consigo.
- Ah... é uma honra... - disse o professor Porter.
- Professor... - continuou Robert Canler, resoluto, embora
escolhendo cautelosamente as palavras... - vim esta noite para
falar consigo a respeito de Jane... Conhece as minhas
aspirações, e foi mesmo bastante generoso para as aprovar.

317

O professor Arquimedes Q. Porter agitou-se no seu cadeirão.
O assunto era-lhe sempre desagradável, embora não soubesse
porquê. Na verdade, Canler era o que podia chamar-se um bom
partido.
- Mas Jane... - continuou Canler -... procede de uma forma
que não posso compreender. Repele-me sempre, sob um pretexto
ou outro. Tenho a impressão de que solta um suspiro de alívio
quando eu me despeço dela...
- Tut, tut... - atalhou o professor Porter. - Jane é uma
filha obediente, fará exactamente o que eu lhe disser.
- Então posso continuar a contar com o seu apoio?... -
perguntou Canler, num tom de flagrante alívio.
- Certamente, sir... Certamente... Como pôde duvidar disso?
- Há o jovem Clayton, bem sabe... - sugeriu Canler. - Está
aqui há meses. Não sei se Jane se interessa por ele... mas,
além do título, dizem que herdou uma fortuna considerável, do
pai... e não seria estranho que ele... conquistasse Jane... a
não ser...
- Tut, tut, sr. Canler... A não ser o quê?
- A não ser que... concorde em que Jane e eu nos casemos sem
mais demora... - disse Canler, devagar e marcando bem as
palavras.
- Já sugeri a Jane que isso seria muito desejável... -
volveu o professor, tristemente -... porque já não podemos
permitir-nos o luxo de manter esta casa e viver ao nível das
relações dela.

318

- E qual foi a resposta de Jane?... - perguntou Canler.
- Disse que não se sentia ainda disposta a casar, fosse com
quem fosse... - respondeu o professor... - e que podíamos ir
instalar-nos na propriedade do norte do Wisconsin, que ela
herdou da mãe. A propriedade é um pouco mais do que
auto-suficiente. Os rendeiros sempre encontraram maneira de
viver do que a terra produz, e todos os anos mandam uma parte
que constitui um dos poucos rendimentos de Jane. Ela está a
planear partirmos no princípio da semana. Philander e o sr.
Clayton já lá estão, para preparar as coisas.
- Clayton foi para lá?... - exclamou Canler, visivelmente
contrariado. - Por que razão não me informaram? Eu teria ido e
cuidaria que a casa reunisse todos os confortos.
- Jane considera que já lhe devemos muito, sr. Canler.
Canler ia responder quando ouviram passos no vestíbulo, e
Jane entrou.
- Oh, desculpem... - disse ela, parando no limiar. - Julguei
que estivesse só, pai.
- Sou apenas eu, Jane... - disse Canler, que se tinha
levantado. - Não quer juntar-se ao grupo familiar? Estávamos
justamente a falar de si...
- Obrigada... - volveu Jane, entrando e sentando-se na
cadeira que Canler fora buscar. - Só queria dizer ao pai que
Tobey vem amanhã, do colégio, para arranjar os seus livros. É
preciso que o pai lhe diga o que pode dispensar até ao
Outono...

319

e peço-Lhe o favor de não querer levar todos os livros para
Wisconsin... como os teria levado para África se eu não
interviesse.
- Tobey esteve aqui?... - perguntou o professor Porter.
- Sim, deixei-o há momentos. Ele e Esmeralda ficaram a falar
de assuntos de religião, na porta das traseiras...
- Tut, tut... Preciso de lhe falar imediatamente... -
exclamou o professor. - Desculpem-me por instantes,
crianças... - e o velho sujeito apressou-se na direcção da
porta.
Assim que ele saiu, Canler voltou-se para Jane.
- Escute, Jane... - disse ele, sem rodeios. - Por quanto
tempo isto vai continuar assim? Não se recusou a casar comigo,
mas também não fez qualquer promessa. Eu estou disposto a
obter a licença amanhã, para que possamos casar tranquilamente
antes de partir para o Wisconsin. Não me importo com aparatos
nem pompas, e tenho a certeza de que também não se importa.
A jovem encarou-o friamente, de cabeça erguida.
- É o desejo de seu pai, bem o sabe... - acrescentou Canler.
- Sim, eu sei... - volveu ela, num murmúrio. Mas logo
prosseguiu, num tom friamente claro: - Compreende que está a
comprar-me, sr. Canler? A comprar-me, por uns quantos
miseráveis dólares? Decerto que compreende, Robert Canler, e a
ideia dessa possibilidade estava exactamente no seu espírito
quando emprestou a meu pai o dinheiro para essa tola expedição

320

- que sem um conjunto de estranhas circunstâncias teria tido
surpreendente êxito. Se tal êxito se tivesse verificado, sr.
Canler, o senhor seria o mais surpreendido... porque na
verdade nunca encarou a hipótese. É demasiadamente bom homem
de negócios, para isso. E também é demasiadamente homem de
negócios para emprestar dinheiro para aventuras de busca de
tesouros... ou mesmo para emprestar dinheiro sem garantias,
fosse qual fosse o fim... se não tivesse determinado objectivo
em vista... Sabia que, sem garantias, ficaria com mais poder,
sobre a honra dos Porters, do que tendo-as. Sabia que era a
melhor maneira de me forçar a casar consigo, sem parecer
forçar-me.
- Nunca mencionou o empréstimo. Tratando-se de outro homem,
eu teria considerado isso como manifestação de um nobre
carácter. Mas o senhor é profundamente tortuoso, Robert
Canler. Conheço-o melhor do que supõe... Casarei consigo, sem
dúvida, se não houver outra solução, mas vamos entender-nos
claramente e de uma vez para sempre.
Enquanto ela falava, Robert Canler tinha alternadamente
corado e empalidecido. Quando Jane se calou, ele levantou-se e
respondeu, com um sorriso cínico:
- Surpreende-me, Jane. Pensei que tivesse maior domínio
sobre os nervos, maior orgulho. É evidente que tem razão.
Estou a comprá-la e sabia que Jane o tinha compreendido... mas
pensei que preferisse fingir ser outro o caso. Pensei que o
respeito por si mesma, e o velho orgulho dos Porters, se
recusariam a admitir, mesmo intimamente,

321

que você era uma mulher comprada. Mas seja como preferir,
minha cara... - acrescentou ele, com um encolher de ombros. -
Vou tê-la, e é isso o que me interessa.
Sem uma palavra, a jovem voltou-se e saiu da biblioteca.

Jane não casou antes de partir com o pai e com Esmeralda
para a pequena propriedade de Wisconsin, e quando se despediu
friamente de Canler, à partida do comboio, ele disse-lhe que
iria lá ter dentro de uma semana ou duas.
Na estação de destino esperavam-nos Clayton e o sr.
Fhilander, num grande automóvel de turismo pertencente ao
primeiro, e partiram rapidamente para os bosques, ao Norte,
onde ficava a pequena propriedade que a jovem não visitava
desde a infância.
A casa principal, erguida sobre uma elevação a uma centena
de metros da casa dos rendeiros, tinha sofrido uma
transformação completa durante as três semanas de permanência
de Philander e Clayton. Este mandara vir um pequeno exército
de carpinteiros, e estucadores, e canalizadores, e pintores,
de uma cidade distante, e o que era uma velha casa muito
estragada, quando eles haviam chegado, passara a ser uma
bonita e confortável casa de dois andares, cheia de todas as
modernas comodidades que fora possível reunir em tão curto
espaço de tempo.
- Que fez, sr. Clayton?... - exclamou Jane Porter,
angustiada ao compreender o enorme volume da despesa feita.

322

- Ssh!... - sussurrou Clayton. - Não deixe que seu pai
adivinhe. Se não lho disser, ele nem sequer notará a
diferença... e eu não podia suportar a ideia de o ver
instalado nas ruínas desoladoras que encontrámos, o sr.
Philander e eu próprio, quando chegámos. Foi muito pouco para
o que eu queria fazer, Jane. Por amor de seu pai, não fale
nisto.
- Mas sabe perfeitamente que nunca poderemos pagar-lhe... -
excclamou a jovem. - Para que quis colocar-me ante uma tão
esmagadora obrigação?
- Não, Jane... - volveu ele, tristemente. - Se fosse apenas
você, eu não o teria feito... porque sabia antecipadamente que
isto só iria prejudicar-me aos seus olhos, mas era
inadmissível deixar esse querido velho viver no buraco que
encontrámos. Não pode fazer-me o favor de acreditar que fiz
isto apenas por causa dele... e deixar-me essa pequena migalha
de satisfação?
- Acredito-o, sr. Clayton... - disse Jane, gravemente -,
porque sei que é bastante generoso para ter feito isto para
ele... Mas... Cecil... gostaria de poder pagar-lhe como
merece... e como sei que deseja.
- E porque não pode, Jane?
- Porque amo outro homem.
- Canler?
- Não.
- Mas vai casar com ele... Foi o que ele me disse antes de
eu deixar Baltimore.
A jovem teve uma crispação.
- Não amo Canler... - reafirmou, quase com orgulho.
- É por causa do dinheiro, Jane?

323

Ela acenou afirmativamente.
- Então... serei eu menos desejável do que Canler? Tenho
dinheiro bastante, muito mais do que bastante, para todas as
necessidades... - disse Clayton, com amargura.
- Não o amo, Cecil... - volveu a jovem -, mas estimo-o e
respeito-o. Se tenho de me sujeitar a um "negócio" assim, com
um homem, prefiro que seja com um a quem despreze
antecipadamente. Odiarei o homem a quem me vender sem amor,
seja ele quem for... Você será mais feliz, sozinho, com o meu
respeito e a minha amizade, do que comigo e com o meu
desprezo.
Ele não insistiu, mas se alguma vez um homem sentiu dentro
do coração o desejo de assassinar outro, foi William C.
Clayton, Lord Greystoke, quando, uma semana depois, Robert
Canler apareceu na propriedade, ao volante do seu ronronante
seis cilindros.

Passou uma semana... sem acontecimentos, mas tensa e
desconfortável para todos os que estavam na pequena
propriedade do Wisconsin. Canler insistia para que Jane
casasse com ele, sem mais demoras.
Até que ela concordou, por puro desalento ante a odiosa e
desprezível insistência. Ficou combinado que no dia seguinte,
Canler iria à cidade e traria consigo uma licença de
casamento, e um sacerdote.
Clayton tinha querido partir logo que o plano foi anunciado,
mas a expressão de cansaço e desespero, de Jane, reteve-o. Não
podia abandoná-la naquele momento. Tentou reconfortar-se com a
ideia de que alguma coisa podia ainda acontecer. E sabia,

324

no fundo de si mesmo, que bastaria uma pequena faísca para
fazer explodir, em ânsia de matar, o ódio que sentia por
Canler.
Cedo, na manhã seguinte, Canler partiu para a cidade. Para
Leste podiam ver-se nuvens de fumo que pairavam sobre os
bosques, pois lavrava um incêndio não longe dali, havia quase
uma semana. Mas, como o vento soprava persistentemente do
Oeste, não havia perigo.
Cerca do meio-dia Jane afastou-se, dizendo que queria
caminhar sozinha durante algum tempo e recusando a companhia
de Clayton. Este respeitou os desejos de isolamento da jovem,
e foi estender-se num sofá da sala de estar. Depois de uma
noite de insónia, sentia as pálpebras pesadas e não tardou a
adormecer. Na casa, o professor Porter e o sr. Philander
estavam mergulhados numa discussão científica completamente
estéril, como de costume. Esmeralda dormitava, na cozinha.
Para Leste, as nuvens de fumo subiram mais... oscilaram... e
bruscamente começaram a deslocar-se na direcção contrária, a
direcção da casa. O vento havia mudado.
Os habitantes da casa do rendeiro estavam todos fora, porque
era dia de mercado... e ninguém notou o rápido avançar do
incêndio. Não tardou que as chamas alastrassem para o Sul,
cortando o caminho do regresso de Canler. Depois, um novo
capricho do vento levou-as para o Norte. Houve uma acalmia
brusca, e então o fumo e as chamas ergueram-se quase a
direito...

325

como esperando a mão do destino - o vento.
Foi então que, vindo pela estrada de nordeste, um automóvel
negro surgiu a grande velocidade e parou quase repentinamente,
diante da porta do edifício principal da quinta. Uma espécie
de gigante, de cabelos pretos, ßaltou do carro e correu para a
porta, entrando sem bater. Entrou na sala de estar, viu
Clayton que dormia sobre o sofá, e, dominando um gesto de
surpresa, correu para o inglês e sacudiu-o rudemente,
exclamando:
- Por Deus, Clayton! Estão todos doidos, nesta casa? Não
sabem que estão quase cercados pelo incêndio? Onde está. miss
Porter?
Clayton levantou-se, sobressaltado. Não reconheceu o homem,
mas compreendeu o sentido do alarme e correu para a varanda.
- Céus!... - bradou, precipitando-se novamente para dentro.
- Jane! Jane... onde está?
Em curtos instantes apareceram o professor Porter, o sr.
Philander e Esmeralda. Clayton agarrou a negra e
perguntou-lhe, sacudindo-a:
- Onde está miss Jane?
- Meu São Gabriel! A Menina foi passear, sr. Clayton!
- Ainda não voltou?... - e Clayton, sem esperar resposta,
correu para o pátio, seguido pelos outros.
- Para que lado foi ela?... - Perguntou o gigante de cabelos
negros, dirigindo-se a Esmeralda.
- Para... para esse lado... - respondeu a apavorada mulher,

326

apontando para o Sul onde se erguia a muralha das chamas.
- Meta essa gente no outro carro, o que eu vi quando
cheguei... - disse o desconhecido, olhando para Clayton. -
Leve-os para longe daqui, pela estrada do Norte... Deixem o
meu carro onde está. Se encontrar miss Porter, precisarei
dele... Se não a encontrar, não será preciso para ninguém...
Faça o que eu digo!... - acrescentou em voz imperiosa, ao ver
que Clayton hesitava.
Todos viram o poderoso vulto correr para os bosques, na
direcção de Noroeste onde as chamas não tinham ainda chegado.
Em cada um dos que ficavam surgiu a sensação de que o peso de
uma grande responsabilidade lhes fora retirado dos ombros.
Nascera neles a implícita confiança naquele gigante de cabelos
pretos... Sabiam, por instinto, que ele salvaria Jane... se
houvesse uma possibilidade humana de a salvar.
- Quem... quem era?... - perguntou o professor Porter.
- Não sei... - respondeu Clayton. - Chamou-me pelo meu nome
e decerto conhecia Jane, porque perguntou por ela. E também
tratou Esmeralda pelo seu nome.
- Havia alguma coisa de familiar, nele... - comentou o sr.
Philander. - E no entanto, Deus louvado, sei que nunca o vi
antes.
- Tut, tut... - fez o professor. - Muito... muito notável...
Quem poderia ele ßer... e por que estranha razão sinto

327

que Jane está salva... só porque esse homem foi em busca dela?
- Não sei dizer-lhe, professor... - respondeu Clayton,
gravemente. - Mas acontece que tenho a mesma sensação... No
entanto, façamos o que ele disse! Temos de sair daqui antes
que o caminho seja cortado pelo incêndio!
E o grupo correu para o automóvel de Clayton...
Quando Jane deu a volta para retornar, em sentido contrário,
o caminho que havia percorrido, sentiu-se alarmada ao ver como
o incêndio se aproximara entretanto. Apressou o passo... e os
seus receios quase se transformaram em pânico, ao perceber que
as chamas alastravam de maneira a cortar-lhe a possibilidade
de voltar para casa. Correu através do mato, tentando abrir
caminho para Oeste, numa tentativa para dar uma volta adiante
das chamas e alcançar a casa... mas não tardou a compreender a
futilidade da tentativa. Restava-lhe apenas a probabilidade de
correr para o Sul, e diligenciar salvar-se indo na direcção da
cidade.
Os vinte minutos que gastou até alcançar a estrada, foram os
suficientes para que o incêndio lhe cortasse também esse
caminho, como já lhe havia cortado o outro. Viu na sua frente
uma enorme barreira de chamas. O incêndio alastrava agora em
várias direcções, por entre os bosques densos e tão próximos
que formavam em verdade uma única floresta. Jane compreendeu
que era inútil tentar abrir caminho por entre as moitas. Já o
tentara antes, e falhara. Sabia que, dentro de minutos,

328

todo o espaço onde ela se encontrava seria uma imensa e
pavorosa fogueira.
Então, bruscamente calma, ajoelhou-se na estrada e rezou
para que Deus lhe desse forças para enfrentar o seu destino...
e para que o pai e os amigos pudessem salvar-se. Nesse momento
exacto ouviu uma voz forte, que chamava:
- Jane! Jane Porter!
- Aqui!... - respondeu ela, gritando. - Na estrada!
Viu um vulto que saltava entre as árvores, com a rapidez de
um esquilo. Uma rajada de vento envolveu-a em fumo,
impedindo-a de ver quem se aproximava, mas subitamente sentiu
que um braço forte a envolvia. Logo a seguir foi levantada e
sentiu o vento bater-Lhe na cara, ao mesmo tempo que os ramos
roçavam por ela.
Abriu os olhos. Muito em baixo, podia ver o chão e as
moitas. Em volta dela oscilava a densa folhagem das árvores. O
vulto gigantesco que a levava ia saltando com espantosa
agilidade de árvore em árvore - e Jane julgou reviver, como
num sonho, a estranha experiência por que passara nessa
distante selva do coração do Congo. Oh! Se fosse o mesmo homem
que então a levara através da espessura da selva! Mas isso era
impossível... No entanto, quem mais poderia haver, em todo o
mundo, com a força e a agilidade necessárias para fazer o que
fazia agora o seu salvador?
Olhou de relance para a face tão perto da sua...

329

e deixou escapar uma pequena exclamação de medo.
- O meu homem da selva... - murmurou. - Devo estar a
delirar...
- Sim, o seu homem, Jane Porter. O selvagem, a criatura
primitiva que saiu da selva para reclamar a sua companheira...
a companheira que Lhe fugiu... - disse ele, com uma espécie de
ferocidade contida.
- Eu não fugi... - murmurou Jane. - Só consenti em partir
depois de esperarem o seu regresso... durante uma semana.
Tinham alcançado um ponto para além da linha do incêndio, e
ele saltara para o chão, na grande clareira. Lado a lado
encaminharam-se na direcção da casa. O vento mudara uma vez
mais e o fogo voltava para trás, para o terreno já calcinado.
Mais uma hora assim e apagar-se-ia.
- Por que não voltou?... - perguntou Jane.
- Estive a cuidar de d'Arnot, que estava gravemente ferido.
- Ah! Eu sabia isso! E eles diziam que você tinha ido
juntar-se aos negros... porque pertencia à tribo.
- Mas você não acreditou, Jane?... - perguntou ele, rindo.
- Não... Como... como devo tratá-lo? Qual é o seu nome?
- Era Tarzan dos Macacos... quando nos vimos pela primeira
vez.
- Tarzan! Mas... mas então foi à sua nota... que eu respondi
antes de partir?

330

- Sim... De quem pensou que fosse essa mensagem?
- Não sabia... Pensava apenas que não podia ser sua, porque
Tarzan dos Macacos escrevera em inglês e você não compreendia
uma só palavra de qualquer língua.
Ele voltou a rir, dizendo:
- É uma longa história... Mas fui eu que escrevi o que não
podia dizer... e agora d'Arnot complicou tudo, mais ainda,
ensinando-me a falar francês em lugar de inglês... Mas venha,
suba para o meu carro. Vamos apanhar o seu pai, que não pode
estar muito longe.
Enquanto seguiam no carro, Tarzan voltou a falar:
- Dizia, na sua carta, para Tarzan dos Macacos, que amava
outro homem... Era possível que se referisse a mim?
- Era possível... - volveu ela, simplesmente.
- Mas em Baltimore... Oh, como a tenho procurado!...
Disseram-me que talvez já estivesse casada, nesta altura...
Que um homem chamado Canler tinha vindo aqui para casar
consigo. É verdade?
- Sim, é verdade.
- Ama-o?
- Não.
- E... a mim? Ama-me?
Jane escondeu a face entre as mãos.
- Estou prometida a outro... não posso responder-lhe,
Tarzan...
- Já respondeu... Agora diga-me por que razão está disposta
a casar com um homem a quem não ama?

331

- Meu pai deve-Lhe dinheiro.
Tarzan lembrou-se bruscamente da carta que lera...e do nome
de Robert Canler... e da sugestão de dificuldades que então
não havia podido compreender. Sorriu.
- Se seu pai não tivesse perdido o tesouro, você não se
sentiria forçada a cumprir a promessa feita a esse Canler...
- Poderia pedir-Lhe para me libertar.
- E se ele recusasse?
- Tem a minha promessa.
Tarzan ficou em silêncio durante longos minutos. O carro
avançava com dificuldade mas rapidamente, ao longo de um
caminho irregular e acidentado. O incêndio rugia ainda
assustadoramente, à direita, e outra mudança de vento poderia
cortar aquela estrada. Por fim, passado o ponto limite do
perigo, Tarzan reduziu a velocidade. Perguntou, continuando:
- E se eu pedisse a esse homem?
- Seria improvável que ele cedesse ao pedido de um
desconhecido... - volveu Jane. - Especialmente de alguém que
poderia querer-me também.
- Terkoz cedeu... - disse Tarzan, sombriamente.
Jane estremeceu e olhou, assustada, para ele. Sabia que
Tarzan estava a referir-se ao antropóide que matara para a
defender.
- Isto não é a selva africana... - murmurou. - E você já não
é um animal da selva. É um gentleman...

332

e um gentleman não mata assim, a sangue-frio.
- No fundo de mim mesmo sou ainda um animal da selva... -
disse ele em voz baixa, como falando consigo mesmo.
Voltaram a ficar em silêncio. Por fim, Tarzan perguntou:
- Jane... Casaria comigo, se fosse livre?
Ela não respondeu imediatamente, mas Tarzan esperou. Jane
tentava pôr em ordem o tumultuar dos seus pensamentos. Que
sabia ela da estranha criatura sentada a seu lado? Que sabia
ele, de si próprio? Quem era? Quem eram os seus pais?... Até
mesmo o nome dele era um eco da sua origem misteriosa, da sua
vida selvagem... Não tinha nome... Poderia ela ser feliz em
companhia daquele homem da selva? Poderia ter alguma coisa de
comum com um marido que passara parte da sua vida entre as
ramadas das árvores de uma selva africana... vivendo e lutando
com os ferozes antropóides... alimentando-se da carne crua que
devorava ainda palpitante... enquanto os seus companheiros
rosnavam e disputavam o seu quinhão? Poderia erguê-lo até ao
seu nível social... ou descer ao nível dele? Poderia algum
deles ser feliz, assim?
- Não responde... - disse ele. - Receia magoar-me?
- Não sei o que deva responder... - redarguiu ela,
tristemente. - Nem sequer entendo o que pensa.
- Não me ama, então?... - perguntou Tarzan, em tom calmo.

333

- Não mo pergunte. Será mais feliz sem mim. Você não foi
talhado para as restrições e convencionalismos da sociedade -
a civilização seria terrível de suportar, para si, e em breve
estaria desejoso de voltar para a sua liberdade e a sua
anterior maneira de viver... uma maneira de viver para a qual
eu estou tão completamente impreparada como você para a minha.
- Creio que a compreendo... - disse ele, brandamente. - Não
insisto... porque prezo mais a sua felicidade do que a minha.
Vejo agora que você nunca poderia ser feliz com - um macaco.
Havia uma ténue nota de amargura na sua voz. Jane quase
gritou:
- Não... não diga isso! Não me compreende...
Mas, antes que ela pudesse continuar, uma curva da estrada
deixou-os quase no meio de uma pequena povoação. Diante deles
estava o carro de Clayton, e em volta do carro o grupo que o
inglês trouxera consigo.

CAPÍTULO 28

Conclusão

Ao ver Jane, todos soltaram exclamações de alegria e de
alívio, e quando o carro de Tarzan parou junto do outro, o
professor tomou a filha nos braços.

334

Por momentos ninguém deu atenção a Tarzan, que ficara
sentado e em silêncio. Foi Clayton o primeiro a lembrar-se...
e encaminhou-se para ele, de mão estendida.
- Como poderemos alguma vez agradecer-Lhe?... - exclamou. -
você salvou-nos a todos. Tratou-me pelo meu nome, quando
chegou... mas a verdade é que não consigo lembrar-me do seu,
embora haja em si qualquer coisa de familiar... como se nos
tivéssemos encontrado há muito tempo, em circunstâncias muito
diferentes.
Tarzan sorriu, apertando a mão que o outro lhe oferecia.
- Tem toda a razão, Monsieur Clayton... - respondeu ele, em
francês. - Desculpe-me não lhe falar em inglês. Estou
exactamente a aprender a língua, e embora a compreenda
bastante bem, falo-a ainda muito mal.
- Mas quem é você?... - insistiu Clayton, falando agora
também em francês.
- Tarzan dos Macacos.
Clayton teve um sobressalto de surpresa.
- Céus! Mas é verdade!... - exclamou.
O professor Porter e o sr. Philander adiantaram-se para
juntar os seus agradecimentos aos de Clayton, e para
manifestar o prazer e a surpresa de verem o seu amigo tão
longe da selva onde o haviam encontrado.
O grupo entrou na modesta estalagem, onde Clayton não tardou
a estabelecer um acordo para a instalação de todos.

335

Sentaram-se numa pequena sala comum... e foi quase no mesmo
instante que ouviram o ruído do motor de um automóvel. O sr.
Philander, que se instalara perto da janela, viu o carro parar
junto dos outros dois.
- Deus seja louvado!... - disse ele, com um tom de flagrante
contrariedade. - É o sr. Canler... Eu tinha esperado que...
hum!... tinha pensado... hum!... que teríamos grande... prazer
em ver que ele não havia sido apanhado pelo incêndio...
- Tut, tut, sr. Philander... - admoestou o professor Porter.
- Muitas vezes avisei os meus alunos para contarem até dez
antes de falarem... No seu lugar, sr. Philander, eu contaria
até mil... e ficaria discretamente calado.
- Deus seja louvado... sim senhor... - concordou o sr.
Philander. - Mas quem é esse sujeito com aspecto clerical, que
o acompanha?
Jane empalideceu, e Clayton agitou-se na sua cadeira. O
professor Porter tirou os óculos, nervosamente, soprou nas
lentes... e voltou a colocá-los sem os limpar. Esmeralda
grunhiu entre dentes. Só Tarzan não compreendeu.
Robert Canler entrou na saleta, impetuosamente.
- Graças a Deus!... - exclamou ele. - Receei o pior... até
que vi o seu carro, Clayton. A estrada do Sul foi cortada pelo
incêndio... e tive de voltar à cidade para vir pelo lado
Leste. Pensei que nunca mais chegaria...
Ninguém pareceu alegrar-se muito. Tarzan olhou para Robert
Canler... como Sabor olhava para as suas presas.

336

Jane olhou para ele, de relance, e tossiu nervosamente.
- Sr. Canler... - disse ela -, apresento-lhe Monsieur
Tarzan, um velho amigo.
Canler voltou-se e estendeu a mão. Tarzan ergueu-se e fez
uma vénia - como só d'Arnot o podia ter ensinado a fazer - mas
não viu a mão de Canler.
Este pareceu não notar isso.
- Este é o reverendo Tousley, Jane.:. - disse Canler,
voltando-se para o homem de aspecto clerical que estava atrás
dele. - Miss Porter, reverendo.
O sr. Tousley fez um cumprimento, sorridente, e Canler
apresentou-o aos outros, acrescentando:
- Podemos celebrar o casamento agora, Jane. Depois
apanharemos o comboio da meia-noite, para a cidade.
Tarzan compreendeu no mesmo instante. Fitou Jane, por entre
as pálpebras semicerradas, mas não se moveu. Jane hesitava. Na
pequena sala pairava um silêncio tenso. Todos os olhos se
fixavam na jovem.
- Não podemos esperar uns dias?... - pediu ela. - Estou...
desorientada... passei hoje por uma terrível experiência...
Canler sentiu a hostilidade geral e irritou-se. Disse,
rudemente:
- Eu já esperei o que tinha a esperar. Prometeu casar
comigo, e não me prestarei a ser joguete por mais tempo. Tenho
a licença de casamento e está aqui o sacerdote. Venha,
reverendo Tousley, Vamos, Jane. Há bastantes testemunhas -
mais do que bastantes... - acrescentou, num tom desagradável,

337

ao mesmo tempo que agarrava Jane por um braço e a conduzia
para onde estava o sacerdote.
Mas tinha dado apenas um passo quando uma pesada mão o
agarrou, com dedos que pareciam de aço. Outra mão envolveu-lhe
o pescoço e no mesmo instante Canler foi levantado do chão,
como um rato apanhado por um gato.
Jane voltou-se, surpreendida e horrorizada, para Tarzan... e
ao fitá-lo viu o traço intensamente vermelho que lhe
atravessava a testa - o mesmo traço que vira uma vez, na
África distante, quando Tarzan travara o combate mortal contra
o gigantesco antropóide, Terkoz.
Compreendeu que Tarzan ia cometer um crime, e com um brado
correu para ele. Mas receava mais por Tarzan do que por
Canler... porque sabia o que a justiça reservava para os
assassinos. Antes de poder aproximar-se, porém, viu Clayton
saltar para Tarzan e tentar arrancar-lhe Canler das mãos.
Com um simples gesto do braço poderoso, Tarzan varreu o
inglês, atirando-o para o outro extremo da saleta..., e foi
então que a mão de Jane, branca e firme, se poisou no pulso do
homem da selva, ao mesmo tempo que ela o fitava nos olhos.
- Por mim... - murmurou Jane.
Os dedos que apertavam a garganta de Canler afrouxaram um
tanto. Tarzan olhou para a bela face da jovem.
- Quer que "isto" viva?... - perguntou ele, surpreendido.

338

- Não quero que morra às suas mãos, meu amigo... Não quero
que seja um assassino...
Tarzan largou a garganta de Canler, mas segurou-o por um
braço e sacudiu-o.
- Liberta Jane Porter do seu compromisso?... - perguntou. -
É o preço da sua vida.
Sufocado, tentando respirar, Canler acenou afirmativamente.
- Vai-se embora e não volta a incomodá-la?
De novo o homem acenou que sim... Tinha a cara congestionada
e as feições crispadas pelo medo da morte que vira tão
próxima. Então Tarzan largou-o e Canler cambaleou na direcção
da porta, seguido pelo apavorado reverendo. Tarzan voltou-se
para Jane, perguntando:
- Posso falar-lhe a sós, por um momento?
Encaminharam-se ambos para a estreita varanda da estalagem.
Ela seguiu adiante, para esperar Tarzan, e por isso não ouviu
a conversa que se travou.
- Um momento!... - exclamou o professor Porter, que parecia
espantado com os acontecimentos dos últimos instantes. - Antes
de ir mais adiante, sir, gostaria de ter uma explicação do que
se passou. Com que direito interferiu entre minha filha e o
sr. Canler? Eu tinha prometido a mão dela a esse senhor, e
independentemente de simpatias ou antipatias, a promessa deve
ser cumprida.
- Interferi, professor Porter... - respondeu Tarzan-... -
porque sua filha não ama o sr. Canler e não deseja casar com
ele. Para mim é o bastante.

339

- Não sabe o que fez!... - exclamou o professor Porter. -
Agora ele vai decerto recusar-se a casar.
- Sem a menor dúvida que se recusará!... - afirmou Tarzan,
com ênfase. E acrescentou: - Além disso, não tem razão para
recear que o seu orgulho sofra, professor Porter, porque
poderá pagar a esse Canler o que lhe deve, assim que chegar a
casa.
- Tut, tut... Que quer dizer com isso, sir?
- O seu tesouro foi encontrado.
- Que... que está a dizer?... - quase gritou o professor. -
Endoideceu... Isso é impossível!
- No entanto é verdade, Fui eu que o escondi, ignorando o
seu valor e a quem pertencia. Vi que os marinheiros enterravam
a mala e, um tanto como os macacos, senti o desejo de a
desenterrar e ir enterrá-la noutro sítio. Quando d'Arnot me
disse o que havia na mala e o que isso significava para si,
voltei à selva e recuperei-a. Esse tesouro tem sido origem de
tantos crimes, e sofrimentos, e desgostos, que d'Arnot achou
preferível não tentar trazê-lo para aqui, como era minha
intenção, e assim trago-lhe uma carta de crédito do valor
correspondente... Aqui a tem, professor... - continuou Tarzan,
tirando um sobrescrito do bolso e entregando-o ao espantado
professor. - São duzentos e quarenta e um mil dólares. O
tesouro foi cuidadosamente avaliado por técnicos, mas se
houver alguma dúvida no seu espírito, o próprio d'Arnot o
comprou e tem-no à sua disposição, se preferir o tesouro ao
crédito.
- Ao já enorme volume de obrigações que lhe devemos... -
disse o professor Porter, em voz trémula.

340

- Acrescenta agora o maior de todos os serviços...: porque me
dá os meios de salvar a minha honra.
Clayton, que saíra um minuto depois de Canler, voltou nesse
momento.
- Desculpem-me... - disse ele -, mas julgo preferível irmos
para a cidade antes da noite, e tomarmos o primeiro comboio
para longe desta floresta. Um habitante da região, que chegou
do Norte, informa que o fogo avança lentamente na nossa
direcção.
Esta informação interrompeu todas as conversas, e todos se
dirigiram para os automóveis que esperavam. Clayton, com o
professor Porter, Jane e Esmeralda, tomaram lugar no carro do
jovem inglês, e Tarzan levou consigo o sr. Philander.
- Deus seja louvado!... - exclamou o digno Philander, quando
o carro partiu. - Da última vez que o vi... era um verdadeiro
homem da selva, a viajar entre os ramos de uma floresta
tropical... e agora leva-me ao longo de uma estrada do
Wisconsin, num automóvel francês... Quem julgaria possível tal
coisa? Deus seja louvado! É... é muito notável!
- Sim... - concordou Tarzan. E, depois de uma breve pausa,
perguntou: - Sr. Philander... recorda-se de todos os
pormenores da descoberta e do enterramento dos três esqueletos
que encontraram na minha barraca?
- Muito distintamente, sir...
- Havia alguma coisa de peculiar em algum desses esqueletos?

341

O sr. Philander olhou atentamente para Tarzan.
- Por que pergunta isso?
- A resposta significa muito para mim... - disse Tarzan. -
Pode esclarecer um enigma... e, seja como for, não tornará
nada pior do que está. Tenho vindo a arquitectar uma teoria,
desde há dois meses, a respeito desses esqueletos, e desejo
que responda à minha pergunta o melhor que souber... Eram
humanos, todos esses três esqueletos que enterraram?
- Não... - declarou o sr. Philander. - O mais pequeno, o que
encontrámos no berço, era o esqeleto de um macaco antropóide,
uma cria...
- Obrigado... - disse Tarzan.
No carro que seguia adiante, Jane pensava intensamente.
Tinha adivinhado o motivo que levara Tarzan a querer falar-lhe
a sós... e embora essa conversa não tivesse chegado a
concretizar-se, sabia que devia estar preparada para lhe dar
uma resposta, num futuro muito próximo. Ele não era o género
de pessoa que pudesse afastar-se sem uma explicação... e esta
ideia fez Jane pensar se, realmente, não teria medo dele.
Poderia amar alguém a quem temia?
Compreendia o feitiço que a envolvera nas profundezas da
selva distante... mas agora, no prosaico Wisconsin, não havia
feitiços... Por outro lado, o correctíssimo gentleman francês
não exercia sobre ela, sobre o que havia de primitivo nela, a
mesma fascinação que encontrara no belo semideus da selva.
Amava-o? Não o sabia - agora.
Olhou para Clayton, de relance. Era um homem educado no
mesmo ambiente em que ela própria fora educada...

342

um homem de posição social e de cultura, coisas que ela
aprendera a considerar como as principais para uma harmoniosa
vida em comum. O seu raciocínio apontava-lhe o jovem nobre
inglês, cujo amor ela sabia ser do género que qualquer mulher
civilizada podia desejar, como o companheiro indicado para
ela.
Poderia ela amar Clayton? Não via qualquer razão para que
não pudesse. Jane não era friamente calculista, por natureza,
mas a educação, o ambiente e a hereditariedade, tudo se
conjugava para a fazer raciocinar - mesmo em assuntos de
coração.
Que tivesse ficado estonteada pela força do belo semideus da
floresta, quando ele a tomara nos braços, na distante selva
africana - e novamente naquele mesmo dia, nos bosques do
Wisconsin - parecia-lhe apenas significar um temporário
regresso... à atracção psicológica do homem primitivo
relativamente à mulher primitiva que existia latente, dentro
dela - no ambiente próprio.
Pensava que, se ele não voltasse a tocar-lhe, nunca voltaria
a sentir-se atraída para Tarzan. Não o tinha amado, portanto,
Havia sido apenas uma alucinação passageirra, sob a influência
da excitação e do contacto pessoal. Mas a excitação não
marcaria sempre as suas relações futuras, se casasse com ele,
e o contacto pessoal seria provavelmente embotado pela
familiaridade.
Voltou a olhar para Clayton, ao lado de quem ia sentada. Era
um bonito homem, e um gentleman dos pés à cabeça.

343

Poderia ter orgulho num tal marido.
E foi então que Clayton falou. Um minuto mais cedo, ou um
minuto mais tarde, teriam podido significar uma espantosa
diferença, para três vidas. Mas o acaso interveio e fez com
que Clayton falasse no momento exacto.
- Está agora livre, Jane... - disse ele. - Não poderá dizer
"sim"... e permitir-me dedicar toda a minha vida a torná-la
feliz?
- Sim... - sussurrou ela.
Nessa noite, na pequena sala de espera da estação, Tarzan e
Jane ficaram sós, por um momento.
- Está livre agora, Jane... - disse ele -, e eu vim através
das idades... do vago e distante passado... desde o covil do
homem primitivo, para a reclamar. Por si tornei-me um homem
civilizado... por si atravessei mares e continentes... por si
serei sempre o que quiser que eu seja. Posso fazê-la feliz,
Jane, na vida. que você conhece e aprecia. Quer casar comigo?
Pela primeira vez, Jane compreendeu a profundidade do amor
dele... tudo o que ele havia feito, em tão curto espaço de
tempo, apenas por amor dela. Voltando a cabeça, escondeu a
cara entre as mãos.
Que tinha ela feito? Por medo de sucumbir ao apelo daquele
belo gigante... queimara as pontes atrás de si... No infundado
temor de cometer um erro, cometera um erro maior.
E então Jane falou, contou-lhe tudo... toda a verdade,

344

palavra por palavra, sem tentar poupar-se ou justificar o seu
erro.
- Que podemos fazer?... - perguntou ele. - Reconhece que me
ama... Eu sei que a amo, mas sou ainda ignorante das leis
morais pelas quais a sua sociedade se rege. Deixo-lhe a si a
decisão, porque sabe melhor o que deve fazer para seu bem.
- Eu não posso dizer-lhe, a ele... - respondeu Jane. -
Também me ama, e é um homem bom. Nunca poderia olhar de frente
para si, ou para qualquer outra pessoa honesta, se repudiasse
a promessa que fiz a Clayton. Terei de a manter... e você terá
de me ajudar a suportar o fardo, embora nunca mais voltemos a
ver-nos depois desta noite.
Os outros entravam no compartimento, nessa altura, e Tarzan
aproximou-se da janela. Mas nada via do lado de fora... e
dentro dele via uma larga mancha de verdura rodeada por
magníficas plantas e flores tropicais... e mais alto os ramos
ondulantes das árvores... e mais acima ainda, acima de tudo, o
azul maravilhoso do céu. No centro da clareira estava uma
jovem, sentada sobre um pequeno monte de terra, e junto dela
um gigante, jovem também... Comiam frutos, olhavam-se nos
olhos, e sorriam. Estavam completamente sós, e eram felizes...
Os pensamentos de Tarzan foram interrompidos por um
funcionário da estação, que entrara e perguntava em voz alta
se estava ali um ngentleman de nome Tarzan.

345

- Eu sou Monsieur Tarzan - disse o homem da selva.
- Está aqui um telegrama para si, vindo de Paris e
reexpedido de Baltimore...
Tarzan abriu o telegrama. Era de d'Arnot - e dizia:

"Impressões digitais provam você Greystoke.
Parabéns.

d'Arnot"

Quando Tarzan acabou de ler, Clayton entrou e dirigiu-se
para ele.
Ali estava o homem que tinha o título de Tarzan, a fortuna
de Tarzan - e que ia casar com a mulher a quem Tarzan amava -
a mulher que amava Tarzan. Uma simples palavra de Tarzan faria
uma enorme diferença na vida daquele homem.
Despojá-lo-ia do título, das terras, dos castelos - e
tiraria tudo isso a Jane Forter, também.
- Meu caro... - disse Clayton -, ainda não tive a
oportunidade de lhe agradecer tudo o que fez por nós. Parece
que não tem feito outra coisa senão salvar-nos a vida, tanto
em África como aqui... Alegra-me muito que tenha vindo.
Precisamos de nos conhecer melhor. Tenho pensado muitas vezes
em você, e nas notáveis circunstâncias que o rodeiam...
Se é que eu tenho alguma coisa com isso, por que estranhas
razões você foi ter a essa complicada Selva.

346

- Nasci lá... - respondeu Tarzan, brandamente. - Minha mãe
era uma macaca, e evidentemente não podia contar-me grande
coisa. Nunca soube quem foi o meu pai...

FIM

- Novas aventuras de Tarzan, e o que aconteceu em
consequência do seu nobre gesto de renúncia serão contadas no
volume seguinte, que se intitula "O REGRESSO DE TARZAN.

o mundo, e um ou dois filósofos (!) franceses pegaram no
assunto e tentaram dissecá-lo. Atribuiram-lhe malefícios,
disseram que era contraproducente para as crianças, ou então
que era o herói puro, aquele que as crianças deviam ler,
porque lhes incutia no espírito princípios de acordo com a
Natureza. Não nos interessa aqui comentar quaisquer dessas
correntes, embora em Portugal, por volta dos anos 50-60 os
educadores se deixassem influenciar pelo "que dizia paris" e
proibissem também Tarzan, sobretudo nos jornais juvenis. Mas
essa medida foi tão absurda, como outra promulgada, nessa
altura por uma Comissão para as coisas juvenis, que proibiu
que nosjornais juvenis aparecessem pistolas ou quaisquer
espécies de armas.
Tarzan, porém, sobreviveu a tudo isso. Conheceu sobretudo
pelos seus filmes e pela banda desenhada, a maioria dos países
do mundo, e viu-se traduzido e lido também em muitos deles.
Foi e é aquilo a que se pode chamar um "best-seller" de todos
os tempos.

(Nota de R.P.)

//
Eis a capa da revista uAll Story (Outubro de 1912, onde
Tarzan apareceu pela primeira vez.

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